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Daniela Veludo Fernando H. Domingos Loris Reggiani Márcia Carvalho Marilia Oliveira Raul Otuzi
osseis insepa‑ ráveis TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA
São Paulo, 2 017
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Os seis inseparáveis
Copyright © 2017 by Raul Otuzi Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.
coordenação editorial
editorial
Vitor Donofrio
João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda
aquisições
Cleber Vasconcelos
diagramação
capa
Nair Ferraz
Dimitry Uziel
revisão
Vânia Valente
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
Os seis inseparáveis / Daniela Veludo... [et al]. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017. 1. Ficção brasileira I. Veludo, Daniela. 17‑1350
cdd‑869.3
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção: Literatura brasileira 869.3
novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699‑7107 | Fax: (11) 3699‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br
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Pa r a a n os s a fa mí l i a e a mig o s, pe s s oa s q ue , me s mo à s v e z e s es ta nd o l o ng e , d e a lg u m mod o e s tão se mpr e pe r t o d e nó s.
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Daniela Veludo - Leandro Fernando H. Domingos - Diana Loris Reggiani - Manu Márcia Carvalho - Fábio Marilia Oliveira - Guilherme Raul Otuzi - Helena
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Um
[Helena]
Calma, eu vou contar tudo. Só preciso primeiro parar de tremer. Olha as minhas mãos, como estão desassossegadas, parece que estão ligadas em modo vibratório intenso. As pontas dos meus dedos? Saracoteiam tam‑ bém. E tão enrugadas que se assemelham à pele de uma idosa que teve a vida sulcada por um mundaréu de tristezas. Os pingos de água escorrem pelo meu rosto, desenhando veias gros‑ sas e curtas, interrompidas bruscamente pela minha boca ou pelo fim das linhas pequeninas da minha face. Meus lábios, apesar de eu não poder vê‑los, oscilam entre o roxo e a cor púrpura, tenho certeza. Os bicos dos meus seios estão latejando, duros, duros, apontando para cima em posi‑ ção de ataque. Eu não devia ter entrado nesta piscina. Brrr. Que gelo. Eu não devia. Mas agora é tarde. Sempre fui indecisa e sempre me arrependi das minhas escolhas. Deve ser coisa do meu signo. Ou de personalidade mesmo. Nunca sei. Comecei três faculdades, não terminei nenhuma. A primeira delas foi Medicina. É por isso que estou aqui, nesta chácara, nesta piscina turva, folhas secas, tufos de pelos, insetos mortos. É o encontro da minha turma de MED. Eles estão completando cinco anos de formados. Eu saí no começo do nono período para estudar engenharia civil, depois também não gostei do curso e larguei, assim como fiz com agronomia. Eu avisei que sempre fui indecisa. Hoje tenho uma loja de roupas femininas em Curitiba para onde me mudei com a minha filha em 2014. Não é a sala inteira que está reunida, obviamente. Somente os mais próximos, Os Seis Inseparáveis, como nos autodenominávamos, em um misto de distinção e orgulho. Éramos amigos pra valer, até debaixo d’água (que ironia). A em‑ patia e a afinidade foram imediatas. Muitos gostos e pontos em comum, 7
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todos aficionados por rock e filmes nacionais, miojo e cerveja barata, to‑ dos nós vindos de fora de Ribeirão Preto, a cidade da nossa universidade, a USP. Fábio, Manu, Guilherme, Leandro, Diana e eu. Dessa amizade foram formados dois casais. Engraçado que nenhuma relação durou. Mas os laços criados naquela fase foram tão fortes que estamos aqui desde sexta‑feira cedo. Três dias de festa. Dois já se foram. Loucura extrema. Falta o domingo. Medo do que vem por aí. Diana e eu fomos as primeiras a começar e a terminar o namoro. Ela anunciou que estava grávida poucos dias antes de eu abandonar o curso. Fiquei em choque. Eu não esperava. Mas espera, não a julgue mal. Ela ficou grávida... de mim. Deu tilt? Escuta. Na época, por incrível que pa‑ reça (e isso é incrível mesmo!), eu era um rapaz. Eu comecei a me trans‑ formar em Helena cerca de dez meses após ter saído do curso, tinha vinte e um anos. Ninguém soube, me afastei de todos. Ninguém acompanhou minhas mudanças. Eu acompanhei a vida de todos, ainda acompanho, via redes sociais. Facebook, Instagram, Twitter, Linkedin, Snapchat. As pessoas sempre foram livros abertos, agora mais ainda, é só querer ler. Diana se especializou em Oncologia, a única que se fixou em Ri‑ beirão. Ficou noiva três vezes. Casamento marcado para daqui a poucos meses. O nome dele é João Lucas, advogado, quarentão. Fábio e Manu terminaram quase no fim da faculdade, moraram juntos, até que chega‑ ram à conclusão que eram melhores como amigos do que como namora‑ dos. Ele virou cirurgião plástico de renome. Sócio de uma clínica no Rio de Janeiro. Sempre solteiro. Ela, pediatra, se casou com o treinador de goleiros do Cruzeiro, um grandalhão narigudo chamado Jonas. Guilher‑ me e Leandro eram tão amigos que a gente brincava que só faltava eles namorarem. Pelo que a gente sabe, isso não aconteceu, mas chegaram a dividir uma mesma namorada, Suzana. Eles se orgulhavam de ter uma re‑ lação aberta e sincera, que acabou não resistindo quando eles descobriram que Suzana tinha ficado com o irmão de Guilherme, Tales. Guilherme arrumou emprego como clínico geral no SUS, em Franca. Casou com Marina, vendedora na Casas Bahia. Leandro juntou os trapos com uma argentina, dona de uma rede de restaurantes em Buenos Aires. Teve um filho, divorciou‑se. Ficou com a guarda da criança, recebendo pensão da ex‑mulher, nunca exerceu a Medicina. Fez um curso on‑line em design de interiores e começou a atuar como decorador quando desse na telha, 8
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apenas para afugentar o tédio. Voltou para Santos, sempre viajando com frequência. Quem me chamou para o encontro foi a Manu. Ela mudou para Belo Horizonte, foi a Curitiba para um congresso de pediatria. A mala dela foi extraviada no aeroporto e então ela teve que comprar roupas novas. Entrou na minha loja e, assim que me avistou, ficou com as pupilas gru‑ dadas em mim, como se eu fosse um ímã. Eu devia ter ido embora, mas me bateu uma nostalgia gigantesca, uma vontade de falar com a minha antiga amiga. Ela sempre foi uma das minhas preferidas, ríamos muito, trocávamos confidências. Então fiquei lá, coração aos pulos, pernas pe‑ trificadas, sabendo que apesar do meu rosto, do meu corpo ter mudado completamente, eu seria descoberta. Quando ela foi pagar e se dirigiu a mim no caixa, olhou bem no fundo dos meus olhos e me abordou: – Puxa, você se parece tanto com um amigo de faculdade. – Mesmo? – Sim. Um amigo de quem eu gostava muito. – Gostava? Não gosta mais? Ela sorriu. – Pelo amor de Deus! É você. É você, Renato! Pedi para ela falar baixo. – Que piração! Se me contassem eu não acreditaria. O que aconte‑ ceu? Você nunca, nunca foi… foi... afeminado, desculpa eu falar assim. Nossa! Como você está bonita. Uma mulher perfeita. Mexi nos cabelos, lisonjeada. Fomos tomar um café e eu contei tudo para ela. Como eu decidira me assumir (fiquei com o Tales também, sabia? Foi a minha primeira vez), como tinha sido o tratamento com hormônios (tomei direto, durante um ano e meio). Como tinha ido parar em Curitiba (vim fazer faculdade, gostei da cidade, acabei ficando, é frio, mas é bom). Só não falei da minha filha. Ela não podia saber que eu estava criando a Isa‑ bel. Após passar pelo Conselho Tutelar, Diana entregou a menina para um orfanato. Tinha dois dias de vida. Eu descobri e convenci minha tia a adotá‑la. Minha filha não ia crescer sem mãe, como eu. E não cresceu. Quando minha tia foi internada em uma clínica para reabilitação de dro‑ gados, eu assumi a guarda completa de Isabel, foi difícil mas deu certo, meu nome social já havia sido mudado em minha certidão de nascimento e, depois de várias sessões e entrevistas com assistentes sociais, o juiz decidiu a meu favor. Ele entendeu que a maternidade socioafetiva está 9
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amparada pelo vasto conceito de “família”, consignado implicitamente em nossa Constituição. Manu ouviu atentamente. E, mordiscando um pequeno pedaço de pão de queijo, disse que eu tinha que ir ao encontro da nossa turma, Os Seis Inseparáveis. – Verdade, vai ter um encontro – repetiu. – Daqui a dois meses, ó que coincidência. Lembra que marcamos esse encontro na época de faculda‑ de? Cinco anos depois de formados. Lembra? Assenti com a cabeça, ela continuou dizendo que agora sim, tudo seria perfeito, completo. Nós seis juntos novamente. Tocou a minha mão e en‑ fatizou que todos viviam se lembrando de mim e lamentando meu sumiço. – Ah, todos ficarão tão surpresos ao te ver. Eu ri. – Mas é claro, surpresos. Muito surpresos. Como você ficou. Você ainda está sem cor, tem noção? Manu balançou a cabeça. – Surpresos não. Felizes. – E tentou corrigir: – Feliz como eu fiquei. Fico pensando na cara da Diana. Era tão apaixonada por você. Ignorei o comentário e falei que ia pensar. Não pensei. Se eu tivesse pensado é claro que eu não teria vindo ao encontro. Não tinha a mínima chance de dar certo, eu precisava me preservar. Mas Manu praticamente me intimou: – Rena... foi mal. Helena, se você não vier, vou contar para todo mun‑ do e a gente vem aqui te visitar... – Por favor, isso não. Não quero ninguém aqui em Curitiba invadin‑ do meu espaço. Não faz isso. Quero manter minha intimidade, minha privacid... Ela me cortou: – Então vem. Encara. A gente vai relembrar um monte de coisas, vai dar boas risadas, vai beber, se divertir, talvez chorar um pouco, de sauda‑ de. Faz parte. Depois cada um segue a sua vida. Até o próximo encontro. Afinal, nós sempre fomos unidos. Você tem que ir. Você não pode ficar fugindo. Vai ser bom. Eu prometo. Promete? Como fui besta. Eu ia retrucar, fiquei quieta. Pensando bem, não tive muita escolha. Tive?
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Nossa, já falei tanta coisa e ainda não parei de tremer. Tenho a im‑ pressão que é uma tremedeira incurável, um mal de Parkinson precoce para a minha vida inteira. A culpa? É desse corpo horrível no fundo da piscina. Menos mal que está de bruços, não vejo o seu rosto. Mesmo as‑ sim, senti‑lo tão perto e saber que EU sou a responsável, está mexendo demais comigo, me dando náuseas, atacando mais os meus nervos do que a temperatura congelante da água. Eu não devia ter entrado nessa droga, eu não devia ter dado ouvido às suas palavras, não devia ter reagido, não devia ter mergulhado a cabeça, eu não devia. Não. Não devia. Estupidez. Um instante de insanidade e agora eu sou, meu Deus, assassina. As‑sas‑si‑na. Será que alguém viu? Não. Claro que não. Absolutamente não. Todos estão dormindo. Vou dormir também, meu álibi. Não ouvi nada. Tenho sono pesado. Vocês ouviram? Vou perguntar, cara lavada. Mas antes preciso me livrar desse corpo. Sem cor‑ po, sem crime. O problema é que não consigo parar de tremer. O proble‑ ma é que não sou tão forte assim. Jogar no rio? Cavar uma cova? Talvez o melhor seja deixar aqui mesmo. Afogou‑se? Que horror. Mas também, bebeu tanto!, lamentarei, com um pouco de maquiagem, para borrar o rímel. O que é melhor? Vamos, Helena. Pensa. Para de tremer. Controle‑se. Mãos serenas. Mãos à obra. Daqui a pouco amanhece, daqui a pouco a mi‑ nha vida escurece. Para sempre. Bendito sol, vem me iluminar, bendito sol, vem me aquecer. Está armando um tempo feio. Acho que vai chover. Brrr.
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