Ponto Cego

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Prólogo

“Vá em frente”, ordenava a voz. “Não reaja!”

Ele apertou o embrulho debaixo do braço. Tateava pelo corredor estreito, incapaz de enxergar. Há quanto tempo estava ali? Não se recordava como chegara àquele ponto, nem das alternativas surgidas no caminho. Apenas o cérebro entorpecido e a voz dentro dele. Quando se deparou com a porta, teve dificuldade em encaixar a chave na fechadura. Esforçou­‑se e conseguiu entrar. Logo nos primeiros passos, escutou o som da água se chocando com a parede. Veneza. Ao menos disso ele se lembrava. Bateu a porta atrás de si. Percebeu o choque levantar um tanto de poeira, ao sentir­‑se sufocado. Levou a mão ao rosto e notou uma maschera. Isso o incomodava bastante. Porém, outra coisa incomodava ainda mais. O peito. Havia algo nele. “O que você está fazendo? Não é hora para isso, ande logo!” Ele obedeceu. Deu cinco passos até uma mesinha e colocou o embrulho sobre ela. Percebia agora: encontrara o pequeno móvel como se tivesse estudado aquele lugar diversas vezes para não errar. Existia uma lógica para saber onde cada mobília estava. Não eram muitas, mas bastava contar os passos – arrastados, a fim de sentir todo o chão colado aos pés para não cair – e localizar o que queria. 9


Felipe Colbert

Foi quando o perfume da mulher chegou mais forte que tudo. Mais dois passos à esquerda e encontrou a cama. Sentou­‑se. A mão tocou algo que parecia o ventre. Ela não se mexeu. Estava gelada, certamente pelo corpo nu estar há tanto tempo adormecido naquele local úmido e frio. Ele sentiu os ossos estremecerem. Deslizou os dedos pelo tórax dela, em direção ao rosto. Fez movimentos circulares com as mãos, explorando a face, que logo já não era tão misteriosa assim. Ela parecia jovem. E bonita. Em outra situação, ele poderia apaixonar­‑se facilmente. Por que não? Talvez houvesse tempo. Bastava um resquício de força, concentrar­‑se e vencer a voz. Podia acontecer, ainda mais que não tinha certeza absoluta se queria seguir em frente com aquilo. Não seria fácil, claro. Mas, afinal, não existe solução para tudo? “Muito bem, você já construiu seu retrato! O que está esperando?” A voz. Sempre ela. Prestava atenção em cada detalhe, não tinha como se livrar. Ele recolheu as mãos e se levantou. Retirou um par de luvas do bolso. Calçou­‑as. Engraçado como alguns minutos eram suficientes para começar a se acostumar, a se mexer com mais desenvoltura. Depois, deu outros dois passos, retornando à mesa. Abriu a gaveta e buscou um controle remoto. Levantou­‑o a esmo, apertando o botão do topo. O clique vindo da parede indicava que a câmera de vídeo iniciava a gravação. “Enfim, chegou o momento!” Desfez o embrulho, sem a necessidade da voz contar­‑lhe o que tinha ali. Melhor assim. Melhor que ficasse quieta daqui pra frente, deixando tudo por sua conta. Então escolheu um objeto e retornou à cama. Balançou o rosto da jovem, com bastante força, até que ela acordasse. Para azar dela.

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Capítulo 1

Daniel Sachs não se libertaria tão facilmente. Havia se passado um ano, mas o pior dia de sua vida ainda retornava em forma de pesadelo, como naquela noite. Iniciava sempre do mesmo jeito: a voz de Nilla, que de tanto se esforçar para manter a tranquilidade, chegava a tornar­‑se perturbadora. – Você deveria ter me avisado – disse ela. No fundo, Daniel sabia que a esposa estava certa. Notícias como a que acabara de dar, reveladas em meio a uma viagem de fim de semana, podem causar dois tipos de reações nas pessoas: a sensação de estarem recebendo um dos maiores presentes da vida ou a que presenciou dentro de sua Cherokee enquanto dirigia. – Se eu contasse antes, você teria concordado em vir? – perguntou ele. Nilla sequer mexeu a cabeça. Fechava­‑se como uma ostra quando via uma discussão se aproximando. Não podia dizer que aprovava isso, mas a respeitava. E deixá­‑la desconfortável não estava nos planos – ainda mais manifestando aquela linda barriga de quatro meses. Mas uma mexida em suas vidas não parecia ser tão ruim assim, mesmo que fosse um pouco radical. – Vamos, não é o fim do mundo, é justamente o contrário – disse ele. – Comprar e morar em uma chácara? 11


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– Não disse que é uma chácara, é uma casa de campo! Dois andares e lareira. E vamos ficar a menos de cem quilômetros da capital. Eu ainda não fechei o negócio, não faria isso sem seu consentimento. – Eu já me mudei várias vezes, você sabe... – Ela fazia menção à época em que fez intercâmbio na Itália e todas as vezes em que precisou alterar o endereço a trabalho. – Pensei que estivéssemos bem em nosso apartamento. – E estamos – concordou Daniel –, mas você não pensa em melhorar sempre? Temos um bebê a caminho. Se pudesse escolher, deixaria ele crescer em meio a nossa vizinhança ou deitado na grama ao nosso lado? Nilla esboçou um sorriso. Ótimo. Atingira em cheio uma lembrança agradável dentro dela. Seu semblante não combinava com amargura. Nilla era basicamente bonita – cabelos castanhos, rosto magro e alvejado, olhos verdes – e tinha energia capaz de motivá­‑lo por mais uns trezentos anos. Mas a pergunta não fora suficiente para convencê­‑la, e os lábios desmancharam­‑se em míseros segundos. – Você sabe o que me incomoda – respondeu ela. Daniel não aquiesceu, embora soubesse bem a resposta. – Sua carreira? A pergunta fez com que os belos traços de Nilla endurecessem tão instantaneamente quanto o espocar da Nikon que ela utilizava como fotógrafa profissional. “Você é um miserável filho da mãe!”, Daniel disse a si mesmo. Tentou consertar: – Podemos arrumar uma babá em tempo integral. – Nenhuma funcionária será boa o suficiente para que eu fique tanto tempo longe de nosso filho, indo e vindo da cidade, despreocupada. – Você ainda conseguirá organizar sua própria exposição com bastante calma. – A exposição! – exclamou ela. O sonho de Nilla. Não cansava de citar as mostras que assistira no Metropolitan Museum de Nova York ou na Cartier, em Paris. Largos corredores brancos com pessoas conjecturando entre canapés e taças de champanhe. Certamente, imaginava as próprias fotos naquelas paredes. – Minha carreira terá que ficar para depois. Bem depois – completou ela, arrependendo­‑se em seguida. Diante da situação, a frase soou estranha. – Você nunca se cansou de me ouvir falar sobre estas besteiras? 12


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– Nunca – respondeu ele. – Olhe, estamos juntos nessa! Terei bastante tempo para cuidar de nosso filho, não precisarei estar na redação todos os dias. Posso escrever minhas matérias de qualquer lugar. Talvez consiga uma coluna, quem sabe... Marvin e eu já cogitamos isso. – Colunista? Marvin vai liberá­‑lo das matérias? Você é o melhor repórter que aquela editora já teve! Daniel rendeu­‑se num sorriso, enquanto o silêncio se encaixava dentro do carro. A estrada se repetia em curvas, com extensos trechos de mata encapando as laterais das pistas em sentido duplo. Os olhos dela seguiam fixos, distantes em algum ponto do asfalto. Após superar um longo intervalo reto e uma ultrapassagem a outro automóvel, Daniel quebrou o gelo: – No que está pensando? – Fraldas e escadas. – O que tem isso? – Você comentou sobre dois andares, certo? – Sim, foi o que eu disse. – Não combinam, você sabe. Não estivesse tão relutante agora, Daniel acharia graça. Porém, perturbava a possibilidade de não ter controle da situação e da ideia de mudar­‑se não ser tão absoluta quanto imaginava. E se não podia confiar em si mesmo, como podia ter certeza que Nilla confiaria em suas palavras? Mas a interrogação que ela tinha no rosto, aquele lindo rosto que ele não cansava de admirar, era outra – embora fosse igualmente complicada. O que estava por vir em suas vidas? Daniel se deparou com o próprio olhar perdido no espelho retrovisor central. Virou o rosto para Nilla, observando suas mechas sacolejarem por causa da brisa que invadia o carro. Então fez a melhor tarefa para o momento: pousou a mão sobre o ventre dela, até que seus dedos se encontraram. Um gesto quase sagrado, como se quisesse dizer: “Ei, você não está sozinha, não se preocupe”. Bastou um segundo de descuido.

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A certa distância, um Citroën prateado ultrapassava as duas linhas amarelas e arremessava­‑se sobre eles a toda velocidade. Os faróis acesos em plena luz do dia aumentavam rapidamente, alinhando em sua direção como se fossem invadir o espaço da Cherokee em segundos. O que ele está fazendo? Daniel apertou o pedal do freio até o fundo. Sentiu o carro travar as rodas e deslizar no asfalto. Os faróis à sua frente cresciam numa velocidade assustadora, parecendo que o mundo atrás do para­‑brisa se dissolveria em míseros segundos. E ele percebeu a idiotice que cometia. Se parasse ali, estariam perdidos. Loucura ou destreza, voltou a pisar no acelerador. Pressionou o pedal com força e girou o volante para a esquerda, até travar. O carro ganhou velocidade e ultrapassou a linha do acostamento. Cascalho ricocheteou pelo chão. Depois, terra. A buzina do Citroën berrou à direita, tornando­‑se distante quando a Cherokee encontrou uma árvore. E embora o impacto não fosse suficiente para inflar os airbags, o cinto de segurança agarrou com força seu tórax. Quanto terminou, as mãos faziam tanta pressão no volante que os nós dos dedos estavam esbranquiçados. Daniel retomou o fôlego e indagou: – Você está bem? Nilla se agarrava onde podia. – Oh, meu Deus... sim, acho que sim. O que foi isso? – Não faço a menor ideia. Espere aqui, verei o que aconteceu. Daniel saiu do carro com as pernas trêmulas. Como alguém pode ser tão imprudente? Deu graças a Deus pela estabilidade do veículo e por não ter girado o volante ao contrário. Se tivesse feito isso, possivelmente estariam agora de cabeça para baixo naquela estrada. Quando chegou à frente do veículo, conferiu os danos. Um dos faróis e parte da grade danificados. Não muito. Agachou­‑se, contorcendo o pescoço e verificando se vazava algo – água, óleo ou combustível –, mas a grama mostrava­‑se intacta. O Citroën não podia mais ser visto. A que velocidade devia estar? O suficiente para desaparecer em poucos segundos, é claro. O louco tinha ido embora. Possivelmente, adolescentes dentro do carro. 14


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Daniel retornou à direção. Girou a chave e engatou a ré. Estilhaços do farol caíram no chão enquanto manobrava. Nilla perguntou: – O que houve? – Tenha calma, não foi nada sério. A dianteira do carro só amassou um pouco. Não precisaremos de ajuda nem de reboque. Daniel acelerou com cuidado e ultrapassou a via contrária, colocando o carro na direção em que se deslocavam antes do incidente. – O que está fazendo? – Eu já disse, não foi nada de mais. Apenas um susto, está tudo bem. Ela pareceu não acreditar. – O que você tem, Daniel? Eu quero voltar. – Não, nada disso. – Por favor... – Nós não vamos voltar! – Daniel odiava falar daquela maneira, mas o tom de voz saía influenciado pelo susto. – Desde que informei sobre o sentido desta viagem você não me deu nenhuma chance. Compreendo que esteja relutante às mudanças que estão ocorrendo em nossas vidas, mas estou tentando lhe dar uma nova perspectiva. – Poderíamos deixar para outra ocasião... – Não existe a menor possibilidade. Eu marquei com a corretora no local, ela já deve estar nos esperando. Daniel seguiu adiante. Ficou aguardando Nilla retrucar, mas ela se calou de novo – mesmo que não quisesse realmente fazer isso. Deixar para outro dia? O.k., não seria o fim de mundo. Só que raras eram as vezes que tomava uma decisão tão firme e não deixaria aquela passar assim, fácil. Nilla apoiou a cabeça no encosto do banco e fechou os olhos. Daniel pensou em falar alguma coisa, mas tinha medo de ser incompreendido como antes. Naquele ponto o pesadelo ficava em câmera lenta, como se o tempo se alargasse, e o fim daquela dor não pudesse mais ser avistado. Daniel reparou que Nilla respirava fundo, como nas aulas de ioga, tentando retomar a tranquilidade. Mas havia algo errado. Escutou seu nome surgir 15


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num sussurro, ao tempo em que os dedos dela tocaram seu ombro. A cabeรงa tombou, como se desmaiasse. E ele percebeu a poรงa de sangue crescendo no chรฃo do carro.

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