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LEONARDO BARROS
PRESSÁGIO O ASSASSINATO DA FREIRA NUA
Coleção Novos Talentos da Literatura Brasileira
S ão Pau l o 2 0 1 2
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Capítulo um
2 de julho – Quem mexeu nesse corpo?! – exasperou-se o Delegado Matias. Ajoelhou-se. Queria ver o cadáver de perto. – Bom dia, delegado – disse o Agente Felipe. E ajoelhou-se ao seu lado. Perdeu alguns segundos fitando o rosto da morta. – Parece que eles ficam mais doentes a cada dia – encarou Matias. – O diretor me assegurou que ninguém tocou na vítima depois que foi encontrada. – E a perícia? – Está a caminho. Matias levantou-se. Calado, observava a vítima: as pernas fechadas e estendidas, a barriga virada para cima, as mãos juntinhas sobre o abdome. A cabeça, que estava virada para a esquerda e levemente inclinada para a frente, exibia os olhos esbugalhados. Vômito escorrendo pelo canto da boca. Os cabelos curtos e desgrenhados. O rosto inchado mostrava um corte generoso na testa. Em seu pescoço viam-se pequenas lacerações e hematomas. – Já avisei ao diretor que o senhor iria vê-lo. – Sim – balbuciou Matias. Mordia o lábio, pensativo. Irrompeu: – Quem diabo tem um motivo para matar uma freira? Felipe meneou a cabeça. Cruzou os braços quando disse: – Tem gente que é capaz de tudo – estacou. Contornou o corpo e se aproximou dele. – Há marcas de corda no pescoço!
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– Alice Vegas! – chamou a atendente. A moça que estava na sala de espera se levantou. Andou até a frente da sala do médico e bateu à porta, que se abriu para mostrar um homem alto e loiro. Tinha o rosto largo e um sorriso quase infantil. Ele disse: – Alice, não é? Deixe os tênis sobre o tapete. Se estiver usando relógio, anéis ou pulseira, coloque tudo neste vaso. – Tem que tirar os tênis? É que... – Sim, claro. Olhe: a forma mais rápida de se estabelecer uma conexão entre o terapeuta e a paciente é ficar à vontade. Tire os tênis! – Enquanto falava, o médico arrumava os próprios sapatos sobre o tapete vizinho à porta. – Não vai dar, doutor. Não me sinto à vontade para... Vou dizer: meus pés são horríveis! Pequenos demais! – Hum... Pois veja só: nem acabamos de nos apresentar e já estamos tratando suas neuras – sorriu. – Tire! *
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– Dava aula às crianças do sétimo ano – disse o diretor. O delegado franziu o cenho. Ironizou: – O senhor não está querendo me dizer que foi uma criancinha quem matou a Irmã Bianca, está? – Não! De forma alguma! Uma senhora gorda que usava um terno azul-caneta apertado na cintura se aproximou e, com extrema dificuldade – parecendo temer que sua roupa se rasgasse –, inclinou-se para murmurar ao ouvido do diretor, que elevou as sobrancelhas antes de dizer:
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– Sim, claro! A Irmã Bianca vinha ministrando aulas de Português à turma do segundo ano. – Entendo. Algum desafeto? – Não! De forma alguma! A Irmã Bianca era muito querida. Quer dizer, havia alguém que não gostava dela, não é? Senão, ela não teria sido... – Outras pessoas têm a chave do quarto em que ela foi encontrada? O diretor olhou a secretária de soslaio. Depois fitou o delegado e disse: – Instalamos alguns irmãos na escola, padres e freiras da nossa Congregação, mas, nos últimos dois anos, a Irmã Bianca era a única professora que morava conosco – estacou. Não parava de olhar pela janela. – O senhor está achando que foi alguém que trabalha na escola que a matou? – Muito cedo para saber. Mas o senhor não respondeu à minha pergunta: existem cópias da chave daquele quarto? *
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– Não quer botar os pés sobre a almofada? Muito macia! – Não precisa – Alice mantinha as duas pernas cruzadas e tentava esconder os pés com a barra do vestido. – Então, o que eu preciso saber sobre você, Alice Vegas? A moça mordeu o lábio. Suspirou. – Olhe, doutor, o senhor é meu oitavo terapeuta e... Decidi fazer diferente desta vez: vou direto ao assunto! – Ora, mas isto é muito bom. Prossiga. – O que o senhor tem a dizer sobre clarividência? Recostou-se na poltrona e deixou o olhar se perder num dos cantos de parede do consultório.
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– Já li artigos sobre parapsicologia e leitura da mente. Mas, a meu ver, existem mais especulações que certezas. Por quê? Você acredita em clarividência? *
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– Eu tenho todas as chaves da escola no claviculário da coordenação, mas ele fica sempre fechado. Acho muito difícil dizer, com certeza, se existem cópias ou não. Em toda esquina se encontra um chaveiro, sabe? Alguém pode ter roubado a chave da irmã, feito uma cópia para si mesmo, e depois devolvido. Ou não pode? – Sim, claro. E namorado? – Como?! – O diretor parecia assustado. – A Irmã Bianca tinha um namorado ou amigo que a visitava com frequência? – Que é isso, delegado?! Assim, o senhor ofende a memória da Irmã Bianca! A senhora, que parecia ainda mais asfixiada em sua clausura azul-caneta, murmurou: – Dá licença – e se retirou. – Não me leve a mal, por favor. É que eu estou acostumado a ver coisas que o senhor duvidaria até que existe! Todo mundo tem seus segredos. A Irmã Bianca não era diferente de ninguém. Além disso, não se pode negar que ela ainda era relativamente jovem, e devo confessar que, mesmo estando morta, aparenta ter sido uma mulher atraente. Ou não era? O diretor parecia absorto. Pediu: – Espere. – Levantou-se. Andou apressadamente até um armário de metal. Tirou do bolso uma chave e abriu uma das gavetas.
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– Estas fotos são da viagem que fizemos com os alunos do sétimo ano, no ano passado. Por causa do calor, a Irmã Bianca deixou o hábito no alojamento. Olhe! O Delegado Matias viu uma mulher que tinha estatura média, cabelos curtos e bem penteados, pescoço longo, rosto delicado e suavemente enrubescido. Ela estava em pé, atrás de uma dúzia de crianças, umas sorrindo, outras fazendo careta. O telefone celular de Matias tocou. E ele ouviu: – Delegado, a perícia chegou. *
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– Como assim?! – estranhou o psiquiatra. – É isso mesmo, doutor! Acontece sempre que eu... Foi assim que eu descobri que meu ex-namorado é gay! – Ora, mas se ele é gay, como é que... – Acho que, nessa época, ele ainda não tinha se decidido, ou era bissexual. Só sei que foi assim que aconteceu: estávamos dando uns amassos, e justamente na hora do orgasmo eu tive a visão. E acontece sempre do mesmo jeito: vejo um corredor iluminado que termina numa porta identificada com o número sessenta e nove. E quando a porta se abre... O médico se esticou todo na cadeira e se inclinou para a frente. – Eu sei que é difícil de acreditar, mas... Fiquei até com medo de tentar namorar novamente. Na faculdade, eu conheci o Benício. O namoro foi esquentando, esquentando, e eu resolvi perder a virgindade com ele. – Perfeitamente, perfeitamente! Tudo isso é muito natural! Prossiga!
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– Bom, na primeira vez, eu não tive nenhuma visão. Até porque foi muito rápido, sem prazer. Mas alguns dias depois a gente tentou novamente, e na hora do orgasmo eu o vi me traindo com uma das minhas colegas de sala! – Um flagra? – Não, doutor. Um presságio. O médico levou a mão ao queixo, ponderou e disse: – Olhe, Alice, durante o orgasmo, os neurônios sofrem uma hipóxia transitória. Quer dizer, falta oxigênio no cérebro, entende? Será que você não está apenas tendo alucinações? – Ai, Deus. – Veja bem, não quero dizer que você seja louca, mas... Acontece. E, se você não der muita importância a essas visões, elas vão desaparecer. *
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– Estrangulamento? É provável – diagnosticou o perito. – Não é certeza? – Por enquanto, delegado, certeza mesmo eu só tenho de uma coisa: está morta! Tem de se examinar melhor. Mas eu sou capaz de apostar que a motivação do crime foi sexual. – Olhe isso, Felipe! – gritou um perito. O Agente Felipe andou até o banheiro. Viu uma falha no centro do espelho, de onde irradiavam fissuras em todas as direções. – Pelo jeito, ele bateu a testa da vítima no espelho – disse o perito. Felipe olhou em redor. Havia sinais incontestáveis de que houvera luta ali, pois, além do espelho quebrado, uma toalha
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com raios de sangue fora abandonada no chão. A cadeira tinha uma das pernas quebrada. Voltou ao quarto. O perito agora estava em pé e mantinha as duas pernas abertas sobre o corpo da vítima, fotografando-a. A freira, que antes estava coberta com um lençol, agora restava completamente nua. Os seios túrgidos pareciam pertencer a uma mulher muito mais nova que ela. A barriga alva. Um monte púbico com pelos bem aparados. A virilha parecia ter sido depilada com cera. Felipe se aproximou. Olhou Bianca mais de perto. Fitou o perito e comentou: – Para que se preocupar com o aspecto de uma parte do corpo que ninguém vê? Pensei que freiras não fizessem depilação. O perito deu de ombros. Sorriu. – Era freira, mas era mulher. Felipe percebeu que Matias se abaixara num canto do quarto e lhe perguntou: – Encontrou alguma coisa? – Não, não – respondeu o delegado. – Somente um botão que caiu da minha roupa – e ensacou a camisa na calça.
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