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Rio de Tinta
talentos da literatura brasileira _____________ SĂŁo Paulo, 2017
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Rio de tinta
Copyright © 2017 by Ana Carolina Lattaruli Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.
coordenação editorial Vitor Donofrio
aquisições Cleber Vasconcelos
editorial Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda preparação Marta Cursino
diagramação Giovanna Petrólio
capa Marina Avila
revisão Mônica Reis
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Angélica Ilacqua CRB‑8/7057 Lattaruli, Ana Rio de tinta / Ana Lattaruli. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016. 1. Ficção brasileira I. Título 16‑1538
cdd 869.3
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3
novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699‑7107 | Fax: (11) 3699‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br
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Para meus pais e meu irmão, por serem tudo o que eu tenho. Em memória, à Fiorella Lattaruli, a qual me ensinou que é possível, sim, iluminar o mundo. E, finalmente, para todos aqueles que acredi‑ tam que as pessoas são muito mais do que aparen‑ tam ser.
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Aquele que combate monstros deve tomar cuidado para que ele mesmo nĂŁo se torne um. E, se olhar muito tempo para o abismo, o abismo te encara de volta. Friedrich Nietzsche
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Prólogo Ally Clouds Os quadros da parede prendem minha atenção por quase dez minutos… uma mistura de cores incríveis. Azul, vermelho, branco. Lembra‑me do rio que corre pelas minhas veias. Absor‑ ta, sequer percebo Gal me chamando, sentado em sua poltrona bege. – Este é o nosso último encontro, Ally. – Ele avisa calma‑ mente, alisando o bloquinho de papel em cima de seu colo. Sua calça é clara. Encaro o vaso ao seu lado, de formato ovalado. As flores den‑ tro dele são de mentira. As de verdade morrem muito rápido. – Eu sei, Gal. – Encaro‑o pela primeira vez hoje. Gosto dele e do fato de que posso chamá‑lo de Gal, em vez de Sr. Galfred. Sua familiaridade me acalma. – Estava pensando em algo? – Ele usa um relógio prateado no pulso. Há um gravador de voz ligado em cima da mesinha de centro. Faço que não com a cabeça. Meus pensamentos não são cla‑ ros, são confusos até mesmo para mim. Não saberia explicá‑los, mas ele me entende. – Continua tendo aqueles sonhos? – Suas perguntas têm um tom de casualidade, como se estivéssemos falando sobre uma re‑ ceita de bolo. – Não – respondo, mas ele sabe que estou mentindo. Ele me conhece, mexe com a minha mente há um bom tempo. 9
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Ele sorri. Seu sorriso é estranho, direcionado para baixo. Desmascara‑me. – Ouvi que você vai voltar para o colégio, para terminar o úl‑ timo ano lá. – Ele volta a olhar para mim. – Eu não sei se vou conseguir. – Fecho os olhos, abrindo‑os logo em seguida. De súbito, começo a querer ir embora. – Eu te conheço. – Ele fecha o bloquinho. – E posso dizer que você se sairá muito bem. Talvez não logo no primeiro dia, não pos‑ so mentir. Passo os olhos por toda a extensão da sala, pequena demais para nós dois. Não posso mentir. Foi o nosso acordo. Mas eu minto. Não existe a palavra “promessa” no meu dicionário. E o pior de tudo é que ele sabe disso. – Você não é louca, só é triste. – Essas palavras perfuram meus pulmões. São a mais pura verdade. – E eu espero que você seja ver‑ dadeiramente feliz um dia. – Eu vou sentir saudades – digo, baixinho. Por que não posso continuar com ele? Por que não posso morar aqui, nesta sala? Eu sou pequenina, caibo em todos os lugares, posso facilmente entrar na mala e ir com ele para a Austrália. Eu não entendo por que tenho que sair e abraçar o mundo, se o mundo não quer o meu abraço. – Eu também – ele responde. Sinto sua sinceridade. Não há nada forçado nele. Gostaria que ele fosse meu parente, meu avô, já que nunca conheci nenhum dos meus. Ele tem mesmo cara de quem já é avô, de quem já viveu bastante. – Há algo que quero lhe entregar – digo, abrindo minha mo‑ chila. Retiro de dentro dela meu caderno e pego uma folha solta entre as demais, entregando‑a a ele. – Um último desenho meu, para você não me esquecer. Ele nada fala, somente encara o desenho, colorido em um ver‑ melho vivo. Sua expressão adensa‑se, e ele respira fundo. – Rosas – diz, apenas, com um olhar melancólico. 10
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– As preferidas dela. – Levanto‑me, sentindo‑me tonta por um segundo. Não vou chorar. Proibo‑me de derrubar qualquer lá‑ grima agora. Ele coloca o desenho em cima da mesa, sob o gravador. – Eu acho que isso é só um até breve. – Gal olha para mim, esperando a minha resposta. Ele sabe o que acho de despedidas. – É um adeus. – Quase posso sentir na boca um gosto de ve‑ neno ao proferir essas palavras. – Você ainda pode me ligar quando precisar. – Você sabe que não ligarei. – Eu sei. Começo a andar até a porta. Cada passo que dou adiante pa‑ rece mais pesado que o anterior, e eu sinto estar deixando uma boa parte de mim para trás. Sei que ficarei sozinha no momento em que atravessar a porta. – Ally? – Gal chama‑me mais uma vez. Viro‑me para ele. – O que acontecia no sonho? Sinto minha garganta se fechar, as paredes parecem querer me engolir. Sinto que todo mundo está contra todo mundo e, apesar de não saber o que fazer, ajo como se soubesse. Olho bem fundo em seus olhos. – Ela caía. E ele compreende. É a única coisa que consigo dizer, antes de pegar minha mo‑ chila e sair.
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1 Ally Clouds Talvez sejamos todos vazios. Todos esses corpos que passam na minha frente – em profunda sincronia com uma música que inventei e que não sai da minha cabeça – talvez sejam tão vazios quanto eu. Isso me faz pensar que eu posso ser como eles, pos‑ so conseguir amar de forma rasa e não tão profundamente, como sempre acontece. Não vejo ninguém chorando ou sofrendo, não vejo ninguém repensando sua vida. Todos apenas seguem pelo estacionamento, como se nada estivesse acontecendo no mundo além do que se passa entre estas paredes. Penso em minha mãe. Penso em todos que foram embora. E tenho tanta raiva deles…! Sinto algumas lágrimas rolarem por minhas bochechas, e o impacto delas ao tocar o chão me faz estremecer. Há tinta no meu cabelo, pequenas manchinhas de todas as cores. Retiro uma mar‑ garida amassada do meu bolso e fico encarando‑a até perder a no‑ ção do tempo. O barulho de alguém destravando a porta de um carro quase me faz pular de susto. – Oi? – diz um garoto estranho, com uma barba rala e falhada. Ele franze o cenho ao me perceber ali. – Oi. – Olho para o outro lado do estacionamento. – Você está bem? – Estou – respondo, talvez seca demais. 12
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Percebo que ele me estuda, observando‑me como se eu fosse uma pintura. Tenho vontade de empurrá‑lo para bem longe. – Não parece. – Ele arqueia as sobrancelhas. – Quer carona? – Não precisa. Ele demora um pouco antes de fechar a porta, continuando fora do carro. O estacionamento é enorme, mas, de súbito, me sin‑ to claustrofóbica, tendo que respirar muito devagar para ter pelo menos um pouco de controle. – Era para você já ter ido embora, sabe? – digo, incomodada. – Eu sei. – Ele senta‑se no meio‑fio, perto de mim. – Mas eu sou curioso. O que aconteceu? Olho‑o de cima a baixo, tentando ao máximo deixá‑lo des‑ confortável, mas sem muito êxito. Acaricio minha margarida com a ponta do polegar, e ele ob‑ serva esse movimento. – Nada – finalmente respondo. – Você finge muito mal. – Seu olhar pousa sobre o meu. São olhos esverdeados, com as pálpebras pesadas e cílios maiores que os meus. – Quem é você? – Fico um pouco brava. Ninguém pode che‑ gar e interromper desse jeito o meu momento dramático. – Michael – ele responde. – Você não se lembra de mim? – Eu deveria lembrar? – Não, acho que não. – Ele balança a cabeça. Tento detectar algum tom de brincadeira por trás do que ele falou, mas nada me ocorre. – De onde eu deveria lembrar? – pergunto. – Somos vizinhos – responde. – Somos? – Sim, eu já falei com você antes. – Quando? – Estreito os olhos. – Antes de você sair do colégio. E logo depois do acontecido também. Aquela multidão… 13
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– Ah, era você. – É. Eu sei que eu deveria me lembrar de quem falou comigo quan‑ do ninguém mais falava, mas eu passei quase nove meses em casa, frequentando um psicólogo, tentando apagar tudo aquilo da minha memória… Acho que acabei apagando todo o restante também. Fico esperando pelo momento em que ele vai se levantar e simplesmente entrar no carro, partindo para bem longe, mas esse momento nunca chega. – Eu sinto muito pelas outras pessoas. – Lamenta, encarando os próprios tênis, de aparência desgastada. Aos poucos, vou reparando em algumas coisas nele. Sua voz é forte e seu cabelo é escuro. Seu queixo é bem desenhado. – Não precisa se desculpar. Eu já imaginava que eles agiriam daquela maneira. Foi ingenuidade minha achar que tudo seria diferente. – Entendo. Não, ele não entendia. O silêncio instaura‑se quase como uma bênção, mas logo é quebrado. – Vem, levante – ele diz. Demoro longos segundos até enten‑ der por que sua mão está estendida para mim. Confusa, seguro‑a e fico de pé. – Eu vou te dar uma carona. – Não acho que seja uma boa ideia. – Dou alguns passos para trás. – É só uma carona. – Ele dá de ombros. Minha mente gira fei‑ to um carrossel. Eu não deveria entrar em carro de desconhecidos, mesmo que, neste caso, o desconhecido seja um pouco conhecido. Eu não deveria sequer falar com alguém, sei disso. Mesmo assim, porém, entro no carro. Sou recepcionada por um cheiro de menta e uma música que começa automaticamente 14
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a tocar assim que ele coloca a chave na ignição e começa a dirigir. Não consigo identificar que música é, jamais a ouvi. Tem uma ba‑ tida calma, e a voz que canta é masculina e baixa. – Você não é nenhum assassino, certo? – pergunto, depois de alguns minutos. Ele dá uma risada alta, que faz meu corpo vibrar. E não responde.
Deus sabe quanto ela mexeu comigo, vários meses atrás, com um simples pedido de ajuda. Deus sabe quanto eu quis abraçá‑la e dizer que estava tudo bem, quando saímos em disparada para longe daquela multidão, dos vidros, dos xingamentos, das risadas. Deus sabe quanto doeu vê‑la sumir. Hoje as lembranças voltaram em avalanches. E eu não estava preparado. Eu já tinha esquecido. Ela era as cores de um mundo preto e branco, pude perce‑ ber isso pelo modo com que tocava a margarida ressecada, pelas manchinhas de tinta no cabelo avermelhado, pelo tom de voz, pelo jeito de olhar o mundo lá fora. Parecia ser uma espécie exótica, em extinção. Encantava os olhos, mas não era só isso: ela possuía algo a mais. Algo que ainda não sei o que é, mas que prendeu minha atenção no estacionamento. Algo que prendeu a minha atenção desde o primeiro olá. Desde o começo de tudo. O vento bate em seu cabelo, que parece em chamas; seu rosto captura o pôr do sol. Vendo‑a desse jeito, arrisco dizer que é tão bonita quanto o horizonte alaranjado, num daqueles momentos em que você apenas para e fica observando até que o Sol suma por completo. Não consigo imaginar o motivo de as pessoas tentarem machucar os sentimentos de uma garota assim. 15
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– Obrigada pela carona. – Ela agradece. – Sem problemas. – Meus olhos pairam sobre ela por um se‑ gundo, antes de retornar à direção. Ela mexe nos buraquinhos da calça preta. – Qual o seu nome completo? – Ela tenta puxar assunto. Sorrio. – Michael Louis Orhan – respondo, pausadamente. – É um nome estranho, eu sei. – É legal. – Ela mente, sorrindo sem mostrar os dentes. – Acho que já te vi em algumas aulas. – Acrescenta, estreitando os olhos aleatoriamente para um ponto qualquer. – Não, acho que não. – Matemática? – Certeza que não. – Literatura? – Eu não sei, não tive aula de literatura ainda, faltei na do pri‑ meiro dia. – Jura? – Sua pergunta se torna distante. Ela encara o mundo lá fora, observando o Lago Wakatipu passar devagar do lado di‑ reito do carro. Parece maravilhada, mergulhada em seus próprios pensamentos. Lembro o que aconteceu com ela há quase um ano. A confu‑ são, a discussão. Os vidros. Ela é a Ally Clouds que tanto falam. A aberração. Posso ver nossas casas aproximando‑se, cada vez mais perto. Paro na frente da casa dela, que fica logo antes da minha, e ela res‑ pira fundo, sem sequer se mexer. – Você vai ficar bem? – indago, mesmo já sabendo a resposta. A pergunta morre por um segundo no ar frio do carro. – Vou. – Escute, eu posso te dar carona sempre, se você quiser. Para ir e para voltar, se você não tiver com quem ir e vir. 16
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– O que você quer de mim? – Ela se vira completamente na minha direção, com indignação no olhar. – Eu conheço esse jogo, é sempre assim antes de irem embora. – Eu só ofereci carona. – Corto‑a, sério. Ela se cala e me enca‑ ra. Parece pensar, relutante. Inclina a cabeça, colocando a mão na testa e fechando os olhos pesadamente. – Desculpa, eu estou destreinada nessa coisa de conversar. – Murmura. – Por mim tudo bem algumas caronas, se não tiver pro‑ blema para você. Balanço a cabeça em negativa, tranquilamente. Ela confirma com um aceno devagar, sem me olhar, e sai do carro. – Obrigada por tudo – diz, dando um meio‑sorriso. – Não tem de quê – respondo. – Adeus. Ela volta a me encarar, parecendo digerir minhas palavras. – Não diga adeus. – Sua voz sai rouca. Quero pedir descul‑ pas, mas ela logo emenda um sorriso triste. – Diga adeus somente quando não quiser mais me ver, e eu entenderei o recado. – Ela curva a cabeça levemente para a direita. – Até breve. As palavras dela escalam até minha mente e se instalam lá permanentemente. Ela parece esperar por uma resposta. – Até breve – respondo, enfim. Ela sorri. Observo‑a abrir a porta de casa e entrar, sem olhar para trás. Sem olhar para mim. No que estou me metendo novamente?
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Ally Clouds Eu sei que sou diferente, tenho noção dos olhares inquisido‑ res direcionados ao meu rosto, possivelmente pintado em alguns lugares com tinta solúvel. Sei do meu cabelo longo e acobreado, desarrumado. Sei dos meus olhos estupidamente grandes em comparação ao restante da minha face – tão azuis que chega a doer ao olhar‑me no espelho. Sei das minhas sardas, que cobrem meu rosto. Sei do meu corpo, dos meus problemas, da minha culpa. Sei do meu passado e de quanto as pessoas não sabem de nada. Eu sei que sou diferente. E sei que me sentei ao lado dele no carro, quando deveria simplesmente ter corrido. Fiquei olhando pela janela naquele final de tarde nublado como se tudo fosse feito de açúcar e pudesse estar derretendo em meio à neblina. Até mesmo as pessoas pareciam ser feitas de açú‑ car, mas eram tão amargas que essa ideia ficou fora de cogitação. A mochila nas minhas costas pesava, cheia de frascos de tinta. Meu pai não estava prestando atenção em meus passos quan‑ do saí, o que era o meu objetivo. Fechei a porta dando uma última olhada nas pinturas que se espalhavam pela casa e que podiam ser facilmente consideradas nada além de bagunça para qualquer um em sã consciência. Mas não para mim. Eu não sou nem um pouco sã.
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