Setor 27 - AMEAÇA NUCLEAR

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Daniel Pedrosa

Setor 27 Ameaรงa Nuclear

Sรฃo Paulo 2012


Este livro é uma obra de ficção. A participação de entidades e personagens históricos, além de suas respectivas citações, são criações da imaginação do autor e não podem ser comprovadas ou encontradas em qualquer registro oficial. Quaisquer semelhanças com eventos reais, organizações ou pessoas também são descrições totalmente coincidentes.




Prólogo

O professor Montenegro corria pelo túnel úmido e escorregadio projetado como rota de fuga para o laboratório de pesquisas nucleares sem sequer imaginar que os homens que vira através da câmera de segurança poucos minutos antes já estavam praticamente em seu encalço. Mesmo que conseguisse escapar com vida de seus perseguidores, o cientista sabia em seu íntimo que jamais conseguiria esquecer a cena presenciada através da pequena tela em preto e branco do sistema fechado de TV. Para sua sorte, após o término do turno normal de trabalho, decidira permanecer envolvido com suas pesquisas, enquanto os colegas desfrutavam de uma pequena pausa no refeitório principal do primeiro pavimento. Exatamente no lugar onde foram atacados. Era um procedimento comum revezarem pausas, já que sempre estendiam o trabalho até a madrugada. Além de fortalecer o relacionamento entre os cientistas, a prática acabava por minimizar o incômodo característico de quem passava horas trancado em um laboratório sem janelas, portas, ou qualquer outra ligação com o mundo exterior. Fora quase sempre assim: uma rotina monótona e estafante. Mas não naquela noite. Pelo sistema integrado de segurança – uma inovação presente em todas as dependências do centro de pesquisas – o professor pôde ver quando homens encapuzados entraram armados com fuzis e baionetas. Pareciam soldados envolvidos em um esquema estratégico de guerra. Chegaram silenciosos e, de forma banal, tiraram a vida dos pesquisadores. Uma ação tão rápida que se não estivesse com os olhos em frente ao monitor no exato momento do ocorrido, jamais teria percebido a tempo.

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E este era o motivo pelo qual corria através daquele caminho. Para salvar sua vida e proteger seu mais importante segredo. O túnel, com mais de quinhentos metros de comprimento e uma iluminação precária, composta apenas por poucos e fracos pontos de luz, era íngreme e dificultava a visibilidade. Perceber a presença de outras pessoas, mesmo que estivessem a uma distância considerada próxima, tornava-se difícil e por isso cada segundo era realmente precioso. Suas pernas fracas, pouco acostumadas a esforços daquele tipo, já ameaçavam ceder diante dos vários metros de subida que surgiam à sua frente. Os três andares que separavam o laboratório da superfície se mostravam agora ainda mais profundos do que quando chegara ao local pela primeira vez. Já fazia sete anos desde que resolvera se dedicar às pesquisas militares naquela unidade. Não parecia grande coisa de início. Talvez apenas um delírio governamental motivado pela tendência mundial em desenvolver energias alternativas como aquela. Quando foi convidado a integrar a equipe, ninguém lhe havia informado ao certo o que pretendiam desenvolver ou criar. Agora, anos depois, sabia até onde haviam chegado. Era algo muito além do que um dia podiam imaginar, e muito além do que podiam se permitir. As pesquisas, inicialmente voltadas ao desenvolvimento da energia nuclear, haviam evoluído por dois caminhos: o primeiro se refletia no sucesso total do projeto, naquilo que realmente estavam procurando, a tecnologia de refinamento de urânio, um conhecimento até então desenvolvido por pouquíssimos países ao redor do mundo – um benefício incalculável para a economia e a política da nação; e o segundo, em uma ameaça sem precedentes. Algo que por certo despertaria a ganância de qualquer um que soubesse de sua existência. E foi exatamente o que aconteceu. Sem que ele soubesse, um dos pesquisadores que integravam sua equipe comunicara a descoberta a uma comissão de auditoria durante a visita ocorrida na última semana. Inocentemente, o homem selara seu destino, e o destino de todos aqueles envolvidos no trabalho. Alguns militares sabiam que aquele grupo de cientistas jamais concordaria com suas intenções e por isso haviam organizado a investida. Na verdade, aqueles homens gananciosos estavam certos sobre suas reações. No momento mais relevante de sua vida, e frente a algumas de

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suas mais importantes descobertas, o professor de quarenta e sete anos decidira agir com prudência e respeito. Não desejava ser conhecido como alguém responsável por invenções capazes de ferir a humanidade. Já ouvira no passado histórias sobre grandes decepções. Relatos sobre gênios como Santos Dumont, que no final da vida se desesperou ao perceber o poder destrutivo de sua invenção: Mas a guerra veio, apoderou-se de nossos trabalhos e, com todos os seus horrores, aterrorizou a humanidade. Por um momento, as palavras do inventor vagaram tristes por sua memória. Não queria tais lembranças para si. Não daquela forma. Por isso carregava em sua mala o que restara de sua pesquisa. Papéis, discos de dados e uma pequena e perigosa caixa de chumbo. Assustado, mas sem se abater por seus pensamentos, o professor juntou a mala sobre o peito e continuou avançando. Por mais que pudesse conhecer aquele caminho, saber de sua existência através dos incansáveis treinamentos de evacuação, jamais se imaginara fugindo por ali. Não por aquele motivo. O forte movimento que imprimia a seu corpo fez com que derrubasse alguns dos papéis. Agachou para pegá-los e por um breve momento pôde ouvir as passadas rápidas daqueles que o perseguiam através do túnel; estavam próximos, não podia perder mais tempo. Levantou-se e continuou a correr o mais rápido que podia. Números decrescentes, pintados em uma das paredes do corredor, indicavam a distância que o separava da saída. O professor já havia passado pela indicação de cem metros fazia alguns segundos, e sabia que em breve chegaria ao galpão de isolamento. Tentava formular a melhor estratégia de fuga, o melhor caminho a seguir, mas pensar se tornara difícil. Sabia que os carros de fuga tinham combustível suficiente para duzentos e cinquenta quilômetros; era pouco, mas o suficiente. Precisava chegar a uma cidade de grande porte. Um lugar onde pudesse se misturar à multidão e desaparecer por uns tempos. Era o que deveria fazer, até que a poeira baixasse e ele conseguisse uma brecha para se afastar o bastante do seu algoz. Chegou à frente de uma célula de vidro, uma caixa transparente capaz de reter qualquer radiação proveniente de vazamentos existentes no laboratório. Um trabalho notável de engenharia, equipado com os mais modernos sistemas de monitoramento. O professor entrou e imediatamente

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fechou a porta. Um potente sensor, preso ao mecanismo de abertura, só permitiria aos refugiados abrir a fechadura na total ausência de contaminações por radiação; era um mecanismo de segurança, criado para garantir que a contaminação não saísse do laboratório. O professor acionou o botão de varredura e o som semelhante ao sopro de um forte ventilador deu início ao processo que durava cerca de quinze segundos. Ao fim daquele tempo, uma espessa porta de aço liberaria seu acesso ao mundo exterior. O desespero que o consumia trazia junto uma sensação de que aquela espera seguiria pela eternidade. Porém, exatamente dentro do tempo estimado, um sinal sonoro indicou o fim do processo de varredura e a trinca automática liberou o acesso ao armazém. Automaticamente todas as luzes se acenderam. O armazém de quase três metros de altura, vinte de comprimento e dez de largura surgiu diante dele. O lugar abrigava vários recursos necessários para fuga, todos disponíveis e preparados para eventuais emergências. Dois jipes, roupas, medicamentos, mantimentos, mapas, rádios e procedimentos diversos poderiam ser encontrados no interior da construção. Montenegro seguiu até um dos armários, pegou um molho de chaves, deixou sua mala sobre o capô de um dos jipes e seguiu até uma grande porta dupla que protegia o local. Abriu o cadeado e arrastando uma das portas sentiu a brisa da noite tocar seu rosto. O céu estava repleto de estrelas e algumas cigarras cantavam à luz da lua; era uma noite perfeita para caminhar, mas péssima para acobertar uma fuga. Mesmo cansado, o professor movimentou a pesada porta até que ela se abrisse por completo. De repente, o sopro do mecanismo de varredura iniciou novamente seu ciclo de trabalho. Diferentemente de antes, o professor desejou que o tempo excedesse o planejado. Rapidamente, correu até um dos jipes, abriu o capô e retirou alguns fios do motor, pois não queria deixar para seus perseguidores recursos para que o seguissem. Pegou sua mala sobre o capô do outro jipe, abriu a porta e entrou. O som das trancas abrindo indicava que seu tempo havia se esgotado. Sem perder nem mais um segundo, ligou o motor. Dois soldados surgiram e, acompanhando o

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ronco forte do veículo, perceberam rapidamente o paradeiro do fugitivo. Armaram seus fuzis e dispararam à vontade. O som dos vidros se quebrando e os estilhaços que atingiam o professor formavam uma cena assustadora. O professor engatou a marcha do jipe e, abaixado sob o painel, tentou partir em direção à porta. Aos solavancos, o veículo seguiu em uma curva fechada à esquerda raspando a lateral da porta no batente da entrada e seguiu em direção a uma pequena estrada. O professor levantou o corpo. Precisava enxergar o caminho para que pudesse seguir em frente. Mas sua vida ainda corria perigo. Em menos de três segundos, uma chuva de balas voltou a atingir o veículo. Os homens, parados em frente ao armazém, disparavam na direção do jipe que sumia na escuridão. Antes que Montenegro pudesse se considerar livre, um dos projéteis disparados pelos fuzis atravessou a lataria traseira do jipe, venceu a resistência dos finos bancos de tecido e atingiu suas costas, na altura do abdômen. O professor se curvou encostando o antebraço no ferimento e seguiu em direção à cidade. Em frente à entrada do galpão, os soldados observavam sua fuga: – Me passe o rádio – disse um deles. O mais novo dos dois pegou o aparelho que carregava preso à cintura e o entregou ao outro homem: – Comando? – disse ele levando o aparelho até o rosto. – Na escuta – respondeu uma voz grave. – Um deles conseguiu escapar. – Como, ‘escapar’? – retrucou o homem. – Esta ação não foi autorizada e, por isso, não pode haver sobreviventes. Eles eram apenas cientistas, deveriam ter sido eliminados, conforme ordens. – Acho que ele descobriu quando chegamos, fugiu por uma das rotas de emergência e está seguindo em direção à capital. Acho que conseguimos feri-lo, não deve fugir por muito tempo; teremos que colocar uma patrulha para interceptá-lo no final da rodovia. – Tudo bem. Pegue o que encontrar e lacre o local. Vou providenciar a patrulha. Em que carro ele está?

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– Em um jipe militar. Os vidros estão quebrados e a lataria está perfurada por tiros de fuzil, vai ser fácil encontrá-lo. – Ok! Acabem com o que foram fazer e voltem. Eu vou cuidar do fugitivo. Em poucos minutos o professor já havia deixado a pequena estrada de terra batida que levava às dependências do laboratório e seguia em direção à cidade. Uma mancha escura de sangue ocupava grande parte do avental branco que cobria sua roupa. Seu rosto transpirava, mas seu corpo parecia frio como mármore. Ele sabia que sua fuga havia falhado. Os soldados haviam conseguido o que queriam e, por certo, ele não sobreviveria além daquele dia. As glórias, o reconhecimento nacional, o legado acadêmico, tudo o que imaginava para si até aquele momento parecia cada vez mais distante. Triste, o homem imaginava o futuro que ajudou a construir, sem a lembrança de sua história. Lágrimas desciam por seu rosto e seu coração; angustiado, já lamentava pelo que estava por vir. Mas nada lhe faria desistir da missão que criara para si no exato instante em que deixara o laboratório. Precisava evitar que tudo o que construíra até aquele momento chegasse às mãos daqueles homens. Ao fim, este se tornara seu maior objetivo. Para isso, tinha um último trunfo: um obstáculo que os afastaria daquilo que despertara suas ambições. Mesmo sob a pressão de, antes de sair do laboratório, tê-los visto assassinar seus amigos, Montenegro conseguira esconder grande parte do que poderia ser usado por eles como um caminho para o resultado de suas pesquisas. Escondera quase todo o seu trabalho em um lugar onde somente ele e os homens que haviam sido mortos poderiam encontrar. Aquela era sua segurança, um esconderijo especial, algo que haviam projetado nos últimos dois anos para situações deste tipo. Sua garantia. E mesmo que encontrassem o esconderijo, de nada lhes serviria, agora levava consigo a chave para este segredo, um enigma digno de um grande estudioso, um de seus maiores orgulhos. Por isso precisava tirá-la dali e, de alguma forma, ocultá-la de seus perseguidores. O jipe em alta velocidade deslizou pelo acostamento de terra da BR-060, levantando uma nuvem de poeira vermelha característica da região. Os

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vinte e dois quilômetros que separavam o laboratório da capital goiana pareciam mais distantes do que de costume. Os motoristas dos poucos carros que passavam pela pista oposta se assustavam com o dançar do veículo que parecia dirigido por um bêbado. O professor Montenegro cambaleava sobre o volante, tentando se manter na estrada, em busca da única pessoa em quem confiava. Goiânia havia crescido muito desde que chegara. Uma cidade promissora que havia dobrado seu PIB nos últimos dez anos e rumava segura a uma participação mais ativa no cenário nacional. Em pouco tempo duplicara seus rebanhos, triplicara suas colheitas, e isso se refletia nas novas ruas e novas construções. Era nítido que a marcha do progresso estava chegando ao estado. No início, o professor ansiava pelo dia em que tivesse tempo de conhecer os projetos para seu futuro, mas com o trabalho e todo o resultado que havia encontrado, como muitas outras coisas, era algo em que deixara de pensar. Abandonou a BR-060 em direção ao centro antigo da cidade; lá conseguiria encontrar quem procurava: um amigo que o ajudaria em seu objetivo. Seguiu na avenida Anhanguera até próximo ao Bosque dos Buritis, entrando em uma pequena rua repleta de árvores. Diminuiu a velocidade e parou em frente a uma casa antiga. Desceu do carro com a pequena caixa nas mãos. Um portão baixo, com pouco mais de um metro de altura, protegia o quintal feito de ladrilhos. Montenegro transpôs a entrada, deu uma volta pela casa e parou em frente à porta da cozinha. Antes que pudesse gritar por ajuda, um homem baixo, magro e moreno veio assustado ao seu encontro: – Montenegro, o que aconteceu? – perguntou. – Olá, Augusto! Há quanto tempo... – Quem fez isso? – insistiu o homem que, amparando-o, tentava mantê-lo de pé. Mas, percebendo que seu esforço era vão, carregou-o para dentro da casa e o sentou numa cadeira na cozinha. – Preciso de sua ajuda, amigo – falou Montenegro com a voz entrecortada. – O que foi?

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– Você tem que guardar isto – disse, entregando-lhe a caixa. – Precisa escondê-la de todos. Não deve entregá-la a ninguém. – Sua voz rouca afligia o amigo. – Preciso que me prometa que não vai entregá-la a ninguém. – Claro, Montenegro! – respondeu o homem. – Não! Preciso que me prometa, pela nossa amizade. Preciso que me prometa. – Eu prometo! – repetiu Augusto. – Ótimo, agora eu tenho que ir. – Como? Aonde você vai assim? – perguntou Augusto, assustado com a rapidez com que tudo acontecia. Sabia da natureza do trabalho do amigo, mas não acreditava que um dia algo como aquilo pudesse acontecer. – Você precisa ir a um hospital! – Não! Eu não posso arriscar que eles venham até aqui, tenho que atraí-los para outro lugar, longe desta caixa. – Mas, Montenegro... – Augusto – respondeu o professor segurando seu braço –, não posso mais mudar meu destino, mas posso evitar que encontrem o que fiz, e para isso preciso de sua ajuda. Por favor, me deixe sair, enquanto ainda tenho força para seguir em frente. Eu não tenho muito tempo. Montenegro se levantou e atravessou a sala. Augusto o acompanhou até o jipe sem acreditar no que estava acontecendo. A razão pedia para que ele o segurasse, mas uma sensação mais forte lhe dizia para confiar. Mesmo pressentindo que aquele seria seu último encontro com o amigo, o homem preferiu deixar que ele se retirasse. O professor entrou no jipe e, mesmo muito ferido, seguiu em direção à estrada. Ouvira no rádio a comunicação sobre uma barreira montada para prendê-lo e rumou decidido em sua direção. Sabia que seguir aquele caminho seria seu fim, mas entendia que era a única forma de desviar aqueles homens de seu verdadeiro objetivo. Estava decidido. Era terça-feira, 11 de junho de 1978.

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Capítulo Um

O Julgamento

Enquanto seguia em direção ao seu primeiro objetivo, Cardoso relembrava o motivo pelo qual aceitara continuar naquela missão. Dentre todos os integrantes de sua equipe, ele era sem dúvida a pessoa em quem mais o major confiava. Um militar respeitado e dono de um status único, conquistado com muito trabalho e muita dedicação. Desde que chegara ao Setor, fazia mais de doze anos, ele já havia deparado com situações extremas, mas nada se comparava à que tinha pela frente. Algo capaz de selar definitivamente o futuro da organização: um segredo que estava prestes a ser revelado. Uma história guardada por décadas e que viria à tona com ou sem sua ajuda. Já fazia dois anos que toda a mudança havia começado. O estopim que os fizera chegar até aquele ponto era lembrado como o começo do fim. O dia em que o major estivera entre a vida e a morte. O episódio que Cardoso conhecia apenas por meio de relatórios oficiais soava como o atravessar de uma flecha em seu peito. Exatamente no período em que ele participava de um treinamento de elite, na região central do país, seu comandante enfrentara o maior desafio de sua história. A invasão ao depósito de Itaipu, uma perseguição implacável aos fugitivos e, por fim, um confronto que quase tirara sua vida. Cardoso se dava conta de que o caminho para o futuro se desenhara naquele momento, mas não se perdoava por não estar ali presente para ajudar um amigo. Porém, por obra do destino ou até mesmo por compaixão das pessoas que ironicamente o perseguia, o major ainda estava vivo. Minutos antes de pedir para que Cardoso o ajudasse, o antigo militar confidenciara a

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verdade por trás da história descrita no relatório e isso fora talvez o que ajudara em sua decisão. Não havia relatos oficiais que evidenciassem o fato, mas o militar garantiu que devia sua vida à ação dos civis até aquele momento considerados inimigos do Setor. Um fato inesperado que colocara à prova toda a sua lealdade. Frente a isso, Cardoso sabia que a missão designada para si o colocaria à mercê das leis que ele mesmo defendia. Um crime consciente que a razão o impedia de evitar. Preparado como poucos, o homem de trinta e seis anos era, agora, uma das peças mais importantes da operação que em breve seria colocada em prática. O Sedan preto que guiava fez uma curva fechada saindo da marginal Pinheiros em um dos acessos da pista local. Seu destino era uma audiência pública, o julgamento de um caso típico dos bairros carentes da capital. De um lado, um homem de trinta e nove anos, acusado de assassinar uma jovem de quinze. Sua vizinha, a quem vira crescer desde os sete e pela qual manifestava um desejo enlouquecido. Segundo testemunhas, o homem, que costumava cercar a jovem em seus retornos da escola, fazia propostas indecentes e oferecia-lhe presentes para que saísse consigo. Sua mãe, uma mulher sozinha e viciada em bebida, por algumas vezes tentara defender a filha, mas sua vida miserável e angustiante não lhe proporcionava forças para ajudá-la. Personagens de uma sociedade indiferente aos seus problemas, mãe e filha avançaram por meses sem que qualquer instituição lhes prestasse apoio. Até o momento em que o pior aconteceu. E a jovem, em uma tarde de inverno, apareceu estrangulada em um dos terrenos baldios de um bairro pobre da região sul da grande São Paulo. Do outro lado, o Estado, representado pela figura do agora promotor Luiz Fernando de Oliveira Castro, o mesmo homem que havia dois anos presenciara o tiro desferido contra o corpo do major, em frente a uma casa no bairro de Santa Tereza, na cidade do Rio de Janeiro. A pessoa que Cardoso procurava. O militar parou o carro em frente ao Fórum Criminal Mário Guimarães, um dos maiores da América Latina, e seguiu diretamente para o salão onde transcorria o julgamento. A sala de audiências, mesmo sendo uma das mais modernas do país, lembrava os antigos cenários de julgamentos. Cardoso entrou em silêncio, preocupado em

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não ser percebido, e sentou-se em uma das cadeiras vagas, destinadas aos observadores. Alguns alunos de direito, professores, familiares e vizinhos da vítima ouviam atentos o desenrolar do julgamento que já se encaminhava para o final. Fernando acabara de se levantar da mesa designada ao promotor e discursava efusivamente: – Caros jurados – dizia ele –, este homem, de maneira inescrupulosa, cometeu um crime bárbaro e assustador. Desde o dia em que conhecera a vítima, havia mais de sete anos, o acusado com seu comportamento demonstrava intenções maliciosas e imorais em relação à pequena jovem. Intenções estas que, por muitas vezes, foram motivo de discussões e brigas, chegando, por conseguinte, a resultar em denúncias formais junto à autoridade pública. Porém, por um fato intrigante, talvez uma análise errônea da qual se desconhece a origem, estes representantes da justiça consideraram a denúncia apenas um corriqueiro registro de intriga social. Não o bastante, frente a este episódio, um dos delegados que atendera à mãe da vítima, sem se colocar a par dos fatos agravantes de um caso que por certo culminaria em um crime de natureza repugnante, sugeriu que a mulher não tornasse a procurá-lo sem provas concretas, já que a ausência destas faziam com que ele, um representante da justiça, perdesse seu tempo com denúncias nada substanciais. Todos ouviam atentos ao discurso final de Fernando. O promotor que conseguira ganhar casos importantes nos últimos meses já se tornara uma espécie de celebridade jurídica, um profissional respeitado pelos colegas e admirado pelos jovens estudantes de direito. Sua fama corria a cidade e todos esperavam que mais uma vez ele mostrasse seu talento. Após longas horas de depoimentos, apresentação de evidências e conclusões inquestionáveis sobre o caso, aquele parecia ser o momento em que seria desferido seu golpe final. Alguns centímetros acima do piso, em uma cadeira esculpida em madeira maciça e em frente a uma elegante mesa de mogno, o juiz aguardava a conclusão do promotor. A seu lado, poucos metros à direita, o acusado. Um homem branco, muito forte, com os cabelos raspados e uma tatuagem que lhe cobria metade do pescoço, aguardava seu destino de cabeça baixa, cercado por guardas fortemente armados. Do outro lado, como em

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uma arquibancada, sete pessoas comuns, escolhidas por seu comportamento exemplar junto à sociedade, ouviam atentas. Elas viviam ali uma das experiências mais assustadoras de suas vidas. Aquele era um cenário que levariam dias, até meses, para esquecer. Amedrontados, torciam para que tudo acabasse de forma pacífica e que o homem que estavam prestes a julgar esquecesse seus rostos assim que deixassem aquele local. Fernando bebeu um pouco da água que estava no copo sobre a mesa, terminou sua breve pausa e continuou: – Pois bem, hoje, estamos frente a evidências que concretizam os temores de uma mãe, sozinha, vítima de um sistema incapaz de proteger sua família, mesmo depois de suas mais sinceras súplicas. Surpreendentemente, por sugestões de alguns colegas, estas evidências poderiam ser atenuadas, tendo em vista a postura questionável de uma mulher vulnerável ao vício mais comum entre nós, brasileiros. Não, meus caros jurados, afirmo que o assunto não pode ser simplesmente evidenciado como um ato equivocado de um homem movido pela sua origem animal; aqui, estamos falando de um crime bárbaro, sem possíveis atenuações. Lembro que, assim como regem as mais antigas histórias da humanidade, não cabe a nós julgar o perfil ou a personalidade de alguém, mas sim a veracidade dos fatos trazidos a nosso conhecimento. E, para nós, os fatos aqui apresentados são destroços de uma tragédia que não pode ser mais evitada. São evidências incontestáveis de que o homem aqui presente, a pessoa sentada naquela cadeira – disse apontando para o acusado –, o homem conhecido por muitos como “Alemão”, é o responsável pela dor de uma família. Uma perda que nem mesmo o tribunal mais justo poderá devolver aos braços dessa mãe. As pessoas pareciam admiradas. Jamais haviam pensado ou se colocado no lugar de vítimas daquela forma. De fato, aquele homem à frente deles trouxera-lhes argumentos irrefutáveis. Atento, o acusado acompanhava os passos do promotor. Mesmo com a cabeça baixa e o rosto virado em direção ao chão, recebia cada palavra, cada frase, como um golpe desferido em seu corpo. As mesmas palavras que encantavam a todos no tribunal, a ele, pareciam feri-lo. Toda sua chance de liberdade parecia estar

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sendo carregada por aquele discurso como folhas ao vento. Por dentro, uma raiva muito forte o consumia. Fernando continuou: – Por isso, não devemos manter em nossa sociedade indivíduos que possam corromper a justiça que juramos defender. A mesma justiça pela qual alguns de nós nos colocamos em risco a cada dia de nossas vidas. O que peço a vocês é que imaginem uma parte de suas vidas, talvez a melhor parte, aquela pela qual se dedicaram e na qual imaginaram um futuro, arrancada em segundos de seus corações. Um pesadelo do qual todos os dias imaginam acordar e com o qual deparam todas as manhãs. Nada no mundo pode ser pior. Por fim, senhores, jamais poderemos esquecer que a ninguém pertence o direito de interferir no curso natural da vida. Obrigado. O tribunal foi tomado por alguns segundos de silêncio. Jurados, oficiais e visitantes refletiam por alguns instantes sobre o discurso do promotor, até que o presidente da sessão os interrompeu: – Senhores, peço a todos que aguardem; entraremos em recesso por dez minutos e então retornaremos para divulgar a decisão final. Acompanhado por alguns guardas, o juiz saiu da sala. O homem acusado do crime, ainda mais tenso, aguardava pelo que parecia ser a eternidade. As palavras de Fernando, as mesmas que haviam instigado a reflexão de todos naquela sala, soavam-lhe como uma ofensa e isso o incomodava. Para Alemão, o julgamento havia se tornado um evento humilhante. Mesmo enquanto esteve preso, em seu entendimento, jamais havia sido agredido daquela forma e jamais havia admitido tamanho desrespeito. Por um breve momento, seu pensamento estava distante da absolvição, parecia convencido a ferir o promotor. Se fosse condenado, conhecia pessoas capazes de ajudá-lo a agir contra homens como aquele. Para ele, era evidente que qualquer resultado negativo daquele julgamento era fruto do discurso daquele homem. Ele piorara sua situação. Do outro lado, Fernando aguardava, sentado à mesa da promotoria. Ele organizava alguns dos documentos quando o juiz voltou, carregando um pequeno envelope. Todos na sala aguardavam ansiosos pelo que estava por vir e por isso o Magistrado não demorou em se pronunciar:

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– Nem sempre conseguimos encontrar oportunidades de aplicar a justiça sobre o que acontece em nossa sociedade. Muitos dos crimes que se sucedem em uma grande cidade por vezes não chegam ao conhecimento de tribunais como este, o que compromete em muito a ideia de uma sociedade completamente amparada. Mas quando isto ocorre, me orgulha julgar acontecimentos que revelam a verdade de forma tão clara e límpida, através de teses tão bem elaboradas. Parabéns a todos que compuseram este tribunal, pois talvez seja um dos melhores que já presidi. E com um desfecho inquestionável, declaramos o senhor Valter Silva Costa, conhecido como Alemão, culpado pelo crime de assassinato da jovem Danielli Passos e consequentemente condenado a trinta anos de reclusão em penitenciária de segurança máxima. Em poucos minutos as pessoas mudaram seus semblantes e um sorriso, seguido de uma tímida euforia, envolveu toda a sala. Alguns se cumprimentavam enquanto outros apenas se mostravam orgulhosos e satisfeitos. Em meio ao clima festivo, um dos guardas se distraiu e o homem que estava sendo acusado pôde sair da cadeira em direção ao promotor. Ele estava transtornado, consumido por uma raiva ensandecida. Cardoso, que estava bem ao fundo da sala, previu o ataque que estava para acontecer, levantou-se e correu em direção a Fernando. O militar esperava que a rapidez adquirida em seu treinamento fosse suficiente para evitar o pior. Alemão, mesmo algemado, pulou sobre a mesa da promotoria, diretamente ao encontro de Fernando. Em um único movimento, agarrou fortemente o pescoço do advogado que caiu de costas no chão, já com a respiração interrompida. Sem entender, Fernando sufocava nas mãos de um assassino em pleno tribunal. Ele tentava afastar o corpo, do homem, mas sua força, potencializada pelo peso de seu corpo tornava qualquer reação impossível. Foram vários segundos de desespero, até que Cardoso conseguisse se aproximar. Vencendo o guarda-corpo que separava os advogados da área para visitantes, o militar surgiu desferindo um golpe perfeito sobre a nuca do criminoso. Imediatamente, Alemão soltou o promotor e caiu. Fernando, que já havia sido ameaçado antes, mas nunca atacado diretamente, levou a mão ao peito, tentando recuperar sua respiração. O

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criminoso, mesmo momentaneamente ferido pelo golpe de Cardoso, olhou-o nos olhos, com a nítida intenção de ameaçá-lo. Era uma cena frustrante para o que parecia ser um de seus melhores trabalhos. – Você está bem? – perguntou Cardoso tentando ajudá-lo. – Sim – respondeu Fernando enquanto se levantava. – Obrigado! – Não há de quê. Os guardas se aproximavam, agitados, tentando proteger o promotor, mas sua interferência já não mais era necessária. Com um aceno dos braços ele fez com que recuassem. – Se me dão licença – disse Fernando arrumando suas roupas. – Acho que já passou da hora de sair. Com o militar ao seu lado Fernando organizou os documentos do processo em uma pasta preta e, entre uma multidão assustada, se dirigiu à saída. Cardoso percebera que aquele não era o melhor momento para conversar, mas não podia perder a oportunidade de abordar o promotor. Por isso o seguiu até a porta. Seu tempo era pouco e precisava aproveitá-lo bem: – Olha – disse Fernando enquanto caminhava. – Sei que me ajudou e já lhe agradeci por isso, mas se continuar me seguindo, serei obrigado a achar sua atitude preocupante. – Me desculpe, senhor Fernando – respondeu Cardoso –, sei que não é o melhor momento para conversarmos, mas o tempo está se esgotando e preciso que ouça o que tenho a lhe dizer. – E quem é você? – Meu nome é Antonio de Lima Cardoso. Mas todos me chamam de Cardoso. – Desculpe-me, senhor Cardoso, mas não estou com cabeça para conversar, acabo de ser ameaçado em um tribunal do Estado e, acredite ou não, isto me incomodou muito. Marque uma hora com minha secretária e quem sabe até o final da semana podemos conversar. – Infelizmente o final da semana já será tarde. Tenho ordens expressas do major para contatá-lo o mais rápido possível. Por um momento, Fernando imaginou ter ouvido coisas. Havia quase dois anos ninguém o abordava sobre o que aconteceu, e parecia impossível que viessem a fazê-lo:

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– Você disse ‘major’? – Exatamente, senhor. Depois de tudo, para sua própria segurança, ele e Gabrielle haviam decidido manter segredo sobre o ocorrido. Fernando não sabia se aquele homem realmente tinha as informações sobre as quais falava e por isso precisava se prevenir: – Não conheço nenhum major, não sei de quem está falando – respondeu apreensivo. – Agora me deixe ir, tenho que me recompor para a audiência de amanhã. – Não se preocupe, senhor Fernando, o major me alertou que vocês negariam conhecê-lo. Por isso me entregou isto – disse Cardoso, retirando um envelope do bolso e entregando-o ao promotor. – O que tem que fazer é seguir as instruções descritas no conteúdo deste envelope. – Mas por quê? – Não tenho detalhes. Tudo o que o senhor precisa saber encontrará neste envelope – respondeu Cardoso. – E mais uma coisa. – Fale. – Tem que manter nossa conversa e tudo o que ler em segredo. Pelo menos até encontrar o major. Ele esclarecerá todos os seus questionamentos. – É só isso? – perguntou Fernando, claramente insatisfeito. – Sim, senhor. Desculpe-me por ser insistente, mas o assunto é de suma importância. – Claro! – Até logo, senhor! – Até logo. Fernando abriu o envelope enquanto descia as escadarias do fórum. Para sua surpresa, o papel continha um endereço e instruções para um encontro. Não tinha a menor ideia de que se tratava tudo aquilo, mas sua percepção aguçada lhe dizia que desde já deveria se preocupar.

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