SOMOS TODOS ÓRFÃOS

Page 1


DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 2

10/17/12 7:19 PM


S 達o Pau l o , 2 0 1 2

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 3

10/17/12 7:19 PM


DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 8

10/17/12 7:19 PM


Apresentação

A

ideia do livro adveio da leitura que fiz de Os filhos do nosso bairro de Naguib Mahfouz, prêmio Nobel de Literatura. Lá o autor relata fatos religiosos e faz crítica às diversas seitas. Como partilho de tais preocupações, resolvi, ao invés de escrever sobre religião, imaginar situações em que colocaria alguns episódios da vida de místicos, profetas e arautos da divindade, contrariando suas opções e seus argumentos. De outro lado, apanhei relatos existentes em livros tidos como sagrados, dando-lhes uma versão possível. Evidentemente que respeito a religião de cada um. É legítimo que se acredite num ser transcendental. A crença nasce do medo ou da necessidade que existe de criarmos alguma coisa sobrenatural que nos dê esperança. Diante do dia a dia, os seres humanos se desencantam. Nasce-se para morrer. É a fatalidade incontrolável da vida. A cada minuto nosso corpo se desintegra. Átomos mudam de lugar levando com eles nossas esperanças de sermos eternos. A finitude é fatal. Em sendo assim, homens de inteligência excepcional e grandes psicólogos entenderam que bastaria criar uma lenda que muitos

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 9

10/17/12 7:19 PM


nela acreditariam. Assim, poderiam conduzi-los. A dominação é uma constante na natureza humana. Todos buscam fundamentos para subjugar o outro. É sempre assim. Seja a dominação pelas palavras, seja pela violência, seja pelo dinheiro, seja pela riqueza, seja pelos sentimentos, sempre há uma guerra de uns contra outros. Não aparente. Disfarçada. Na linguagem (escrita ou corporal), na interpretação, nos exemplos, na conduta, em tudo há a conquista. Por vezes suasória, por vezes violenta. Mas os sentimentos e as emoções estão sempre aflorados. O presente livro pretende explorar os sentimentos humanos e esclarecer que as religiões sempre tendem à dominação e à promessa de uma vida melhor em outro lugar, buscando a desconsideração pelo humano. Com tal pregação, eliminam o que há de mais notável no ser humano: a vida que vivemos. Buscam amesquinhá-la, impondo-nos dor, renúncia e sacrifício, onde deveria haver prazer, realizações e satisfações. É a aniquilação dos sentimentos, que são naturais. Como não quis escrever um livro religioso em que analisasse os diversos aspectos de cada religião, preferi a forma romanceada. Cada qual dará sua interpretação. Não quis fazer obra de grande dimensão. Ao contrário, quanto menor, melhor. Não quis me estender sobre inúmeros assuntos. Apanhei aqueles que poderiam dar ideia de diversos pontos. Em verdade, no fundo do texto está um processo de desmistificação de muitas pregações que se fazem. A atemorização de pessoas mais humildes, o recolhimento de dinheiro para o trabalho das diversas igrejas é entristecedor. Ainda que realizem trabalho social. Cada qual poderia ficar com um pouco para melhorar sua vida. Não se desconhece, também, o trabalho pastoral como útil no que toca ao controle de drogas, bebidas e outros problemas 10

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 10

10/17/12 7:19 PM


da humanidade. Mas a ajuda é pequena em relação ao que há por se fazer. De qualquer maneira, cada leitor receberá a mensagem que lhe aprouver. Alguns clamarão contra, dizendo-a obra inconsequente e fraca. Outros falarão contra a redação do texto. Alguns entenderão a mensagem. Se puder desmistificar algumas coisas que entendo erradas, estarei gratificado.

11

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 11

10/17/12 7:19 PM


1

Adônis e Lili. O homem e a mulher.

N

o princípio era o caos. Havia um vazio dentro de si. Ele não se contentava com nada. Estava entristecido e sem rumo. Nada o agradava. Nada o satisfazia. Vivia uma crise existencial. Faltava-lhe uma companhia. Todos os dias voltava para casa e sentia-se sozinho. O pai o adotara para que fosse um bom homem e criasse uma família, entre outros bons propósitos. Encontrou-o perdido no mundo quando ainda era bem novinho. Uma criancinha. Era meigo e irrequieto. Pensou em fazer dele um grande homem e um político de primeira grandeza à frente do povo, e que também teria muitas mulheres e disseminaria seu sangue pelo mundo afora. Criara-o com todo carinho, tentando dar-lhe educação esmerada. No entanto, sentiu que falhara. O filho só pensava em mulheres, vida sossegada, bebida, mas sem pensar nas responsabilidades. Enfim, tudo que era o sabor da vida rude e carnal.

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 13

10/17/12 7:19 PM


Pouco importava o que o pai pretendia. Como sabemos, ninguém é um robô e ninguém dirige a vida de ninguém. Cada qual segue seu caminho, ainda que tortuoso, mas todos têm a opção de decidir o que quiser. Ainda que se quebre a cara no final da estrada. Mas há sempre a opção. O filho continuava seu cotidiano insuportável. Não aguentava a náusea que era o mundo. Acordar, trabalhar, comer, dormir, era a inevitável intolerância do dia a dia. De repente, fez-se a luz. Como que por milagre, avistou uma mulher que ele sentiu ter sido criada para ele. – Seu pai fez você para mim – disse-lhe, pela primeira vez em que se falaram. Adônis havia escolhido uma mulher do seu gosto. Era maravilhosa. Rosto lindo. Corpo escultural. De uma beleza desastrosa. Muito mais que Hera, Afrodite e Atena juntas. Todos conhecem a história do pomo da discórdia. Éris, a deusa da discórdia, jogou o pomo no meio de uma festa onde as três deusas estavam presentes, e disse que a fruta deveria ser entregue à mais bonita. Como fazer a escolha? Um humano, Páris, foi indicado para decidir, e escolhe Afrodite, que lhe prometera a mulher mais bonita da Terra. As outras deusas também lhe prometeram coisas como o poder, a força, a inteligência. Nada. Ele optou por possuir uma bela mulher. Ela era Helena de Esparta, que depois vem a ser a de Troia, que deu origem ao decênio de guerra entre esta cidade e todos os reis da Grécia. Nem mesmo essas deusas eram mais bonitas que Lili. Quando Adônis a viu, encheu-se de amores. O fogo ardeu em seu corpo. A beleza de seu rosto correspondia à do corpo. Era alta. Altiva. Rosto de quem olha para frente. Pele sensacional. Corpo sensual. Nenhum milímetro de gordura. Quadril saliente e bem 14

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 14

10/17/12 7:19 PM


formado. Cintura absolutamente perfeita. Busto correspondente ao quadril. Mulher para ninguém botar defeito. Daquelas de parar quarteirão. De chamar a atenção de todos e despertar ciúme nas mulheres. A conquista não foi difícil. Houve a aproximação. Adônis também não era de se jogar fora. Bem apanhado. Forte. Alto. Corpo sarado. – Lili, você é maravilhosa. Farei tudo para tê-la até o fim de minha vida – disse Adônis. – Você é que me faz assim, seu bobo – disse, sorrindo, a mulher, já excitada. Iniciado o diálogo. Sabidos os gostos de cada um. Uma piadinha bem encaixada, um elogio, um roçar de mãos, algumas promessas, um sussurro no ouvido. Pronto. Estava ganha a parada. Para ambos, porque a atração fora recíproca. “Mulher gosta de homem alegre”, pensou ele. “Tenho que me esforçar e ser-lhe agradável, mostrar-me atencioso, dar-lhe algum presente. Uma flor é o que a mulher mais gosta. Depois de uma joia, claro.” Como em todos os relacionamentos, o começo foi divino. Ninguém percebe os defeitos dos outros. Passaram a morar juntos, e em pouco tempo o relacionamento se deteriorou. É que, como ocorre com todos os casais, o convívio não é só de sexo. É de compreensão mútua, de concessões recíprocas e de entendimento das falhas dos outros. Sem isso, tudo se esgarça. Quando você mora sozinho, você faz o que quer. Quando mora com outra pessoa, você faz o que quer desde que não incomode o outro. Caso contrário, você muda seu estilo, seu comportamento. Senão, não há convivência. 15

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 15

10/17/12 7:19 PM


No começo você abre mão de seus gostos para agradar a parceira ou o parceiro. Não liga muito para um defeitozinho que você encontra. “Deixa pra lá”, dá de ombros e não se importa com ele. Depois, passa a defeito mesmo. Posteriormente, para uma enorme falha, e, bem... o mundo começa a ruir. Certa feita notou que as coisas não estavam funcionando bem. Lili era distraída e dispersa. Não cuidava da casa como ele achava que deveria. Começaram a faltar coisas na geladeira. A comida não era das melhores. Via-se que o chão não estava bem limpo. O homem passou a ficar preocupado. Ficava amuado, olhar absorto. Olhar jogado pelas paredes, vendo o nada. Ela também, de seu lado, estava incomodada. Ele não lhe dava qualquer atenção. Não procurava agradá-la, como devem fazer os homens. Nenhuma surpresa. Nenhum presentinho. Nenhum gesto de carinho. Nada. Aquele início fulgurante soçobrava. Somente sexo, e da maneira dele. Ambos tinham atração física irresistível um pelo outro. Amavam-se continuamente. Só que Adônis impunha seus gostos. Para não criar problemas, ela, de início, aceitou. Mas começou a ficar insatisfeita. Às vezes começavam com o arrancar de roupas. A calcinha voava para longe. Imediatamente Adônis ficava teso e a penetrava com gosto. Profundamente. Em pé. Deitados. Sobre a mesa. Na cozinha. No banheiro. Em todos os lugares. Era uma violência animal. Mas absolutamente satisfatória. Gozavam até perder o fôlego. Era um dar-se perdidamente. Verdadeira loucura da carne. Sem limites. Sem meio e sem fim. Orgasmos múltiplos. Contínuos. Era um desespero. Só que, com o passar dos tempos, o homem a procurava apenas para sua satisfação. O desejo de tê-la. Usá-la. Usufruir de seu corpo e abandoná-la. Ficava ela no meio do caminho. Somente 16

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 16

10/17/12 7:19 PM


no começo. Sem meio e sem fim. Tinha ainda que utilizar seus próprios dedos para sua satisfação. Começou a ficar frustrante. Por vezes tinha longos momentos de intimidade quando, então, tocava-se e sentia-se úmida. Esfregava-se para obter o prazer. Não era justo. Sua atenção, que era inteira para seu parceiro, começou a ficar confusa, e quando pela primeira vez o viu, sentiu-se tremer. Quando seus olhares se cruzaram, foi atração fulminante. “Que belo rapaz”, pensou Lili, uma vez que cruzaram com um grupo de pessoas que brincava na rua e avistou o homem. Reparou no seu corpo. Olhou para ele e sentiu desejo. “O que será isto?”, imaginou ela. “Não posso pensar assim. Tenho Adônis”, procurou disfarçar interiormente. Ia ficando insatisfeita. Sentia-se contrariada. “Puxa, agora que estou vivendo com alguém que desejei, por que será que estou assim?”, indagou. Um belo dia iniciou-se a discussão. – Não pode ser só do seu jeito, Adônis, deixa de ser machista – disse Lili, angustiada. – Por que não podemos dividir os prazeres da vida? – Assim não dá Lili. Juntei-me a você para que pudesse ter sossego e que tudo fosse gostoso. Mas você não quer aceitar. Mulher e homem nasceram para viver juntos, você não sabia? – respondeu Adônis, contrariado. – O homem tem superioridade física e deve impor suas regras. Você não leu Platão, que disse em O Banquete que o amor é desejo, e uma vez satisfeito já não se quer mais? Começou com uma pequena discussão quase sem consequên­ cia, mas ambos estavam chateados com a maneira de ser do outro. Era assim, quase todos os dias. Mal conseguiam conviver. Adônis tinha na cabeça que a mulher nascera para satisfazer os 17

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 17

10/17/12 7:19 PM


prazeres do homem. Lili não concordava. Entendia que os direitos deveriam ser iguais. Essa é uma briga eterna. No começo, houve uma fusão desbragada de sentimentos. Tesão não faltou. Adônis procurava a mulher todos os dias e a toda hora. Era insaciável. De início, ela o atendia, a qualquer hora. Era na sala, no quarto, no banheiro, na cozinha, em todos os lugares da casa. Ela tinha o mesmo furor. Desesperado. Queria o amor de todas as formas e em qualquer circunstância. Não tinha hora. Sempre era tempo para se divertirem. Também ela o procurava. Quando vinha a libido, ia direto ao seu homem. Queria transar. Queria esfregar seu corpo no dele. Queria ter orgasmos. – Meu bem, vem cá – dizia ela, toda amorosa e com desejo infinito, e já ia baixando a calcinha. Ele não se fazia de rogado. Fosse a hora que fosse, estava sempre pronto para o amor. As querelas começaram quando ele se satisfazia e deixava Lili no meio do caminho. Ela também procurava o prazer mas, quando chegava a hora do orgasmo, ele não a esperava. Ela ficava insatisfeita. Começou a perceber que não estava certo. O relacionamento começou a se deteriorar quando ela também queria ficar por cima. Adônis achava errado. Ora, a mulher tem que ser submissa e, por isso, querer mudar as posições tradicionais não tinha sentido. Mulher que é mulher deve aceitar o marido do jeito que ele é, e o natural era ele ficar por cima e por aí penetrá-la. Da maneira normal. O que era normal para ele? Era encontrar sempre tudo arrumado, com comida pronta, e ela, sempre fresquinha para seu prazer. Por que as coisas haveriam de ser diferentes? Lili começou a se impacientar. Entendia as razões tradicionais de Adônis, mas também não queria ser uma eterna insatisfeita. Com a 18

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 18

10/17/12 7:19 PM


repressão de seus sentimentos, poderia ter problemas psíquicos. Freud já não falara que, quando um impulso sofre restrição, ele fica armazenado no interior da pessoa e, uma hora ou outra, volta a aparecer trazendo consequências negativas? Ela não queria saber: ou seria também do seu jeito ou a coisa não terminaria bem. – Olha, você está me deixando na seca – disse-lhe ela. – Assim não dá. Você vem, me deixa excitada. Me penetra, goza e vira de lado. E eu? Estou toda hora tendo que me virar sozinha. Ela não queria fazer isto, mas foi ao pai. Explicou o que se passava e pediu que ele desse um jeito. Se homem e mulher iam viver juntos no mundo, que fosse de forma igual. A mulher não podia ter uma posição inferior. – Você tem que saber que as coisas no mundo têm uma razão e uma finalidade. A razão do prazer sexual não é apenas para satisfação de vocês, mas para procriar. A finalidade essencial do sexo é ter filhos, para preencher o mundo. – Ademais – continuou o pai –, você tem que ter paciência. Adônis foi feito à minha semelhança. Logo, ele tem direitos que você não têm. Você veio depois dele, portanto, saiba obedecê-lo. – Como mulher não posso aceitar as coisas de tal forma. Para mim, com todo o respeito, as pessoas são iguais e com iguais direitos. Não há superior a outro. Ambos são iguais. O prazer é comum. Todos devem procurá-lo – respondeu, azeda. – E os filhos não devem vir quando as pessoas não querem. Ela mostrou-se inconformada com a resposta. Disse que jamais se submeteria de forma incondicionada. Se quisesse, poderia fazer um acordo para que a razão falasse mais alto, mas não se conformava com posição secundária. Afinal, as coisas começaram de tal forma que a mulher teve que se sujeitar ao homem. 19

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 19

10/17/12 7:19 PM


Se essa era a regra, ela não a aceitaria. Iria advogar pelo mundo afora a independência de comportamento e a igualdade de direitos. Nada de ser coisa secundária. Nada de ficar na cozinha. Nada de lavar e passar e cuidar da casa, apenas. Se Adônis não fazia nada, era justo que a ajudasse em alguma coisa. Além de todas as tarefas ainda teria que se sujeitar a ele na cama, fazer tudo que ele queria e ainda ficar insatisfeita. Negativo. Iria abrir uma guerra santa contra tal situação. Falou para si própria que as coisas não podiam continuar como estavam: “as mulheres teriam que ter direitos iguais. Se tivessem relação sexual fora da parceria original, por que seriam apedrejadas? Por que o homem também não deveria ser apedrejado? Por que o homem pode ter quantas amantes quiser e todos entendem que isso está certo? Acham bonito, pois ele comenta com seus amigos e todos compreendem que ele é macho. Tem o aplauso de todos”, prosseguia pensando Lili, inconformada. A situação não podia continuar assim. Alguma coisa tinha que ser feita. Era injusto que os homens tivessem todos os direitos e as mulheres apenas servissem para seu pasto de lascívia. As mulheres tiveram problemas em todos os tempos. Desde crianças eram ensinadas à submissão. Não tiveram oportunidade de se aproximar de todos os grandes homens. Nas festas, eram barradas. Tinham que ser recatadas e usar disfarces para esconder sua beleza, no oriente e no ocidente, ainda que os costumes ficassem mais frouxos com o tempo; mesmo assim ainda havia diferença. “Jamais aceitarei isso com passividade”, pensou Lili. “A mulher é biologicamente desigual, mas tem que ser igual em direitos.” Em países da África faziam incisões no clitóris da mulher para que ela não tivesse prazer, mas produzisse mais prazer para o 20

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 20

10/17/12 7:19 PM


homem. Em alguns países asiáticos, a mulher era relegada a segundo plano e obrigada a se cobrir. O homem podia ter algumas mulheres. Essas só podiam pertencer a um homem. Não tinham direito a escolher seu parceiro. Esse lhes era imposto por acordo de família. Na história, serviam de moeda de troca em acordos entre Estados. Sujeitavam-se totalmente à vontade do pai e, depois, do marido. Nenhum direito tinham de participar da vida em sociedade. Só iam a determinados lugares se o marido autorizasse. Não podiam ser cidadãs, isto é, integrar a vida da polis, ou seja, da cidade e do país. Nem votar podiam. A situação era crítica, e elas eram estupradas sem que pudessem reclamar. Serviam de pasto a homens despudorados e desfilavam como prostitutas em bordéis masculinos. Era a prevalência total do masculino. O mundo era para ser dominado por eles, e as mulheres eram subproduto, subcoisa para seu repasto e satisfação. Coitado, então, daquele que nascesse ou viesse a ter gestos efeminados. Seria morto. Não se admitia qualquer outra opção sexual que não a heterossexual. Todos tinham que se enquadrar num mundo masculino. Assim ela pensava quando Adônis chegou e disse-lhe que queria sexo. Ela também queria. Estava doida para gozar e vibrar, mas entendeu que era chegada a hora de dar um basta em tudo isso. Adônis veio já todo estimulado, e ela se recusou ao primeiro contato. Disse que não estava com vontade. – O quê? Sem vontade... Mas eu quero dar uma trepada e quero agora, você queira ou não – disse Adônis, com uma certa brutalidade. O sangue ferveu em seu corpo. Lili estava também desejosa, mas não mais admitiria ser usada. Tinha que ser recíproco. Tinha 21

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 21

10/17/12 7:19 PM


que ter correspondência de ambos os lados. O ato sexual, embora refletisse um desejo interno, irresistível, tinha que ser coisa a dois. Um só não poderia exigir do outro. Em tais coisas, não há que se falar em exclusividade. Ao contrário. O ato sexual deve se constituir em atitude positiva de macho e fêmea, tenham as características que tenham; devem corresponder a uma atração recíproca. Jamais poderia e jamais seria, na opinião de Lili, uma imposição do macho. O mundo não deveria ser assim. Alguma coisa estava errada. Embora o homem pudesse ter nascido primeiro, de acordo com a lenda, uma mulher teria que ter-lhe dado à luz. O homem contribuía com uma parte mínima e insignificante. Uma gota. Nada mais. Bastava lavar o membro e estava pronto outra vez. A mulher tinha que se lavar até internamente, e havia a prévia lubrificação. Depois, deveria carregar a criança durante determinado tempo. Tal relacionamento não poderia ser fruto de mando. Ao contrário, era produto de carinho, de respeito recíproco, de atenção, de desejo. Inclusive, de criar situações próprias para que o desejo se manifestasse com todo o poder animalesco de que é dotado. – Não quero e não vai ter sexo hoje – disse ela, corajosamente. – Não estou com tesão, e sexo só se faz se existir uma atração recíproca linda, que possa ser atraente. Sexo por sexo é coisa de animal. – Você se esquece quem é o homem aqui dentro – disse furiosamente Adônis, erguendo a mão, e com seu membro já amolecido. Jamais poderia esperar que a mulher fosse, um dia, reagir com tanta fúria e com tanta resistência. – Bata, se você for homem – gritou ela. – A partir de hoje vai ser assim, se você quiser. Apenas teremos sexo quando nós quiser22

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 22

10/17/12 7:19 PM


mos. Quando eu – frisou bem – também quiser. Não é somente a sua vontade que vale, mas também a minha. Quero o prazer quando ele vier também para mim. E mais – continuou –, quero ir por cima, também. – O quê? Por cima você não pode, sua despudorada, porque assim as coisas foram feitas. O homem por cima e a mulher por baixo. É da natureza – respondeu Adônis. Adônis foi ao desespero. Mas lhe tinha sido dito que era ele que mandaria. A mulher teria se unido a ele apenas para sua satisfação. Foi ao pai. – Não quero mais a mulher que vive comigo. Ela não serve. Não aceita servir-me quando eu quero. Está revoltada. Quero uma mulher dócil, que não reclame e que aceite a natureza como ela é. Ela também foi ao pai. – Não quero mais este homem. Ele não serve. É egoísta e mau caráter. Só quer as coisas para ele. Não aceita dividir. Aliás, se o mundo for assim, viro revolucionária. Não posso aceitar esse estado de coisas. As mulheres não podem viver como coisas secundárias. Este mundo não é só dos homens. Tem que ser repartido e dividido. A mulher saiu de casa. Deixou suas coisas, porque não queria nada que pudesse lembrar o passado. Mulher tem que ter dignidade e ser tratada de forma equiparada ao homem, e não ser empregada e escrava. Cada qual tem sua conformação biológica, mas tem ideias diferentes que precisam ser respeitadas. Lili entendia que as pessoas são iguais. A diferença está apenas no sexo biológico: um é homem, outra é mulher. Somente por aí. No mais, tudo há de ser igual. No sexo, cada um tem sua individualidade. Na vida, cada qual tem suas opções. Suas escolhas. A profissão é decidida pela própria pessoa. Pode ouvir os 23

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 23

10/17/12 7:19 PM


outros, mas a palavra final é sua. Nos gostos. Nos estudos. Na literatura, na música e em todas as demais espécies de arte. Enfim, cada um é um ser, com todas suas aptidões. Tinha que ser assim, desde o início. O homem levou o primeiro grande susto do universo.

24

DIAG_SOMOS TODOS ORFAOS.indd 24

10/17/12 7:19 PM




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.