Tabuleiro

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Van Curtt

Tabuleiro

Coleção NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo 2012


N ota

do autor

A cidade do Rio de Janeiro, bem como todas as outras citadas, se classifica como fato (incorruptível e existente). Seus pontos turísticos são fato; no entanto, os nomes dados aos personagens, locais e comunidades, além de todo o contexto, vêm do caráter fictício, assim como os procedimentos investigativos da polícia brasileira, não apresentando uma metodologia designativa, perpetuadora ou formadora de opinião.

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Prólogo Antes do esperado, ela adentrou a sala na qual eu a aguardava. Em um vestido azul-marinho, estava tão impecável quanto o ambiente de poltronas vermelhas aveludadas e cortinas cor salmão. Ao lado da porta, sobre um aparador, pude conferir o belo quadro pintado a óleo, tendo a imagem de um anjo azulado de aura entristecida, entremeado a árvores retorcidas. — Boa noite, senhorita. — Levantei-me de forma cortês e assenti com a cabeça de modo desajeitado, enquanto ela desferia um olhar imobilizante que logo me afetou as pernas, obrigando-me a sentar. — Esteja ciente da sua perda de tempo. Não tenho a mínima intenção de desenterrar o passado — sua voz tomava liga e tom. — Você é alguma espécie de vingador, detetive, sociólogo, advogado ou o quê? — Pesquisador — complementei. — Ou, como prefiro que me vejam... Apenas um fotógrafo pelas palavras. — O que lhe dá o direito de lotar a minha caixa de e-mails, ainda que desde os primeiros eu venha respondendo que não... Não tenho mais nada a dizer sobre o Tabuleiro. — Seus cílios se fecharam por um longo período, enquanto a maçã do seu rosto se tornava tão rosada quanto fosse escaldada por água quente; eles que vagarosamente libertaram o anil daqueles olhos azuis emoldurados por mediana madeixa de um louro acobreado... Caracolados em espirais como se fossem artificiais. — Por você, senhorita! Foi-se dito muito sobre isso, e mais, falou-se ainda que fora a única pessoa que se deu bem ao término de o Tabuleiro. — Então, subitamente elevei a palma impedindo que ela me interrompesse, segundos antes de eu arfar à mesinha de centro com um tampo em vidro que sustentava um belíssimo arranjo também vermelho. Busquei

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minha pasta, meio empresário meio testemunha de Jeová, e dela retirei aquela bagunça organizada de papéis, fotos, CDs e jornais. — Imagino que se apresente usando um pseudônimo — franziu as sobrancelhas. — Agora me diga... — ofegou. — Como posso acreditar em alguém que se esconde atrás do próprio eu? — Assim me protejo melhor de mim mesmo. Senhorita! — achei que havia escutado um hmmm, e só por isso prossegui. — Todos têm o direito de expor a sua versão, e é por isso que insisto tanto na sua... Sobre uma poda de árvore existem três versões: a da árvore, a do lenhador, porém, é a da natureza que lapidará uma verdade pela qual seria possível morrer. Folheei alguns daqueles com os quais imaginei que ela teria maior afinidade e os ofertei. No entanto, mesmo estando mais receptiva, repetiu o ato que fiz com a palma, obrigando que eu cessasse. — Não quero saber o que a mídia acredita ser o certo ou o errado. Isso tudo é sensacionalismo; a única coisa que fizeram comigo e com todos os que se salvaram foi nos apedrejar. Acha que eu me senti bem participando disso? — Acredito que sejamos provedores de boa parte do nosso próprio martírio, e que em sua grande maioria são criados por cada um dos que sofrem. Temos apenas de nos manter vigilantes pra minimizar ao máximo as nossas ações suicidas... cânceres, enfisemas, acidentes. — Senhor... meu tempo se esvai minuto a minuto. Já disse que não! — Sei sobre o seu horário e assisto sempre que posso; mais agora que estou amadurecendo o material. Trinta e seis pessoas me forneceram o que já tenho. Tudo o que cada uma delas apresentou era passível à verdade, independentemente de qual parte dessa verdade em que elas se enquadram. — Falou com Henrique... Conseguiu conversar com ele? — Foi ele quem abriu os meus trabalhos. Entretanto, ainda tenho algumas dúvidas que serão esclarecidas por você. Finalmente resgatei a foto que gostaria de ter lhe mostrado antes de ser atacado. Conhece? — golpeei. — Consegui com um médico legista, e ainda me pergunto o verdadeiro motivo de ele tê-la tratado assim. A fotografia trazia a imagem de uma jovem de cabelos ruivos curtos e esvoaçados sobre uma bancada em granito, com quadrados de compressas sobre as pálpebras... pálida, parcialmente acinzentada. 13


— Acho que, independentemente do ocasionado, ela não merecia ter... — Eu pude conferir calado o quanto ela se emocionou. — Parece que nunca temos o controle verdadeiro sobre as coisas, não é mesmo? — Então, acredita que somos provedores de boa parte das nossas próprias desgraças? Veja bem... Acredito que estou diante de uma das poucas pessoas que tiveram a possibilidade de manipular a opinião pública ante uma eleição na cidade do Rio de Janeiro. — Muita gente foi morta sem nenhum motivo aparente. Trinta e seis pessoas me disseram as mesmas coisas; no entanto, verão que o simples ato de abrir a porta para alguém errado já os incluiriam no ciclo. Acreditei que tivesse recordado algo, pois as cores iam se defraudando dentro do oceânico azul daqueles olhos tão candentes quanto o extremo da sua narina. — Desculpe-me — tentava me redimir de algo. — Não queria tê-la deixada assim, mas fique consciente de que você seria a última pessoa a ser ouvida nestes quase seis meses de trabalho, e eu não cessarei. Juntei o meu material e segui até a porta, vendo-a formar um copo com as mãos e levá-lo à narina, enquanto ainda mantinha os olhos fechados. — Sabe o que acho de você? — Hmmm — agora sim, tinha certeza de ter ouvido. — Mais linda pessoalmente. Caso queira conversar... Deixarei o meu cartão no aparador — bati a ponta do indicador na tela. — Os anjos são assim... tristes? — Não toque neste quadro. — Foi você quem o pintou? Uma bela tela, não sabia que os seus dons se estendiam aos quadros — tentei satirizar, mas não obtive tanto sucesso. — Sabe o que acho do senhor! Brevemente tolo ao envolver-se nisso, e um inconsequente insistente — disse carinhosamente duma forma errônea de se elogiar, mas aprazível. — Mas tenho de admitir que você deva ser bom. — Você não imagina... Quarenta e três horas depois, meu telefone finalmente tocou.

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Capítulo

um

Rio de Janeiro — 1° Domingo Fora uma decisão banal. A seu ver notoriamente a mais tola, mas não poderia finalizar todas as tardes com os bolsos repletos de moedinhas mendigadas a pessoas que nunca havia visto e novamente se esconder num abrigo sem, ao menos, uma única vez, passear pelo calçadão do Rio de Janeiro... Este fora o motivo de ter-se dirigido até lá: desejava molhar as barras da calça nas águas salobras do mar ou simplesmente atirar-se nele. O sol, já exausto de aclarar incansavelemente a praia de Copacabana, pendia-se ao horizonte pouco nublado e consentia não iluminar a pequena parte da areia na qual as grandes ondas se levantavam em tamanhas rebentações. Naquela tarde ventosa, decidiu caminhar desnorteado. Viu seus dias de excursionista passarem rapidamente, e, com eles, a esperança de poder sentir-se normal. O impiedoso sol fluminense ainda era expositor da sua soberania, mesmo dentre algumas nuvens carregadas e isoladas, fervilhando o asfalto vaporoso que adentrava a carne pelo solado frágil dos seus velhos sapatos. Ele caminhava pelo calçadão sem chamar atenção, a não ser por sua cor alvejada; entretanto, estava com medo, medo do que poderia determinar. Iria se suicidar ou encararia sua nova realidade imposta por ele mesmo? Ainda não estava convicto disso. Chicoteada pelo vento, uma folha de jornal se emaranhou nos caititus de uma mulata alta que, à sua frente, esquivava os olhos em sua direção. Eles prosseguiam caminhando. A jovem tinha cabelos esvoaçantes e usava uma calça de lycra florida justa como uma segunda pele. Já Laerte não estava maquiado naquele 15


andamento, ou mesmo fantasiado de palhaço. Prosseguia desejando apenas não ser notado, e ainda assim chamava atenção apenas caminhando normalmente como uma pessoa comum. Ele apenas querendo ser natural: negro, pardo, cinza ou de um amarelado anêmico; azulado, talvez. Vestia uma camisa longa de cor preta, luvas brancas e chapéu também preto, mas de aba curta; e acreditava que por essa razão não chamava atenção, mas por ser um indivíduo albino... De forma desconfiada, buscou ao chão o jornal do qual a mulher conseguira se desfazer e o levantou diante da face, obrigando-a a redirecionar os olhos a outrem; porém, somente quando o abaixou por um instante a olhando de soslaio, notou que ela havia se distanciado e se disfarçado na ideia de vê-lo caminhando como uma pessoa como ela... absolutamente normal, dentro do que socialmente se pode considerar. Havia prometido a si mesmo que entraria no mar. Pretendia devorá-lo psicopatamente, numa discrepância muda como a de um machado alucinado pelo fundo do oceano. Não... não deixaria que seus braços se desprendessem do tórax e bolhas clamassem vida. Desse modo, permaneceria atônito, deixando-se levar pelo retorno das ondas. Viu alguns tradicionais banhistas a enclausurar-se à sombra dos grandes arqueados dos guarda-sóis coloridos. O tempo havia se fechado parcialmente sobre suas cabeças, o futevôlei nada hermético anunciava o finalizar daquela tarde e poucos (mas afoitos) turistas conversavam simultaneamente em dialeto italiano à sua esquerda. Estavam deixando a praia, num tradicional domingo fluminense, enquanto ele desejava apenas seguir até as sonhadas rochas de uma das mais tradicionais praias cariocas. Não mais famosa que Ipanema ou Copacabana, porém, a mais seleta a seu ver, onde pessoas dos mais altos níveis sociais se esticavam em gigantescas toalhas ilustradas: a praia do Leme. Apesar de extenuado pela peregrinação, suas imagens não o abandonara, e finalmente pôde ter a atenção voltada às tão conhecidas rochas, que lhe haviam sido apresentadas por folders na infância. Laerte se pegava hipnotizado, imaginando buscá-las aos dentes. Bateria a cabeça como uma grandiosa dosagem de morfina... anestésica, assassina, soturna. Rochas que afrontavam o mar e o induziam ao suicídio, até ver ao longe dois surfistas se lançarem no mesmo instante sobre pranchas magníficas e reluzentes pela parafina nelas aplicadas. Era capaz 16


de imaginar o impacto em seus estômagos, os quais se ardiam como seu esôfago faminto. Suas braçadas eram firmes e seus corpos, malhados. Então, de repente, acreditava que domavam a maior rebentação da tarde; porém, imediatamente sumiram dentro das desejadas correntes traiçoeiras do oceano, mesmo com aparente experiência no que estavam fazendo. Antes que dois salva-vidas se lançassem nas águas, eles emergiram em meio ao estriado de espumas. Sorridentes, apenas levantaram uma das mãos e com a outra buscaram as pranchas presas aos seus tornozelos. Queria me ver assim, feliz, livre de mim mesmo, ser chamado de brother, imaginou ele estagnado, ao notar que os salva-vidas também iriam à sua busca. O ambiente fora se alternando de acordo com suas passadas, entre hotéis de diárias caríssimas, lanchonetes, butiques e relojoarias onde hoje se tem que interfonar para receber autorização para entrar, e lá distante, o surpreendente Cristo Redentor imóvel, dizendo a todos que tudo poderia acontecer na cidade, mas nada poderia ficar imune a seus olhos. Era uma nova realidade que vinha ao encontro de um então jovem de vinte e três anos, recém-chegado do Distrito Federal havia apenas dois dias. Parou repentinamente, girou sobre a base em 90° e identificou que estava deixando a praia desejada por suas passadas levantadiças; estacou e ofertou mais dois passos ao Atlântico... Era a praia do Leme. Tinha um único intuito: apenas ficar ali parado apreciando seu próprio martírio submerso em águas turvas, e, em fotografias fantasiosas, memorizar sua última vivência, ou ser tocado no ombro por algum apresentador televisivo, cineasta ou proprietário de circo. Pela proibição do cativeiro de animais silvestres em circos, eles teriam de arrumar algo bizarro que neles despertassem pânico ou risadas. Tinha um sonho... o Parque Beto Carreiro World ou o Cirque Du Soleil. No entanto, ganharia aconchego apenas pra correr de sunga entre a plateia? Acho que deverá ser mais que isso, sempre se respondia. Abster-se momentaneamente da ideia seria a única chance tanto para si quanto para os charuteiros que poderiam ofertar-lhe um emprego de estátua de vitrine, para que, assim, pudessem se divertir ao vê-lo exposto como um animal cativo, similarmente aos de um pet shop. Dessa 17


forma, vendendo sua angústia como se vende a dos hilários cachorrinhos despenteados de olhos grandes e remelentos. Sob uma palmeira imperial e sobre seus calcanhares, sentou ao chão similarmente a um meditador. O calçamento formava ondas alternadas em brancos e pretos que oscilavam serenidade a todos que ali trafegavam. Diante do Atlântico tudo parecia menor; todos os problemas; pequenos demais... disseram que o Ronaldo poderia estar ali batendo uma bolinha, poderia encontrar mesmo a Paris Hilton chutando areia, mas não... mais uma vez, estava apenas consigo mesmo. — O senhor está passando mal? Poderia estar, obrigado, pensou; mas também seria capaz de ter se sentado no piso. Fez isso por muito tempo entre as tentativas de chegar ali, e mesmo na Estação da Luz, em São Paulo, notou que uma pessoa diferente não pode se sentar no chão, pois imediatamente a pedem para não pedir nada a ninguém, mesmo já pedindo. “Posso fazer um pedido a você?... É que nada se pode pedir aqui”, e então logo partiam. Tudo bem... O pequeno cachorrinho de bolso da dona enfiou a cabeça e o focinho gelado entre sua calça e camisa, começando a lhe lamber as costelas. Ela imediatamente acutilou e o tocou no ombro. — Você está bem? — Sim, estou, obrigado... Obrigado mesmo! — disse retirando o chapéu para favorecer fitá-la, fazendo-a retroceder um passo. Visualizar o crânio nu impactou-a tanto quanto se tivesse diante de uma bandeja de testículos, o que a incentivou a tocá-lo cautelosamente com as pontas dos dedos, sentindo as nervuras altas como as de um cérebro embalsamado e pintado de branco a óleo. — Sente-se melhor assim? “É dos carecas que elas gostam mais!” — seus lábios se contraíam em um sorriso maquiado, e, ao finalizar, ainda mordiscou o lábio superior — ...mais charmoso! O olhar afrontou-a como que “dizendo-lhe em palavras” que não havia gostado da piadinha, e ela cessou, curvou-se ao seu lado enquanto ele fixava todas as energias no balé das águas. Ofertou-a o jornal para que se sentasse, porém, ela apenas apoiou os joelhos nele, trazendo o cãozinho inquieto entre as coxas. — Já entrou na água? — Não posso me expor ao sol — respondeu em lamuria, em baixo timbre. 18


— Sei como se sente! — Sabe? Onde você compra a base que usa? Não me parece albina — pouco alterado recompôs. — Trocaria a sua vida pela minha? — Desculpe-me, estava apenas tentando ser gentil! — trouxe a bolsa que se mantinha no alinhamento dos quadris e apoiou sobre a coluna cervical do animal. Dela retirou um lenço cinza xadrez, entregou e pediu para que limpasse o rosto já umedecido pelo prantear mudo... Não estava ajudando, e disso tinha consciência. — Almoçou? — No instante que resgatava uma bolsinha revestida de cristais em meio a uma porção de papéis. — Ah... — disse estatelado olhando-a de soslaio, vendo-a repudiar seus sapatos comprados há apenas quatro dias, de um carregador no porto de Santos-SP. Eles ainda cheiravam a peixe, mas lhe serviam como novos. Concordou movendo a cabeça várias vezes em sentido horizontal. — Sim, senhora! — complementou. A senhorita tinha próximos trinta anos, e, para ele, todos que se aproximavam eram chamados assim ou de doutores... costume por submissão. — Pegue! Ajudará em um ou dois dias. — Quando estirou a mão, ele rapidamente girou o tórax, deixando-a estancada com o dinheiro aquém. — Não estou pedindo-lhe nada, e, por favor... Você está tirando a beleza do momento — mentiu. Era esteticamente linda. Tinha cabelos dourados mesclados e lisos no alinhamento das costas pouco abaixo dos ombros, óculos enegrecidos incomensuráveis que a tomavam o brilho dos olhos, calça em lycra branca e algo similar a um corpete também branco que a topava os seios e tênis na mesma cor. Nas maçãs do seu rosto, formavam-se pequenas covinhas quando sorria, mesmo que discretamente. Ouviu uma freada brusca às suas costas, e virou-se impressionado para o garoto louro, que tinha uns sete anos de idade. Vestia preto da cabeça aos pés e tinha algumas correntes prateadas espalhadas pelo corpo; os cabelos estavam penteados de forma espetada e ele andava em um patinete cromado. Quando desceu do objeto, ainda deixou que aquele se chocasse com o chão enquanto afirmava. — Um Adams... Não toque nele, mamãe, ou então, irás desbotar também. — Carlos, o rapaz tem um problema. É normal como a gente, mas nem toma sol, e... respeite os diferentes. Ele não tem culpa de ser assim. Felizmente, o garoto não demonstrou ter confiado tanto em sua caracterização, pois, se assim tivesse, continuaria a ofendê-lo como a um 19


gato negro que não escolhe, mas é atropelado em frente de residências, o que espalha desconforto e soqueia inúmeros estômagos. Meu Deus, eu sou normal. No entanto, analisando pelo ângulo da normalidade, por que todos têm de me dizer que sou ao avesso de apenas conviverem? Nunca encontrei alguém tentando convencer um louro de que ele é normal, mas no fundo tenho consciência disso. Não tomo sol... O meu pode ser duplo com cereja, calda e duas rodelas de kiwi. Dona, só quero morrer em paz, pensou, mas não disse. Eles eram naturais para a sociedade e, mesmo há anos, crescia ainda mais essa aglomeração de pessoas de vivências diferenciadas que se denominam tribos. Todos os membros dessas tribos evoluíram de acordo com seus intelectos... Alguns se transformaram em marginais. Ela se levantou e firmou o braço do jovem problemático sacolejando. — Dou-te uns tapas, menino! — disse cingindo os dentes. — Filha da puta... Desgraçada! — no instante que tomou a nota de dinheiro e saiu correndo. — Desculpe-me, é apenas uma criança. Recoloque o chapéu pra evitar que... — Que me vejam? — interrompeu. — Por que não me cobre com um lençol? Deve carregar um contigo pra cobrir o que você não aceita ver — levantou compadecido, vestindo o chapéu. — Obrigado, dona, mas não preciso do seu dinheiro e menos ainda da sua piedade. — Sou advogada! Quero escrever um livro sobre vocês, sobre sua genética e como se sente convivendo com o preconceito. Sei que é difícil, mas preciso da sua história, do seu ponto de vista. — Minha história? Quer a minha história! Se quiser saber como vivo, use uma camiseta dizendo: sou uma lésbica hanseniana e aidética. Aí terá ideia de como convivi toda minha vida. Amaldiçoo todos vocês que ganham dinheiro com a tormenta alheia. Nada de molhar os pés, nada de sentimento a mais, apenas alguns pingos daquele verão magicamente balouçante e ensolarado. Poderia ter aceitado o dinheiro por estar alojado em uma pousadinha de terceira categoria, onde as moças massagistas gritavam alcoolizadas à noite; situava-se na linha imaginária das classes sociais fluminenses, e dali podia-se respirar a adversidade cultural e aquisitiva da cidade. A simplória acomodação tinha duas janelas: a do cubículo chamado quarto tinha vista para o Rio de Janeiro; já a 20


do banheiro, sabe-se lá para onde... para o Rio de Dezembro, quem sabe, ou apenas para o final da farra, entre morros e tijolos censurados. Havia passado todo o dia anterior estirado sobre a cama, olhando para o teto branco, irmão de cor e raça, mudo e depressivamente pasmo; ou apenas conversando com o retrato de sua mãe Cacilda Hermom. Uma afro roliça de úberes insustentáveis, que não gostava de ser chamada de preta e até o socava por isso. Dizia que aleijaria ou simplesmente o processaria, mas só o chamava de branco... Sentia-se ofendido, como ela mesma dizia preto ser cor e negro, a raça, branco para ele sempre fora a mesma aleivosia. Tudo bem... novamente estava só. A cariciosa e sedutora mulher havia ido embora empurrando o patinete, trançando as pernas sobre a corrente do cãozinho, logo depois de tê-lo entregado um cartão de visita pedindo que a procurasse no Leblon. Deveria ser uma recém-formada em responsabilidade social tão dedicada que houvera se esquecido de si mesma ao criar um marginalzinho. Laerte começou a caminhar novamente ao alojar o cartão no bolso, enrolando a folha de jornal. Acompanhava visualmente o calçadão, imaginando a história de vida dos que ultrapassava: da mulher de cabelos vermelhos, dos idosos e poetas cegados pela magnitude do Atlântico, banhistas e de outros que caminhavam ingerindo mais lipídios que seus organismos eliminariam com o exercício... Por que estavam ali, e se também fugiam deles próprios, das suas rotinas e do que chamavam de vida. A ideia de deixar algo para alguém... rascunhos, recados ou mesmo um livro o deixou pensativo; poderia ser como um grande desabafo, um confessar da sua versão sobre o ceifar do seu dedo mínimo direito, quando tinha apenas nove anos; de tudo que houvera passado para decidir correr de tudo e de si próprio como o Forest Gump da ficção estadunidense, ainda mesmo que sabendo das próprias culpas. Tinha a camisa pouco úmida, em consequência do chuvisco atrevido e passageiro: deveria procurar algo que fosse capaz de lhe abrigar para melhor reflexionar, fazendo com que, acompanhado por quatro pessoas em passadas largas, chegasse ao outro lado da Avenida Atlântica, em partes interrompidas pelo seu sinaleiro. Fora de encontro a uma marquise azul em acrílico semitransparente em forma de cascata; a porta em vidro, a escadaria em mármore lhe 21


serviria de refúgio ao lado dos grandes vasos plantados até que os céus terminassem com o nomeado de purificação. Mas assim, que desenrolou o jornal para que forrasse o segundo degrau, o sol retomara parcialmente sua posição formando rajadas coloridas nos cristais de água pensos no ar, deixando-o enlevado a algo surreal... Uma luz de Deus em sua vida, ou o diabo o dizendo para prosseguir. "Classificados" — leu Laerte na primeira vez que deu ao jornal devida atenção. Ali, vários anúncios para os mais variados cargos: alguns efetivos, outros temporários. O que lhe chamara atenção era o de promotor de vendas por um curto período em uma conceituada franquia de moda, num tradicional shopping center naquelas imediações, no bairro da Urca. Diante da atrativa oferta, precisava continuar vivendo até reencontrar a “advogada-escritora” e acabar com tudo aquilo. Decidiu telefonar ao comprar um cartão telefônico em uma cafeteria para a utilização de um terminal a duas quadras. Logo passados alguns minutos, já estava dentro da gota em fibra de vidro: o orelhão. — É sobre a vaga de vendedor — disse ele logo que foi atendido pela aparentemente culta voz feminina. — Ótimo. O senhor é o primeiro que procura pela posição, se puder se apresentar no shopping antes das cinco, irá se encontrar com Edivaldo: o gerente. Com quem estou falando? — Com o Laerte... Laerte Hermom. Já estou a caminho. A mulher de timbre envolvente ainda terminava a ligação com alguma frase pronta enquanto o jovem depositava o fone no aparelho. Deu lugar a outro um pouco mais velho que utilizaria o telefone em seguida, ele que mantinha seus engraçados cabelos empastados de gel, vestia camiseta branca que quase lhe cortava a circulação dos braços, além de ter o cós do jeans escorrendo pela cueca. — Shopping Paradise! Fica muito longe? Menos preconceituoso — até devido à sua condição —, o jovem apenas o fitou — “do chapéu aos sapatos”— e, no instante em que forçava a sobrancelha esquerda acima, meneou a cabeça no mesmo sentido. — Sete quadras... vamos, vamos, ou comece a cantar!

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