TEMPLÁRIA CIDADE ENTRE MUNDOS

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Templária, Cidade Estação


“Poeta que me guias, julga minha aptidão, se é compatível com o árduo passo que ora me confias.” Dante Alighieri, A Divina Comédia, Inferno, Canto II


Capítulo I

Dias de Chuva

No alto da serra, o carro deixou o asfalto e seguiu pela macia estrada de barro vermelho. Despertando do sono da viagem, Aedra ouviu os pneus resvalando na vegetação molhada e cheirou o ar impregnado com o perfume dos manacás. As pequenas árvores quase sem folhas estavam cobertas de flores brancas e roxas. Ao vê-las exibindo-se por toda parte, sentiu como se a natureza lhe desse as boas-vindas. A menina baixou um pouco mais o vidro, trazendo a névoa para o interior do veículo e um arrepio percorreu-lhe a pele. A queda da temperatura indicava a chegada ao seu destino. Pela janela, ela acompanhava as sucessivas ladeiras, subidas e descidas que conduziam ao antigo casarão, lar de seus avós. A propriedade já pertencera a cinco gerações da família Allende. Conforme o automóvel se aproximava, a construção colonial de dois andares ia surgindo entre as copas das árvores, revelando as sacadas do piso superior que se erguiam sobre o largo alpendre. 17


Muitas das lembranças de suas férias escolares pertenciam àquele lugar. Todos os anos ela repetia o mesmo ritual de encontrar abertos o portão e os braços de seu avô na entrada do casarão. O avô de Aedra era um homem robusto, de cabelos brancos e pele queimada de sol que ressaltava muito seus olhos azuis. A avó de Aedra também tinha cabelos brancos, mas, diferentemente do marido, sua pele alvíssima contrastava com vivos olhos negros. Os dois formavam um bonito casal e a saúde que exibiam certamente podia ser atribuída à vida que levavam, longe da agitação da cidade. – Que saudades, minha querida! – falou-lhe num abraço apertado. – Deixe-me ajudá-la com a bagagem. Os dois atravessaram o pátio e subiram os degraus ladeados pelo jardim até chegarem ao alpendre. Lá encontraram a avó da garota, que esperava a neta sob um guarda-chuva, e alternava sentimentos de ansiedade e alegria, sacudindo a mão no ar. – Depressa, já está começando a chover! Parece que vem aí um temporal. Como você está crescida, meu bem! Deixe-me vê-la melhor – disse a avó admirando os castanhos cabelos cacheados da menina de olhos verdes claríssimos –, você está cada vez mais linda! – exclamou, enquanto entravam, fechando as portas de madeira e vidro, para conter a neblina. A época de viajar ao sítio ocorria sempre num período de muita chuva. Em seu quarto, Aedra gostava de desfazer a mala, sem pressa, vendo pela janela as gotas caírem do lado de fora como alguém que acompanha o ritmo de uma melodia suave. Cada pingo era uma nota musical executada por um pianista invisível.

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Entre os pijamas, agasalhos e meias, ela encontrou o livro novo. Sua mãe invariavelmente escondia um dentro da mala para acompanhá-la durante as férias, porque conhecia o fascínio da menina pela leitura. Havia também no bolso da mochila trazida na viagem uma caixinha de joias de onde Aedra retirou uma corrente de ouro com uma medalha pendente. Incrustada em uma das faces da medalha brilhava uma pedra vermelha. Cuidadosamente ela abriu o fecho e a pôs em seu pescoço. Anoiteceu. A menina, na biblioteca, se distraía escrevendo na umidade que embaçava a vidraça. Escreveu o próprio nome e logo o apagou com a manga do pijama de flanela. Ela não gostava de como se chamava. Preferia os nomes das heroínas dos livros de sua avó. No cômodo, estantes de madeira iam do chão ao teto, guardando muitos volumes. Entre eles estavam clássicos da Literatura Universal, livros de História e algumas raridades sobre a Antiguidade greco-romana que ajudavam a preencher o seu tempo livre. Escreveu com a ponta do dedo alguns nomes. Depois apagou todos com o antebraço, pensando que um nome célebre não faria a menor diferença em uma vida comum. Apesar de ser muito observadora, estando sempre atenta aos detalhes de tudo que acontecia ao seu redor, Aedra não se dava conta de que sua vida não tinha nada de comum. E disso ela não duvidaria mais, depois daquelas férias. Por vezes, se comportava com uma maturidade surpreendente para a sua pouca idade e muito cedo despertou para reflexões próprias aos adultos.

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Não havia um só dia em que ela não pensasse sobre o seu futuro e sobre o que fizera de real importância até aquele momento da sua existência. Seu interesse por questões relacionadas à vida e à morte era notório. Estava sempre buscando entender as razões para cada acontecimento. Como no dia em que soube do falecimento do filho do caseiro. Ela fez muitas perguntas ao avô naquela ocasião: – Como aconteceu? – Por que quer saber? Faz muito tempo. Foi antes de você nascer. E algo tão triste não deve ocupar sua cabecinha – respondeu, enquanto mexia com a colher de pau a massa pesada e fervente do doce, que era a sua especialidade, para que não queimasse dentro do panelão. – Com quantos anos ele morreu? – Era moço, com uma vida inteira pela frente. Ninguém deveria morrer jovem. Uma pena! Na época, meu sogro, seu bisavô Nicolas Allende, ainda era vivo e sentiu muito essa perda, porque, apesar da diferença de idade entre os dois, eles eram muito amigos. – Vô, e o que aconteceu com o tempo que ele não pôde viver? O avô ajustou os óculos com o dedo indicador e suspirou, enquanto se concentrava numa resposta. – Querida, ninguém sabe o que acontece depois que se parte desta Terra. De acordo com a crença de cada um, há quem defenda que continuamos em outra vida o que começamos na vida anterior e há quem entenda a morte simplesmente como o fim, o nosso último estágio. Neste caso, nada mais restaria para se viver. – Morrer me parece interromper uma história. Como um livro que não acabamos de ler e nunca saberemos como terminaria. 20


Imagino tudo o que ele poderia ter aprendido, as pessoas que teria conhecido se ele tivesse vivido até ficar bem velhinho. – Aedra, sabe quando nos damos conta de que envelhecemos? Quando deixamos de sonhar com o que queremos realizar e passamos a nos preocupar com o tempo que ainda nos resta. Não envelheça antes do tempo, meu bem. Você não deve pensar nessas coisas. A chuva engrossara e dentro da casa o aroma da sopa quente vindo da cozinha espalhava uma agradável sensação. Era o convite para o jantar. À mesa, os avós começavam a se servir. – Ora, veja quem a fome nos trouxe! Sente-se conosco – disse o avô ao ver a neta se aproximar. – Há muitos anos você não usava esse colar. Eu quase havia me esquecido do quão diferente é essa pedra – comentou a avó posicionando os óculos para observar a gema incrustada na medalha da corrente que a garota trazia no pescoço. – Ele foi meu, depois de sua mãe... Ainda se pode ler aqui o seu nome, Aedra – continuou a avó, examinando o verso da medalha. – Mamãe sempre repete que me batizou assim por causa do nome na medalha... A sopa está com um cheiro muito bom – disse a garota mudando o assunto. – Este é o segundo cheiro que mais adoro no mundo. O primeiro é de livro novo. – Não só os objetos carregam lembranças, os cheiros também. Eles entram pelo nosso nariz e vão direto para a nossa memória. Talvez por isso um cheiro que é suave e agradável para uns pode ser nauseante para outros – explicou a avó. – Vó, qual é o seu cheiro preferido? – Cheiro de jasmim. Dizem que quando os Anjos nos visitam, a maioria das pessoas não consegue vê-los, mas qualquer um pode notar a presença deles pelo perfume de jasmim que exalam no ar. 21


– Vó, o que a senhora acha que acontece quando a gente morre? – Aedra, a vida é algo tão maravilhoso que não importa o quanto se viva ou o que aconteça depois que ela termina. Cada minuto é único, é um milagre. Tomar sopa na cozinha, em companhia de quem amamos, ouvindo a chuva lá fora, é, na verdade, muito mais do que uma refeição. É algo que traz conforto, ao mesmo tempo, ao corpo e à alma. – Será que teremos sol amanhã? – perguntou o avô, querendo mudar o assunto da conversa para algo mais ameno. Mas nenhuma das duas respondeu, como se, absortas naquelas reflexões, nem mesmo tivessem escutado a pergunta do velho agrônomo. – Se o céu continuar a despejar esse volume durante toda a noite, é bem possível – respondeu ele mesmo. – Vamos tomar essa sopa antes que ela esfrie e combinar o que podemos fazer de interessante amanhã, se o sol aparecer! – propôs a avó, ao se dar conta da tentativa do marido em distrair a garota. Mais tarde, no quarto, o casal manteve um breve diálogo sobre as suas preocupações com o temperamento da neta. – Ela é muito séria para quem tem somente doze anos. Às vezes tenho a impressão de estar conversando com alguém da minha idade ou mais velho até – cochichou o avô. – Eu sei. Desde bem pequena, ela sempre foi tão comunicativa... mas, apesar disso, foi crescendo sem muitos amigos, como se estivesse rodeada de crianças com interesses muito diferentes dos dela. E, aos poucos, ela os foi substituindo pelos livros. Também tenho minhas dúvidas se é saudável passar tantas horas na 22


biblioteca lendo um volume atrás do outro... Mas precisamos respeitar a sua maneira de ser. – Sabe que ela me tem lembrado muito o seu pai, o velho Nicolas? – Está cada vez mais parecida com ele. As mesmas reações. O mesmo olhar perdido no infinito. Estela abriu o antigo relógio de bolso para ver a foto de Nicolas Allende e percebeu algo estranho. – Ou esse relógio quebrou ou ela fez de novo. – Como naquele dia? Escondemos todos os relógios para evitar que brincasse com os ponteiros, sem precisar tocá-los! – Não pode ser coincidência as horas adiantarem ou atrasarem sempre que ela está conosco – insistiu Estela. O fenômeno ia além de os ponteiros desregularem na presença da neta. Se Aedra quisesse mais tempo para dormir ou desejasse abreviar uma tarefa, o tempo lhe obedecia, ainda que ela não percebesse. – Com meu relógio biológico ela não mexe! – disse Giuseppe, deitando-se. À espera do sono na biblioteca, a garota sentou-se na poltrona junto à janela e contemplou a chuva lá fora. Então, um rosto translúcido emergiu na cortina d’água que descia do telhado. Mas a aparição sumiu inesperadamente, da mesma forma como surgira. Movida pela curiosidade, Aedra deixou a biblioteca, abriu a porta da sala e entrou no temporal com a visão completamente turva. Seguiu sob a chuva torrencial até enxergar de novo. Só aí percebeu que não estava mais no sítio de seus avós.

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Capítulo II

O Livro de Assinaturas

A chuva cessara e um sol muito brilhante iluminava um céu azul sem nuvens. A garota estava enxuta, assim como o pijama de flanela que vestia e as pantufas que calçava. Antes que pudesse descobrir onde estava, uma voz poderosa fez Aedra voltar-se na direção de alguém que lhe perguntava com seriedade: – A senhorita já assinou o Livro? – indagou-lhe o ser de aparência humana e de alta estatura. Não era jovem, mas suas feições eram suaves e possuía longos cabelos claros, levemente azulados. – Livro? Desculpe-me, mas não sei do que está falando. Quem é você? – O que importa não é saber quem eu sou, mas quem você é. Você precisa saber para assinar o Livro. E, sem assiná-lo, não se pode andar à toa. É muito arriscado! Precisamos sair daqui o quanto antes. – Para onde está me levando?

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– Muitas perguntas! Concentre-se na única resposta que interessa para assinar o Livro. Vou lhe mostrar – explicava o ser, enquanto conduzia Aedra. Os dois subiram até o alto de um monte, de onde puderam avistar uma imponente edificação em estilo greco-romano. – O Templo dos Heróis! Onde o Livro de Assinaturas é guardado por seus três grandes defensores – exclamou o ser. À medida que eles se aproximavam, o Templo parecia maior. Em seu caminho, estátuas de mármore prestavam uma silenciosa e eloquente homenagem a Hércules, Teseu e Perseu. Aedra lera muitas histórias sobre os três heróis nos livros de mitologia das estantes de sua avó. Pareceu-lhe estranhamente familiar toda aquela atmosfera. – Essas estátuas são perfeitas! – disse Aedra. – Na realidade, são mais do que estátuas. São os próprios heróis descansando sob o mármore. Eles esperam até que sejam acordados quando isso for necessário à defesa do Templo. Entrar no Templo atravessando o grandioso primeiro salão impressionou Aedra. Quando chegaram a uma sala menor, sem os vasos e estátuas que adornavam o espaço anterior, a menina novamente se surpreendeu. Nesse ambiente havia somente uma grande mesa de mármore branco sobre a qual repousava um volumoso livro. – Aqui está o Livro de Assinaturas! No qual são feitos os registros de todos os seres em trânsito pelo Universo para que eles possam seguir adiante sem que suas histórias sejam esquecidas com o passar do tempo. Vamos lá, menina, diga-me quem você é para que eu saiba em qual página eu devo abri-lo. – Meu nome é Aedra Allende.

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O ser olhou a garota como se fizesse um grande esforço para entender a resposta. – Senhorita, isto não nos ajuda muito. Vou mostrar uma coisa – disse-lhe, virando a espessa capa de couro e abrindo o livro numa espécie de índice. Vejamos os capítulos... alados, não creio, pois você não tem asas. Amantes... também não me parece apropriado. Ainda é cedo, no seu caso. Artistas, quem sabe? Aqui temos uns registros bem interessantes. Na seção Pintores existe a galeria dos impressionistas, na qual está o admirável trabalho de Auguste Renoir. Esse mestre capturava imagens do mundo em sua mente e, ao reproduzi-las nas telas, ele as reinventava decompondo as cores pincelada a pincelada. Imagino que fazia isso para conhecer a menor parte de cada uma. Um quadro de Renoir é realmente encantador, quando observado de longe. Mas, visto de perto, torna-se uma obra de arte incomparável – explicou o ser, manipulando as imagens do pintor e de seus quadros que surgiam na página que liam. – É curioso pensar que há tempos eu não recebia, por aqui, alguém como você. – Como eu? – Alguém que não soubesse onde assinar. – Talvez você possa me ajudar a descobrir. – Essa resposta somente cada um de nós a possui. Ninguém poderá dizer quem você é, exceto você mesma. Nisto reside a grandiosidade do livre-arbítrio. Tal qual uma tela, uma partitura ou uma página em branco é a nossa existência. E ninguém, senão nós mesmos, podemos experimentar a emoção de preenchê-la. Cabe a cada um descobrir a Arte que

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representa quem somos, seja com palavras, com as cores das tintas ou com notas musicais. Sua dúvida me lembra do caso mais difícil de classificar que já presenciei. Inicialmente tentei que ele assinasse nesta mesma seção, pois o artista era um Pintor, além de Escultor. Depois pensei no capítulo Criadores, uma vez que ele se apresentava também como Inventor. Mas ainda não estava correto. Quase desisti. Ele não conseguia se definir nem eu conseguia ajudá-lo. Eu não poderia contribuir para um registro errado, sob pena de perder este cargo que tem sido meu por muito, muito tempo. Então, após dias procurando no índice, vimos o capítulo Gênios, onde ele finalmente assinou Leonardo Da Vinci. – Eu tenho somente doze anos. Como posso saber quem eu sou? – Todos que chegam aqui viveram o que deveriam viver para saber. A passagem para cá acontece encerrando um período e dando início ao próximo estágio. Por isso precisamos assinar o Livro para seguir. A sua chegada tem um significado. Demonstra que sua história anterior está concluída e é hora de se preparar para a próxima jornada. Não se preocupe, é comum a quem desembarca sentir-se confuso, a princípio, sem saber direito o que lhe aconteceu”. – Mas sei exatamente o que me aconteceu. Abri a porta da casa de meus avós e andei alguns passos no alpendre até entrar na chuva, procurando alguém cujo rosto eu vi. Então, de repente, não havia mais chuva e encontrei você. – Agora quem está confuso sou eu. Ninguém pode chegar a esta dimensão assim. Por ora, precisamos sair daqui. Vou levá-la

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até onde possamos pensar, em segurança, e descobrir a razão da sua vinda em tão estranha circunstância. Não posso arriscar o seu destino nem comprometer o meu. – Não! Eu não vou a nenhum outro lugar com alguém que não conheço. Para falar a verdade, nem mesmo deveria tê-lo acompanhado até aqui. Vou voltar para a casa dos meus avós! – Muito bem, menina! Defendo a liberdade de escolha mais do que qualquer outra coisa. Jamais iria obrigá-la a vir comigo. – Pois, então, foi um prazer quase conhecê-lo. Adeus, eu vou para casa – concluiu a garota, despedindo-se enquanto tomava uma direção para seguir. Após alguns minutos de caminhada, Aedra percebeu que o ser a acompanhava à distância e parou. Descoberto, ele comentou: – Nunca fui muito bom em me esconder. Por isso, a verdade sempre me pareceu a melhor das alternativas. Minha presença a incomoda? – Não, de forma alguma. – Posso andar ao seu lado? – Como queira, mas você já sabe, eu estou voltando para casa – disse a garota bastante decidida. Os dois caminharam por algum tempo até chegarem a um vale cuja beleza natural deslumbrou Aedra. Principalmente uma cachoeira que descia majestosa do alto de uma grande montanha de granito à sua frente. – É uma paisagem realmente fantástica, não é? Entretanto, o mais impressionante ainda está por vir. Pela posição do Sol, eu diria que um lindo espetáculo já vai começar. – Onde? – Na cachoeira. Mantenha os olhos nela. 28


Naquele exato momento, as águas da cachoeira converteram-se em labaredas, derramando fogo montanha abaixo. – O que aconteceu? Como isso é possível? E se o fogo se alastrar? – Continue olhando, pois é muito breve. Aos poucos, o fogo transformou-se em água novamente. – Para onde foi todo aquele fogo? – perguntou a menina. – “Para lugar nenhum, mesmo porque nunca houve fogo. O que acabamos de presenciar é um capricho dos Deuses. Acontece todos os dias, no mesmo horário, quando a luz do Sol poente é refletida nas águas da cachoeira derramadas sobre o paredão de pedra. Este é um grandioso monumento criado para celebrar o fim da Titanomaquia, a guerra de cem anos dos Titãs contra Zeus e seus irmãos, Hades e Poseidon. Quando a Titanomaquia terminou, o Universo foi dividido em três partes: o que está sobre a terra pertence a Zeus; Poseidon herdou o que está sob as águas e coube a Hades o que está embaixo da terra. Essa divisão ficou conhecida como a Partilha. A cachoeira reúne a exuberância da natureza do Reino de Zeus, a água do Reino de Poseidon e o fogo de Hades. Além disso, ela também serve a outro propósito: uma passagem – explicou o ser apontando ao longe a criatura com corpo de leão e cabeça de mulher que surgia para banhar-se. – Uma esfinge! – surpreendeu-se Aedra. Para entrar no Reino de Poseidon, temos que atravessar a água. Pode-se fazê-lo a qualquer momento. Para o Reino de Zeus é necessário desviar o curso da queda e achar a abertura no paredão de pedra. Mas somente a cachoeira de fogo pode nos levar aos subterrâneos de Hades. 29


– Essa cachoeira é a coisa mais linda que eu já vi! – Existem muitas belezas por aqui, mas também há perigos. Como a passagem pode ser usada dos dois lados, nunca se sabe o que pode sair daí de dentro, já vai anoitecer. Por isso, gostaria de levá-la até um lugar mais seguro, onde seja possível pensar numa maneira de encontrar o seu caminho de volta. Tudo o que desejo é ajudá-la. Acredite! Aedra concluiu que seria melhor aceitar o convite daquele ser que lhe inspirava simpatia a correr o risco de se perder sozinha num lugar para ela tão estranho. – Tudo bem. Não sei por que razão, mas confio em você. Vou acompanhá-lo até aonde quer me levar. – Sábia decisão, Aedra Allende. Vamos seguir nesta direção – disse o ser apontando para o norte.

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Capítulo III

O Astrolábio de Laucte

Após caminharem por campos dourados sob a luz crepuscular, eles chegaram a uma cidade cercada por altas muralhas de pedra. Com a aproximação dos dois, os portões foram abertos e Aedra encantou-se com o que viu ao entrar. Havia cavaleiros medievais relembrando animadamente as aventuras que viveram e outros habitantes a conduzirem unicórnios pelas ruas. Malabaristas, músicos e poetas se apresentavam na praça principal. E nos maravilhosos jardins havia pintores exercitando a sua arte. – Bem-vinda, menina! Este é o meu lar! Muitas dúvidas ocupavam a mente de Aedra. Ela não conseguia entender onde estava. Por isso perguntou: – Se o caminho para os Reinos de Zeus, Hades e Poseidon é pela cachoeira, isso quer dizer que não estamos em nenhum dos três. Então que lugar é esse? – Estamos em Templária! A cidade que abriga todos aqueles que ainda não assinaram o Livro. É uma espécie de estação que recebe os que viajam pelo Universo. 31


Os que chegam, sempre encontram algo que lhes pareça familiar. Por isso temos essa mistura – eu diria – inusitada de tempos e costumes. Mas o que realmente importa, no momento, é que aqui estamos seguros. – Seguros? “Fora do alcance de Hades, deus dos Infernos e dos subterrâneos. O problema é que Hades já não se contenta mais com as suas legiões, reivindicando para si o direito sobre aqueles que ainda não seguiram para os outros mundos. Ultimamente ele desenvolveu o péssimo hábito de raptar os habitantes de Templária. Juntos, temos mais chances de nos protegermos. Chegamos. Esta é a minha casa e será também a sua, pelo menos por enquanto”. – Ainda não sei o seu nome. “Você está certa! Sua chegada foi tão inesperada que me esqueci das apresentações. Desculpe-me a descortesia. Chamo-me Laucte – disse-lhe, apertando a mão da menina. Agora vamos entrar. Já vai escurecer. Em Templária também anoitece. Existem os dias e as noites, abrigamo-nos em casas, trabalhamos, descansamos e nos divertimos. É preciso manter as rotinas, porque isso ajuda na transição que cada ser está cumprindo”. – Transição? – Entre os mundos. – Não sei se estou compreendendo bem. Isso significa que nesta cidade todos estão mortos? Eu também morri? – perguntou Aedra, assustada com seus próprios pensamentos.

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“Acalme-se, menina! Em primeiro lugar, você não está morta. Quanto aos habitantes de Templária, eu diria sim e não. Sim, porque todos fizeram a passagem para cá. E não, porque todos somos imortais, aguardando o momento certo para seguir nossos destinos. Afinal, o que é a vida? Existir e evoluir para um dia alcançar a perfeição! Tornar-nos hoje melhor do que fomos ontem. É tudo o que importa. Isso é estar vivo! Esse é um princípio que se aplica igualmente a mim, a você e a todos que chegarem a Templária. Dentro da casa, Laucte convidou Aedra a sentar-se à mesa sobre a qual estavam frutas, queijos, pães, bolos e doces. A garota ficou impressionada com a variedade e com a aparência apetitosa dos quitutes. E quis saber mais sobre aquele lugar. – Por que há comida aqui? “Bem, o alimento é algo desnecessário. Entretanto, pode-se tê-lo a qualquer momento, bastando para isso pensar no que se deseja. Espero que estes sejam do seu agrado. Há tempos eu não materializava algo para comer. Mas muitos aqui o fazem com frequência. A razão é a mesma que justifica a semelhança de Templária com as cidades de origem dos habitantes desta estação: preservar as rotinas ajuda na adaptação, principalmente na chegada”. – Laucte, agradeço a sua gentileza, mas preciso voltar para casa. Meus avós devem estar preocupados comigo. Sinto falta da minha mãe – desabafou a menina em lágrimas –, não sei como vim parar neste lugar, mas preciso voltar. “Devemos descobrir, antes, o que você veio fazer aqui. Algo me diz que só assim conseguirei ajudá-la – explicou Laucte,

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levantando-se e afastando junto a uma parede a cortina que ocultava uma espécie de mapa. Veja, estamos neste ponto. Existem, no Universo, sete mundos. Sou responsável pelo registro daqueles que transitam de Templária para cada um deles. Após o registro, meu dever é encaminhá-los ao mundo que será o próximo destino de quem chega. A garota ouviu atentamente aquelas explicações e percebeu que estava diante da oportunidade de obter as respostas que tanto buscava. Decidiu se acalmar e experimentar as iguarias à mesa. Refeita do cansaço e alimentada, Aedra observou melhor a casa de Laucte. Os móveis rústicos da sala e os objetos dourados atraíram a atenção da menina. Ladeando a comprida mesa, onde ela fizera a refeição, havia cadeiras de espaldares altos vazados por desenhos de luas e estrelas recortadas na madeira. Encostada na parede oposta à que estava o mapa, uma estante sustentava um relógio e caixas de diferentes tamanhos, todas tecidas com tramas de capim dourado amarrado por finos fios de ouro. No chão, cestos do mesmo material guardavam rolos de papiros, à exceção de um, cuja tampa ocultava o seu conteúdo. Aedra aproximou-se dele. “Eu não abriria esse cesto, se eu fosse você – avisou o anfitrião, enquanto recolhia a louça do jantar. Afaste-se um pouco para que eu mostre o que há aí dentro – advertiu Laucte, levantando cuidadosamente a tampa e enfiando o braço até o fundo de onde retirou um instrumento diferente de qualquer coisa que a menina tivesse visto e o colocou em cima da mesa”.

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– O que é isso? “É um Astrolábio que eu mesmo desenvolvi. O Astrolábio é um instrumento antigo, usado para orientação naval. Com ele é possível localizar a posição dos astros medindo a distância deles acima da linha do horizonte. Devemos a sua invenção às experiências de grandes matemáticos e importantes estudiosos, como Euclides, Ptolomeu, Hiparco de Niceia e, sua filha, Hipátia de Alexandria”. – Como funciona? – Como já lhe disse, a sua função original permitia orientar as embarcações pelas estrelas. Além disso, alguns o utilizavam para calcular a altura de um edifício ou a profundidade de um poço. Mas o meu Astrolábio pode fazer muito mais do que isso. – O que ele faz? “Primeiro você deve saber que, se manuseado por mãos inexperientes, esse instrumento pode representar um grande risco. Por isso, muito cuidado! Veja, ele contém três Órbitas e Sete Mundos. Eu conheci há muitos anos um verdadeiro especialista, Theon de Alexandria. Ele escreveu um tratado dedicado a esse instrumento e a sua filha, Hipátia, chegou a criar um Astrolábio. Foi ela quem me inspirou a inventar o meu. No início, eu pensava em algo que ajudasse a me localizar entre os Sete Mundos. Mas, para minha surpresa, depois que instalei as Órbitas e os Mundos, descobri que orientação era a menor das suas possibilidades. Inventei, sem querer, um meio de transporte. O único inconveniente é que não se pode usá-lo duas vezes seguidas. É necessário aguardar, pelo menos, duas luas para poder acioná-lo de novo”.

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O toque do relógio marcando nove horas da noite interrompeu a conversa. – Veja o tempo que temos pela frente: falta uma hora para ser tarde e nove horas para ser cedo. Vamos dormir, amanhã visitaremos um velho amigo que poderá nos ajudar.

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