Tudo por amor - Série Esmeralda – Livro II

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Ana Ferrarezzi

TUDO

POR

AMOR Série

Esmeralda vol. 2

TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA _____________ São Paulo, 2017

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Tudo por amor

Copyright © 2017 by Ana Paula Caroti Copyright © 2017 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial

aquisições

Vitor Donofrio

Cleber Vasconcelos

editorial

João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda Talita Wakasugui preparação

revisão

Barbara Cabral Parente

Luiz Alberto Nunes Galdini Equipe Novo Século

capa e diagramação

Nair Ferraz

ilustração de capa

Alexandre Santos

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Ferrarezzi, Ana Tudo por amor / Ana Ferrarezi. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017. (coleção talentos da literatura brasileira. Série Esmeralda) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série 17‑0962

cdd­‑869.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.gruponovoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Dedico este livro a vocĂŞ, meu pai, que me ensinou a romper a barreira do som. Te admiro e te amo muito!

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O príncipe Teiú

Em Gaha, um planeta localizado em um sistema solar vizinho, a vida surgiu com toda a sua complexidade e magia, assim como na Terra. No entanto, esse planeta distante, além de ser milhares de anos mais velho, comparando­‑se à Terra, os humanos, os quais eram chamados de “pragiahs”, detinham a consciência de que, em seu planeta, também habi‑ tavam entidades representantes de outros astros e elementos. Além disso, as entidades desse planeta, que conviviam ao lado dos pra‑ giahs, já haviam atingido um nível de evolução que lhes proporcionava mais liberdade. Poderiam, inclusive, materializar­‑se diretamente sob forma pragiahna, na idade desejada, sem precisar de uma gestação de nove me‑ ses e aguardar uma revelação ao atingir uma certa idade. Simplesmente assumiam uma forma pragiahna e voltavam as suas formas originais sem qualquer barreira. Era esperado que os pragiahnas encarassem essa diferença com natu‑ ralidade, sem se impressionar com a condição especial que cada entidade carregava, e na maioria das vezes era encarado assim. No entanto, houve uma exceção: quando Guaraci, a entidade do Sol daquele sistema solar, decidiu descer para Gaha. Isso porque, ao contrário do previsto, a reação dos pragiahnas desesta‑ bilizou os quatro reinos. Milhares de cultos foram formados para idolatrar Guaraci, na esperan‑ ça de comovê­‑lo ao ponto de dar­‑lhes o ar de sua graça e companhia. Muitas mulheres, quando souberam que Guaraci havia se transforma‑ do em um rapaz belo, forte e com os olhos tão azuis que brilhavam como pequenas galáxias, abandonavam tudo para procurá­‑lo. Algumas chegavam

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a abandonar filhos pequenos e vulneráveis, para ter uma oportunidade de ganhar o coração da entidade mais poderosa do sistema solar. Verdadeiras expedições foram financiadas pela alta burguesia para po‑ der vê­‑lo de perto. De fato, a reação dos pragiahs foi inesperada e exagerada. Guaraci não gostou de ver tamanha comoção em torno de sua vinda. De forma alguma poderia interferir na rotina em Gaha. Seu objetivo era viver como um pra‑ giahna, não ser idolatrado como um deus. Desgostoso, saltou para o espaço. Tornou a viajar pelo universo a fim de explorar novos mundos e acumular conquistas amorosas. Os Jacis, re‑ presentantes das duas luas que rodeavam Gaha e guerreiros por natureza, o acompanharam. Então, em uma ocasião, durante essa viagem, Guaraci se perdeu dos amigos. Ninguém soube ao certo o que aconteceu. Inclusive, Guaraci disse ter perdido a memória do evento. Para o espanto de todos, ele surgiu em uma forma pragiahna diferente e exilou­‑se em uma caverna. Caaporã, entidade feminina representante das matas e animais, curio‑ sa, tomou a forma pragiahna ruiva, com olhos verdes e traços finos, e foi atrás. Espantou­‑se ao ver Guaraci emagrecido, fragilizado, sentado no can‑ to de uma caverna enquanto segurava um bebê em seus braços. Ela encon‑ trou os olhos perdidos da entidade do Sol quando ele a disse que o bebê era seu filho. Então, sentindo seu coração amolecer, preferiu não indagar sobre o que houve, apenas o saudou com seu sorriso, adotou o bebê e, ao mesmo tempo, doou seu coração. Passou­ ‑se um tempo. Foram exuberantemente felizes na caverna. Caaporã conseguiu fazer daquela caverna um lar extremamente belo, fun‑ cional e confortável; digno de receber os mais ilustres convidados. Rudá, a entidade do Amor predominantemente feminina e que vivia sob uma forma parcialmente imaterial como um vulto, foi a primeira a visitá­‑los. A pedido de Caaporã, Rudá nomeou de Anthom o belo neném, que em seu mundo significa: “A estrela que lidera”. A entidade do Amor tam‑ bém presenteou Anthom com um colar que continha um medalhão do tamanho de uma moeda média e afirmou tê­‑lo presenteado com um verda‑ deiro tesouro. Guaraci tentou devolver o presente, alegando que Anthom já tinha tudo que precisava em meio à natureza formidável, mas acabou cedendo após uma boa dose de argumentação.

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Tempo se passou e outras entidades vieram visitá­‑los. Então aconteceu o inesperado. Em um dia ensolarado, um monge misterioso, que passava pela região, encontrou Guaraci e seu filho banhando­‑se em um lago próximo à caverna de onde moravam. Astuto, o monge logo notou como a energia do Sol irra‑ diava na sua mais brilhante forma entre o pai e o filho. O monge se assustou com o que viu e, incapaz de manter­‑se quieto, os surpreendeu e revelou a maldição que corria nas veias do filho de Guaraci. De acordo com o mon‑ ge, o filho da entidade do Sol detém uma força incrível e uma condição física especial. A energia da criança é tamanha que acaba confundindo e lhe conferindo uma falsa ilusão de invencibilidade. O monge então proferiu que, assim como os outros filhos de Guaraci, an‑ tes mesmo de o menino completar quinze anos, negaria a sua pragiahnidade. O monge seguiu seu caminho. Morreu algumas horas depois. No entanto, viveu tempo suficiente para contar que Guaraci teve um filho, que ele vivia em uma caverna e, mais importante, que ele parecia vulnerável. Essa notícia logo se espalhou. Em pouco tempo, os quatro reinos descobriram que a entidade mais poderosa do sistema solar precisava de ajuda. Os reis perceberam isso como uma ótima oportunidade, pois quem desse a sorte de ajudar a entidade do Sol ganharia influência sobre o Sol e, por sua vez, o poder absoluto. Foi a vez dos reis dos quatro reinos de Gaha financiarem suas expedi‑ ções em busca de Guaraci. Mas Darryah, o rei das terras do Norte de Gaha, conhecido pela sua ampla visão estratégica e ambição, investiu quase todo o tesouro de seu reino. Contratou os melhores serviçais para a faina e encontrou Guaraci ao lado de Anthom, que já tinha cinco anos de idade. Darryah os reconhe‑ ceu quando Guaraci e Anthom estavam sentados em um campo aberto, estáticos, com os olhos arregalados, encarando o Sol como se estivessem dialogando com o astro. Incapaz de segurar sua alegria devido ao sucesso de sua empreitada, Darryah não se conteve. Ele interrompeu a atividade de Guaraci e An‑ thom, e se apresentou. Então começou uma longa conversa entre o rei das terras do Norte e a entidade do Sol. Após um tempo, e uma boa dose de argumentos, esse rei convenceu­‑o de suas virtudes. Então Guaraci, confiante de que já havia encontrado um amigo, acabou contando da maldição proferida pelo monge. O rei, movido 7

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de boa intenção, sugeriu que Guaraci lhe entregasse Anthom para que este fosse criado em seu reino, longe da influência do pai. Após muito pouco tempo de argumento e sem consultar Caaporã, Guaraci entregou o filho. Pressupôs que era melhor para todos que o menino crescesse em outro lugar, sem que tenha consciência de sua procedência. Caaporã soube do ocorrido muitas horas depois. Sentindo­‑se amarga, traí‑ da e desolada, ela, que até então contrabalançava e permitia a vida no planeta, se desequilibrou. Sem dúvida, ela queria reaver o menino, mas algo muito pior a impediu. Outra ameaça que intensificou ainda mais o calor daquele inferno: o Sol se rebelou. Alguns especularam que a rebeldia do astro se originou devi‑ do ao longo período em que Guaraci não visitou seu astro, mas ninguém soube ao certo. O fato foi que o Sol parecia um touro selvagem e deixou de aceitar as ordens de Guaraci. Verdadeiras tempestades solares surgiram repentinamente e passaram a torrar o sistema e a ameaçar tudo ao redor. Caaporã foi obrigada a se juntar aos colegas e a triplicar os seus esforços para manter a harmonia e possibilitar a manutenção da vida. Então ela decidiu monitorar seu filho de longe enquanto se esforçava para reverter o quadro insano desencadeado da noite para o dia. Diante da ameaça, do caos e do sofrimento, todos os elementos foram forçados a evoluir.

Anthom foi apresentado como filho bastardo do rei. Darryah estava tão exaltado, tão feliz, que não se deu o trabalho de explicar à sua esposa de que o garoto fora adotado e que era o filho do Sol. A ausência de explicação fez a rainha presumir o pior: que fora traída e que o rei estava a punindo porque ela não foi capaz de lhe dar com um herdeiro legítimo. De fato, essa falta de cuidado chateou demasiadamente a rainha que, incapaz de controlar seus ânimos, descontou sua fúria no pobre menino e lhe conferiu o apelido de “menino maldito”. Meses depois, a rainha foi afetada por uma doença de pele que parecia grelhar seu corpo de dentro para fora, e morreu após agonizar por dias. A situação em Gaha ia de mal a pior. Logo depois que Anthom foi acolhi‑ do, diversos fenômenos climáticos bizarros passaram a eclodir. O mundo des‑ moronou em cinzas. O céu queimou, Gaha deixou de produzir alimentos. A fome pairou sobre os pragiahnos como um abutre faminto e a violência reinou sobre os que resistiam. O povo passou a acreditar que o menino era realmente uma maldição. Diziam, inclusive, que a rainha teve um presságio. 8

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Diante de tanto caos, a verdadeira face do rei se mostrou. A tal virtude de Darryah, tão enfaticamente apresentada em meio a sua conversa com a entidade do Sol, provou-se efêmera. Muito rapidamente Darryah reviu suas prioridades. Além de ignorar o pequeno menino, Darryah passou a subornar Guaraci. Em pouco tempo, o rei das terras do Norte, além de assegurar a sobrevivência de seu reino, também acabou conseguindo o seu intento, pois adquiriu o poder absoluto que almejava e passou a liderar todos os reinos. Durante sua primeira infância, Anthom foi submetido a uma espécie peculiar de tormento que poucos adultos suportam. Anthom acabou isola‑ do, sendo criado por uma serva que lhe prestou assistência com a devoção de uma escrava. Mesmo jovem, suas ordens eram tão penetrantes como lâminas ardentes. Ninguém ousava ir de encontro ao príncipe maldito. Conforme a mensagem do rei vinha sob forma de bilhetes, Anthom foi experimentando o azedo gosto do abandono. Aquela morada fria, cheia de poder, confundiu o menino. Aos poucos uma muralha densa se ergueu dentro de Anthom. Essa muralha protegia sua mente inocente da cruel‑ dade ao redor do reino. Foi assim, rodeado de poder, confusão, através de sinais que persistiam em aparecer, ele chegou à conclusão de que era, na verdade, filho de Guaraci. Então aconteceu: Anthom, aos dez anos, come‑ çou a questionar a sua pragiahnidade. Ao atingir a adolescência, era capaz de derrotar dez soldados fortemen‑ te armados com uma única espada. Suas habilidades eram tão evidentes que foram difíceis de ser ignoradas. Logo Anthom se tornou o maior triunfo do reino. O rei Darryah acabou apresentando seu bastardo em torneiros antes da idade mínima permitida, com uma falsa exibição de orgulho. Outros anos se passaram. À medida que os outros reinos se rebelavam, o príncipe maldito entrava em ação e liderava tropas para guerras. Em pou‑ cos anos, todos os reinos passaram a temê­‑lo, pois Anthom simplesmente era impossível de derrotar. Foi então que rei Darryah por fim decidiu reconhecer seu filho adoti‑ vo, demonstrar sua gratidão e pôr um fim à indiferença paterna. Um gesto tardio e cheio de exageros. Após Anthom retornar de uma batalha vencida com facilidade, Dar‑ ryah o recebeu de braços abertos no portão do reino, envolvido por uma celebração digna de um deus, mas Anthom já havia passado sua vida in‑ teira sofrendo um interminável exílio. Ao receber o abraço paterno, não 9

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correspondeu. Apenas examinou os olhos cintilantes do pai adotivo e se‑ guiu em frente. Passou pela festa sem falar com ninguém e seguiu para o quarto como se tivesse retornando de uma viagem. De fato, Anthom não era como os outros. Ele não esqueceria os anos de amargura após um único e exagerado gesto de carinho. Esperto, entendeu o motivo por detrás da sua adoção e jamais deixaria seu padrasto impune. Ele tinha uma estratégia bem definida e não tinha pressa para colocá-la em prática. Acreditava ter o tempo a seu favor. Isso porque, realmente, não acreditava que poderia morrer. Certo dia, para o espanto de todos, o rei Darryah desapareceu. Anthom, apesar de também não entender o mistério por detrás do desaparecimento de seu padrasto, não questionou. Simples‑ mente encerrou o assunto e direcionou sua atenção a assuntos mais urgen‑ tes. Afinal, em pouco tempo iniciaria um duelo no reino entre guerreiros bastardos e era o lugar perfeito para melhorar a sua estratégia de luta. Mesmo assim, houve uma grande comoção no reino. Um grupo de nobres rebeldes, apavorados e frustrados pelas perdas, pela violência, no limite de suas razões, afetados pela irracionalidade por detrás de uma superstição criada pela rainha falecida, decidiram pôr fim à maldição que o príncipe trouxe ao povo. Formaram um plano para executá­‑lo em meio a uma de suas caminhadas pela floresta. A tarefa fora organizada, contrataram quinze homens armados, mas o príncipe não era um homem comum, e derrotou a todos. Caaporã acabou sabendo do ataque contra o seu filho. Desesperada, após anos trabalhando sem descanso, voltou à forma pragiahna em busca de Guaraci e pediu­‑lhe a sua intervenção. Ele a negou. Guaraci explicou que tinha assuntos mais urgentes. Além disso, comen‑ tou que acabou testemunhando seu filho em batalha. Disse que lastimou ter visto tanta covardia, já que o filho detinha a força que muitos não poderiam nem sonhar. Então concluiu que o rapaz estava recebendo o que merecia. Desesperada, sabendo que esse ataque não seria isolado e que o reino se revoltaria contra o seu filho, Caaporã convocou ajuda de todas as entida‑ des. Seu sofrimento as comoveu, mas sabia que não era o suficiente. Ainda precisava capturar a teimosia de Guaraci. Rudá decidiu ajudá­‑la. Em forma de vulto, não foi difícil para Rudá penetrar as pedras rocho‑ sas que protegiam Guaraci. Com as belas palavras proferidas pela entidade do Amor, conseguiu convencer Guaraci. No fim, ele cedeu, mas impôs a sua con‑ dição: o rapaz seria banido de Gaha e só voltaria quando entendesse o sentido de ser um pragiahna e conhecesse o amor fraternal. 10

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Então Guaraci, acompanhado por uma das entidades da Lua, foi ao en‑ contro do príncipe que, nesse momento, lutava em uma arena de bárbaros. Lâminas de metal ainda assobiavam no ar quando Guaraci interrompeu a luta emanando uma luz que cegou a todos, menos ao seu filho, que o encarou com superioridade. Guaraci não perdeu tempo. Apontou em direção ao portal aberta pela entidade da Lua e disse: – Entre imediatamente no portal, você está sendo banido desse mundo. Você será direcionado a um planeta similar ao nosso, que se chama Terra. Lá também vivem pragiahnos, que são chamados de humanos. Você só poderá retornar quando conquistar uma humana sem se utilizar de sua bela aparên‑ cia. Deve ter um filho com ela e conhecer o amor fraternal que o salvou. Mesmo atordoado, o príncipe entendeu o recado. Sabia identificar quando não poderia ganhar a batalha. Ele obedeceu. Largou sua espada, correu e saltou em direção ao destino incerto.

Ao chegar à Terra, o príncipe deparou­‑se com um Teiú, que o saudou e seguiu seu rumo pela árida mata do sertão. A serva que o criara surgiu do portal logo em seguida, trazendo parte do tesouro da corte e o colar que o príncipe ganhou de Rudá quando era apenas um bebê. Então o informou que ele deveria presentear a moça que escolher conquistar com o colar de medalhão. Isso enviará um sinal a Gaha de que ele estaria pronto para enfrentar o desafio e, se obtiver sucesso, quebrar a maldição. Mas o príncipe, furioso com a súbita mudança em sua vida, ignorou o colar e decidiu explorar esse novo mundo. Logo se envolveu em lutas livres, conquistando e aumentando fortuna. Era um homem reservado e envolvente pelo destemor e pela força. Conheceu as mais diversas mulhe‑ res. Cortejou­‑as, conquistou­‑as e deixou­‑as logo em seguida. Ele não se impressionava com as armadilhas que elas armavam para extrair algum sen‑ timento amoroso seu, pois não havia nenhum. Foi então que, um dia, em um ambiente ironicamente severo do ser‑ tão, ele se surpreendeu, ao caminhar sob o clima árido que lembrava seu lar e ver uma bela moça pegando água de um minúsculo lago. Ela não olhou para ele, nem percebeu a sua presença. Ela simplesmente o captu‑ rou, com seu olhar vago, inexpressivo. Então o príncipe, que antes vagava sem objetivo, foi tomado pela obsessão. 11

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1 “Angélica” – O ritual

Atenas, segunda­‑feira, 25 de abril de 1994 Não havia motivo algum para Angélica temer. Isso porque ela havia treinado bastante para os parâmetros de uma Icamiaba. No entanto, ela teve apenas um mês para desenvolver o grau de condicionamento e técnica que um guerreiro passa a vida inteira desenvolvendo. Será que a disparida‑ de no tempo entre o treinamento de uma Icamiaba e um de seus oponentes a fez sentir a estranha sensação de que iria enfrentar a guilhotina? Em seu treinamento, Angélica enfrentou as mais diversas atrocidades. Não se recusou, ou se acovardou, ou reclamou, mesmo quando as dores em seus músculos ameaçavam rasgar a sua pele. Mas sua mente não cooperava, estava distante. Angélica fechou os olhos e deitou em um dos bancos acolchoados da tenda que Alcinoe e Lina montaram logo ao lado da arena. Tampou os olhos com um dos braços e foi buscar confiança em seu passado. Lembrou­ ‑se das palavras de Lina e do dia em que a conheceu e recebeu o convite. Lina disse: – “Você foi escolhida”. Soube, posteriormente, que Manoel – Negrinho do Pastoreiro – a indi‑ cou para fazer parte do grupo das Icamiabas. O Negrinho do Pastoreiro era uma entidade devotada a trazer aquilo que mais se deseja. Até o momento, Angélica não soube como seu nome acabou entrando na lista. Um dia, quem sabe, ela o conheceria e entenderia o motivo dele a indicar. Por hora, ela precisava se concentrar.

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Angélica colocou seu antebraço sobre os olhos e procurou se concentrar em sua respiração. Inspirou e expirou. Repetiu o exercício algumas vezes. Cansou. Suspirou e sentou­‑se curvada o suficiente para deixar evidente sua ago‑ nia. Nesse ponto, deixou de se importar. Notando que ainda faltava meia hora para o ritual iniciar, voltou a evocar memórias do passado. Lembrou­ ‑se de quando trabalhava como prostituta no Leblon. Na época, ela já se prostituíra por quatro anos. Bom, na verdade havia controvérsias com re‑ lação a seu ofício. Suas colegas de trabalho insistiam que, como Angélica atendia a apenas um cliente, não poderia ser considerada prostituta. Angé‑ lica discordava. Não soube bem como encantou seu cliente. Primeiro, não conseguiu nem se comunicar com ele, já que era mudo. Segundo, não conseguiu prestar qualquer serviço convincente, apesar de seus esforços. O rapaz detinha uma beleza rústica, selvagem. Era careca e tinha olhos penetrantes, daqueles que pareciam conseguir enxergar a alma. Ele pediu, na época, por meio de um bilhete, para chamá­‑lo de Mecânico. Em vez de seu nome, apresentou­‑lhe seu apelido, talvez por ser casado. Uma pessoa, acometida por uma deformidade incapacitante, reconhe‑ ce a deformidade em outro. Angélica era cheia de deformidades profundas, irreparáveis, daquelas que brotam e germinam através da crueldade da vida em meio ao sertão. Por isso ela reconheceu, sem esforço, que a deformidade em seu cliente estava muito além de uma questão de incapacidade motora da fala. Em contrapartida, o Mecânico pareceu ter reconhecido o defeito nela. Talvez tenha sido por causa desse reconhecimento que, mesmo após o seu fiasco na primeira sessão, ele exigiu ao Wilson, o cafetão dela, a exclusividade de Angélica. Na verdade, Angélica nunca soube o motivo que o levou a exigir tal exclusividade, nem o que levou Wilson a aceitar a proposta do Mecânico. De início, enquanto Angélica não sabia ler muito bem, era difícil se comunicar com ele. Aprendeu a ler com uma professora voluntária. Essa voluntária lhe emprestou bastantes livros para treinar. Angélica leu todos, de todos os gêneros. Uma preparação necessária para ler e reler mensagens deixadas pelo Mecânico, como seus recados, seus pedidos e suas ordens.

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Angélica jamais soube que o Mecânico era mudo desde a infância. Nunca perguntou. Queria manter uma certa distância emocional. Veja bem, o Mecânico também determinou essa distância, pois nem sequer lhe disse seu nome. Além disso, ele pagava adiantado pelos seus serviços até três vezes o valor do programa. Uma demanda de seu cafetão para mantê­‑la exclusiva. Mesmo assim, era difícil manter­‑se indiferente ao charme de seu clien‑ te. Ele era um amante incrível. Então sua vida mudou quando conheceu Lina. Na ocasião, ela estava encostada no poste, próximo ao bordel, aguardando o seu único cliente, quando um carro parou. Um jipe antigo com uma mulher maravilhosa ao volante. Era impossível não reparar. Então a estranha sinalizou para que Angélica se aproximasse. Angélica resistiu. Não sabia se deveria aproximar­‑se da mulher, mas a bela motorista sinalizou outra vez. Angélica espiou ao redor e, ao se ver sozinha, decidiu se aproximar. Estava curiosa. Queria saber o que levara a bela moça a buscar o afago de uma prostituta. Descumprindo a regra de exclusividade, Angélica se aproximou. En‑ tão, inclinando­‑se à janela, posicionando os seios bem desenhados de modo que a cliente pudesse apreciá­‑los como se fosse necessário dispor uma amostra do que podia proporcionar, se apresentou: – Posso entrar? Não cobro o olho da cara e faço de tudo. Angélica foi audaciosa com as palavras. A cliente não precisava saber que ela jamais teve experiência com mulheres. Também não precisava sa‑ ber que Angélica não sentia qualquer interesse por mulheres. Isso não vi‑ nha ao caso. – Olá, sou Lina. – A bela mulher se apresentou. Olhou rapidamente para os seios abundantes, não era possível deixar de notá­‑los. Em seguida, destrancou o carro. Assim que Angélica entrou, Lina sorriu e lhe entregou um convite para participar de uma reunião no dia seguinte no Copacabana Palace. Logo em seguida, entregou cinco notas de cem reais, e disse: – Meu pedido é para você descansar. Não atender a nenhum clien‑ te. Depois esteja no Copacabana Palace às oito horas da manhã. Você foi escolhida.

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Angélica aprendeu, por força das consequências sofridas de sua vida áspera, a analisar todas as variáveis e prever possíveis riscos. Na época, ela não havia se dado conta da magnitude das palavras de Lina. Apenas julgou, segurando uma soma considerável de notas em sua mão, que não havia perigo em aceitar o dinheiro e o convite. No dia seguinte, Angélica foi a primeira a aparecer à reunião. Não teve que esperar tanto, logo a sala estava repleta de mulheres. Foi neste dia que ela conheceu Alcinoe e o grupo. A reunião demorou um pouco. Alcinoe apresentou a lenda das Icamia‑ bas. Angélica achou interessante conhecer sobre a formação do grupo, a primeira guerra, a desarmonia do Sol, mas a apresentação logo tomou um ar psicodélico e perturbador, a partir do momento em que fizeram a pro‑ posta. Alcinoe ofereceu uma semente estranha para Adriana tomar, caso aceitasse o convite. Então distribuiu a mesma semente para todas as parti‑ cipantes do grupo. Era uma semente interessante, vermelha e que parecia revestida de veludo. Caso não aceitassem o convite, segundo a explicação, a água servida possuía uma toxina que apagaria a memória da reunião. Angélica viu então uma mulher – que depois veio a conhecer como “Adriana” – se levantar, discutir e sair. Adriana se indignou com aquela absurda proposta. Angélica concordou que o convite era algo bizarro, no mínimo. Mas havia algo naquela estranheza que a atraía. Quando Angélica recebeu o convite para abrir mão da prostituição e se tornar uma Icamiaba, hesitou em aceitá­‑lo. Imaginou como seria insu‑ portável deixar o Mecânico para trás, mas o que pesou em sua decisão foi a vida lastimável do bordel e a falta de perspectiva em um relacionamento frágil, cheio de barreiras e baseado em uma troca financeira. Então tomou a semente. Desde esse dia, Angélica passou a sentir os seus músculos e ossos doe‑ rem. Sentia­‑os crescerem e se desenvolverem de uma maneira desenfreada. Também sentia um nervosismo fora do comum. Era como se ela tivesse perdido toda a capacidade de controlar as suas emoções. – Alex! Estão nos chamando. – A voz de Amanda arrancou Angélica de seu passado. – Fui escolhida – Angélica murmurou para si mesma, com uma difi‑ culdade imensa em acreditar nessas palavras. Então levantou­‑se para acom‑ panhar o grupo. 15

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“Alex”, às vezes era difícil responder a esse nome… Angélica era seu nome de nascença, mas mudou assim que chegou ao Rio. A seguir seu caminho incerto depois que o pai enlouqueceu e alegou tê­‑la trocado por um pouco de fartura. Meu pai…, Angélica lembrou com saudade. Seu pai era um pobre trabalhador do sertão que, ao pedir socorro, acei‑ tou dar a um forasteiro a primeira coisa que encontrasse ao retornar para casa em troca de fartura. Estava desesperado. Além do mais, ele presumia que seria recebido pelo cão já que, em sua casa, ninguém se cumprimenta‑ va. Não havia espaço para qualquer delicadeza. Só havia espaço para a violação. Suas irmãs mais velhas trabalhavam na lavoura, já eram casadas e seus maridos moravam consigo, na casa de seu pai. Angélica era a mais nova, cuidava dos afazeres da casa e buscava se esconder do marido de sua irmã mais velha, que a violentava sempre que podia. Esse monstro tirou sua inocência em todos os sentidos. Onde ela morava, no sertão, não havia lugar para afagos. A fome curava­ ‑se com caldo fraco, uma mistura de água, farinha e açúcar. Aliviava­‑se a doença com simpatia e a saudade com sofrimento. Logo em seguida, perdida em pensamentos, lembrou-se de cada deta‑ lhe do dia em que foi obrigada a sair da casa de sua família. Sua memória era tão vívida, que Angélica sentia nitidamente a ardência do Sol do meio­ ‑dia que dardejava sobre a paisagem tão quente e que era capaz de queimar os olhos. Também conseguia escutar o chiado da terra anunciando os pas‑ sos incertos de seu pai. Por Deus, ela viu o sorriso do pai vindo de longe, um sacolão grande que a fez recepcioná­‑lo. Mas sua memória não parou por aí… ela então viu os olhos confusos do pai que, com uma expressão tão gentil como uma pedra, informou-a da negociação. Ele lhe comunicou, de maneira tão simples como se tivesse ordenado estender as roupas molhadas no improvisado varal do casebre, que nada poderia ser feito. Ela deveria se entregar ao príncipe Teiú. O príncipe Teiú… Havia muitas lendas no sertão. Criaturas fantásticas, com poderes ini‑ magináveis. Custou Angélica acreditar que o pai havia, de fato, encontrado essa estranha e fantasiosa criatura. Isso a deixou desnorteada. Tentou voltar para a casa, mas o pai estava irredutível.

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Angélica não soube se ele havia enlouquecido de vez, ou se ela deveria honrar com a palavra do pai. Na dúvida, ela tomou outro rumo. No Rio de Janeiro, enquanto vendia seu belo corpo, lutava bravamente para apagar o passado. Tentava a todo custo suprimir aquele irritante sen‑ timento de abandono e traição. Aprendeu a falar com sotaque carioca e apagar qualquer resquício do sertão em seu presente. Apenas tinha o sertão em seu coração, ao lado da nostálgica mágoa que insistia em assombrá­‑la em momentos de solidão. Como a maior companheira de uma prostitu‑ ta é a solidão, Angélica lembrava­‑se desse momento com uma agonizante frequência. – Vem! – Rafaela a chamou. Tenho que focar na luta, Angélica pensou e balançou a cabeça bus‑ cando prestar atenção ao que estava em sua volta. Era estranha essa lem‑ brança aflorar, de forma tão vívida, que teve a impressão de sentir o chei‑ ro do sertão. Ela se colocou na fila e partiu em direção a arena com passos indeci‑ sos. Inspirou o perfume da mata que se misturava com o óleo e a madeira queimada pelas tochas que iluminavam a arena. Uma noite boa para lutar. Ela acompanhou o ritmo do grupo, concentrando­‑se em cada passo para não tropeçar. Olhou para o céu para se distrair e notou o brilho da Lua en‑ volvida pela magnitude das estrelas no céu. Sorriu ao encontrar uma estrela cadente, uma evidência de que ela estava no caminho certo, afinal, uma estrela cadente simbolizava a magia da sorte, de um desejo prestes a ser atendido. Angélica não fez um pedido, não nesse momento. Apenas sorriu e permitiu acreditar que o universo conspirava a seu favor. A luz da Lua era tão imponente que auxiliava as tochas na iluminação da arena com luz branca e fria. Ela acompanhou o grupo até entrar na arena e ser envolvida pelo som e pela animação a sua volta. Angélica inspirou outra vez e pro‑ curou não olhar os oponentes, afinal, Alcinoe foi clara ao dizer: “Se vocês olharem diretamente nos olhos dos adversários, estes terão chances de lhes conquistar. No mais, eles não terão a menor possibilidade”. Lina anunciou: – Após a sirene, cada participante deverá escolher uma arma. Essa arma deverá ser oferecida ao adversário que irá, obrigatoriamente, lutar com ela. Caso escolha lutar com as mãos, não tem problema. É só indicar, 17

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mostrando a palma para mim. Serão dez minutos de combate armado. Após esses dez minutos, uma sirene tocará. Cada um deverá largar suas armas e passar para o combate manual imediatamente. Somente será considerado vencedor aquele que derrubar o seu adversário e o mantiver imobilizado no chão por mais de três segundos. Conforme combinamos, a mulher que vencer será agraciada com o presente da obsessão e se unirá a nós. Angélica saltou com as saudações das Icamiabas em volta. Sentiu seu coração pular junto com o grito característico das mulheres ao seu redor. Ela reprimiu com bastante dificuldade a vontade de levantar os olhos. Pelo canto do olho viu Lina acenar para que a plateia se acalmasse: – Caso o adversário ganhe, ele terá o direito de levar a moça por uma noite. A mulher derrotada deverá retomar o seu treinamento no dia seguin‑ te e aguardar o próximo ritual. Ao acompanhar o grupo até a tenda, Angélica voltou seus olhos para o chão. Não se importava de como seu comportamento poderia ser interpre‑ tado pelo adversário. Quando avaliou os riscos, achou melhor se proteger. Queria evitar encontrar qualquer centelha de faísca nos olhos daqueles com quem duelaria em breve. O berro da multidão ao redor a desconcertou. Com um sobressalto, inadvertidamente, acabou elevando o rosto e, para o seu espanto, encon‑ trou o seu cliente entre os adversários. – Mecânico?! – incapaz de segurar seu susto, ela sussurrou para si mesma. Seu corpo paralisou. Então uma onda inescrupulosa de pensamentos a atropelou. Mal conseguia controlar a imensa confusão mental. Seu cora‑ ção entrou em um compasso disritmado enquanto seus dedos afundaram em sua cintura. Imediatamente lembrou que, no dia anterior, enquanto Joana se recu‑ perava da intensa queimadura entre as pernas, Angélica chegou a mencio‑ nar que achava tê­‑lo visto entrando no hotel, e as meninas a convenceram de que ela havia se enganado. O que ele estava fazendo em meio aos adversários? Boquiaberta, utilizando todas as suas capacidades intelectuais, buscou uma lógica para esse encontro inusitado. Como ele sabia das Icamiabas? Será que foi convidado? Ele não é um mecânico? Como poderia imaginar

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que ele viesse para esse torneio? O Mecânico luta? O que ele fazia na arena e por que diabos a encarava como se ela fosse seu prato principal?! Atônita, Angélica negou. Não poderia ser ele! Ela não confiava nele. Na verdade, não confiava em como reagiria se tivesse de duelar com o Mecânico. Ela o desejava muito para manter­‑se indiferente ao seu domínio. Não posso lutar com ele!, Angélica gritou para si mesma, encarando os olhos azuis e irredutíveis do Mecânico. Ao chegar à tenda, ela já não respirava mais. Seu coração batia tão for‑ te que parecia ensurdecê­‑la para a conversa ao redor. As palmas das mãos suavam. Angélica sentou em um dos bancos acolchoados da tenda, exage‑ radamente confortável para uma estrutura temporária. Ela sentia as pernas pesadas e esfregou as mãos nas coxas. Minutos subsequentes, ainda esba‑ forida, desistiu de sentar. Levantou­‑se e tornou a andar de um lado para o outro repetindo a mesma frase como um mantra: – Não posso lutar com ele! Não posso lutar com ele! Não posso lutar com ele! Não posso lutar com ele! Lindalva foi chamada. Após poucos segundos, ela retornou. Satisfeita, disse: – Moleza! Angélica não conseguiu conter sua afobação. Ela correu até a amiga e perguntou: – Você lutou com um careca que tinha uma marca com a forma da letra “G” no pescoço? O Mecânico tinha um sinal semelhante a uma queimadura de dois dedos de diâmetro no lado direito do pescoço, logo atrás da orelha. – Não, aliás, o grupo de adversários é repleto de carecas. Angélica assentiu. De fato, não reparou nos outros. Colocou a mão no peito. Quase não conseguia respirar. Em seguida, Amanda foi chamada. Angélica esperou que voltasse à tenda. Em poucos segundos, Amanda entrou batendo os pés. Sem reprimir a irritação, praticamente rosnou: – Nem cheguei a lutar! Deram­‑me um palhaço! – Era careca? – Angélica a abordou, segurando no braço da amiga. – Tinha uma marca na garganta? Amanda franziu a testa, deu de ombros e respondeu: 19

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– Nem reparei na cara dele. O patife desmaiou. Angélica sentia toda a tensão reprimir seu abdômen. Alongou os braços e pernas. Logo em seguida, chacoalhou­‑os na tentativa de relaxar os mús‑ culos. Sentou em uma das cadeiras e fechou os olhos, tentou refrear seu coração para pensar. – Só vou nocautear seu adversário depois de ver se ele tem a tal marca no pescoço – Rafaela disse ao segurar uma das mãos suadas de Angélica, que agradeceu silenciosamente. Rafaela entrou na arena. Angélica ficou atenta aos sons da luta. Rafaela demorou mais que as outras lutadoras anteriores. Ouviu risos e aplausos. Então ela retornou. Ofegante, disse: – Não. Não era o seu cara. Angélica gargalhou. Não soube identificar se riu porque achou graça ou por puro nervosismo. Paula foi chamada. Ela interrompeu a animada conversa com Adriana, levantou e seguiu para a arena. – Continuamos logo quanto voltar! – Paula disse a amiga. Paula passou por Angélica a passos largos, sem lhe dar chance de abordá­‑la. Segundos depois, Paula retornou e retomou o assunto com Adriana. Angélica abriu sua boca para perguntar, mas hesitou. Sentindo todo o peso de uma sirene anunciando que uma bomba es‑ tava para colidir, escutou seu codinome “Alex” do lado de fora da tenda. Era a sua vez de entrar na arena. Passo a passo, caminhou até o meio do campo clamando diretamente para Nhandevuruçu, a entidade superior, para lhe ajudar nesse momento. Parou no meio da arena e aguardou segundos que pareciam horas, dias, meses! Atormentada pela demora da entrada do adversário, ela já não con‑ seguia controlar a respiração e as batidas frenéticas de seu polegar direito sobre a perna. Também não sabia por que seu corpo decidiu manifestar um tique novo, nesse momento. Os gritos de saudações que a rodeavam não distraiu sua tensão e nem esse novo e irritante tique. Antes tivesse! Ela não conseguia dar sentido ao que ocorria à sua volta. Não havia nada em volta além da batida de seu co‑ ração e do estalo entre seu polegar e sua perna. Parecia estar em uma bolha transparente, silenciosa e agonizante. Foi então que ela parou de respirar e arregalou os olhos ao confirmar seu maior medo. 20

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O Mecânico surgiu do meio das Icamiabas e a encarou com imponên‑ cia. Como um leão estudando sua presa, andou lentamente até o meio da arena e curvou seu tronco para a frente com um gesto cordial. Era assus‑ tador deparar­‑se com esse novo lado do seu cliente. Esse perigoso, convin‑ cente e envolvente lado. Foi de fato diabólico como ele anulou todas as defesas dela. Essas que foram exaustivamente treinadas. Mantendo os olhos de Angélica sob sua custódia, ele se aproximou das armas, agachou e pegou o arco e flecha. Com calma, caminhou em sua direção. A feição séria de seu ex­‑cliente mudou gradativamente ao se aproximar. No canto de sua boca surgiu um leve sorriso. Então ele presen‑ teou Angélica com a arma, ajoelhando­‑se numa reverência. Ele percebeu o quanto a afetou. Angélica pegou a arma com as mãos trêmulas. Internamente, ela que‑ ria morrer. De todas as armas, achava o arco e flecha a arte mais difícil de dominar. Não era fácil puxar a corda e mirar. Chegou a treinar até seus dedos ficarem em carne viva e, mesmo assim, para o aborrecimento de Angélica, não conseguia sentir­‑se confiante com essa arma. A plateia parou de gritar. Por que pararam de gritar? Confusa, Angélica olhou para Alcinoe. Esta, com seus lábios cerrados, apontou as armas. Era a vez de ela escolher a arma para o parceiro. Ela respirou fundo para obter forças e andar até as armas. Escolheu a corda e atirou no chão, mantendo a distância que precisava. Seu clien‑ te manteve­‑se parado todo o tempo sem tirar os olhos dela, mas quando a corda bateu na canela do pé descalço dele, este se distraiu por alguns segundos. Ela não deveria ter jogado a corda. Angélica notou a expressão inquisitiva de Lina, isso a fez retrair­‑se um pouco mais. O Mecânico parecia calmo, sereno, como se estivesse em um terreno conhecido. Ao tocar a sirene do início da luta, ele passou a correr em sua di‑ reção segurando a corda, mas sem fazer qualquer menção em utilizá­‑la. Ela recuou sobressaltada tentando armar o arco com uma flecha, mas falhou à medida que ele crescia à sua frente em uma corrida irrefreável. Sem que Angélica pudesse se dar corta, sentiu seu corpo ser lançado para cima. No susto, ela acabou largando o arco e a flecha e, instintiva‑ mente, buscou algo que pudesse segurar, sem sucesso. Ele a havia lançado no ar como se seu peso fosse insignificante. Então, ao despencar no chão, no meio do caminho, sentiu a mão do Mecânico pesar sobre sua barriga, 21

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que com um empurrão, ampliou o impacto. Como resultado, a colisão com o chão de terra foi tão violenta que desorientou Angélica por alguns segundos. Quando ela deu por si, já estava imobilizada. A mão de seu adversário pesava sobre seu peito, enquanto o joelho dele amassava seu braço direito. A dor só não era maior do que sua indignação por ter sido nocauteada em poucos segundos pelo cliente com quem tivera tão bons momentos. Perce‑ beu então a sua degradante situação e, mesmo assim, não desistiu. Tentou se agitar loucamente, engoliu em seco a dor de sentir seu braço ser amassa‑ do pelo joelho do Mecânico. Tentou ignorar o ar que lhe faltava. Tentou se libertar, com todas as suas forças, gritou de raiva e se debateu para buscar uma brecha. Ela precisava sair do domínio do Mecânico. À medida que sua força aumentava, ele aplicava mais força para mantê­‑la dominada. Então aconteceu. Sentiu o Mecânico levantar seu corpo com extrema facilidade e posicioná­‑la sobre seu ombro. Angélica gritava de raiva e batia em suas costas, mas era tarde demais. A realidade bateu como um estron‑ do. Havia perdido a luta. De alguma forma louca, ela sabia a gravidade da situação. Nada vol‑ taria a ser seu como era antes. Alguma coisa lhe dizia que essa única noite iria redefinir outra vez o curso de seu destino. Mas como não haveria de mudar? Feriu sua dignidade e orgulho. Isso porque concordou em se sub‑ meter às vontades de seu adversário por uma noite. Assim como todas as suas colegas, ela aceitou o risco de se submeter por uma noite. Não haveria como voltar atrás.

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