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Copyright © 2014 by Simone Taietti
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SSegovia Editorial Joice Nunes Abreu’s System Monalisa Morato Andrea Bassoto
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Taietti, Simone Fávero Uma vida para sempre / Simone Fávero Taietti. – Barueri, SP : Novo Século Editora, 2014. – (Coleção talentos da literatura brasileira) 1. Ficção brasileira I. Título. II. Série. 14-10026
CDD-869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira 869.93
2014 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA. CEA – Centro Empresarial Araguaia II Alameda Araguaia, 2190 – 11º andar Bloco A – Conjunto 1111 CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323 www.novoseculo.com.br atendimento@novoseculo.com.br
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Para você. Isto mesmo, você, que agora lê estas palavras.
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“A dor é tão necessária como a morte”. – Voltaire
Bonita frase, não? Eu também tenho uma:
“A dor ensina. A dor protege. Ela pode trazer momentos muito ruins para a nossa vida, mas o que seríamos sem ela? Pois bem, eu acho que sei um pouco sobre isso...”.
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“Eu me submeto à dor para arrancar de mim o melhor. Algumas palavras e lágrimas. O pouco. Mas, o tudo que tenho. E entregar ao mundo alguma esperança ou um lampejo de realidade. E algumas pessoas me encaram como se eu fosse um mártir. Não percebem elas que isto não passa de egoísmo. Porque fazer tudo isso é o que me mantém viva. Não fosse isso, morreria antes mesmo de parar de respirar. Porque afinal de contas é tudo sobre mim. Uma tentativa vã de ser lembrada. Nunca conheci alguém que não quisesse isso. Não ser esquecido”. Trecho de “As Palavras de Maude”.
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Algum dia chuvoso de 2004
Ouvi uma conversa dos meus pais. E lembro-me dos detalhes porque escrevi o nome do livro e, quando tive oportunidade, pesquisei sobre ele.
– H
á um livro do Machado de Assis intitulado Contos Fluminenses II. Foi publicado postumamente e quase ninguém o conhece. Um dos contos, chamado “A Carta”, conta a história de uma moça tímida, que nunca havia tido um pretendente e que achou ter recebido um bilhete de amor. Passou toda a noite sonhando com o casamento que haveria de ser arranjado com aquele homem de palavras tão doces; teria uma grande festa com inúmeros convidados. Porém, no dia seguinte, descobriu que o bilhete lhe fora entregue erroneamente; este pertencia, na verdade, à sua irmã – mamãe disse. – É uma bonita história – meu pai afirmou. – Não consigo ver dessa forma. Acho muito triste, para dizer a verdade. – Ela ao menos teve a oportunidade de sonhar. – Eu não concordo com isso. Acho que é melhor nunca ter vivido a ter apenas a lembrança de algo que lhe foi tirado tão prematuramente.
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– Mas do que a vida é feita, senão de lembranças, Edite? Você precisa aprender que isso é tudo o que nos resta depois que o tempo passa. Minha mãe se calou depois disso. Não sei se para evitar uma discussão ou porque, no fundo, havia encontrado alguma lógica naquilo tudo. Sei apenas que aos oito anos de idade eu ainda não tinha ideia de que aquelas palavras do meu pai eram a lição mais sábia que eu aprenderia em toda a minha vida.
Há várias maneiras de dizer adeus. Ao que sabemos, entre outros termos, os franceses dizem au revoir, os ingleses goodbye, os espanhóis adios, os italianos arrivederci e os holandeses tot ziens. Há centenas de outras línguas e milhares de variações. Eu posso dizer “até logo” sem saber que é um “adeus”, assim como posso dizer a você que eu sou uma escritora. Ledo engano. Quanto vale uma vida? E uma morte? Conta-se o valor de cada um com as lágrimas que pela partida dela derramam? Alguém vai pegar na minha mão quando eu estiver ali, prestes a atravessar? Eu me pergunto estas coisas às vezes, mas não deixo ninguém saber disso. E isto aqui são palavras soltas. Acho que é tudo aquilo que guardo dentro de mim. Pretendo fazer disto um diário. E este diário será o meu grande livro, por isso o escrevo como se, de fato, alguém um dia irá lê-lo. Dizem que para uma pessoa considerar sua vida plena precisa escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Sempre achei esta máxima um pouco equivocada, afinal de contas, quer dizer que pessoas impossibilitadas de terem filhos, como minha própria mãe, e analfabetos, nunca terão vidas plenas? Creio que caiba um pouco de interpretação diferenciada nisso e é por isso que resolvi transformar este diário no meu tal grande livro. Não por me julgar a pessoa mais interessante do mundo ou por achar minha história incrível. Nada disso. Acho que é tão somente por não ter nada melhor sobre o que escrever.
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09 de fevereiro
É meio triste colocar palavras no passado, mas preciso dizer que Johnny Cash tinha uma voz incrível. Mesmo sendo do Nine Inch Nails, gosto de ouvir Hurt em sua voz, principalmente quando canta, aqui parafraseando, que “se machucou naquele dia, para ver se ainda sente dor, e se concentra nela, pois sabe que é a única coisa real”.
M
eu nome é Ethel, tenho 17 anos. Por que eu nunca escrevi antes? Para falar a verdade, eu escrevia, mas ninguém sabe disso. Há poucos dias encontrei no youtube um seriado japonês, se é que posso chamar assim, intitulado Ichi Rittoru No Namida, em português Um Litro de Lágrimas, em 11 capítulos. Conta a história de Aya Kitto, uma menina que aos quinze anos de idade foi diagnosticada com Degeneração Espinocerebelar. É baseada nos diários de Aya, a verdadeira lutadora que, mesmo após o diagnóstico, contra qualquer expectativa, viveu até os 25 anos de idade, vindo a falecer no ano de 1988. Por algum motivo senti vontade de escrever sobre mim, julgando que não seria boa escrevendo sobre qualquer outra coisa, por mais que quisesse. Meu nome é assim, estranho mesmo. Enquanto eu cresci cercada por Marias de nomes compostos, Anas, Carolines e Julianas,
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adaptei-me à ideia de soletrar meu nome sempre que conhecia alguém. “Você é estrangeira?”, alguns perguntam e, dependendo de quem seja – se for estranho demais a ponto de eu provavelmente nunca voltar a ver –, eu respondo que sim. Isto já aconteceu algumas vezes e eu já tive nacionalidades francesa, inglesa e grega. As histórias variavam. Meus pais me trouxeram para o Brasil meses depois de eu ter nascido, pelo fato de aqui as coisas parecerem mais estáveis em relação à economia, por exemplo. Ou então, que mais sete irmãos, meus pais e eu havíamos fugido de uma guerra e, se fossem espertos o bastante para dizer que não haviam ouvido falar de uma guerra recente em qualquer um desses países, eu lhes dizia que havia sido uma guerra entre tribos nômades ou uma briga religiosa, como em um documentário que assisti sobre o separatismo na Irlanda da Norte, entre protestantes e católicos. Então, eles assentiam, alguns demonstravam algo similar à pena pela minha condição de “refugiada”, enquanto os mais soberbos diziam algo como: “Agora que você falou eu me lembro de ter ouvido a respeito. Foi realmente muito triste”. Eu sentia vontade de rir quando isto acontecia, mas apenas balançava a cabeça, com esforço para demonstrar pesar em meu semblante. Não se engane, eu gosto de estranhos. Eu gosto das histórias. Mas não daqueles soberbos. Eu gosto da maioria dos que eu encontro nos hospitais. Eu gosto daqueles que ouvem e que possuem certo brilho no olhar. É um olhar que diz: “Apesar de tudo, todo o sofrimento pode ser superado”. Para estes eu digo a verdade. E em troca recebo a verdade deles. É engraçado como a mentira parece mais plausível às vezes. Talvez não seja ético, nem moral, ou politicamente correto, ou sei lá o quê. O grande problema com a verdade é que apesar de se fazer necessária na maioria das vezes, ela nem sempre é tão doce, bem como quase nunca corresponde às nossas expectativas. Por exemplo, quem sabe seria legal ter sete irmãos, ou mesmo ter nascido em outro país. Para falar a verdade, nem eu mesma sei
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onde nasci. Meus pais que constam em minha certidão de nascimento e afins, biologicamente falando, não são meus pais. Eu disse que a verdade nem sempre é tão doce. Fui adotada aos três meses de idade. Foi isto o que me contaram. Não trazia comigo um pingente ou mesmo algum traje que anos mais tarde foi reivindicado por uma mulher bondosa se dizendo minha mãe arrependida que, por não ter condições, viu um futuro melhor para a filha em uma casa de pessoas ricas. Ninguém apareceu e esta foi uma das melhores coisas que poderia ter acontecido. Até porque não sei como reagiria frente a alguém tentando consertar equívocos do passado dez ou quinze anos depois. Eu tenho duas grandes paixões: história mundial e livros do Machado de Assis. E com isto não quero que pensem que sou estudiosa ou coisa que o valha. Meu histórico escolar sempre foi muito conturbado, desde as notas até a frequência. Até que um dia minha mãe decidiu que seria melhor eu ter aulas em casa, então as coisas melhoraram. Não tanto quanto minha mãe esperava, afinal não sou um grande gênio. Quanto a gostar de história, vocês não devem ter qualquer objeção, mas em relação a gostar de Machado de Assis, creio que muitos pares de olhos que percorrem estas linhas devem estar se perguntando: “Como assim?”. Confesso que até hoje não encontrei ninguém, exceto minha mãe, que goste de Machado de Assis. E isto para mim é uma grande loucura. Também não aceito muitas dessas críticas, uma vez que a maioria delas vem de quem nunca o leu. Há dois grandes motivos que me fazem gostar dele. O primeiro é a linguagem rebuscada, que eu acho muito bonita, e o segundo, bem, este é o melhor, é aquele escárnio, aquela acidez e aquele pessimismo (ou seria realismo?) que eu percebo em cada uma de suas histórias. Eu quase consigo ver uma gota de veneno despencando da pena que ele usava por sobre seus originais. Semelhante motivo me faz apreciar as poesias barrocas de Gregório Matos Guerra, o Boca do Inferno, alcunha esta conquistada justamente através de suas rimas mordazes. Este último
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cara aí, acredite ou não, em seu leito de morte chamou dois padres e quando eles estavam ao seu lado, desfiou: “Estou morrendo entre dois ladrões, tal como Cristo ao ser crucificado”. Já falei sobre onde eu moro? Tangará é uma pequena cidade do Meio-Oeste do Estado de Santa Catarina, que tem uma grande influência das descendências italiana e alemã. Creio que não passemos de 9.000 habitantes neste pequeno recanto da terra outrora colonizada pelos lusitanos. Como já deve ter sido fácil imaginar, não sou dada a muito agito, o que faz com que eu goste da calmaria deste lugar. A única coisa da qual não gosto aqui é a inexistência de uma livraria. Dá para acreditar em uma coisa dessas? Há um lugar onde se vendem livros e mais um milhão de outras coisas, mas convenhamos que não é a mesma coisa. Queria uma livraria repleta de prateleiras e com um canto de leitura, onde houvesse poltronas, puffs, aqueles que comumente são feitos a partir de pneus, e almofadas espalhadas por um enorme tapete. Isto seria o máximo. Há uma coisa curiosa sobre a minha cidade. Há cerca de dezesseis anos, um médico chamado Gabriel cometeu um assassinato dentro do Hospital Municipal Luz Divina de Santa Teresa, onde atendia como clínico geral. Ele matou um pedófilo. Hoje em dia, a menina que foi abusada por este homem não mora mais aqui e Gabriel também não. Alguns meses depois de ter cumprido sua pena, Gabriel se mudou para o Haiti com uma mulher, se não me engano, a namorada que ele tinha antes de ser preso. Há opiniões divergentes sobre todo esse acontecido, e muitos nem mesmo comentam, mas volta e meia, em alguns lugares da cidade, ouvimos um ou outro relembrando Gabriel, ou contando a história a algum passante que até então não havia tomado conhecimento desta. A impressão que dá é de que a história de Gabriel é mais uma lenda que realidade. Então, às vezes, vemos sua mãe caminhando por estas ruas, de cabeça erguida, e nos lembramos de que a história, digna de um roteiro de cinema, realmente aconteceu.
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Eu já vi pessoas dando nome de escritores aos seus animais de estimação. Já eu preferi dar ao meu cachorro o nome de um personagem criado por Machado de Assis. Brás Cubas, o mesmo que dedicou suas memórias ao verme que primeiro roeu suas frias carnes, é o nome do meu beagle. Eu seria uma adolescente normal, caso não tivesse ouvido dos meus pais desde cedo que colocar a mão em cima da chama acesa do fogão pode queimar, ou que eu preciso examinar-me a cada duas horas todos os dias em busca de manchas, arranhões ou mesmo sangue, o qual por distração não havia percebido. O que acontece é que eu tenho CIPA, e costumo dizer que sou doente, apesar de minha mãe não gostar nem um pouco de ouvir isso. CIPA é a sigla em inglês para Insensibilidade Congênita à Dor com Anidrose, um distúrbio pertencente à família das Neuropatias Hereditárias Sensoriais e Autônomas. Ao menos foi isto que o médico falou. São cinco tipos e o meu é o tipo IV, sendo que nesta roleta russa em que o tiro caiu justamente em mim, ainda devo ser grata, uma vez que não apresento retardo mental, o que é bem comum nesse tipo. Eu não sinto dor. Esta é a grande verdade. O último índice que li a respeito disso mostra que menos de trezentas pessoas são acometidas por esta condição em todo o mundo. Só não me pergunte como eles registram ou mesmo controlam esta contagem. Sempre pensei que deve haver algum silvícola incapaz de sentir dor perdido por aí, talvez até vários, e por não haver qualquer contato entre eles e o resto da humanidade, como poderiam ter sido “catalogados”? Em um mundo em que muitos lutam para mostrarem-se diferentes da grande maioria, acredite, eu não me sinto nem um pouco lisonjeada por ter sido laureada com tal raríssima condição. Eu sou pouco mais que uma estatística. Ao menos, é assim que eu me sinto. Quando eu era pequena perguntava para minha mãe o porquê de eu precisar sair na rua usando óculos de natação ou porque meus dentes haviam sido todos arrancados logo que nasceram e eu precisei ficar banguela por intermináveis anos até que os defi-
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nitivos nascessem. Ela sempre respondeu que tudo era para o meu bem, uma vez que caso não fizesse isso eu machucaria meus olhos e mutilaria minha própria língua, já que não sabia que isso me causaria algum mal. Entretanto, suas respostas nunca passaram disso, exceto pelo fato de sempre ela emendá-las com a balela de autoajuda: “Você não é doente. Tem apenas uma incapacidade. Tudo vai ficar bem”. Até o médico, que era profundamente atualizado, tanto que foi capaz de diagnosticar minha condição – não depois de eu haver passado por sete outros –, não falava abertamente sobre isso comigo. Ele era outro grande adepto das palavras: “Tudo vai ficar bem.” E eu até acreditava. O grande problema foi a Biblioteca Pública Municipal. Deixe-me explicar. O acesso ao computador não era permitido para mim até os meus quatorze anos de idade, ou melhor, foi com esta idade que tive direito a ter um computador no meu quarto e à privacidade de que necessitava. E, acredite, a privacidade de que necessitava não era para fazer buscas por sites pornôs, compra de drogas online ou estas coisas que chamam de redes sociais. Até então eu usava o mesmo computador que a minha mãe e apenas com a sua supervisão. Contudo, na Biblioteca Municipal, além de uma considerável quantidade de livros, há um computador disponível, que acessa tão somente sites de busca. Era tudo o que eu precisava. Desde então eu não fiz mais perguntas à minha mãe. E foi desta forma que eu realmente me dei conta do que estava se passando comigo. Eu sabia que minha condição não era encontrada em cada esquina, mas nunca imaginei que fosse tão rara e tão... dura. Os seriados Grey’s Anatomy e House dedicaram ambos um episódio para tal anomalia, o que descobri mais tarde. Também há um vídeo intitulado A life without a pain (Uma vida sem dor, em tradução literal), lançado em 2005, contando a história de três crianças que são incapazes de sentir dor. Sei que não se pode confiar em tudo o que se lê na internet, entretanto, a partir do momento que você cruza dados encontrados
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em sites com artigos científicos de monstros da medicina, e por monstros digo grandes profissionais, acho que é hora de se preocupar um pouco. E, além disso, foi em um texto do Wikipédia sobre Insensibilidade Congênita à Dor – lembrando que junto a isso eu ainda tenho Anidrose, que é a incapacidade de transpirar – que, ao lado da informação de que muitas histórias tristes estavam ligadas a tal condição, como a exploração de um menino mexicano de oito anos que se apresentava em um circo, eu encontrei o seguinte dado: “A média de vida destas pessoas é de somente vinte anos”. A partir daquele momento eu aprendi a não confiar nas pessoas quando elas dizem que tudo vai ficar bem. Também passei a elencar outro assunto que se mostrou muito interessante para as minhas pesquisas autodidatas: a morte, o que para mim parecia tão iminente quanto a chegada do outono, logo dali a pouco mais de um mês.
Certa vez, um professor contou que entre as experiências médicas que os nazistas faziam nos campos de concentração, o que segundo eles nada mais era que um fomento à pesquisa científica, estava a seguinte: faziam com que o prisioneiro acreditasse que seu sangue se esvairia gota após gota, apenas para observarem a reação do corpo frente a tal realidade. Por eu haver escolhido as palavras “faziam com que o prisioneiro acreditasse”, já os leva a saber que tal esvaimento não era promovido de fato. Contudo, através de uma simulação, tanto do corte que faria o indivíduo sangrar até a morte quanto do sangue gotejando, substituído por água, o prisioneiro realmente acreditava que morreria e não muito tempo depois era vítima de um ataque cardíaco fatal. Lembrei-me disso no dia em que completei 17 anos. Não há um balde, nem uma cânula por onde o sangue está escapando de minhas veias, mas há este cheiro específico, esta sensação de que algo está escorrendo por entre meus dedos. Mais uma vez a infor-
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mação trazida pelo Wikipédia e outras informações semelhantes encontradas em artigos científicos vem à minha cabeça. O número específico me faz lembrar dos telejornais, quando pronunciam o resultado de enquetes realizadas com o nome dos candidatos a uma eleição. Eles sempre dizem que há uma margem de erro de 2% para mais ou para menos e isso faz com que eu sinta meu corpo tremular, o que, com o tempo, aprendi que é sinônimo de um arrepio, ou frio na espinha, como alguns falam. Faz também com que meus passeios tenham se reduzido a idas frequentes a velórios de estranhos e cemitérios. Sei que isso soará tolice, mas nunca gostei de mudanças bruscas. Acho que esses “passeios” dão-me certa autonomia, talvez uma forma de me sentir mais confortável. Eu também tendo a ser muito controladora e, apesar de não poder controlar ao todo o que acontecerá comigo e a forma como acontecerá, toda essa “preparação” me faz sentir que a morte, apesar de ser a maior incógnita da vida, não me pegará de surpresa.
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