TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA
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Violeta profundo e outros contos Copyright © 2016 by Anna Rosenrot
Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.
aquisições Cleber Vasconcelos
editorial Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda
edição de texto/arte Vitor Donofrio
capa Marina Avila
coordenação editorial Vitor Donofrio
revisão Equipe Novo Século
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1o de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Rosenrot, Anna Violeta profundo e outros contos Anna Rosenrot Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016. (Talentos da Literatura Brasileira) 1. Ficção brasileira 2. Contos brasileiros I. Título 16‑0969
cdd‑869.3
Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3
novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699‑7107 | Fax: (11) 3699‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br
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Para minha família, que tanto me apoiou; para Ingrid, Luana, Brenda, Vitória e Rebeca, com as quais pas‑ sei os mais magníficos momentos; para meus amigos do Colégio Mili‑ tar, especialmente Débora; para mi‑ nhas professoras Luiza, Aila e Irlane, e para os dois anjos presos em corpos que tanto amo, cuja nomeação é de tal poder que me faria derramar lágrimas sobre esta escrita.
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Sumário 1. Dúvidas de um condor •
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2. Ordinário e corriqueiro •
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3. Empatia paradoxal •
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A RUA DOS ANJOS DE TRÁS A FELICIDADE TEM PERNA CURTA
O PEQUENO CONTO DAS ANTÍTESES INVERTIDAS
4. Poesia de pouco verso •
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5. Prosa desajustada •
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6. Romance rúbeo •
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7. Tristeza elucidada •
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VIOLETA PROFUNDO A PERFEIÇÃO
NECROMÂNTICO
SANGUE DO MEU SANGUE
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8. Amor impossível •
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9. Metáfora oculta •
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10. Eclusa maldosa •
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11. Beleza conceitual •
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12. Seres ferrenhos •
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13. Filosofia despercebida •
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ISABELLA
LÁBIOS PANTANOSOS O TORSO DA GUERRA A PELE QUE TUDO SENTE
BAIXO OMBRO
A VIDA E A MORTE
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Dúvidas de um condor A RUA DOS ANJOS DE TRÁS
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O baque do papel que foi de encontro à madeira se fez ouvir, sincronizado ao breve bater de asas das gar‑ ças que dançavam seu voo matutino. O som era monó‑ tono e angustiante, rotineiro em demasia. Meu corpo regado a cansaço, estendido de maneira tacanha sobre o sofá, ergueu‑se paulatinamente, de modo a apanhar o pequeno jornal atirado contra a porta. As folhas cinzentas estavam geladas, tal qual esta‑ va o ambiente, e o frio harmonizava com o que, decer‑ to, alterara a vista de um modo violento: uma pequena placa cujos dizeres haviam sido reescritos. O que antes era a Rua das Almas tornara‑se um título codificado. AB‑17 era seu novo nome. Não que eu devesse re‑ moer a situação como fizera; a mudança não fora tão brusca num primeiro momento, e uma racionalidade indistinta suprimia‑me a ideia de uma certeza absoluta. Foi quando percebi a existência de algo indubi‑ tavelmente alarmante: uma muralha, erguida de um anoitecer a um amanhecer, a isolar a via. Em dado mo‑ 9
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mento, o que não passava de um pequeno e incômodo sentimento tornou-se sideral pânico. Um ruído metálico, como uma corrente de bicicle‑ ta, interrompeu meus devaneios. Reconheci o carteiro a passear, passando por mim. Seu pescoço estava dei‑ tado de modo a estender sua região frontal ao máximo de modo bizarro. Seu olhar azul não cruzava ou tocava o meu, o que me causou arrepios. Repentinamente, deu meia-volta e pronunciou palavras das quais jamais esquecerei: “Perdão, não o havia visto”, disse em um tom ro‑ botizado. “Obrigado por utilizar os serviços da AB-17, tenha um bom dia e seja bem-vindo à Rua dos Anjos de Trás”.
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Ordinรกrio e corriqueiro A FELICIDADE TEM PERNA CURTA
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Zumbido. Um zumbido terrível a pusera de pé àquela hora da madrugada. Era lascivo e irritante. Sentiu‑se quase que traída ao despertar de seu sono profundo, apenas para se aperceber das terríveis cólicas que precediam sua menstruação um tanto próxima. Suspirou ao notar que era somente uma pequena mosca de bruços para cima que se debatia com enorme esforço. Enfezada, esmagou‑a com seus pés descalços. O silêncio se fazia maravilhoso. Deitou‑se novamente. Mal teve tempo de escon‑ der‑se por sob os lençóis, novo ruído ecoou pelo ar. Este era diferente. Despertou nela uma agonia. Logo se foi, tão rápido quanto surgiu. Decidiu não dar im‑ portância. Andejou até a janela do quarto para observar o tranquilo amanhecer e quase engoliu a língua ao notar a reincidência do som. Estava mais alto. E deixava de ser abstrato para tornar‑se cada vez mais inteligível.
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Recuou rispidamente. Ela sabia o que estava acontecendo. O horror ruborizou-lhe a face com fer‑ vor, forçando-a a caminhar vagarosamente até chegar ao banheiro. Sobre a água que escorria a mofar as paredes e construir pequenas poças, ela observou seu reflexo. Vestia seu pijaminha predileto. O tórax era batido e côncavo, os seios estavam por nascer e a axila começava a exalar um odor estranho. Crescia aos poucos; devagar o suficiente para que não pudesse perceber as mudan‑ ças de imediato, mas tão rápido quanto lhe permitia a surpresa de se ver crescida em tão pouco tempo. Era alta, todos diziam. E macérrima. Os olhos azuis denunciavam-lhe o passado: era filha de gringo. Gostava de jogar pique-esconde e de andar de bi‑ cicleta. Gostava também de outro alguém; seu coração até batia mais rápido, como se estivesse correndo.
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Seus fios desgrenhados dificultaram sua fuga ao ficarem presos nas frestas do pequeno túnel por onde os dejetos da fossa subiam durante os temporais. Não havia esgoto por ali. Foi forçada a ignorar o fedor úmido e escaldante impregnado no concreto. Logo deixou a casa e correu pela viela detrás. Em meio a todos que ali fugiam, seus olhos encontraram os dela: a menina mais linda do mundo. E ela nem tinha olhos azuis ou cabelo loiro. Não que as galegas não fossem bonitas, longe disso, mas não havia beleza comparada à dela. Também estava à flor da idade, a pele escura e aveludada; os olhos brilhantes como a superfície de uma grande ameixa seca e os cabelos vo‑ lumosos e encaracolados. Foi ao encontro da negra e agarrou sua mão. Não precisavam dizer uma palavra para que se entendes‑ sem. Juntas, esconderam-se num beco. O céu estava cinzento, a anunciar a chuva, que fazia com que o la‑ 15
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maçal subisse acima dos seus calcanhares e talvez vies‑ se a desabar novamente suas casas e terrenos. Do alto do morro, a favela parecia pequenina... Viviam a se encarar na escola, porém nunca ha‑ viam conversado. Alguns dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras. Ela dizia que um olhar vale mais do que todos os dicionários do mundo. Em meio às lágrimas, sorriram. Em meio aos gri‑ tos, silenciaram seus lábios e, em meio aos caídos, elas se erguiam. Inefavelmente, beijaram-se. Entrelaçaram suas al‑ mas numa só através de todas as emoções. As mãos que corriam em sua cintura, as ameixas secas a encarar sua face e a vazão de lágrimas… Foram as últimas coisas que ela viu.
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