A literatura sai à rua em
Sexta-feira | 25 Julho 2014 | ipsilon.publico.pt
DUDA OLIVEIRA ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 8869 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Paraty A festa dos escritores começa na cidade brasileira
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4: Festa Literária Internacional de Paraty Uma cidade reinventada a partir dos livros 20: Milhões de Festa Um festival de músicos do mundo 24: Angélique Kidjo A diva que faltava a Sines 26: Emicida Rap com vista para o Brasil 28: Ricardo Rocha Um génio a multiplicar por quatro 30: Marina Abramovic Em casa com ela
Flash
Sumário
Programa para a rentrée do Maria Matos: música com cinema, Sun Ra e o terramoto de 1755 PEDRO LOURENÇO
Ficha Técnica Directora Bárbara Reis Editores Vasco Câmara, Inês Nadais Design Mark Porter, Simon Esterson Directora de arte Sónia Matos Designers Ana Carvalho, Carla Noronha, Mariana Soares E-mail: ipsilon@publico.pt
Nota editorial A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) é o mais importante festival literário brasileiro. Está na sua 12.ª edição, por lá passaram prémios Nobel e alguns dos mais emblemáticos escritores contemporâneos. Ali, os autores, e alguns deles têm sido portugueses, misturam-se na rua com os leitores. Levou ao surgimento de muitos festivais na América Latina e até já atravessou o Atlântico ao criar o festival literário Flipside, no Reino Unido. Este ano, numa parceria inédita, o PÚBLICO associa-se à FLIP e ao Instituto Moreira Salles, uma das instituições culturais mais importantes do Brasil. E assim, de 30 de Julho a 3 de Agosto, os dias da festa, os brasileiros vão poder ler este suplemento na sua versão impressa e em iPad — um dos conteúdos dessa aplicação é, por exemplo, um vídeo sobre Millôr Fernandes, o homenageado desta FLIP, que poderá ser visto também na “casa” do Instituto Moreira Salles em Paraty. 2 | ípsilon | Sexta-feira a-fe fe feira eira 25 5 Julho Ju Julh lho lh h 2014 20 2014 4
Filmes que deram e darão concertos; encontros desejados, finalmente concretizados e por fim recuperados; celebrações inescapáveis e novos sons para contar velhas histórias. Tudo no Teatro Maria Matos, em Lisboa, entre Setembro e o primeiro dia de Novembro. Será ali que o público mais a Sul
Os Shabazz Palaces voltam ao mesmo MusicBox onde se estrearam em Portugal em 2011
Shabazz Palaces no Jameson Urban Routes Um dos projectos que mais tem feito por esticar os limites do hiphop e do R&B, os americanos Shabazz Palaces, voltará a Portugal a 1 de Novembro. A banda de Ishmael Butler apresentar-se-á no MusicBox — onde se estreou em Portugal em 2011 numa memorável prestação ao vivo — no contexto do festival Jameson Urban Routes. Com dois álbuns
poderá ver o que andaram a fazer Peixe:Avião e Filho da Mãe & Jibóia no último Curtas Vila do Conde. Honrando a tradição do festival, inspiraram-se em imagens cinematográficas para criar música nova. Os Peixe:Avião retalharam e reconfiguraram parte da sua obra para acompanhar Ménilmontant, filme
editados — Black Up, de 2011, e Lese Majesty, que é lançado na próxima semana —, os Shabazz Palaces são autênticos alquimistas do som que nos últimos anos têm rebuscado nas margens do hip-hop, transformando-o em massa instável, elástica, agregadora. Ou seja, falamos de gente que pensa a música a partir de noções como espaço, tempo, plasticidade, temperatura e estruturas que fogem às convenções. O festival Jameson Urban Routes decorrerá entre 22 de Outubro e 1 de Novembro, tendo até agora confirmados Tim Hecker, Fujiya & Miyagi, Medeiros/Lucas, Future Islands, Moonface e Memória de Peixe. Vítor Belanciano
O Maria Matos vai dedicar o dia 18 de Outubro a Sun Ra, o lendário músico de jazz americano que faria cem anos em 2014
Fugas e escapadelas literárias em Chauvigny Desta vez, não haverá escritores nacionais presentes, mas a literatura portuguesa não vai deixar de ser ouvida, no início de Agosto, na inauguração do espaço da editora independente L’Escampette, em Chauvigny, França. O nome do novo espaço é L’Échappée, palavra que pode ser traduzida por “fuga” e é também o título de um dos livros mais
realizado por Dimitri Kirsanoff em 1926. Filho da Mãe juntou-se a Jibóia para responder com som a In the Land of the Headhunters (1914), que Edward S. Curtis, etnólogo e fotógrafo, filmou junto da tribo Kwakwaka’wakw. Os filmesconcerto terão lugar a 20 de Setembro. Uma semana depois, a 27, veremos como se concretiza em palco o encontro entre o veterano britânico Mike Cooper, pesquisador da guitarra em contexto folk e blues, músico progressista que juntou a electrónica ao apelo telúrico, e um seu fervoroso admirador, o americano Steve Gunn. Em 2013, tocaram em conjunto no Out. Fest, no Barreiro. Seguiu-se a gravação num estúdio lisboeta de Cantos de Lisboa e surgirão agora em palco composições como Saramago ou Pena panorama, num concerto em que o duo de guitarristas será acompanhado pela bateria de Afonso Simões (Gala Drop) e pelo violoncelo de Helena Espvall. Já em Outubro, dia 18, a celebração do 45.º aniversário do Maria Matos faz-se festejando uma data ainda mais redonda: 100 Ra. Por todo o teatro, o dia será dedicado ao mítico músico jazz que completaria este ano um século de vida. Entre as 16 e as 20h, Bruno Pernadas, Nuno Rebelo, os Gala Drop e Mo Junkie farão música para Sun Ra, inspirada em Sun Ra — iremos ouvi-la na sala principal, no café, no foyer. Nessa altura, Simon James Phillips estará já a trabalhar. O pianista australiano radicado em Berlim passará a temporada 2014/2015 em residência artística no Maria Matos. Dia 1 de Novembro, o de Todos-osSantos, aquele em que, em 1755, Lisboa sofreu o mais violento desastre natural da sua história, estreará no Panteão Nacional O Depois, peça para instrumentos de sopro inspirada no terramoto. Mário Lopes
Bienal de Guimarães quer recuperar a arte têxtil Chama-se Emergência e o assunto é tratado dessa forma: “Queremos incentivar as escolas a não abandonar o têxtil.” Ao perceber o protagonismo cada vez mais estreito dessa forma de expressão no ensino artístico em Portugal, a Contextile — Bienal de Arte Têxtil Contemporânea de Guimarães chamou as escolas Soares dos Reis (Porto) e António Arroio (Lisboa) e a Faculdade de Belas-Artes do Porto e lançou-lhes o desafio de organizarem uma exposição de trabalhos de artes têxtil dos seus alunos. Desse modo, os estudantes foram postos em contacto com o têxtil, que pode ser “matéria ou referência dentro de criação artística contemporânea”, defende Joaquim Pinheiro, director da bienal, que começa amanhã em vários espaços culturais de Guimarães. A exposição Emergência — que tem lugar no Instituto do Design da Universidade do Minho do bairro de Couros — é uma das novidades do certame, que quer devolver o protagonismo à arte têxtil depois de nos últimos anos “esta ter andado um bocado esquecida” em Portugal. Ainda assim, os artistas nacionais responderam positivamente à chamada para a segunda edição da Contextile, apresentando 51 candidaturas à mostra competitiva da bienal que decorre até 11 de Outubro. Foram escolhidos seis portugueses, entre os 50 criadores seleccionados pelo júri entre as mais de 260 propostas recebidas — um crescimento de cerca de 15% face à primeira edição que decorreu em 2012, no âmbito da Capital Europeia da Cultura. As obras da mostra competitiva poderão ser visitadas na Casa da
Memória e o melhor trabalho a concurso receberá um prémio de aquisição patrocinado pela autarquia. No palacete de S. Tiago — que acolhe a extensão do Museu de Alberto Sampaio, inaugurada depois de dois anos de diferendo entre a autarquia e a Secretaria de Estado da Cultura — poderá ser visto um dos grandes atractivos da Contextile, a exposição Fiber Futures — Japan’s Textile Pioneeers. A mostra é constituída por 35 obras de artistas pioneiros na criação com as chamadas “fibras do futuro”, usando, por exemplo, pasta de papel ou fibras sintéticas, mas também cânhamo ou cortiça. A escolha das peças foi feita pela International Textile Network Japan e a passagem por Guimarães está integrada numa itinerância internacional começada em 2011 e que se estende até ao próximo ano, com passagens por museus de São Francisco, Paris e Madrid. Além do Japão, a bienal de arte têxtil contemporânea de Guimarães convida artistas de outros três países para esta segunda edição. Lituânia, Estónia e Espanha vão mostrar uma selecção de alguns dos principais criadores contemporâneos que utilizam o têxtil como suporte para os seus trabalhos. Samuel Silva
A exposição Fiber Futures — Japan’s Textile Pioneers reúne 35 obras de artistas pioneiros na criação com estes materiais
PAULO PIMENTA
recentes daquela editora, de autoria de Lionel Bourg. L’Échappée, que resultou da adaptação da garagem da residência de Claude Rouquet, o criador da editora L’Escampette há mais de 20 anos, vai ser um espaço de encontros e de tertúlias. Mas também de venda dos perto de três centenas de títulos desta chancela, que, desde o início, tem dado uma grande atenção à literatura portuguesa. Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, Mário Cesariny e Al Berto, para citar apenas alguns, vão ser lidos no fim-de-semana de 8, 9 e 10 do próximo mês, no programa Fuga estival de L’Escampette. Actores, escritores ou apenas leitores vão dar voz a estes como a outros
Claude Rouquet começou por editar Nuno Júdice e Al Berto; hoje a sua editora tem mais de 30 títulos portugueses
autores convidados a festejar o novo capítulo na vida da editora de Claude Rouquet — e é certo que o próprio, que além da amizade tinha um outro vínculo “surrealista” com Cesariny (nasceram ambos a 9 de Agosto), não irá deixar de ler poemas do autor de Pena Capital. Em Outubro, muito provavelmente no dia 5, a assinalar a República, L’Échappée irá inaugurar mesmo um “canto” reservado à literatura portuguesa — representada na L’Escampette com mais de três dezenas de títulos, desde que no início da década de 1990 a editora foi lançada com livros de Nuno Júdice e Al Berto, depois de um primeiro guia sobre o Porto. S.C.A.
A salto para Melgaço
Houve um tempo — anos, décadas — em que muitos portugueses atravessaram Melgaço em direcção à fronteira com Espanha para dar o salto. em busca de uma vida melhor. As memórias da emigração, como as do contrabando, são ainda um património omnipresente neste que é o concelho mais a Norte no país — e que dedicou ao tema, de resto, o Espaço Memória e Fronteira, inaugurado em 2007. Dois anos antes, Melgaço tinha aberto outro museu, igualmente forjado no fenómeno da emigração — o Museu de Cinema Jean-Loup Passek, que reúne a fabulosa colecção de fotografias, cartazes, brinquedos ópticos e máquinas pré-cinema deste francês cinéfilo, programador e historiador da Sétima Arte que nos anos 1980 descobriu esta vila do Alto Minho pela mão de emigrantes locais com quem fizera amizade nos bidonvilles dos arredores de Paris. É este contexto histórico e patrimonial que levou a Câmara Municipal de Melgaço a lançar um festival de cinema documental a que chamou Filmes do Homem, e cujo “ano zero” vai acontecer já de 2 a 7 de Agosto. Pegar nas histórias da emigração e no acervo do Museu do Cinema e “dar o salto para construir alguma coisa ligada” a ambas as realidades foi a razão avançada pelo presidente da autarquia, Manoel Baptista, na apresentação do novo festival no início desta semana, no Porto. A organização foi entregue à associação Ao Norte, de Viana do Castelo, que, sob a direcção do documentarista Carlos Viana, programou esta primeira edição em volta do tema da emigração portuguesa em França. Na primeira semana de Agosto, e com uma aposta forte no fim-desemana de 2 e 3, o festival vai colocar “em foco” a obra de José
Le Drôle de Mai: Crónicas dos Anos de Lama, de José Vieira: o cineasta anda a documentar a vida das comunidades portuguesas em França desde a década de 80
Vieira, cineasta que desde a década de 1980 tem documentado a vida das comunidades portuguesas naquele país. Patrick Séraudie, Robert Bozzi, Pierre Primetens e Noémie Mendelle, ao lado de Catarina Alves Costa, João Pedro Rodrigues, Maria Pinto e Nuno Pires, são outros realizadores que estarão em Melgaço a apresentar os seus olhares sobre o mundo dos emigrantes — num programa que irá itinerar por algumas aldeias do concelho e também chegar à margem direita do rio Minho, na Galiza. A reforçar a atenção a este tema, o fotógrafo Gérald Bloncourt virá também acompanhar em Melgaço a exposição, com mais de uma centena de imagens Por Uma Vida Melhor. Simultaneamente, o Museu de Cinema mostrará cartazes do cinema português dos anos 1967/70. Em paralelo com a exibição de filmes, o festival vai também apostar na produção, pondo no terreno quatro equipas de jovens realizadores orientados por Pedro Sena Nunes. “Queremos contribuir para o arquivo audiovisual da região, e assim reflectir sobre a identidade, a memória e a fronteira”, justifica Carlos Viana, que anuncia, para a edição do próximo ano — se a primeira correr de acordo com as expectativas —, o lançamento de uma secção competitiva a atribuir o Prémio Jean-Loup Passek. Sérgio C. Andrade ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 3
Festa LiterĂĄria Internacional de Paraty Reportagem sobre uma cidade que s
Paraty, afestaemqueo
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e se reinventou a partir dos livros
e os escritores “acontecem” Cidade grande na época do ouro e da escravatura, refúgio de artistas e opositores no tempo da ditadura, esquecida pelo resto do Brasil durante décadas, renasceu há 12 anos com uma festa literária. Os maiores escritores do mundo bebem cachaça e percorrem as ruas de pedras irregulares ao lado dos seus leitores. Fomos perceber como é que uma cidade se reinventa.
Alexandra Prado Coelho (texto) e Duda Oliveira (fotos), em Paraty
Os turistas só conhecem o centro histórico de Paraty, as casas de portas coloridas, a água que regularmente invade as ruas empedradas — mas há outra cidade, com os seus problemas graves
A
Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) estava a acontecer e um rapaz que sonhava ser escritor percorria as ruas da cidade brasileira numa “motoca velha”, entregando comida. Fazia sempre de forma a passar perto da grande tenda onde alguns dos seus autores preferidos falavam para o público que enchia todo o espaço. O rapaz chamava-se Flávio de Araújo, era filho de pescadores da Praia do Sono, e sentia-se totalmente frustrado. “A maior festa literária da América Latina estava acontecendo no quintal de minha casa e eu não podia participar.” Distraído a pensar nisso, quase atropelou aquele que
era “um dos grandes nomes dessa edição”: o escritor e poeta britânico Benjamin Zephaniah. “Fiquei transtornado. Pensei: ‘pôxa, não posso ficar atropelando escritores com acebolados e parmiggianas’.” Percebeu que não dava mais para adiar. Decidiu “abrir mão da motoca velha” e mostrar os seus textos a alguém. Na verdade, Flávio até já tinha mostrado os textos — com algumas atrapalhações pelo meio, é certo. Depois de ter começado a sua relação com os livros “de forma criminosa” — “Roubava-os da banca de um amigo meu, e um dia a directora da escola foi-me buscar debaixo da cama por eu ter roubado 16 livros”
—, lançou-se na escrita. O único sítio onde poderia publicar era o jornal local de Paraty e, por isso, quando alguém lhe indicou o edifício, começou a deixar envelopes com textos debaixo do portão. “Esperei uma semana para ver o meu texto impresso, mas não saiu. Peguei em mais textos e voltei a enfiar por baixo da porta, esperei a semana seguinte e não saiu. O que está acontecendo? Peguei em mais um e, quando ia enfiar debaixo da porta, uma velhinha com mais de 15 cachorros e gatos abriu e falou: ‘Meu amor, é você que está deixando estes textos aqui?’”. Quando finalmente acertou com a porta do jornal, Flávio começou a ver os seus poemas publicados. Mas faltava-lhe o livro. E era nisso que pensava nesse ano, enquanto decorria a FLIP e ele tentava não atropelar escritores. Foi então que conheceu Ovídio Poli Junior. Mostrou-lhe os poemas — “Com muita reserva, ele puxando de um lado, eu segurando do outro” — e Ovídio disse-lhe: “O livro está aqui, cara!’”. Flávio de Araújo e Ovídio Poli Junior chegam de manhã cedo à Pousada do Ouro, na zona histórica de Paraty, para contar como, desde esse encontro em 2006, muita coisa mudou para ambos. Hoje, Flávio tem um livro publicado (Zangareio), Ovídio tem uma editora, a OffFlip (e também o seu próprio livro editado, O Caso do Cavalo Probo) e os dois organizam a programação literária da OffFlip, um evento paralelo à FLIP, com música, teatro, cinema, e que, só nas actividades ligadas à literatura, leva à cidade mais de ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 5
FLIP Reportagem sobre uma cidade que se reinventou a partir dos livros Crónica Isabel Coutinho
Na festa em que os autores levitam
S WALTER CRAVEIRO
Vista da plateia na Tenda dos Autores
e me contassem, não acreditava. Mas estava lá. E vi. Desde esse dia sei que na FLIP tudo pode acontecer. De uma hora para a outra um escritor português transformou-se em pop star. Queriam tocar-lhe, casar e ter filhos com ele. Aconteceu com Valter Hugo Mãe, em 2011, quando dividiu o palco da Tenda dos Autores com a argentina Pola Oloixarac. Ela fora eleita “a musa da FLIP” e a sessão dos dois estava marcada para o meio-dia, quando muitos ainda estão a acordar depois de uma noite de samba e cachaça. Ao responder a uma pergunta do público sobre a sua relação com o Brasil, o autor de A Máquina de Fazer Espanhóis leu um texto em que falava do casal de brasileiros que ofereceu uma ambulância ao quartel de bombeiros da vila onde cresceu e recordou o amigo brasileiro que lhe ensinou “a perder aquela vergonha que só atrapalha”. Emocionou-se, emocionou a plateia. Ficou quatro horas e meia a dar autógrafos. Dias antes tinha sido visto a chorar ao ouvir Elza Soares ao vivo, dias depois num barco na baía cantou o Fado de cada um e ainda foi visto a ler Kafka no terreiro do espectáculo Macumba Antropófaga, ao lado de um actor nu que declamava Florbela Espanca. Foi também na FLIP que o mau feitio de António Lobo Antunes foi amansado pelo jornalista e escritor brasileiro Humberto Werneck. Foi em 2009, estavam os dois a conversar no palco como se tivessem sido amigos a vida toda, e Humberto lembrou-lhe que numa entrevista à espanhola Maria Luísa Blanco o pai do escritor confessara que não lia os livros do filho e a mãe liaos contrariada. O autor de Não É Meia Noite Quem Quer emocionou-se ao contar que também pensava que o pai não os lera mas depois da morte dele encontrou os livros anotados e uma carta de centenas de páginas. No ano seguinte, Salman Rushdie dançou com o filho adolescente numa festa e não escapou a esta pergunta do público: “Você é um péssimo dançarino e não é muito bonito. Qual é o segredo para andar sempre com mulheres bonitas?” Respondeu: “Se lhe contasse, deixaria de ser segredo...” Mas o mais inesquecível foi ver leitores a subirem estruturas metálicas para assistirem a uma conversa sobre literatura. Aconteceu em 2009, durante a sessão de Chico Buarque e Milton Hatoum transmitida na Tenda do Telão, ao ar livre, para uma multidão de pé. Nesse ano, o autor de Leite Derramado, depois de quase ter “levitado” a atravessar a ponte no centro de Paraty, tal era a multidão que o amparava no caminho, viu pessoas em cima de árvores para o vislumbrar e leitoras a acotovelarem-se em filas gigantescas para, na confusão, caírem aos seus pés.
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cem autores por ano. E tem até um prémio. Se a FLIP tem, como pretende, um impacto duradouro em Paraty, são histórias como a de Flávio que melhor o revelam. Foi para isso que viemos até à cidade quase dois meses antes do início da festa, marcado para a próxima quarta-feira, dia 30 — para perceber como nasceu a FLIP e como é que ela se envolve com Paraty antes e depois de, no final de Julho, a onda de escritores de todo o mundo invadir as ruas empedradas e encher as pousadas e as praças. O primeiro ano foi 2003. “Tinha tudo para dar errado, ou pelo menos muita coisa”, resume o escritor Zuenir Ventura no livro Paraty é uma festa: dez anos de FLIP. A ideia inicial partiu da editora inglesa Liz Calder, que nos anos 90 se tinha apaixonado por Paraty, construindo aí uma casa, e sonhando criar um festival literário à semelhança do que existe em Hay-on-Wye, no País de Gales. Teve como cúmplices o brasileiro Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, e o arquitecto Mauro Munhoz, que, além de ter projectado a casa dela em Paraty, tomou a seu cargo a organização da festa. E, apesar de “ter tudo para dar errado”, a primeira FLIP aconteceu, e levou até Paraty nomes como Millôr Fernandes, Luís Fernando Veríssimo, Luiz Ruffato, Ferreira Gullar, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Caetano Veloso, ou Chico Buarque. E ainda aquele que foi uma das grandes estrelas da edição, o historiador britânico Eric Hobsbawm, que no livro de comemoração dos dez anos da festa aparece numa fotografia a comprar doces rodeado de frascos coloridos de rebuçados e chupachupas. A primeira festa tornou-se mítica, recorda Zuenir Ventura no seu texto. “‘Como ela, nunca mais’, passouse a dizer. Tempos depois, o escritor Sérgio Rodrigues fez a crónica nostálgica de um ausente. “Eric Hobsbawm foi visto correndo atrás de borboletas utópicas, bois passavam voando, e a água benta das igrejas era puro Paraty. De tanto ouvir os relatos de quem esteve lá — pessoas saudosas que talvez exagerem um pouco —, eu acredito que era exactamente assim.”
Depois da estrada Há, de facto, alguma coisa de mágico em Paraty. Sempre houve, desde o tempo “antes da chegada da estrada” — a rodovia Rio-Santos chegou no início dos anos 70 —, em que, depois da queda do comércio do ouro e dos escravos, esta era uma cidade esquecida do mundo, refúgio paradisíaco de intelectuais, artistas, e opositores políticos da ditadura. Filho de uma família de Minas Gerais que migrou para aqui no final da década de 50, o músico Luís Perequê nasceu nessa Paraty que “era quase uma ilha, onde você chegava
de barco vindo de Angra dos Reis ou pelas trilhas vindo do estado de São Paulo”. Muitos migrantes, como a família de Perequê, vieram nessa altura para ocupar as terras das fazendas que tinham sido abandonadas no final do período da escravatura. “Todo o mundo foi embora, e as fazendas ficaram caindo aos pedaços”, conta o músico. “Nesse lugar onde nasci, me lembro das ruínas de uma fazenda e eu, criança, brincava nelas.” Os novos habitantes procuraram formas de sobreviver. “O meu pai trouxe de Minas os hábitos de tropeiro. Quando chega aqui, o que vê como oportunidade de negócio é ainda o transporte, e então tinha uma tropa que fazia o transporte pelas trilhas, levava cachaça de Paraty para Ubatuba, uma semana, 15 dias, viajando, e voltava trazendo peixe seco que as comunidades produziam mas não tinham onde vender.” Com a construção da Rio-Santos, tudo mudou. “Começa a era turística, que põe a gente de volta no cenário brasileiro”, diz Perequê. Os antigos proprietários que tinham abandonado as terras viram-nas valorizar-se e quiseram recuperálas, houve gente expulsa e nasceram então problemas sociais como os que ainda hoje se vêem num bairro como a Ilha das Cobras — não por acaso o escolhido pela Associação Casa Azul, organizadora da FLIP, para se instalar, com a sua biblioteca e o seu centro, base de onde parte um trabalho mais profundo com as comunidades locais. Já iremos conhecer a Casa Azul, e a Belita, que a dirige, mas primeiro é preciso conhecer um pouco mais da história de como Paraty chegou até aqui. E Luís Perequê conta-a melhor do que ninguém. Para além dos migrantes mais antigos, expulsos para bairros periféricos da cidade, há também “os milhares de homens de tudo quanto é canto do país” que, terminada a construção da auto-estrada, ficam por aqui e criam outros bairros, como o da Mangueira. Estas realidades juntam-se com os tais artistas e fugitivos do regime militar. “Em plena ditadura, aqui tem uma vida cultural, os cineastas, os poetas, o movimento hippie estava no auge, e havia muita música, muita festa nas praças. Isso foi a minha adolescência.” Na altura em que o Ípsílon passou por Paraty, uma exposição na Casa da Cultura mostrava bem o que foi esse momento único. Esta é a vida que eu quis, da fotógrafa Nair Benedicto, reúne uma série de retratos de figuras da Paraty dos anos 70, numa espécie de último registo de um mundo em desaparecimento. Aí conhecemos desde a Tia Geralda, “descendente dos Alvarenga e Corrêa, fabricantes de cachaça, [que] recebia em sua casa todos os que a procuravam”, ao Gabriel Arcanjo, cabelo aos caracóis, chapéu de cowboy, mala de cabedal, “o James
Luís Perequê Filho de uma família de Minas Gerais que migrou para Paraty no final dos anos 50, o músico Luís Perequê assistiu à chegada do turismo, de que a cidade se tornou hiperdependente, correndo o risco de se tornar o cenário perfeito para eventos que ficam um fim-de-semana, desmontam a tenda e vão embora
Flávio de Araújo Nascido numa comunidade de pescadores da Praia do Sono ligada à cultura caiçara, Flávio de Araújo tornou-se escritor também por causa da FLIP. Hoje tem um livro publicado (Zangareio) e organiza, com Ovídio Poli Junior, a programação literária da OffFlip, um evento paralelo à FLIP que leva à cidade mais de cem autores por ano
Dean rebelde de Paraty”, passando por Diuner Mello, “conhecido pelas suas túnicas indianas e bolsa a tiracolo”, por Nair Fernandes, vestida de noiva, “eterna virgem, candidata a um casório”, ou por Júlio Paraty, “pintor primitivo”, fotografado nu, semi-escondido pela folhagem. Começava então a haver algum turismo, mas ainda tímido. Só que, de tímido, este passa a agressivo, e a cidade adapta-se a ele — demasiado, segundo Perequê. “Começou a fazer-se tudo para trazer os turistas, para nos tornarmos um lugar visitado.” E isto preocupa-o. “O turismo pode ser a indústria do nada, as pessoas páram de fazer as coisas porque o lugar vira turístico. Paraty é hoje uma cidade que não produz nada, quando antes era uma produtora de farinha, de cana, de banana. Não houve uma política de valorização
“Paraty vivia um problema de sazonalidade muito grande: só entrava dinheiro no Verão, e a certa altura a gente percebeu que não adiantava mais falar de teoria, era preciso que alguma coisa mudasse” Mauro Munhoz, director da FLIP
do fazer, ninguém disse ‘se você faz doce de banana, continua a fazer, porque o turista vai querer ver o seu doce de banana, não vai vir só para você o levar para onde antes existia um bananal’.”
Vontade de fazer coisas Passa (também) por ideias como esta uma reflexão mais profunda sobre para onde vai Paraty. Reflexão que é feita (também) durante a FLIP porque, tal como Luís Perequê, Mauro Munhoz, o director da festa, preocupa-se com a relação entre esta e o território. “Frequento Paraty desde os anos 70”, conta. “Era um lugar de difícil acesso, e marcou em mim essa impressão de cidade perdida no tempo. Como ficou isolada 130 anos, desde a década de 50 do século XIX até aos anos 70 do século XX, ficou muito preservada,
mantendo saberes e fazeres. E mantendo-se distante do que estava acontecendo, principalmente na época da ditadura, criou uma circunstância muito especial de resistência, de lugar de liberdade e de ligação entre diferentes, com os locais e as pessoas de fora misturados.” O artista Júlio Paraty é um exemplo disso. “A Djanira [da Motta e Silva] é uma das pintoras importantes do movimento modernista, da Semana da Arte Moderna, de 1922, em São Paulo. O irmão tinha problemas sérios com a ditadura e ela tem depoimentos dizendo como era importante essa casinha que tinha em Paraty, como era um espaço vital para sair daquela situação de pressão. O Júlio Paraty, filho de um artesão local que um dia foi fazer uma obra a casa da Djanira, aprendeu a pintar com ela nos anos 60.”
Mais tarde, já nos anos 90, a ligação de Mauro com a cidade tornouse mais profissional. “Fui chamado, enquanto arquitecto, para fazer um projecto, mas surgiram dificuldades e ele não avançou.” Tinham ficado, no entanto, os contactos com os responsáveis locais e a vontade de fazer algo. A ideia de que nem tudo tinha de depender do Estado e de que a sociedade podia organizar-se e assumir algumas responsabilidades começou a crescer nesses anos de muitos debates e alguns confrontos. Mauro foi compreendendo melhor os problemas dessa cidade da qual os turistas só conhecem o centro histórico, as casas de portas coloridas, as pousadas de pacatos jardins interiores, a água que regularmente invade as ruas empedradas numa convivência antiga, e pacífica,
com os moradores, como se estivéssemos numa Veneza deslocada no espaço. Mas quando se sai desse centro histórico encontra-se outra cidade, feita de bairros como a Ilha das Cobras, que ficam para lá da zona à qual o arquitecto chama “o nosso Muro de Berlim”, e a que outros chamam pomposamente “o aeroporto”. Trata-se, na verdade, de um campo aberto para os aviões privados poderem pousar. Essa faixa de terreno divide Paraty ao meio, e mantém o centro histórico longe dos problemas de droga e violência — recentemente houve registo de seis assassinatos numa única semana. Não pensar a cidade com todos os seus problemas e contradições era algo que não fazia sentido para Mauro. “Era preciso pensar de uma maneira inteligente essa evolução do território em constante mutação.” Paraty estava a tornar-se uma cidade de veraneio, e essas são geralmente “cidades que durante umas décadas se sustentam e depois acabam naufragando numa espécie de entropia económica”. Além disso, “Paraty vivia um problema de sazonalidade muito grande: só entrava dinheiro no Verão, e a certa altura a gente percebeu que não adiantava mais falar de teoria, era preciso que alguma coisa mudasse”. Perceberam que era a cultura que fazia falta “nesse contínuo processo de transformação do território”. A festa literária nasceu aí. Isabel Costa Cermelli, mais conhecida como Belita, esteve lá desde o início. Na época em que tudo começou, era casada com Mauro, e desde esse ano inaugural de 2003 tornouse a directora executiva da Casa Azul, a associação criada para organizar a FLIP, mas sempre em ligação com a cidade. É na sede da Casa Azul, desde o final de 2012 na Ilha das Cobras, que a vamos encontrar. É mesmo uma casa pintada de azul, e de várias outras cores, com uma biblioteca cheia de livros, sobretudo dos autores que já passaram pela FLIP e, no dia em que o Ípsilon por lá passou, com algumas crianças do bairro a brincar. “Quando pensámos o festival literário foi já com uma estratégia — tinha de ser algo que a população entendesse”, recorda Belita. A primeira edição foi o tal furacão, em que tudo foi muito maior do que inicialmente se tinha imaginado. “A gente fala que foi um bebé que nasceu de barba e bigode”, diz, sorrindo. Esse sucesso inicial obrigou a que os outros projectos ficassem “estacionados” por alguns anos. A primeira biblioteca foi montada em 2005, mas desde a edição inicial começou o trabalho de envolvimento das escolas e dos professores. Hoje, essa é uma das principais apostas da FLIP. Belita tem em cima da mesa o Manual Flipinha 2014, feito para apresentar os autores que vêm à festa, explicar os livros de cada um e aju-
dar os professores a trabalhá-los da melhor forma com as crianças. Para que tudo culmine na Flipinha, altura em que os alunos saem também para as ruas de Paraty, pondo em prática o que aprenderam e, em muitos casos, tendo a oportunidade de conhecer pessoalmente os escritores que andaram a descobrir nos meses anteriores. “Queríamos usar este programa educativo, que se transformou na Flipinha, numa ferramenta de mobilização para a comunidade paraense se relacionar com a FLIP. Já passaram aqui cerca de 700 professores para trabalhar os autores que virão este ano”, explica, sentada no pátio exterior no cimo da Casa Azul. “Quando aconteceu a primeira FLIP havia três bibliotecas públicas em Paraty; hoje há 30, entre bibliotecas escolares e comunitárias. A gente trouxe quase 30 mil livros para a cidade.” E que impacto tem tudo isto na população? “O livro virou algo que para o paraense hoje é familiar, querido. Até as lojas de brinquedos começam a ter livros.” E há uma geração que cresceu com a FLIP — crianças que participaram na Flipinha e que hoje, já jovens, fazem parte da Flipzona, mais ligada ao trabalho com as redes sociais, o audiovisual, a produção cultural, incluindo a cobertura mediática da FLIP. Belita acredita que há uma influência real. “Aqui no bairro há problemas de tráfico, de prostituição. Mas os meninos que frequentam a biblioteca, não há nem chance de irem por aí.” Para além da leitura, há oficinas que as crianças podem frequentar quando não têm aulas, com temas como filosofia, música, artes, criação. E também, para os mais velhos, preparação para o exame nacional do ensino médio. A mudança da Casa Azul da zona do centro histórico para a Ilha das Cobras foi muito importante. “Quando viemos para cá, pensámos ‘como vamos ganhar a confiança das pessoas?’”, conta Belita. “A gente ficou bem atenta. Passamos na rua com um sorriso, perguntamos ‘já foi lá conhecer a biblioteca? Leva lá os seus filhos’.” Numa mesa junto às estantes de livros está Clélia Botelho, lendo com um menino. Tal como Flávio Araújo, o motoboy-escritor, Clélia viu a sua vida mudar por causa da FLIP. Fazia limpeza na Casa Azul e às vezes ficava a espreitar um livro ou outro. Quando lhe perguntaram se gostava de ler, respondeu: “Pôxa, sou apaixonada por livro.” Perguntavam-lhe então porque não tirava um curso. “E eu dizia: ‘passei da idade’.” Mas a actual patroa na casa onde trabalha insistiu: “O que é que você quer da vida? Quer ser sempre faxineira?”. E foi assim que Clélia — que tinha estudado patologia clínica e que decidira trabalhar a dias por não aguentar a vida no hospital, onde se ligava aos doentes e sofria demasiado — decidiu, já com os fiípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 7
FLIP Reportagem sobre uma cidade que se reinventou a partir dos livros DUDA OLIVEIRA
lhos criados, voltar a estudar. Com a ajuda do curso da Casa Azul, conseguiu entrar na Faculdade de Pedagogia e, melhor do que tudo, todas as terças e sextas vai ao hospital municipal para visitar as crianças que estão internadas e ler para elas. “Da primeira vez que chego e falo de livros ninguém quer ler, aí eu começo a brincar, a perguntar onde é que a criança mora, e vou abrindo um espaço. Sou a tia da biblioteca, a tia da leitura, quer que eu leia? E eles falam que não. Mas tenho sempre um truque na manga, levo aqueles livros-brinquedo, que têm paisagens, abro e elas já se interessam. Aí, se eu levo 30 livros, elas querem os 30, e às vezes passa da hora”, conta Clélia. Fala numa voz doce, suave, e quase se comove quando lembra o dia em que tinha outro compromisso e não podia ir ao hospital, mas havia um menino que não lhe saía da cabeça e, mesmo fora de hora, acabou por ir. “Quando cheguei na esquina, ele estava debruçado da janela, esperando, e falou ‘Tia! Você veio!’. Não tem nada que pague isso.” Por isso ela vai sempre, segura a mão do menino que tem medo de levar soro (“ele, apertando a minha mão, nem lembrou de gritar”), visita a menina que foi operada, substitui a mãe quando esta sai do quarto para chorar. E à noite, de volta a casa, estuda para terminar o seu curso e, talvez, depois, seguir para a pós-graduação.
Beber a água toda A FLIP está mais uma vez a chegar, e muito do trabalho que se faz durante o ano vai culminar em mais uma festa, que, durante alguns dias, transforma Paraty. Mas o sucesso da FLIP não significa — antes pelo contrário — que os seus organizadores não continuem a pensar a cidade. Foi precisamente numa das mesas redondas da festa, na edição de 2008, que o músico Luís Perequê lançou uma ideia provocadora: e se se instituísse um período de defeso cultural? Ele explica: “Com a festa literária, você resolveu com uma classe incrível o problema da baixa temporada. Mas aí entra a ganância e a cidade começa a querer mais, mais, mais. Todos os outros eventos nasceram depois. Até um festival de rodeo se tentou fazer aqui, imagina, numa cidade que só mexe com peixe. A gente descobriu a nascente e ninguém falou que era preciso fazer fila para tomar a água, e que se saltasse todo o mundo dentro da nascente a água ia ficar suja e mais ninguém ia poder beber. Foi isso que nós fizemos. Pulámos dentro da fonte para beber toda a água.” A proposta do defeso cultural é inspirada no defeso, o período de pausa que os pescadores respeitam para dar tempo a que o peixe se reproduza novamente e evitar a extinção. “Toda a gente gostou muito da ideia. 8 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
Sabe qual é a maior dificuldade de Paraty hoje? É arranjar um fim-desemana livre para você fazer um evento. O capital tem pressa e a cultura tem o seu tempo, e não se encontram de jeito nenhum.” O que Perequê argumenta é que se uma cidade não tiver tempo para viver as suas próprias tradições culturais, ela irá transformar-se apenas num bilhete-postal, um cenário para os eventos que vêm, ficam um fim-de-semana, desmontam a tenda e vão embora. “E não venham dar oficinas em troca, é um engano de contrapartida. É o mesmo que você dizer ‘vou fazer um evento na sua casa e lá no final vou fazer uma oficina de lavar a louça’. É isso que os outros eventos fazem. O que eu digo é ‘se envolva com a vida da cidade, não chegue na véspera, me contrata e vai embora’.” A FLIP encontrou um modelo. É, explica Ovídio Poli Junior, o editor, uma festa mais centrada nos escritores do que nos livros. “Eles mudaram o foco da literatura e do livro para o autor. Tem muita gente que critica essa coisa do espectáculo, mas transformar a literatura em espectáculo num país onde a maioria da população não lê é muito importante. E o mais importante é o potencial que a FLIP gerou no Brasil; ao longo dos anos eu vi várias festas serem pensadas aqui em Paraty.” “Há de facto um culto da personalidade”, concorda Flávio de Araújo. “Quando o escritor é uma figura pública, isso é inevitável, mas se chama a atenção para a literatura é bom”. No caso dos escritores (e também arquitectos) portugueses que ao longo dos anos têm passado pela FLIP, “a conexão com o público é extremamente forte”, conta Mauro Munhoz. “Foram sempre momentos extremamente ricos e de muita envolvência com o público”, de Lobo Antunes a Valter Hugo Mãe, passando pelo arquitecto Eduardo Souto de Moura, que, no ano passado, “gerou uma enorme empatia”. O jornalista cultural Paulo Werneck, curador da edição deste ano da FLIP (os curadores mudam todos os dois anos), explica a sua perspectiva: “Ninguém está exigindo que sejam entertainers, que façam comédia stand-up. Mas é um palco, tem a ver com performance, e isso não é motivo de vergonha. Existe uma curiosidade dos leitores por conhecerem os escritores, a presença física é em si, em muitos casos, uma coisa deslumbrante.” Mas, reconhece, nem todos têm esse feitio. “O [ J.M.] Coetzee apenas leu um conto e dirigiu duas palavras ao público fora dessa leitura, que foram ‘boa noite’. Mas a presença dele basta. A gente convida os escritores para que eles aconteçam, para que cheguem aos leitores deles. Os que são reclusos são reclusos. Eu adoraria que o Herberto Helder viesse à FLIP, mas sei que não virá, como acontece com vários outros, que recusam a
Clélia Botelho Ex-médica, Clélia Botelho fazia limpezas na Casa Azul, a associação criada para organizar a FLIP e desenvolver um trabalho de fundo com a comunidade, quando lhe perguntaram se gostava de ler. Com a ajuda da instituição, conseguiu entrar na Faculdade de Pedagogia; entretanto, e duas vezes por semana, lê para as crianças internadas no hospital municipal
Ovídio Poli Junior Editor (fundou a OffFlip em Paraty), Ovídio Poli Junior acredita no potencial transformador da FLIP, para além do show-business associado: “Tem muita gente que critica, mas transformar a literatura em espectáculo num país onde a maioria da população não lê é muito importante”
dimensão performática da literatura.” Este ano, tal como já foi em parte o ano passado, a festa será marcada por uma certa convulsão política que tem agitado o Brasil. Werneck, que não quer fazer uma “curadoria personalista”, pretende contudo reforçar o lado do debate de ideias, através de discussões ligadas a problemas do quotidiano, da privacidade na Internet à comida ética e saudável, passando pelo amor e pela paixão. “O Brasil vive um momento de muita politização, mas não trazemos para aqui uma política partidária, e sim uma política do século XX. Seria impossível fazer a FLIP sem política, não seria uma festa digna do nome de festa literária.” Para o escritor Flávio de Araújo, a FLIP foi um mundo que se abriu para um rapaz nascido numa co-
munidade local de pescadores e ligado à cultura caiçara, que caracteriza estas comunidades. Hoje, acredita que por tudo isto as novas gerações podem vir a ter outra relação com a leitura, mas acha também que “há uma cobrança muito grande sobre a FLIP para a criação de leitores”, quando essa cobrança “deve ser requerida é às políticas públicas para a leitura”. O mesmo diz Ovídio: “A FLIP é uma ONG. O grande problema é que não existe uma política pública para a cultura na cidade, existe uma política de eventos, patrocinados pelo Estado e que são na sua maioria para os turistas.” Mauro Munhoz diz também que a Casa Azul “está fazendo a sua parte”, mas isso não dispensa a necessidade de políticas públicas. “Você imagina o que é para cada criança
de Paraty que passa pelos programas de incentivo à leitura ver o Amos Oz ir à Flipinha falar sobre literatura? Imagina o potencial transformador disso? Paraty é hoje uma cidade diferente por ter tido essa experiência.” Por isso, se passar por Paraty entre a próxima quarta-feira, dia 30, e 3 de Agosto, espreite nas tendas à beira da água para ver os escritores a falar, veja se algum deles sai a correr atrás de borboletas utópicas, se passam bois a voar e se a água benta das igrejas se transforma em cachaça. Mas, sobretudo, tenha cuidado ao atravessar as ruas de grandes pedras irregulares. Olhe sempre para os dois lados, não vá dar-se o caso de ser atropelado por algum rapaz carregado de pizzas, de cabeça no ar, sonhando um dia ser escritor.
FLIP Millôr Fernandes
Millôr, o grande matchmaker da relação de humor BrasilPortugal Humorista furibundo, pistoleiro da frase curta e paradoxal: Millôr Fernandes é o homenageado na FLIP. Eis o que quase nenhum brasileiro sabe e poucos portugueses lembram: durante uma década, em plena ditadura salazarista, Millôr teve uma página de humor no jornal português Diário Popular. Por Kathleen Gomes
L
Entre Setembro de 1964 e Abril de 1974, sempre às quartasfeiras e sempre na página 17, Millôr Fernandes fazia a sua aparição semanal no Diário Popular
er Millôr Fernandes hoje, em Portugal, é assunto sério. Esqueçam a Internet e o seu contrabando cultural — ela é inútil neste caso. A leitura de Millôr tem de ser presencial, como no tempo em que tudo era ao vivo. Ela implica fecharmo-nos numa sala com um bando de desconhecidos solitários num silêncio civilizado; mas antes disso é preciso deixar todo o mundo para trás e todos os pertences num cacifo, e depois disso é preciso esperar que um funcionário da Biblioteca Nacional erga uma barricada na nossa mesa com pesados volumes de jornais antigos. É um trabalho duro, engarrafar o riso diante de uma página de Millôr, mas lembre-se: todas as outras pessoas na sala de leitura estão a divertir-se menos do que você. Que o acesso a Millôr Fernandes seja exigente, como matéria preciosa deve ser, não surpreende. Que permaneça quase secreto não é punível por lei, mas devia ser. Até porque continua jovem, Millôr: “Biquíni é essa coisa que
começa de repente e acaba subitamente.” “Inúmeros artistas contemporâneos não são artistas e, olhando bem, nem são contemporâneos.” “Se é gostoso faz logo, amanhã pode ser ilegal.” “Uma coisa, pelo menos, é positiva: a violência no mundo inteiro aumentou consideravelmente nosso conhecimento de Geografia.” Eis o que quase nenhum brasileiro sabe e muito poucos portugueses lembram: durante quase uma década, num arco que vai de Setembro de 1964 a Abril de 1974, Millôr Fernandes, humorista carioca e furibundo, foi o grande matchmaker da relação BrasilPortugal. Sempre às quartasfeiras, e sempre na página 17, o homenageado desta edição da FLIP publicou uma página semanal de textos e desenhos humorísticos no vespertino português de maior audiência naquele período, o Diário Popular (o slogan do jornal, impresso em letras vermelhas e capitais acima do nome, era: “O jornal de maior expansão no mundo português”), num total de quase 500 números. Chamava-se O Pif-Paf, como um conhecido jogo de cartas de origem brasileira, mas também podia ser a interjeição de um mágico profissional no momento em que faz o seu truque ou a onomatopeia de um tiro (em polaco pif-paf é o mesmo que bang-bang). O Pif-Paf de Millôr Fernandes era tudo isso: um jogo com o leitor, um passe de mágica com a língua portuguesa, uma prova de pontaria nas suas críticas à civilização humana. Millôr escrevia e desenhava, não necessariamente por essa ordem, e fazia o leitor rir e pensar, não
Salazar terá uma vez comentado a página de Millôr Fernandes no Diário Popular com um dos seus assessores, dizendo: “Este tem piada, pena que escreva tão mal o português”
necessariamente por essa ordem. O Pif-Paf começou por ser uma secção na revista brasileira O Cruzeiro, produzida por Millôr, sob o pseudónimo de Emmanuel Vão Gôgo, juntamente com o ilustrador Péricles Maranhão, entre 1945 e 1963 (a partir de 1955, Millôr assumiu sozinho a produção). Portugueses de uma certa geração conheceram O PifPaf ainda nesse período: José Alberto Braga, que mais tarde viria a trabalhar n’O Pasquim — um semanário humorístico, de oposição à ditadura militar brasileira — a convite de Millôr, lembra-se de receber O Cruzeiro em Braga, enviada pelo seu tio do Brasil. “Identifiquei-me logo com Millôr e o seu humor reflexivo — não é o humor só pelo humor”, diz, via Skype, em directo do seu apartamento em Botafogo com vista para o Pão-de-Açúcar. Ferreira Fernandes, 40 anos de jornalismo, autor de uma crónica diária no Diário de Notícias, vivia então em Luanda, Angola, onde a sua mãe comprava duas revistas brasileiras, Manchete e O Cruzeiro. “Foram o meu curso superior de jornalismo, que tirei até aos oito anos. Mas foi mesmo. Em reportagens, em colunistas e em humor também. O que o Millôr escrevia na Cruzeiro era um português novíssimo para a escrita jornalística. Era irónico, imaginativo, saltava do carcan [“opressão”, em francês] do nosso jornalismo.” Millôr é demitido pela direcção da O Cruzeiro num editorial de primeira página em Outubro de 1963, após 25 anos na revista (“Sinto-me um navio abandonando os ratos”, comentou na altura), e em Maio de 1964 lança O Pif-Paf, uma publicação satírica e pioneira na imprensa alternativa brasileira que dura apenas três meses e oito números apesar da sua popularidade, uma existência abreviada pela censura da ditadura militar, que manda fechar a revista. O primeiro número de O Pif-Paf no Diário Popular é publicado apenas um mês depois, a 30 de Setembro de 1964 — anunciado na primeira página do jornal: “Não deixe de ler hoje na 17ª página a famosa secção humorística PIF-PAF (Cada exemplar é um número e cada número é exemplar) De Millôr Fernandes (Um escritor sem estilo)”
E a língua sambava As circunstâncias da ida de Millôr Fernandes para o Diário Popular carecem hoje de comprovação porque a maior parte das pessoas que as poderiam esclarecer desapareceram ou simplesmente porque a memória é selectiva. ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 9
FLIP Millôr Fernandes DAVID ZINGG/ ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES
Francisco Pinto Balsemão, fundador do semanário Expresso e da estação de televisão SIC, que era secretário de redacção no Diário Popular — jornal que, aliás, pertencia à sua família — já não se lembra de como O Pif-Paf começou a ser publicado ali (“Não foi através de mim. Podia estar agora aqui a tirar louros, mas não é verdade”). Mas não esquece o seu primeiro Carnaval no Rio, nos anos 1960, na companhia de Millôr: “Acabámos na quarta-feira de Cinzas a tomar banho em casa da Florinda Bulcão, uma actriz que estava completamente na moda naquela altura, muito gira. O Millôr era assim, bastante acelerado. Mas muito simpático.” Numa entrevista à revista Cadernos de Literatura Brasileira em Julho de 2003, Millôr Fernandes contou que o convite do Diário Popular o salvou — é verdade que entre 1964 e 1967 praticamente só escreveu teatro, entre peças originais, traduções e adaptações, no Brasil. “Eu tenho a maior simpatia por Portugal. Até porque eles me salvaram a vida. Depois de 1964, quando saí d’O Cruzeiro, fiquei na miséria, devendo dinheiro, ainda que eticamente me sentisse aliviado. Um dia, chego aqui, e vocês não vão acreditar, tinha uma cartinha embaixo da porta. Abri, era de Portugal, do Diário Popular. Estavam me oferecendo fazer uma colaboração e ganhar o equivalente a mil dólares por mês. O Diário era o jornal mais lido do país, vendia 180 mil por dia. Pedi 5.000, acabei fechando por 3.000 dólares. Aí eu peguei a prancheta, fiquei até de madrugada, mandei três desenhos para lá. Uma semana depois, chegam aqui 2.000 dólares; na semana seguinte, mais 2.000 dólares e, na outra, mais 2.000. Mandaram 6.000 dólares. Salvaram a minha vida naquele momento.” Baptista-Bastos (BB), 81 anos, 60 de jornalismo, clama ter sido ele quem sugeriu o nome de Millôr depois de um dos administradores do Diário Popular constatar que faltava humor nas páginas do jornal. BB conhecera Millôr em Março de 1964, numa viagem ao Rio, na companhia do humorista e actor português Raúl Solnado, que também viria a tornar-se amigo do brasileiro. “O Millôr ganhava por página 12 contos, 12 mil escudos. Era uma coisa fabulosa”, diz BB. “Por exemplo, os redactores qualificados — eu pertencia a esse grupo — ganhavam cinco contos por mês.” Uma ironia, que carece de explicação: censurado pela ditadura brasileira, Millôr destila o seu humor satírico, subversivo, marialva e negro com regularidade semanal, durante dez anos, no jornal português de 10 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
maior circulação, e em plena ditadura salazarista. O humorista brasileiro gostava de contar um episódio apócrifo, que parece um daqueles paradoxos genuinamente pif-pafianos: o ditador português, Salazar, terá uma vez comentado a página de Millôr no Diário Popular com um dos seus assessores, dizendo “Este tem piada, pena que escreva tão mal o português”. Baptista-Bastos diz que Millôr mandava versões alternativas, para o caso de a censura portuguesa aplicar cortes na sua página. Ferreira Fernandes nota que nesse período Millôr já acumulara uma vasta experiência em jornais. “Ele entra para os jornais muito cedo, nos anos 40. Nos anos 60 já é um macaco velho, sabe o que está a fazer. Ele não fala da guerra colonial portuguesa. Falará de outros imperialismos, em particular o americano, e isso não incomodaria o Estado Novo, que era bastante anti-americano também.” De resto, Millôr é também anti-comunista, como o regime salazarista. É possível que a ditadura portuguesa tenha achado que não era nada com ela, quando Millôr escrevia parábolas sobre soberanos que desconhecem ser o homem mais feio do mundo por falta de espelho. Não era esse lado corrosivo, aplicado à realidade portuguesa, que Ferreira Fernandes buscava no Pif-Paf. “O que me interessava não era a ideologia, mas a manipulação da língua que ele fazia. Entra aí uma inveja absoluta do tipo que vive de escrever e inventar português com a liberdade que ele o fazia”, diz. “Não me lembro se eu gargalhava com ele. Lia uma frase e pensava: ‘Tomara eu’. Provavelmente era o que eu dizia excessivamente.” João Pereira Coutinho, 37 anos, colunista no Correio da Manhã e na Folha de São Paulo que elege Millôr como uma influência (“Eu não escreveria se não fosse o Millôr Fernandes”), sintetiza assim: “Ele torna a língua portuguesa de tal forma maleável que ela parece que está a sambar.” Já agora, um recado dele para os que defendem que Millôr podia ter sido mais famoso, se não estivesse limitado pela língua: “Quando os brasileiros lamentam ‘que pena termos sido colonizados por Portugal’ quando pensam em termos de grandeza, lembro-me sempre de uma frase que Seixas da Costa [antigo embaixador de Portugal no Brasil] dizia: ‘Vocês gostavam de ter sido colonizados por quem, holandeses? Imaginem a Garota de Ipanema cantada em holandês.’ É a mesma coisa para o Millôr Fernandes. Ele seria grande em qualquer língua, mas não
Millôr Fernandes, 1970
consigo imaginá-lo em holandês.” “Quando as pessoas dizem ‘fulano tal é genial...’ Não, às vezes a palavra ‘genial’ tem mesmo de ser posta nessas pessoas”, diz Vasco Rosa, 56 anos, editor freelancer, falando de Millôr. O seu génio, explica, está numa imensa erudição — dos clássicos gregos a Shakespeare — e mundividência, sem perder a brasileirice: a capacidade para destilar tudo isso com invejável informalidade. Ferreira Fernandes confirma: “O Pif-Paf quebrava completamente com o engravatado português minimamente culto que escrevia.” Mais tarde, na década de 1980, Ferreira Fernandes viria a trabalhar no Diário Popular e a frequentar os arquivos do jornal para revisitar O Pif-Paf. “É um número absolutamente grande de frases que são demasiadamente boas. Tenho a certeza de que o plagiei muito. Não podia dizer de todas as vezes ‘esta frase é de...’, se não ainda me chamavam a atenção. São plágios confessados.
A única vez que me encontrei com esse herói — um dos meus heróis de escrita — foi no Hotel Tivoli [em Lisboa] e entrevistei-o. Ele ia pagar o almoço, quando eu disse: ‘Não, nem pensar. Se você soubesse as vezes que o tenho roubado... Tenho mesmo de lhe pagar o almoço’.”
Um crime do 25 de Abril O último número de O Pif-Paf no Diário Popular é publicado a 24 de Abril de 1974 — véspera da revolução que derrubou o regime ditatorial em Portugal. Quem sabe o que aconteceu? Resta a especulação. “Pode ter sido uma questão contabilística”, sugere Ferreira Fernandes. “Ele ganharia aquilo que merecia ganhar? Não. Mas provavelmente pensou-se que era muito e deixou-se cair.” E também porque, numa altura em que as redacções dos jornais se tornam ultra-politizadas e são dominadas pela esquerda, a geopolítica milloriana não seria propriamente prezada. “Ele é anti-
americano, como é anticomunista, goza com a União Soviética e com a China”, resume Ferreira Fernandes. “Pronto, chego à conclusão: há crimes do 25 de Abril. Temos aí um”, diz, rindo-se. Millôr Fernandes, que não raras vezes teve de explicar que não era de direita, deixou descendência numa nova geração da direita portuguesa, como João Pereira Coutinho. “Millôr Fernandes é um anarquista céptico. Ele tinha uma consciência de que a espécie humana não era grande coisa. Como tinha essa noção, olhava para o poder político e para o exercício de autoridade como um verdadeiro anarquista”, explica. “Não estou a dizer que o Millôr Fernandes era de direita ou de esquerda. Acho que ele não era uma coisa nem outra. Ele estava acima disso. Mas a direita normalmente tem uma visão menos optimista sobre a natureza humana. Há uma direita que tem grande desconfiança sobre o
“Tenho a certeza de que o plagiei muito (...). A única vez que me encontrei com esse herói — um dos meus heróis de escrita — foi no Hotel Tivoli [em Lisboa]. Ele ia pagar o almoço, quando eu disse: ‘Não, nem pensar. Se você soubesse as vezes que o tenho roubado... Tenho mesmo de lhe pagar o almoço’” Ferreira Fernandes
poder, que quer dar menos poder possível porque sabe que o poder absoluto corrompe; não tem grande esperança nas capacidades do ser humano para fazer coisas extraordinárias — o que não significa que às vezes elas não aconteçam. É uma direita um pouco mais melancólica, de expectativas reduzidas...”, continua, no que é praticamente uma auto-descrição. “Essa direita olha para o Millôr Fernandes como um camarada”, diz, usando deliberadamente um termo da esquerda, antítese que Millôr talvez prezasse. Em 2004 João Pereira Coutinho organizou a única antologia portuguesa dedicada à produção do Pif-Paf no Diário Popular. É uma espécie de best of em 190 páginas que integrou uma colecção de livros vendidos com o semanário Independente, entretanto extinto. O livro nunca esteve nas livrarias e hoje só é possível comprá-lo em segunda mão. Vasco Rosa, que concebeu a
colecção, fotocopiou dez anos de Pif-Paf na biblioteca e convidou Coutinho para organizar um livro sobre Millôr, acusa o mercado editorial português de “autismo”. Surpreende-o que nenhuma casa editorial em Portugal tenha publicado O Pif-Paf em livro, antes ou depois de 2004. Até porque “existe uma geração de editores contemporâneos desse período em que o Millôr publicou no Diário Popular”, diz. De resto, só dois outros livros de Millôr foram publicados em Portugal e não estão mais disponíveis: a peça de teatro Computa, Computador, Computa (Editorial Futura, 1973) e Confúcio Disse (Pergaminho, 1993). As edições brasileiras estão ausentes das livrarias. O editor português Manuel Alberto Valente lembra que o interesse dos editores portugueses em relação à literatura brasileira tem tido as suas flutuações. “Nos anos 1950-60 aqueles que eram na altura os grandes autores brasileiros — Érico Veríssimo, Jorge Amado, Lins do Rego — eram bastante conhecidos e lidos em Portugal. Depois, durante um longo período, o Brasil como que desapareceu da edição portuguesa. Depois do 25 de Abril e até ao início da década de 80 praticamente não se publicou ficção em Portugal. Publicava-se ensaio político. A ficção tinha sido abandonada como se fosse um vício burguês. E só mais recentemente é que os editores começaram a olhar de novo para o Brasil. Mas, logicamente, vão à procura das novidades, dos nomes novos. É natural que nesse vórtice haja uma geração que tenha ficado perdida — e o Millôr, eventualmente, faz parte desse grupo.” Millôr Fernandes tem chegado nos últimos anos através da Dinalivro, a maior empresa de importação de edições brasileiras em Portugal, mas esses livros só costumam estar disponíveis nas livrarias do mesmo grupo empresarial, três em Lisboa e duas no Porto. “Millôr Fernandes não é muito conhecido cá — nada que se compare a um Ferreira Gullar, a uma Moacyr Scliar”, diz Paula Lourenço, coordenadora de lojas do grupo. “Mas sempre que temos o Millôr Definitivo — A Bíblia do Caos em loja, ele desaparece. E encomendamos sempre 30 a 50 exemplares.” Isto apesar de ser um livro volumoso, com mais de 500 páginas, que custa 43 euros no mercado português, mais 15% do que no Brasil. “Nós ignoramos muito o Brasil, que nos devolve com uma ignorância completa”, diz Ferreira Fernandes. “Esse é um drama nosso.” Pena que Millôr não esteja mais aí para nos fazer rir disso.
Questionar o poder e as suas novas formas no século XXI
P
ela primeira vez na sua já não tão curta história de 12 edições, a FLIP vai homenagear um autor que já esteve entre os seus convidados. No primeiro ano, em 2003, Millôr Fernandes (1923-2012) juntouse a Ruy Castro na plateia da Tenda dos Autores. Paulo Werneck, o curador desta edição, acha natural que se homenageie um contemporâneo. “Cresci lendo tanto o Millôr quanto o Drummond [homenageado em 2012], por exemplo. Há no Brasil uma queixa de que não se valorizam os autores contemporâneos, de que apenas os clássicos têm força. O que se está fazendo em torno do Millôr prova que não, que a obra dele está pulsando”, conta ao Ípsilon, lembrando que estão a ser reeditados quase 15 livros do humorista. “O que é uma verdadeira façanha no Brasil, onde ainda penamos para ter em catálogo a obra completa de escritores importantes.” Werneck considera interessante que a FLIP participe no processo de consagração de um autor. “Não estamos apenas absorvendo tributos já existentes, mas ajudando a pautar a sua vida póstuma.” Nesta 12.ª edição, participam muitos dos amigos de Millôr, incluindo o “quase mítico” cartoonista Jaguar (que fundou o semanário O Pasquim). Vai ser entrevistado por Reinaldo e Hubert, que trabalharam no famoso semanário, já como discípulos. “O crítico de arte Agnaldo Farias deu prova de coragem com a conferência de abertura, que promete ser MARINA QUINTANILHA
Paulo Werneck, o curador, inspirou-se no exemplo de Millôr Fernandes para suscitar discussões sobre o poder
histórica. Claudius, Sérgio Augusto e o cartoonista Loredano vão falar da obra. Haverá vídeos de leitura de textos do Millôr, uma exposição biográfica que contará com um jornalzinho diário, o Daily Míllor, com colaboração de Luis Fernando Verissimo, Antonio Prata, Chico Caruso, Claudius e Ivan Fernandes, o filho do homenageado”, acrescenta Werneck. Num ano de eleições presidenciais, “num momento de muita fermentação social e política” e na ressaca das manifestações de Junho de 2013 e do Campeonato do Mundo, Paulo Werneck não consegue imaginar um autor mais adequado. “Desde os anos 30/ 40 à década de 2010, Millôr atravessou todos os regimes políticos no Brasil e manteve notável independência. Era um grande céptico quanto às boas intenções dos poderosos de qualquer natureza. Foi uma pedra no sapato de todos os presidentes, principalmente do Sarney — passou meses destruindo, frase por frase, o romance O Brejal dos Guajás”, explica o curador. “Quando lemos frases de Millôr como ‘O poder corrompe, mas o poder absoluto corrompe muito melhor’, não podemos deixar de pensar nos desmandos da NSA, por exemplo”, diz. Por isso, a espionagem americana denunciada por Snowden através de Glenn Greenwald será um dos temas abordados, e o jornalista estará entre os convidados. “Sem sectarismos partidários ou ideológicos, temos grandes questionadores, críticos que interpelam o poder e suas novas formas no século XXI: a espionagem imperialista (Glenn Greenwald), o mercado financeiro e a corrupção na universidade (Charles Ferguson), as relações incestuosas entre media e poder (Graciela Mochkofsky e David Carr), o modelo de desenvolvimento no Brasil (Davi Kopenawa, Eduardo Viveiros de Castro), o horror do urbanismo no país (Paulo Mendes da Rocha), o agronegócio e a indústria da obesidade (Michael Pollan)”. Paulo Werneck recorda que na FLIP a curadoria não tem “o status autoral” que há, por
exemplo, nas bienais de arte. Analisou o que viu nas dez edições a que assistiu e emulou tudo o que lhe pareceu ter resultado: “Se insisti em não repetir autores já convidados, é para cumprir uma vocação primeira da FLIP: apresentar autores ao público brasileiro.” Orgulhase de ter convidado Vladímir Sorókin, o primeiro escritor russo da história do festival, e de ter conseguido reunir o “núcleo amazónico” da programação. Desde o ano passado que a arquitectura tem um espaço fixo na programação e para Werneck este é, aliás, o grande tema da FLIP. Também a ciência tem estado presente em quase todas as edições “e sempre rendeu discussões memoráveis”. Por isso o curador convidou Andrew Solomon “para falar sobre a educação de filhos com identidade fora do padrão (autistas, anões, surdos, transexuais)”, respondendo “criticamente aos preconceitos que ainda perduram”. O único português entre os convidados é Almeida Faria (irá a Paraty lançar A Paixão, primeiro livro da Trilogia Lusitana, pela Cosac Naify), que estará em palco ao lado do chileno Jorge Edwards. “São dois homens de letras daqueles que julgamos estarem em extinção”, defende Werneck. Apesar de no Brasil se terem publicado e lido muitos portugueses nas últimas décadas, “Almeida Faria parecia ser uma daquelas lacunas persistentes”: “Foi editado nos anos 80, mas escapou, por exemplo, à minha geração. E é um autor importante, que tem um ponto de contacto com um dos nossos maiores romancistas vivos, o Raduan Nassar, que admitiu ter ‘bebido’ em A Paixão para escrever Lavoura Arcaica.” “Lendo ambos, percebe-se a incrível máquina poética que é o romance contemporâneo e a língua portuguesa.” Edwards é um caso semelhante. Prémio Cervantes, era desconhecido no Brasil, onde só agora foi editado: “São fenómenos inexplicáveis, ou melhor, explicáveis por nosso perfil ainda bastante carente em leitura e por nosso autocentramento. A FLIP, nesse sentido, ajuda o Brasil a ser menos autocentrado.” I.C. ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 11
FLIP Michael Pollan
Anda a comer comida verdadeira? Coma comida e evite as imitações. Poderia ser o resumo das ideias de Michael Pollan, o norte-americano a quem o The New York Times chamou a “consciência alimentar da nação”. Será uma das estrelas da FLIP. Por Alexandra Prado Coelho
M
estrelas da edição deste ano da FLIP, irá falar do seu mais recente livro, Cooked - A Natural History of Transformation, relato da sua descoberta das técnicas básicas de cozinha, usando a água, o fogo, a terra e o ar. Mas o debate centrarse-á também nos livros anteriores (publicados em Portugal pela Dom Quixote, enquanto Saber Comer: as 64 Regras de Ouro foi editado pela Lua de Papel) e nas suas ideias, como a de que os nutricionistas têm vindo a destruir a nossa relação com a comida, reduzindo os alimentos a nutrientes e acabando com o prazer, ou as “regras de ouro” que
Há um mês a Time dizia que “os cientistas estavam enganados ao classificar a gordura como o inimigo” e aconselhava-nos a comer manteiga, num artigo que reflectia muitas das ideias que defende. Sente que começa a ganhar uma guerra? Não é ganhar uma guerra. Há um reconhecimento cada vez maior de que as velhas ideias sobre nutrição que se baseiam numa obsessão em nutrientes únicos, bons ou maus, como a gordura ou o açúcar, partem de um princípio errado. Temos que nos centrar muito mais na comida e no contexto social que rodeia o acto de comer. Sinto-me encorajado com as novas orientações para a nutrição no Brasil que são revolucionárias. Em vez de dizerem para comerem isto e não aquilo, elas dizem para as pessoas comerem com outras pessoas, comerem comida verdadeira e evitarem a altamente processada. É, julgo, o primeiro país a fazer algo tão progressista neste campo, relacionado com o contexto social da alimentação e não apenas a química daquilo que comemos. Há sinais de que a indústria alimentar está disposta a fazer mudanças. Acredita nesses esforços? A revista The Atlantic defendeu que é fundamental que a indústria apoie estes esforços, porque é ela quem chega às pessoas. LIZ HAFALIA/ SAN FRANCISCO CHRONICLE/ CORBIS
ichael Pollan escreveu um livro para dizer uma coisa simples: “Coma comida. Não em excesso. Vegetais, sobretudo”. Parece pouco, mas é suficiente para encher as 250 páginas de Em Defesa da Comida que, juntamente com o anterior O Dilema do Omnívoro, no qual denuncia a omnipresença do milho nos alimentos industriais, fez deste jornalista, professor na Universidade de Berkeley, uma das figuras mais influentes no universo da alimentação ética e saudável. Em Paraty, onde será uma das
criou, como estas: “Coma apenas alimentos que podem apodrecer”, “Evite produtos alimentares cujos nomes incluam termos como ‘light’, ‘pouco gordo’ ou ‘magro’” ou “Coma as porcarias todas que quiser desde que seja você a cozinhá-las”.
Michael Pollan a cozinhar em casa com o filho: uma das ideias que o jornalista tem vindo a defender é a de que as escolas devem ensinar as técnicas básicas da cozinha 12 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
Temos que ser um pouco cépticos em relação a alguns desses esforços. Há uma longa história da indústria parecer estar a dar resposta às preocupações das pessoas. Um exemplo é a campanha para a redução do consumo de gordura, em que reformularam a comida para lhe retirar gordura, e isso não ajudou. Por duas razões: a gordura não era o problema que se pensava, e também porque sempre que se tenta tornar a junk food um pouco melhor, as pessoas acabam por comer mais por acreditarem que é mais saudável. Alguns dos esforços da indústria são apenas formas de nos conseguir vender mais comida. Outros são reais. Temos que ser vigilantes. Os objectivos da indústria não são manter a nossa saúde ou o nosso peso – são vender-nos mais comida. Se uma empresa que faz comida processada incluir um cereal integral, por exemplo, isso ajuda? Junk food continua a ser junk food, mesmo que seja 10% melhor. Fala muito dos EUA, das preocupações das pessoas com o que comem, as calorias, etc. Porque é que este fenómeno é tão grande nos EUA, sendo este um país feito de pessoas que vêm de outros países, alguns com sólidas tradições gastronómicas como a Itália? Em parte por não termos uma cultura alimentar estável. Em muitos países, o que as pessoas comem é o que comiam os pais e os avós, é cultural. Nós não temos uma única cultura alimentar, mas várias. Sem essa influência estabilizadora da tradição, tornamo-nos mais vulneráveis à propaganda, ao marketing. Quando aparecem artigos sobre os riscos da gordura ou do açúcar, toda a gente muda a forma de comer. Por outro lado, somos muito moralistas na forma como comemos. Noutros países as pessoas comem por prazer, por ritual, para estar em comunidade, enquanto para nós a questão do prazer é um problema, porque descendemos de calvinistas que pensavam que ter prazer com a comida ou outras actividades animais era de alguma forma pecaminoso. Temos vindo a falar de comida em termos científicos há 150 anos neste país. Se recuarmos a 1850, havia já uma enorme discussão científica sobre a melhor forma de comer. Sentimo-nos mais seguros a falar sobre ciência do que sobre prazer. Recentemente surgiu nos EUA uma bebida, Soylent, qpara pessoas que não querem perder tempo com a comida. Esse é um excelente exemplo. Que produto ridículo. É algo que nos mantém vivos sem o prazer da comida.
Mas há pessoas que parecem sensíveis a esta ideia de que somos prisioneiros da alimentação. São as mesmas que acham que devemos um dia conseguir transferir a nossa consciência para um computador. O corpo é um problema para estas pessoas. Mantêm-no na Cloud da Internet. Para mim, comer é uma parte muito importante do meu lazer. Não quero libertar-me disso. São pessoas que não compreendem o prazer de comer. E ficarmos livres para quê? Ganhar mais dinheiro? Usar uma nova aplicação? Há uma arrogância terrível na ideia de que sabemos o suficiente para simular comida. A alimentação de cada animal é algo que foi sendo aperfeiçoado ao longo de milhares de anos para chegar à simbiose entre o que comemos e o que somos. O leite em pó para bebés foi uma tentativa de simular o leite materno que não correu muito bem. Ainda não sabemos como fazer leite que seja equivalente ao das mães. A Soylent faz parte de uma grande tradição em que a ciência tenta ser mais inteligente do que a evolução. É um produto que não se destina a alimentar os micróbios no nosso aparelho digestivo, e uma das coisas mais importante que aprendemos sobre nutrição nos últimos anos é que 90% do nosso corpo são micróbios e que temos que tratar deles também. Fala muito na importância das dietas tradicionais, mas os nossos estilos de vida mudaram muito. Até que ponto devemos ser críticos dessas dietas? Em Portugal temos doces com muitos ovos e açúcar, que são tradicionais. Ter muito açúcar nas nossas dietas não é algo assim tão antigo. Não tínhamos açúcar processado até ao final do século XIX. Sem dúvida que comemos açúcar a mais e começámos a ver problemas relacionados com isso no final do século XIX, quando começa a tornar-se muito barato. Claro que temos que prestar atenção ao estilo de vida. As pessoas que fazem muita actividade física podem consumir muito mais açúcar do que os que se sentam à secretária todos os dias. Mas quando falo de dietas tradicionais refiro-me ao tempo antes da farinha e do açúcar refinados. Há um argumento muito usado pelas pessoas que criticam o seu ponto de vista: a história da alimentação é a história da transformação, e a comida processada é apenas mais um episódio dessa história. Sim, desde há dois milhões de anos que estamos a transformar os produtos crus da natureza em formas que os tornaram mais
TIM MACPHERSON/ CORBIS
“Os objectivos da indústria não são manter a nossa saúde ou o nosso peso – são vendernos mais comida. Se uma empresa que faz comida processada incluir um cereal integral, por exemplo, isso ajuda? Junk food continua a ser junk food, mesmo que seja 10% melhor”
ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 13
FLIP Michael Pollan
14 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
ganho para a saúde pública. Então quando enriquecemos um alimento com nutrientes que faltavam a uma população... ... salvamos vidas. Podemos evitar problemas como a espinha bífida se acrescentarmos ácido fólico à farinha. Isso é algo de extraordinário, mas devemos recuar um pouco e perguntarmonos: porque é que faltava ácido fólico na farinha? Porque o tiramos de lá. O problema foi criado por nós, e não pela natureza. Outra crítica que se ouve é que a forma de comer que defende só é acessível aos mais ricos. Não é preciso ser-se rico para comer bem. Grande parte da história da cozinha tem a ver com camponeses aprendendo a fazer comida nutritiva dos piores pedaços de carne e restos de vegetais. Se soubermos alguma coisa de cozinha podemos comer muito bem por pouco dinheiro. É preciso algum tempo, é verdade. E hoje há pessoas pobres que não têm nem dinheiro nem tempo. Mas a ideia de que não se pode comer bem se não se tiver dinheiro para comida biológica ou local não é verdade. Se usar comida verdadeira, que envolve alguma preparação, pode comer muito saudavelmente. Mas cozinhar envolve práticas que deixámos de ensinar às pessoas. Se quando saímos a escola soubermos preparar dez pratos, ganhamos um enorme poder sobre as nossas dietas. É uma questão geracional? Houve uma altura em que cozinhar era mal visto e as pessoas preferiam fazer outras coisas — ver televisão ou navegar na Internet. A minha esperança é conseguir
“Há anúncios que mostram famílias de manhã a tentar sair de casa, a correr como baratas tontas, sem tempo sequer para deitar leite sobre uma taça de cereais, e por isso as crianças têm que comer uma barra no carro”
contar a história da cozinha de uma forma que leve as pessoas a pensar que é uma maneira mais interessante de passar uma hora do meu tempo do que, por exemplo, a ver um programa sobre cozinha na televisão. As pessoas hoje estão interessadas na cozinha, porque é que não a praticam? Julgo que é por estarem intimidadas. Cozinhar na televisão parece atletismo profissional, é uma actividade heróica. É incrivelmente difícil. Há facas, chamas, um relógio. Mete medo. Mas não é a verdadeira cozinha. Há também um grande esforço da indústria para nos dizer que não temos tempo para a comida. Existem aqueles anúncios que mostram famílias de manhã a tentar sair de casa e levar as crianças à escola, a correr como baratas tontas, sem tempo sequer para deitar leite sobre uma taça de cereais, e por isso as crianças têm que comer uma barra no carro. Na verdade, podiam ter posto o despertador para dez minutos mais cedo. Tem criticado os políticos por não lidarem como deve ser com a questão alimentar, e argumentou que isso tem a ver com o facto de não quererem interferir com algo que é visto como sendo da esfera privada. Não se trata mais da força dos lobbies? O lobby da indústria alimentar e da agricultura é tremendamente poderoso. Por outro lado, tudo o que possa fazer aumentar o preço dos alimentos leva os políticos a paralisar. Os políticos gostam que a comida seja barata, quer seja saudável ou não. A comida barata mantém no lugar as cabeças de reis e rainhas. Há também a ideia de que as pessoas reagem muito quando o Governo lhes tenta dizer o que devem comer — quando o mayor [de Nova Iorque, Michael] Bloomberg tentou reduzir o tamanho dos copos de refrigerantes, o que me parecia uma medida muito sensata, as pessoas reagiram com horror ao que viram como um ataque a um direito fundamental de beber um refrigerante gigantesco. A comida é um assunto delicado. Há outra razão: o movimento pela verdadeira comida é ainda muito jovem e desorganizado para conseguir pressionar os políticos. Mas vai acontecer. Com o tempo seremos suficientemente fortes para compensar e penalizar os políticos. A sua é já uma voz muito poderosa. Mas não sei jogar o jogo político. Não finjo que entendo de política. Todos temos diferentes tarefas, e a minha é contar a história de uma forma que, espero, chegue às pessoas, para que estas possam depois chegar aos políticos.
Jhumpa Lahiri, 47 anos, podia responder várias coisas quando lhe perguntam de onde vem: Calcutá. Londres, Rhode Island, Roma...
COSIMA SCAVOLINI/ SPLASH NEWS/ CORBIS
nutritivos e mais deliciosos. E, de repente, houve um ponto de viragem no que tinha sido até então uma história bastante gloriosa, que foi o aparecimento de farinha branca e o açúcar refinado, que acontece pela mesma altura. É aí que nos tornamos demasiado espertos para o nosso próprio bem. Tiramos aos alimentos os nutrientes, as fibras, e de repente surgem deficiências nutricionais em pessoas que comem esta comida processada, e concluímos que é preciso reforçar estes alimentos com vitaminas. Os interesses da indústria não são os dos nossos corpos. A indústria quer tirar a fibra da comida porque com ela a comida não congela tão bem, não se conserva tão bem. Além disso, procura comida que seja imediatamente gratificante, que seja absorvida pelo corpo muito rapidamente. Mas acontece que essa fibra é precisamente o que os micróbios gostam de comer, e se se matam esses micróbios à fome começamos a ter problemas de saúde. Por isso, voltamos a pôr as fibras na comida. Vai funcionar? Provavelmente é melhor ter a fibra original, porque a acrescentada não vai funcionar da mesma maneira. Os críticos do seu trabalho acusam-no de diabolizar a abordagem científica à alimentação. Não existe ciência que nos ajude a ter melhores alimentos? Eu não sou anti-ciência. Limito-me a ter em relação a ela a visão céptica que um jornalista deve ter em relação a tudo aquilo sobre que escreve, como a política, por exemplo. Não somos anti-política, mas temos uma ideia clara das suas limitações e da corrupção que existe. E existe corrupção na ciência também, sobretudo na ciência ligada à nutrição. Olhe para a Associação Americana de Dietética, todas as reuniões deles são patrocinadas por empresas de fast-food. Conseguem realmente ter uma discussão honesta sobre junk food? E mesmo que a ciência reduza os alimentos aos seus componentes para tentar entender o que cada um faz, como consumidores não temos que pensar assim. A linguagem que funciona para a ciência não deve funcionar num restaurante. Não precisamos saber o que é um antioxidante ou o ómega 3 para comermos bem. Devemos olhar para a comida, e deixar os cientistas preocuparem-se com os nutrientes. Eles já descobriram coisas importantes, ajudaram-nos a perceber as deficiências de determinadas populações em certos nutrientes e a descoberta das vitaminas foi um enorme
FLIP Jhumpa Lahiri
Sou de onde escrevo Americana de origem indiana, ind natural de Londres e a vi viver em Roma, Jhumpa Lahiri, outra das presenças da FLIP, tem feito da sua bio biografia um lugar de muitas personagens. E Em A Planície volta ao tema com uma saga d de irmãos afastados pelas ideias e pela geografi geogra a. E agora? Tudo será em italiano. Po Por Isabel Lucas mmmmm A Planície Jhumpa Lahiri (Trad. Inês Dias) Relógio D’Água
O
seu nome não é Jhumpa. E se lhe perguntarem pela identidade faz uma pausa. “Talvez seja americana”, responde. Tom de voz baixo, frases curtas que intercala com um “you “ know”: “Nasci em Londres, aos dois anos fui para os Estados Unidos, os meus pais são de Calcutá e agora vivo em Roma”, e é como se nisto estivesse subentendido tudo o que tem sido a sua vida enquanto escritora. A geografia importa para a história porque tudo na escrita desta mulher de 47 anos parte desta identidade fragmentada e ainda em construção. Roma, onde vive há dois anos com o marido, o jornalista Alberto VourvouliasBush, e os dois filhos, Octavio e Noor, de 12 e nove anos, pode não ser a última paisagem; a América foi aquela onde aprendeu a ler e a escrever numa língua diferente daquela em que aprendeu a ouvir e a falar, o bengali em que o avô materno lhe contou as primeiras histórias. “Sim, a língua é determinante para formar uma identidade”, continua, voz clara, neste momento de pausa na ficção em que questiona, num ensaio, a possibilidade de ter outra vida sempre que se ganha outra
lín língua. “Agora tenho o italiano”, diz Nilanjana Sudeshna Lahiri, a Nil rapariga com nome quase rap impossível de pronunciar pelas im outras crianças do infantário onde ou andou, em Rhode Island. A an professora chamou-lhe Jhumpa, pro para simplificar. A filha mais velha pa de um bibliotecário e de uma amadora de poesia seria sempre am alguém “sem habilidade para alg pertencer a um sítio” e esse lado pe autobiográfico tem sido o seu aut material de escrita, com ma personagens que inventa para pe paisagens muito reais. De uma pa forma simplificada, pode-se afirmar for que na escrita de Jhumpa Lahiri qu quase tudo persiste e o que muda qu são os nomes das personagens. Tem sido assim até agora. E tem sido um sucesso, ainda que qu apenas com quatro livros e alguns alg ensaios, mais uma ou outra entrevista en a autores onde tenta perceber pe cada universo de escrita. “Não “N tenho uma rotina, mas tento manter ma uma ligação diária com o trabalho. tra Sejam os 15 minutos em que qu penso na história ou as três a quatro qu horas em que não levanto a cabeça cab do papel”, conta numa conversa con com medo de repetições. “Parece “P que estamos sempre a dizer diz as mesmas coisas.” Não será assim. ass Contará de Pessoa e de Tabucchi, Ta de como a escrita pode ser a aprendizagem de outra identidade ou de muitas. Na ide mesma língua ou numa língua que me deixou de ser estranha. “É como de sair sai de uma prisão”, acrescenta. Ao primeiro livro, Intérprete de A Enfermidades, publicado em 1999 Enf (em Portugal saiu dois anos depois pela pe D. Quixote), Jhumpa Lahiri ganhou o Pulitzer para ficção e gan não nã mais deixou de estar na lista dos do premiados, dos que mais vendem, dos mais aguardados ven entre en os escritores da América. É uma um norte-americana de origem indiana ind que escolheu falar da
imigração ou emigração; da quebra de elos, familiares, políticos, culturais; da perda; de como é ser indiano na América, em narrativas realistas, com uma escrita sem experimentalismos ou jogos de palavras em que a estranheza e o toque de exotismo vêm da sensação do sentimento de se ser um intruso no mundo onde se vive. No caso, ser-se indiano na América.
Pertencer ou não pertencer Parace fatalismo, mas o universo criativo não se separa do seu atlas real. Tem sido assim desde o início, quando, em criança tímida, começou a escrever para socializar. A solidão do acto viria mais tarde, mas a grande questão manteve-se. Como dizer a diferença e ser aceite? Começou em contos que saíram em revistas como a New Yorker ou a Harvard Review depois de anos a ser rejeitada. Nove foram reunidos no tal volume Intérprete de Enfermidades, que, além do Pulitzer, ganhou também o PEN/ Hemingway. “O que liga as personagens, o que as magoa, o que as faz viver com alguém ou deixar de viver com alguém. O que as leva a sair. Interessam-me as conexões, as alianças. O que une duas pessoas apesar de haver um oceano a separá-las. Explorar as motivações mais subtis”, conta ao Ípsilon. E no último livro, como no primeiro, a primeira página, as primeiras linhas vão para o cenário, como se ele ditasse o que se segue. “A leste do Tolly Club, depois de a Deshapran Sasmal Road bifurcar, há uma pequena mesquita. Uma curva leva a um enclave sossegado. Um enxame de vielas estreitas e casas modestas de classe média.” Estamos n’A Planície, o romance agora editado em Portugal e o espaço que vai determinar o destino dos irmãos quase gémeos, Shubash e Udayan. É como olhar para um postal onde se percebem contágios e a relação entre paisagem, linguagem e acção. A ordem pouco importa. É do lugar onde está que avista, como se tudo acontecesse outra vez, a saga de dois irmãos de Calcutá, a cidade natal dos seus pais — dois rapazes que crescem com uma existência quase gémea, mas que acabam a separar-se. Um vai para Rhode Island seguir a sua ambição pelo saber científico, o outro fica em Calcutá envolvido no movimento revoltoso naxalita,
de inspiração maoísta, que pretendia mudar a sociedade indiana no início da década de 70. Publicado em 2013, A Planície foi finalista do Booker Prize mas perdeu para The Luminaries, da neo-zelandesa Eleanor Catton. As duas vão agora encontrar-se na FLIP, o lugar onde Jhumpa irá contar, numa conversa marcada para o dia 2 de Agosto, como tudo está a mudar para si. Para onde ainda não sabe. “Foi um livro que me levou tempo. Uns dez anos. Parte de um acontecimento que fui ouvindo contar desde pequena e que aconteceu no bairro dos meus pais. Contava-se que alguns rapazes estavam envolvidos naquele movimento e um dia a polícia rodeou o bairro e eles foram encontrados mortos. Diziase que foram colocados perante a família, como foram feitos reféns.
“Neste livro penso mais profundamente sobre a memória, sobre como o tempo nos muda ou abandona, sobre como se esvai, sobre o que representa enquanto trauma devido a qualquer tipo de perda”
Ouvi muitos detalhes. Muitos foram preservados no meu romance. E não fazia sentido colocá-los noutro lugar. Construí a paisagem a partir da minha memória, do que vi depois, e tentei dar-lhe um sentido a partir de um incidente inicial que condiciona o resto da história. O que tive de inventar foram as personagens, porque eu não conhecia aquelas pessoas, não conhecia as vítimas daquela execução, nem a família.” A crítica não foi unânime na recepção. O aplauso andou a par de quem considerou que a capacidade inventiva de Jhumpa se tinha esgotado. Com o romance anterior, Namesake (2003), também ele uma saga de imigrantes indianos na América, como já o havia sido Numa Terra Estranha (2008), outra colectânea de contos. “Neste livro penso mais profundamente sobre a memória, sobre como o tempo nos muda ou abandona, sobre como se esvai, sobre o que representa enquanto trauma devido a qualquer tipo de perda: a morte de alguém, o deixar o país, ficar sem referências, sem orientação em relação ao mundo. Quem sofre perdas muito profundas tem uma relação mais dependente com o tempo, o passado torna-se muito significativo por ser a dimensão que contém o bem perdido. Este livro é sobre isso.” Todos foram, pode-se acrescentar, só que neste isso perde o carácter de novidade. Saberá Jhumpa Laihiri escrever sobre a mesma coisa parecendo que está a escrever um novo livro? Ela está em fase de procura de resposta. “Passados dois meses de chegar a Roma surgiu-me a ideia de uma história e, quando fui escrever, ela apareceu-me em italiano. Estava a tomar notas e a história ganhou corpo, evoluiu de forma tão estranha e poderosa que me deixou meio atónita. Pus-me, então, uma série de questões sobre a língua e a minha relação com o inglês e com o bengali, e agora com o italiano; sobre o que tudo isso significava para mim enquanto pessoa e enquanto escritora.” Disso, e com a ajuda de referências como Fernando Pessoa, Antonio Tabucchi ou Cesare Pavese, fez um ensaio. Será o seu próximo livro. Uma série de reflexões sobre identidades criativas. O que é ser-se uma multiplicidade ou, como ela diz, ter a tal inabilidade para pertencer. É dessa forma que se diagnostica. Foge à questão do que é ser indoamericana. “Não é o mais importante. O que importa é o que isso faz de nós.” Numa família, num país, num universo criativo. Shubash, Udayin ou Gauri, a mulher com que ambos acabam por casar, estão presos à tragédia da ligação ao lugar. ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 15
FLIP Perfil Paulo Mendes da Rocha:
A arquitectura é sempre oportuna O mais influente arquitecto brasileiro da actualidade fala sempre de futuro. E também de todo o homem que nasce arquitecto porque “o que nos move é a angústia da necessidade e da urgência”. Perfil do arquitecto convidado da FLIP. Por Ana Vaz Milheiro DANIEL ROCHA
e em São Paulo. Fui aí educado, um pouco no sertão, nas fazendas de cacau do Rio Doce e nas serrarias, junto às obras pesadas da engenharia, no mar.” Diplomou-se em São Paulo, na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Mackenzie em 1954. Três anos depois traçava um dos seus edifícios mais emblemáticos, o Clube Atlético Paulistano. “A partir daí” a sua obra “fez um percurso basicamente linear”. Acabaria por reconhecer: “Não que isso seja vantagem, quem me dera poder fazer em cada momento o que se deve fazer!”. Tornou a arquitectura de João Vilanova Artigas uma referência para a sua obra, ajudando ao seu relançamento internacional, já depois da morte do mestre paulista. Ao fazê-lo contribuiu para a confirmação da vitalidade da arquitectura contemporânea brasileira, encontrando os seus próprios temas: “Minha arquitectura evoca a habilidade do homem em transformar o lugar que habita, com fundamental interesse social, através de uma visão aberta, voltada para o futuro”. É este discurso que se espera retome em Paraty, onde, com o crítico italiano Francesco Dal Co, conversará sobre as afinidades entre dois territórios singulares: Veneza e Paraty - uma sessão com entradas já esgotadas.
Resistência ao desastre
Paulo Mendes da Rocha é o arquitecto convidado nesta edição, seguindo-se a Eduardo Souto de Moura, em 2013
P
aulo Mendes da Rocha nasceu em Vitória, capital do estado Espírito Santo, em 1928, numa família que cruzava raízes baianas e italianas. Foi o segundo brasileiro a receber o maior prémio de arquitectura, o 16 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
Pritzker, em 2006, depois de Oscar Niemeyer ter sido distinguido em 1988. O seu pai era engenheiro, especializado em recursos navais e hídricos, tendo tido influência na sua formação. Em 2000, resumiu assim a infância: “Morei no Rio de Janeiro
Durante parte da ditadura militar brasileira (1964-1985), foi impedido de fazer e ensinar arquitectura. Era professor na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Seria depois reintegrado. Mas só no início na década seguinte a sua presença foi celebrada. Numa entrevista, na revista Caramelo, caracterizou assim o novo Brasil, que entrava num processo de democratização: “Trata-se de ter consciência do momento em que vivemos. É um momento de transformações na vida do homem, e a expressão que ele dará a isso deve ser serena e belíssima. É o momento de compreender que uma pirâmide não é uma forma piramidal, simplesmente, mas um desejo daquela época de colocar uma pedra a 30 metros de altura naqueles horizontes, e que a inteligência do homem foi capaz de realizar. Que raciocínio você quer fazer, que discurso você deve querer atribuir a isso que aí está, e o que devemos fazer agora?” Tinha começado, nos anos 1980, a ser divulgado internacionalmente. Obras da década de 1950, lado a lado com edifícios mais contemporâneos, seriam dissecadas pela mesma crítica que, de fora do Brasil,
apontara o dedo à arquitectura brasileira desde a construção de Brasília. O Museu Brasileiro de Escultura, em São Paulo, que desenhou no final dos 80s, impunha-se como imagem da vitalidade da arquitectura do Brasil, surgindo como contraponto a um pósmodernismo já esgotado. Durante esse período, tinha vindo a imprimir aos edifícios um carácter cada vez mais acertado do ponto de vista estrutural, numa releitura criativa dos principios de Niemeyer. O arquitecto carioca defendera, a quando da construção da capital brasileira, a criação de edifícios definidos “pela própria estrutura, devidamente integrada na concepção plástica original”. É esta a marca maior da arquitectura brasileira e a saída que constrói para a arquitectura moderna. Dando continuação a um processo de depuração, os edifícios de Mendes da Rocha atingiram uma expressão próxima de uma aparência “minimalista”, aspecto fundamental na redescoberta que então se fazia. A sua obra surgia consagrada como uma das mais engenhosas do final do século XX, manifestando-se avessa ao lado mais espectacular da produção que haveria de se impor na transição do milénio. Uma entrevista ao PÚBLICO, em 2003, permitiria perceber a sua posição: “A arquitectura tem, antes de mais nada, de lutar muito no sentido da resistência ao desastre. Temos de nos defender da tendência para degenerar. Só pode degenerar algo que é excelente.” Num depoimento de 2001, para o JA - Jornal Arquitectos, sobre a Casa para a família do engenheiro António Gerassi (São Paulo, 1988), afirmava: “Em princípio, há uma questão muito intrigante: você pode fazer uma casa com o material que tiver. Isso não é jogo de palavras. É uma verdade absoluta. Se possui só lixo, você faz uma bela casa na favela. Um arquitecto, então, surge do povo e faz uma casa linda”. Há uma
“Uma arquitectura inoportuna não pode existir”. Esta é, segundo acredita, uma das premissas da arquitectura contemporanea
resposta de “sobrevivência” que não inviabiliza a existência paralela da construção plástica, informada e erudita. Uma profunda convicção sobre a capacidade regeneradora da arquitectura na transformação da paisagem tropical – por princípio hostil – emerge como central. Por isso, “todo o homem nasce arquitecto. O que nos move é a angústia da necessidade e da urgência.” O homem é o centro do discurso de Mendes da Rocha. Mas não é um homem fruidor do espaço arquitectónico; trata-se antes de um homem que o constrói através da inteligência como actua no mundo e é nesse sentido que existe convicção no exercício do arquitecto. Na capital paulista, trabalha em parceria com arquitectos mais jovens, facto que assegura a existência na cidade de fortes ligações intergeracionais. Este processo de trabalho permite uma forte flexibilidade e garante a consolidação progressiva de uma cultura arquitectónica regional, forte no contexto internacional. Interpelado sobre o sentido “brasileiro” da sua produção, respondeu: “Talvez seja melhor dizer que não há nem deveria haver uma ‘arquitectura brasileira’. Não faz muito sentido, para mim, defender um caracter nacional. O que, entretanto, se pode imaginar de modo sadio é que há algo de peculiar na experiência da América”. Este aspecto posiciona-o como um “arquitecto americano”, ou seja, alguém que reformula uma paisagem para a América dos Trópicos a partir de indagações profundamente enraizadas numa cultura nova, em construção, como é (ainda) a do Brasil, em oposição ao mundo velho e gasto da Europa. Em Lisboa, com Ricardo Bak Gordon e os MMBB (Fernando de Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga), construiu um dos mais extraordinários edifícios brasileiros fora do Brasil, o Museu dos Coches (2009-2014), à espera de inaugurar. Funciona como um enclave dessa cultura americana no coração da velha sede do Império. As suas repercussões no traçado futuro da cidade são ainda hoje insondáveis. Mas serão determinantes numa alteração de significado e direcção. Uma regeneração de que a cidade precisava, uma oportunidade ganha porque, como diria Mendes da Rocha, uma vez mais a propósito da sua profissão de arquitecto: “Uma arquitectura inoportuna não pode existir”. Esta é, segundo acredita, uma das premissas fundamentais da arquitectura contemporanea e sem dúvida, para lá do futuro, sobre isto haverá também de falar em Paraty.
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O capitalismo global de sucesso é um bairro de lata em ALEX MASI/CORBIS
Paulo Moura
Bombaim
A repórter americana Katherine Boo viveu três anos num bairro de lata de Bombaim para descrever as condições miseráveis dos milhares que habitam os arredores do aeroporto. O Sonho de uma Outra Vida é o relato da aventura dos não-pobres do século XXI. 18 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
D
urante três anos, Katherine Boo raramente fez perguntas. Limitava-se a ver e ouvir. Se por exemplo tivesse interrogado Sunil, o colector de lixo, sobre os assuntos que mais o interessavam, provavelmente teria ouvido um relatório furioso sobre a concorrência entre hindus e muçulmanos no negócio do lixo. A rivalidade de morte entre os oriundos dos subúrbios da cidade e os imigrantes do Norte. Ou os perigos da profissão, agravados pela crise mundial que fez baixar a procura de materiais para a reciclagem. Perigos como os arranhões feitos nos contentores de lixo, cujas feridas abrem e infectam, deixando entrar larvas que apodrecem a carne. Ou os piolhos na cabeça, o inchaço nas pernas, a gangrena que cresce nos dedos. A crise obrigou Sunil a trabalhar mais horas e mais intensamente, ao ponto de ter parado de crescer e de ser ultrapassado em altura por Sunita, a irmã mais nova. As consequências da comparação na sua auto-estima talvez fossem mais um assunto que referisse à jornalista. O que ele nunca admitiria era a importância fundamental das árvores, das flores e dos pássaros na sua vida. Seria preciso não ter vivido ali, no bairro de Annawadi, nas imediações do aeroporto de Bombaim, desde que foi expulso de um orfanato, aos 11 anos, para saber identificar o amor pela natureza como uma realidade, um facto da vida. “Ele não o sabia, e nunca mo teria dito, se eu lhe tivesse perguntado ‘O que achas mais bonito neste mundo?’ Não saberia responder a essa pergunta, não faz parte da sua linguagem”, explica, a partir de Washington, Katherine Boo ao Ípsilon, numa entrevista telefónica. “Mas eu reparei que ele se punha a ouvir os papagaios enquanto recolhia o lixo. Para se certificar de que ainda estavam lá. Porque os miúdos do bairro costumavam apanhar os papagaios para os vender no mercado, mas Sunil achava que eles deviam ser deixados nas árvores. Começámos a falar de papagaios, e eu percebi como aquilo era importante para ele.” Também Asha não teria contado a história da sua vida, as estratégias que a orientavam no bairro de lata, que lhe permitiram ganhar dinheiro e prestígio, e mandar a filha, a inteligente e bonita Manju, para a universidade. Asha não percebia que as suas actividades se chamavam corrupção. Apenas tentava imitar o comportamento dos mais ricos, dos
privilegiados que viviam fora do bairro. Seguia os seus conselhos e o seu modelo. Que outra fonte ética poderia ter, além da que provém da própria lógica social? Asha Wagekar, 39 anos, esposa de um alcoólico débil, trabalhador precário na construção civil, é a protagonista de O Sonho de Uma Outra Vida. “Queria ser uma mulher importante para as pessoas da cidade superior que desejavam explorar Annawadi e para as pessoas da cidade inferior que desejavam apenas sobreviver”, explica Katherine no livro. Percebeu que o administrador do bairro, Robert Pinto, não tinha verdadeira autoridade, e começou a conquistá-la, à sua maneira. Jogou com as rivalidades de etnia, religião e casta, tornando-se mediadora de conflitos, graças às relações privilegiadas que foi criando com os poderosos da política, da polícia, da religião e dos negócios. A uns e a ou-
“Desde 1991, a Índia tornou-se na maior história de sucesso do capitalismo moderno, e estas pessoas são parte dessa história. São o rosto do sucesso do capitalismo global, os nãopobres do século XXI” Katherine Boo
tros cobrava dinheiro, em troca de favores ou de sexo. Numa fase já avançada da sua carreira de influência, Asha tornou-se intermediária num programa governamental de empréstimos para pobres a juro bonificado. O objectivo do programa era ajudar empreendedores que criassem empregos nos bairros de lata, mas a corrupção do sistema permitia que se obtivesse dinheiro mediante a proposta de um negócio fictício. Um funcionário do governo local certificava o número de postos de trabalho que o novo negócio traria a uma determinada comunidade pobre. Um executivo do banco estatal aprovava o empréstimo, e depois o funcionário e o gerente do banco ficavam com uma parte do dinheiro. Asha, que era amiga do gerente do banco, fornecia-lhe os nomes dos que seriam beneficiários (a quem cobrava um “imposto”), e ficava com uma comissão do gerente. Manju, a sua filha, cresceu condenando o estilo de vida da mãe, que no entanto lhe permitiu ascender à classe média, libertando-se da escravidão do bairro. Em toda Annawadi, foi a única pessoa a conseguir aceder ao ensino superior.
A pobreza dos não-pobres Katherino Boo é uma prestigiada jornalista americana que se tem dedicado a relatar situações de pobreza — no seu país, no Reino Unido, e agora na Índia. Obteve um prémio Pulitzer e muitos outros, ao longo de mais de 20 anos de jornalismo investigativo e narrativo, no Washington Post e depois na New Yorker. Quando foi viver algum tempo para Bombaim, após ter casado com um indiano, decidiu investigar a vida num bairro de lata. “Estávamos num país onde vive um terço dos pobres do mundo, e que ao mesmo tempo é protagonista de um dos maiores booms económicos de sempre. Um país onde o esforço consequente para erradicar a pobreza foi o maior alguma vez feito na História”, explica ao Ipsilon. “E não havia nenhum trabalho jornalístico sério a documentar isto, contando o que se passava nestas comunidades. Tudo o que fora feito e que eu li era muito orientado ideologicamente. Ou diziam: ‘Para os pobres, nada mudou, desde 1991’. Ou então garantiam: ‘Agora, nos bairros de lata, toda a gente vai para a universidade’. Era absurdo. A perspectiva ideológica não permitia observar a realidade.” Katherine esteve três anos no bair-
ro de Annawadi para documentar a vida numa comunidade pobre onde, no entanto, de acordo com os critérios oficiais, a maioria da população vive acima do limiar da pobreza. Ou seja: todo o horror que é descrito, o mundo perigoso e fétido de barracas construídas em torno de um lago de esgoto, não é a pobreza da Índia. É antes o cenário do milagre económico. Todas aquelas dezenas de milhares de pessoas vieram de aldeias onde há verdadeira pobreza. E quando lá regressam, de férias, apresentamse como emigrantes de sucesso, exibindo roupas caras e telemóveis. “São recebidos nas aldeias como heróis”, conta Katherine. Vieram para aquela zona da cidade na esperança de trabalhar na construção do aeroporto. Mais de 500 mil indianos chegavam anualmente a Bombaim, concentrando-se em Marol Naka, um cruzamento perto do aeroporto, onde os encarregados da construção civil vinham em camiões escolher os cerca de 200 que trabalhariam em cada dia. Os que não conseguiram emprego foram ficando, dedicando-se a trabalhos miseráveis e temporários, como a apanha de lixo para a reciclagem. Ocuparam um terreno abandonado, num bairro de barracas que foi crescendo. De início, em 1991, os habitantes das barracas eram quase todos muçulmanos, mas o Shiv Sena, o partido fundamentalista hindu, foi ajudando hindus pobres do estado do Maharastra a fixarem-se no bairro, para ali aumentar o seu peso eleitoral e a sua influência. É nesse contexto de luta política e étnica, entre a violência e a concorrência selvagem pelos parcos recursos, numa sociedade em crescimento acelerado, que se desenrola a luta pela sobrevivência em Annawadi. Uma luta feroz em que vale tudo, e durante a qual muitos morrem de doença, figuram como vítimas nas estatísticas do crime ou acabam a suicidar-se. Aqui a vida é frágil e precária, e muito poucos serão vencedores — mas há esperança. Foi essa realidade que Katherine pretendeu retratar. “Desde 1991, a Índia tornou-se na maior história de sucesso do capitalismo moderno, e estas pessoas são parte dessa história. São o rosto do sucesso do capitalismo global, os não-pobres do século XXI.”
Sem romantismo Nos primeiros capítulos de O Sonho de Uma Outra Vida, Katherine Boo caracteriza o lugar e as personagens,
mas depois a narrativa desenvolvese em torno de algumas histórias dramáticas, como num romance. “No início, comecei a seguir 80 famílias”, diz ao Ípsilon. “Depois fui seleccionando as personagens, não só porque tinham boas histórias, mas também porque iluminavam certos problemas do sistema que eu queria expor.” Foi o caso de Fatima e Abdul, por exemplo. A primeira é uma mulher sem uma perna que acaba por se imolar pelo fogo. Antes de morrer ainda tem tempo de culpar Abdul, que acusava de a ter estrangulado. “A história de Abdul interessou-me porque o seu trabalho de apanha de lixo está ligado à economia global, incluindo a recessão de 2008. E também porque, ao ser acusado de um crime, permitiume mergulhar profundamente nos problemas do sistema judicial, da polícia e dos tribunais. A história de Fatima, por seu lado, levou-me a examinar a terrível qualidade do sistema de saúde para os pobres e dos hospitais públicos, onde não há medicamentos nem água, onde os médicos deixam os doentes morrer e depois culpam as famílias.” Em O Sonho de Uma Outra Vida as personagens não são “típicas”, nem representantes de coisa nenhuma. São únicas, complexas e como tal descritas e caracterizadas, nas suas imperfeições e contradições. “Se descrevemos um tipo, não criamos uma ligação”, argumenta Katherine. “O que é preciso é descrever o indivíduo. Como escritora, não quero forçar o leitor a sentir uma identificação. Descrevo as pessoas como elas são, e os leitores sentem o que tiverem de sentir. Também não embelezo nem romantizo as personagens, tornando-as perfeitas. Amigos disseram-me para eu não contar certas coisas a respeito de Asha, por exemplo, porque tornariam impossível a empatia com ela. Mas eu quis mostra-la como ela era. Se conhecermos o seu contexto, compreenderemos melhor as decisões que tomou. De resto, eu estava a escrever sobre um bairro de lata de que ninguém ouvira falar. Disse aos meus editores: ‘Com que propósito iria tornar a história mais sentimental? Ninguém vai ler isto de qualquer forma’.” Quando foi publicado, em 2012, o livro tornou-se imediatamente um best-seller do New York Times. Ganhou o National Book Award, o Los Angeles Times Book Prize, o PEN/ John Kenneth Galbraith Award, e vários outros prémios. Está traduzido em dezenas de línguas. A edição portuguesa está nas livrarias desde a semana passada.
Os mais de 20 anos de jornalismo investigativo e narrativo de Katherine Boo valeram-lhe vários prémios, incluindo o Pulitzer
ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 19
DATO DARASELIA
Até domingo, muito haverá para descobrir no Milhões de Festa. As bandas vêm da Galiza, do Níger, de Itália, do Brasil, da Tanzânia, de Portugal, dos EUA. Joaquim Durães, o organizador, explica a diversidade. Alex Figueira, dos Fumaça Preta, que serão, acreditamos, uma das revelações do festival, representa-a.
Não é um festival de músicas do mundo. É, corrige Joaquim Durães, um “festival de músicos do mundo”
Milhões de Festa: um mundo para descobrir em
NELSON GARRIDO
Mário Lopes
Barcelos
20 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
U
m DJ que nos dá a volta à cabeça com psicadelismo turco (Baris K). Uns italianos a planar no espaço sideral com discos de kraut-rock e dos Silver Apples a rodar na aparelhagem da nave (The Lay Llamas). Um nigerino a hipnotizar-nos no seu balanço ondulante (Mdou Moctar). Coreanos a misturar instrumentos tradicionais com electricidade metaleira ( Jambinai). Uma armada galega a dar bom nome ao pós-rock (Puma Punku, Guerrera). Uma banda brasileira que pega na tradição psicadélica de Mutantes e na actualidade de Tame Impala para criar canções mais leves que o ar (são os Boogarins e flutuamos graciosamente com eles). Outra banda, esta sedeada na Holanda e formada por um lusovenezuelano e um par de ingleses para dar corpo a um novo Tropicalismo (Fumaça Preta). Não é um festival de músicas do mundo. É, corrige Joaquim Durães, um “festival de músicos do mundo”. Joaquim Durães, nome de guerra Fua, é, juntamente com Mário Laranjeira, o programador do Milhões de Festa, festival barcelense que teve noite de arranque ontem, quinta-feira, e que se prolonga até domingo. A partir de hoje, quando se abrem ao público todos os espaços em que se constrói o festival (o palco Taina, o do jardim onde se servem petiscos e da “varanda” sobre o rio Cávado; o palco Piscina, o da dança em fato-debanho e cerveja na mão; o Milhões e o Vodafone FM, os nobres, noctur-
No público está quem se alimenta de uma cultura pop sem fronteiras. Agita-se com rock’n’roll, dança batidas electrónicas ou saboreia psicadelismo turco
nos, no Parque Fluvial da cidade), teremos direito àquilo a que o Milhões nos habituou desde que, em 2010, se instalou em Barcelos. Um festival de descobertas, fiel à curiosidade do espírito melómano. Um festival cuja pequena dimensão (a média nos últimos anos tem sido de quatro mil espectadores por dia) lhe dá uma escala de verdadeira comunidade harmonizada com a cidade (e por isso os gigantes panados do Xispes, tasca histórica em Barcelinhos, na outra margem do Cávado, pertencem tanto ao imaginário do Milhões quanto os concertos). Um festival que este ano assume de forma mais declarada a sua vontade de olhar mais longe que o habitual nos festivais com rock no centro das atenções. E por isso, a par dos já históricos Earthless, a banda americana de rock instrumental psicadélico (domingo, 23h20), ou dos High on Fire, stoner rockers de Oakland (sábado, 1h10), lado a lado com a folk gótica de Chelsea Wolfe (hoje, 21h40), com a brisa fresca dos Boogarins (hoje, 24h) ou com os lisboetas Vicious Five (continuam o seu “funeral” hoje, às 1h50), os barcelenses Glockenwise (sábado, 0h10) ou os residentes Riding Pânico (a banda que actua em todos os Milhões chega sábado, às 17h), encontramos aquela diversidade de sons e origens que elencámos no primeiro parágrafo deste texto. Um privilégio para quem assiste: o mundo é grande e variado e estamos muito agradecidos à Inglaterra e aos Estados Unidos por terem desenca-
deado a cultura pop tal como a entendemos, mas não podemos continuar eternamente a olhar (só) para eles.
Melting-pot Tal é uma inevitabilidade para quem inventou e programa o Milhões de Festa. “Para nós é desafiante criar este melting-pot, juntá-lo todo no caldeirão de Barcelos e dos rojões, e perceber que há aqui um caminho, que há ligações entre uma banda argentina e um DJ da Turquia”, diz Fua. Dias depois, desde Amesterdão, Alex Figueira, músico português nascido na Venezuela e habitante da cidade holandesa desde 2006, onde formou os Fumaça Preta, sacava de uma metáfora gastronómica para falar do mesmo que Fua: “Existe tanta maneira diferente de ouvir música e de fazer música, existem tantos instrumentos diferentes, que acho escandalosamente redutor fixarmo-nos no eixo anglo-saxónico, excluindo o resto, e ficarmos a ouvir os mesmos gajos com duas guitarras e uma bateria de há quarenta anos”. A metáfora chega agora: “É como estar a comer bacalhau com natas há quarenta anos, quando podias provar também peixe peruano com um molho brasileiro. É triste se não o fizeres por medo de experimentar”. Não há neste discurso qualquer lógica de exclusão. O Milhões de Festa quer precisamente o contrário. Incluir, mostrar mais, provocar com o desconhecido. “Quando era mais novo ia a vários concertos em que
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não conhecia ninguém em cartaz e saía de lá com uma nova banda preferida para esse ano ou para a vida. O que queremos no Milhões é regressar a esse espírito”. Basicamente, os organizadores do Milhões de Festa, egoístas, querem programar aquilo que mais desejam ver. E querem, generosos, oferecer ao público o mesmo entusiasmo perante uma nova descoberta que sentiram quando viram “aquela” banda que tinham mesmo que trazer ao festival. A programação é construída de forma muito moderna, navegando pela net em busca de novidades interessantes, e da forma mais clássica possível, numa rede de partilhas. Fua e Márcio viajam por festivais mundo fora e vão tomando notas do que mais os entusiasma no que vêem. Entre-
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tanto, vão recebendo sugestões dos seus “enviados especiais”: “Os Black Bombaim [banda de stoner-rock barcelense, figuras de destaque em edições anteriores do festival] estiveram agora um mês em digressão pela Europa e anotaram-nos uma série de recomendações”. O entusiasmo faz o resto. Fua anda de olhos postos, por exemplo, em Itália: “Nunca olhei para Itália como fonte de bandas que me entusiasmasse mas, de repente, há uma série delas a sair de lá. São como cogumelos. Apetecia-me ter um palco só com italianos”. Este ano, não haverá um palco só com italianos, mas haverá italianos capazes de encher um palco (The Lay Llamas, amanhã, 20h). Entretanto, o trabalho da promotora e editora Lovers & Lollipops, cofundada por Fua e organizadora do Milhões em parceria com a Câmara Municipal de Barcelos, vai permitindo estabelecer parcerias com estruturas que partilham visões musicais e formas de trabalho semelhante (escala do-it-yourself, digamos). Este ano, por exemplo, há colaborações com a emergente promotora londrina Baba Yaga’s Hut, com o festival espanhol de música independente MusicWeek ou com a editora galega Matapadre (“espero que seja a ignição para uma maior colaboração, porque às vezes esquecemo-nos que é só rodar a cabeça e temos essa grande Galiza aqui ao lado”). Entretanto, o passa-palavra dos músicos que, ano após ano, têm passado por Barcelos vai também
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“É escandalosamente redutor fixarmo-nos no eixo anglo-saxónico” Alex Figueira, Fumaça Preta
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ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 21
DATO DARASELIA
exercendo a sua influência. Exemplo 1: Quando receberam a proposta para tocar no Milhões de Festa, os londrinos Teeth Of The Sea (domingo, 2h40) aceitarem sem pestanejar: os Gnod, banda inglesa que passou pelo festival em 2012, disseram-lhes maravilhas e não houve hesitações. Exemplo 2: a referência em Portugal dos Earthless eram os Black Bombaim, companheiros de estrada; sabiam então o que era o festival, o que era a sua identidade, e sabiam que era dali que saíra uma banda que admiravam. Resultado? Não só virão a Barcelos como um dos seus membros, o guitarrista Isaiah Mitchell, fez questão de arranjar espaço para tocar com os Black Bombaim. Preparemonos então para um concerto sem rede que juntará Black Bombaim, Isaiah Mitchell, Shella, dos Riding Pânico, e o saxofonista Rodrigo Amado -estes concertos irrepetíveis com formações inesperadas são outra marca do festival (nesta edição teremos também a oportunidade de ver domingo, às 20h, Norberto Lobo e Filho da Mãe
juntos em palco). Tudo isto deixa muito feliz e ansioso Alex Figueira, criador dos Fumaça Preta. A banda que tocará no Milhões de Festa esta noite, às 0h50, representa na perfeição o espírito do festival. O grupo nasceu de um improviso. Alex Figueira, nascido na Venezuela e de origens madeirenses, mudou-se para Portugal aos 16 anos e por aqui viveu, tocando em várias bandas, entre elas os Contratempos, até 2006, ano em que se mudou para Amesterdão. Na cabeça, levava uma descoberta, o Tropicalismo. “Já gostava de música brasileira, mas com os Mutantes, com o álbum deles com o Gilberto Gil, com o primeiro do Caetano [Veloso], percebi que era possível juntar folclore local com centenas de anos a música estrangeira ultramoderna. A minha busca era misturar tudo aquilo de que gostava de uma forma que não tivesse sido feita muitas vezes”. Percebeu que era possível fazê-lo aprendendo com os tropicalistas. Amesterdão, porém, não se revelou tão estimulante quanto imagina-
Fumaça Preta São formados por Alex Teixeira, James e Stuart. Os dois últimos são ingleses de Brighton. O primeiro é um português nascido na Venezuela e radicado em Amesterdão. Ali criou uma banda em que o tropicalismo, o funk, o psicadelismo e o rock’n’roll se conjugam para prazer do cérebro e do corpo. Representam, tanto pela formação, como pela música, o espírito do Milhões de Festa. Actuam hoje às 0h50 22 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
va. “A quantidade de oferta cultural, que é incrível, não tem correspondência nos músicos propriamente ditos”. Com isto Alex quer dizer que, apesar de uma “cena indie muito forte” e de uma cena electrónica “que rebenta com todas a outras”, foi-lhe difícil encontrar quem partilhasse a sua visão musical. “Sou muito obsessivo com o som que quero e os músicos com quem tocava não tinham paciência para me aturar”. A solução? “Fazer sozinho se tivesse que fazer sozinho e criar o meu próprio espaço para que ninguém me fodesse a cabeça”. Criou um estúdio (o Barracão), criou uma editora (Music With Soul), começou a organizar noites regulares, as Vintage Voudou (garage-rock, soul, funk, tropicália). Uma das bandas para quem editou um single chama-se The Grits. Ingleses de Brighton, tornar-se-iam parte dos Fumaça Preta de forma inesperada. Alex Figueira conheceu em Nova Iorque Joel Stones, brasileiro que mantinha naquela cidade a Tropicalia In Furs, loja especializada em música do Brasil, e que editara em 2010 a colectânea Brazilian Guitar Fuzz Bananas, que Alex adorava. Convidou-o a participar numa das sessões Vintage Voudou em Amesterdão. Os Fumaça Preta estavam prestes a nascer. A noite, descreve Alex, foi “uma banhada descomunal” (“nem tinham gira-discos para passar música”, conta). O dia seguinte foi tudo menos isso. Alex, James, baixista dos Grits, e Joel Stones juntam-se no Barracão. Alex e James nunca tinham tocado juntos. Joel nunca se tinha aproximado de um microfone para cantar. Procuram pontos em comum e descobrem-no nos Sonics, a histórica banda de rock’n’roll de Seatlle. Atacam uma versão de The witch, que se transforma em A bruxa. Pouco de-
pois, James e Joel corriam do estúdio para apanhar o avião de regresso a casa. Alex guardou o registo e, desde Inglaterra, James, guitarrista dos Grits, acrescentou uma linha de guitarra. “Percebemos que estava ali qualquer coisa”. Seguiram-se nove dias de trabalho, espalhados por três sessões, com as vozes de Joel Stones e da paulista Kika Carvalho a darem discurso àquela música que é confluência de funk muito suado, garage-rock, salsa psicadélica, tropicalismo ou experiências sónicas em estúdio, tudo servido em canções sobre “pupilas dilatadas” ou “homens de lata” que precisam de “descargas mecânicas”. Nasciam então os Fumaça Preta que, depois dos singles A bruxa e Vou-me libertar, que têm sido cobertos de elogios entusiasmados pelo mundo online, se estrearão em disco a 15 de Setembro. “Somos muito nerds de estúdio e só começámos esta brincadeira para fazer em estúdio música que nos soasse o melhor possível. Só que os concertos tiveram muito boa recepção e percebemos que tínhamos mesmo uma banda”. Foi quando já eram mesmo uma banda que Fua os descobriu. Fábio Costa, que podemos encontrar a animar noites Portugal fora (e além dele) enquanto DJ Quesadilla, passou-lhe um single. Fua encomendou um para si. “Quando chegou, o remetente era de Ermesinde. Fiquei intrigado: ‘Mas isto não é uma banda holandesa? O que se passa aqui?’. Descobrimos então que é a banda de um português emigrado que mantém o stock de discos cá, na casa de um familiar”. Banda que agora chega a um festival em Barcelos. Chama-se Milhões de Festa e quer pôr-nos a descobrir tudo o que um mundo de músicos tem para oferecer.
Com Sonhador, fica completa a transformação dos Expensive Soul em oleada máquina de soul e de funk. Os rapazes de Leça da Palmeira estão homens feitos.
Pedro Rios
Para trás é que é o caminho mmmmm Expensive Soul Sonhador New Max Records; distri. Sony
O
ano é 2004 e o país um lugar sem troika. Uns tais de Expensive Soul sobem ao palco da discoteca Estado Novo, em Matosinhos. Eram, acreditava então este escriba, uns perfeitos desconhecidos. Mas, quando os dois entram em palco, começa a berraria no povo, em particular na facção feminina — uma espécie de “Beatlemania” à moda de Leça da Palmeira. Nesse ano em que lançavam o seu primeiro álbum, B.I., os Expensive Soul eram uma banda de hip-hop com o ocasional desvio R&B e reggae (Eu não sei tornar-se-ia ubíquo, com a ajuda da série televisiva juvenil Morangos com Açúcar). Dez anos volvidos, ouvimos Sonhador, o quarto álbum de originais da dupla de New Max (Tiago Novo, cantor) e Demo (António Conde, MC), ambos com 32 anos, e perguntamos: é a mesma banda? É que há aqui sopros a encavalitarem-se uns nos outros para chegar ao Altíssimo (sendo que o Altíssimo é a Motown e outras casas do bem). Há aqui um cantor de pleno direito, seguríssimo nos falsetes. Há uma flauta a rodopiar de felicidade, um órgão Hammond a passear-se sobre o groove do baixo e os coros. Há uma grande canção, Cúpido, guiada por lustro de cordas e baixo irrequieto. Há um quase-gospel, Não te vás já, e um exercício (Electrificado) que lembra Viagens, de Pedro Abrunhosa, tamanha é a febre de sopros endiabrados. Estamos a milhas da banda hiphop de 2004. Os Expensive Soul são hoje uma máquina de soul e de funk que bebe das melhores colheitas do passado. “No B.I., o que ouvíamos era o que se estava a fazer nos Estados Unidos na altura. Andamos para trás à medida que vamos andando para a frente”, diz New Max, em conversa com o Ípsilon na sala de ensaios do grupo, montada num antigo bar do Porto. Mostra-nos o iPod. Há lá discos de Timothy Wilson, grande da velha soul, dos Poets Of Rhythm, que pregavam a soul no deserto dos anos 1990, mas também de Fausto. New Max entusiasma-se e desfia nomes:
gosta de Al Green e Otis Redding, mas também da Daptone (editora contemporânea, casa de Lee Fields, Charles Bradley e Sharon Jones), dos Isley Brothers (“Têm sete ou oito discos fabulosos com esta sonoridade soul”) e de Bobby Byrd. “Sempre que ouvia o ‘Get up!’ [da canção Get up (I feel like being a) sex machine, de James Brown] nunca sabia quem fazia a resposta. Era o Bobby Bird. Era o backing vocal do James Brown, estava sempre ao lado dele. Tem um disco a solo, produzido pelo James Brown, que é inacreditável.”
À procura do calor Não é de agora esta fixação dos Expensive Soul com a música negra que se fez nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970. O álbum anterior, Utopia (2010), já andava por esses territórios. A canção O amor é mágico colou-se na cabeça de muitos portugueses graças ao seu gancho viciante, um sample dos Impressions (I’ll always be here). “Plágio!”, gritaram alguns no YouTube. Demo ri-se: é a “falta de cultura em Portugal”. Sonhador é o primeiro disco do grupo sem samples. Para recriarem o que ouviram nos catálogos soul e funk, chamaram 19 músicos (há pouco mais de uma década faziam concertos só os dois, com os instrumentais debitados por um MiniDisc). Um concerto orquestral na Guimarães 2012 — Capital Europeia da Cultura deu o empurrão. New Max explica: “O facto de termos ido buscar outras cores para este disco foi um bocadinho também porque passámos pela Symphonic Experience, com uma orquestra e o [maestro] Rui Massena. Percebemos que podíamos trazer estas cores para um disco porque resultou muito bem ao vivo. Mais pequenino, claro, porque aquele concerto foi com uma orquestra gigante.” Em vez de “um ensemble de cordas” com mais de seis dezenas de músicos (para além deles, a orquestra tinha mais uma centena de instrumentistas), têm um quarteto. Têm também tímpanos e pratos orquestrais, têm trompa, saxofones vários, uma galeria de teclados (al-
guns tocados por New Max, com escola de Conservatório) e mais instrumentos. Queriam vintage, fizeram vintage. “Fomos buscar microfones antigos, compressores. A mistura é analógica, usámos fita. Foi um processo todo analógico”, explica o cantor, que é também produtor (Sonhador junta-se a um currículo onde já estão trabalhos de Rui Reininho e Salto, entre outros). New Max empreendeu uma busca em sites de leilões e de lojas da especialidade no estrangeiro. “É tudo material muito caro. Um gravador de fita de meia polegada custa cinco mil euros. Um microfone Neumann custa seis mil ou sete mil”, ilustra. Mas o investimento compensa: “Faz toda a diferença.” “Cada vez há menos estúdios. O pessoal virou para o digital”, conta New Max. “Já no disco anterior tinha procurado um bocado isso. Mas neste disco queria que fosse do início ao fim retro, com esta sonoridade. O digital é muito mais fácil, não ficas limitado às pistas, mas.”. A palavra surge depois: falta “calor” na música que é feita com pedaços de software que emulam o som antigo. Para Demo, mais músicos e uma guinada convicta em direcção às décadas pré-rap representaram um desafio. “Não se fazem raps em cima disto. Vou-te dizer a verdade: foi muito difícil não me repetir, conseguir ir atrás de uma ideia, da primeira ideia existente, conseguir viajar nos raps dentro da música”, reconhece. Partes do álbum foram gravadas na sala onde estamos, outras num estúdio de Matosinhos, mas a base do disco foi registada em Canedo, concelho de Santa Maria da Feira, no estúdio que New Max montou em casa (vive dos Expensive Soul e das ocasionais produções para outros artistas). Sim, a banda de Leça da Palmeira — a “terra mais bonita de Portugal”, garantiam em Eu não sei — já só tem um membro residente em Leça da Palmeira. “Eu planto tomates”, argumenta New Max (e o argumento é de peso). “Procurei isso. Não me via a voltar para a cidade.”
ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 23
Gonçalo Frota
Ninguém diz a Angélique Kidjo quem ela deve ser É a última grande diva da música africana que faltava ao Festival Músicas do Mundo. Angélique Kidjo actua amanhã em Sines, apresentando um disco que reconta a História do mundo desde Adão e (sobretudo) Eva.
24 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
A
ngélique Kidjo passou a infância e a adolescência no Benim a ouvir dos seus pais que ninguém podia escolher por ela, que só a ela cabiam as decisões da sua vida. E desde cedo entreviu os pequenos e contínuos choques que tal postura poderia provocar num mundo habituado a girar sobre si próprio num andamento completamente distinto. Por não controlar cada passo da sua mulher, o pai de Angélique era frequentemente questionado acerca da sua masculinidade e justificava-se dizendo que se a mulher era feliz nalguma coisa ele devia estar a acertar. À medida que crescia, Angélique começou a exasperar-se com o facto de o pai sentir necessidade de se justificar, de se explicar perante aqueles que continuavam a abanar a cabeça em incredulidade, censurando aquela família em que não era a férrea vontade máscula a ditar e a autorizar os movimentos de cada um. Mas serviria de lição: a liberdade de um caminho implica muitas vezes o confronto com a desconfiança, a falta de entendimento e a intolerância para a diferença. É um teste permanente. Apesar de ser uma lição que Angélique Kidjo repete sob várias formas durante uma entrevista, recordando ensinamentos parentais como alicerces para a sua recusa absoluta em deixar-se aprisionar por aquilo que terceiros possam pensar, projectar ou esperar da sua vida e de cada uma das suas acções, também as capas dos discos que circulavam em casa desde pequena foram responsáveis por perceber que não havia portas trancadas para a crescente vontade de se entregar por inteiro à música. Os irmãos mais novos da cantora aventuravamse já com bandas e os pais acreditavam que o desporto e a música ajudavam a edificar personalidades mais sólidas e preparadas para lidar com os outros, mas seriam as capas dos LP a abanar-lhe as certezas e a mostrar-lhe que o mundo exterior podia ser mais consonante com o seu mundo interior. “Esses álbuns que os meus irmãos traziam para casa vinham da América ou da Europa”, recorda. “E tinham quase sempre homens brancos na capa, ou então, em menor número, homens negros. Lembro-me que a primeira vez que vi uma mulher negra foi a Aretha Frankin, a cantar em inglês, e pensei ‘Uau, uma afro-americana pode ser artista, mesmo sendo mulher’. Quando se é mulher em África e se canta música que não é tradicional, é-se considerada prostituta.” Na altura, era essa a regra que encontrava nas ruas e no universo próximo.
Tudo mudou quando Kidjo percebeu que já alguém ousara, antes de ela pensar verdadeiramente em fazê-lo, furar essas convenções esburacadas e desde sempre caducas. Ao ver-se diante da capa de Pata Pata, álbum editado pela sul-africana Miriam Makeba em 1967, as peças do futuro da jovem cantora reordenaram-se num segundo. “Aquilo deu-me a volta à cabeça!”, garante. “Se ela conseguiu fazer isto, então eu também vou conseguir, ninguém me vai impedir e vou fazer aquilo que quero.” Vencido esse constrangimento moral, Angélique começaria rapidamente a travar uma outra batalha que se mantém até hoje. Parece haver em torno da sua obra, desde o início, uma obsessão de contornos quase laboratoriais para analisar a percentagem de África contida nas suas canções. Tendo crescido a ver e ouvir as rodelas de vinil de James Brown, Fela Kuti, Ebenezer Obey, Johnny Haliday, Jimi Hendrix, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Wilson Pickett e todo o santo disco que tivesse os selos Motown ou Stax a rodar no gira-discos, Kidjo enfiou desde sempre todo esse vasto referencial dentro dos seus concertos e das suas canções. “Às vezes olho para trás e pergunto-me como pode a minha memória ter absorvido tanta música”, espanta-se hoje. “Mas, na verdade, desenvolvi a minha memória a fixar todas as partes das músicas de que gostava — as guitarras, os baixos, as baterias, as segundas vozes, lembrava-me de tudo.” Esta capacidade de se relacionar com músicas tão diferentes encontra igualmente explicação na forma como um dos irmãos mais velhos lhe desmontou os preconceitos e a fez repensar a música. De início, quando o rapaz levava música clássica para casa, Angélique reagia e falava com a boca perto do seu coração popular, dizendo-lhe “Mas que raio de música é essa? Isso é estúpido!” Em vez de a forçar a ouvir, o irmão desatou a adaptar e a tocar peças de Beethoven no banjo. E, de repente, acendeu a sua curiosidade. Daí que Angélique Kidjo se abespinhe quando ouve, uma e outra vez, que a sua música “não é africana o suficiente”. “África está em toda a música, goste-se ou não, e é impossível fazê-la desaparecer”, contraria. E ri-se quando a observação parte de europeus ou de norte-americanos rodeados de rock, pop, música electrónica — “devem achar que isso não veio tudo de África”. “A nossa música é inclusiva”, contrapõe, argumentando que a música africana não se faz difícil e se deixa espalhar por todos quantos a queiram levar consigo, independentemente de cores, línguas ou origens.
Voltar a Eva Eve, belíssimo álbum que Angélique Kidjo lançou já este ano, rodeandose de gente que não nega, precisamente, a africanidade da sua própria música — Kronos Quartet, Dr. John, Rostam Batmanglij (dos Vampire Weekend) ou os músicos de jazz Steve Jordan e Christian McBride —, um portento rítmico adornado com melodias que nunca se deixam abocanhar pela previsibilidade, vem já de longe, desde que em 2005 integrou a delegação de uma missão humanitária, em visita a refugiados do Darfur num acampamento instalado no Chade. Desde então, conta a cantora, a sua cabeça caída sobre a almofada nunca mais passou a significar repouso total. “Aquilo que estava acontecer era que as mulheres eram violadas sempre que saíam do campo para ir buscar lenha que lhes permitisse cozinhar a comida dos miúdos e dos homens. Os homens ficavam lá sentados, sabendo do perigo que elas corriam e não as acompanhavam para as proteger ou ajudar. Depois olhavam para elas vitimizando-as, mostrando desprezo por elas”, relata. “É horrível — ao ouvir isto, a nossa boca fica aberta e o nosso coração dói, todo o corpo dói. Somos mesmo seres humanos quando permitimos que isto aconteça aos outros?” Esta condição da mulher africana, de sacrifício e superação de dificuldades e violências por vezes infligidas pela própria comunidade, ficou a ressoar na cabeça de Angélique Kidjo, há vários anos a braços com o trabalho da sua ONG (Fundação Batonga) em apoio da escolaridade das raparigas do continente, lutando pela erradicação do tétano ou contra a mutilação genital feminina. Nessa mesma viagem, com a UNICEF, “acendeu-se uma luz” na chegada ao Quénia. “Ao ver que aquelas mulheres lutam para encontrar comida para os miúdos e mantêm os seus sorrisos e ainda cantam, pensei como podia mostrar isto ao resto do mundo. E disse às mulheres quenianas que então encontrei: ‘Quero que as pessoas oiçam as vossas vozes, quero que oiçam a alegria e a resiliência no vosso canto’.” Essas vozes, ouvimo-las logo a abrir Eve (em M’Baamba), em diálogo com a sua, justapondo-se ao seu percurso. Kidjo conta que é daqui, do encontro com estas mulheres africanas, que retira a força para “ver o melhor que existe em cada situação — é o que elas fazem todos os dias para criarem os seus filhos, para conservarem a humanidade e se manterem de pé.” E é algo que a cantora revisita mentalmente sempre que lhe dizem que, por ser africana, tem o acesso vedado a determinado programa de televisão, a apresentar-se em sítios onde
“Temos sido acusadas desde Adão e Eva. Não é preciso duas pessoas para haver sexo? Então porque somos culpadas? Podemos escrever os livros que quisermos, mas essa história tem de ser contada de forma diferente ou então desaparecer”
Angélique Kidjo saiu do Benim em 1972, quando o país se transformou num regime marxista; hoje, aos 54 anos, continua a viver em Nova Iorque
não percebem a língua em que canta, enfim, de cada vez que alguém lhe sugere que pode e deve amputar um pouco da sua identidade para se adaptar a uma formatação prévia. “Sempre que me tentam rebaixar e atirar para o gueto, é nestas mulheres que penso”, reafirma. Não há surpresas: Eve vai buscar o seu título à Eva que nos dizem ter tentado Adão com uma maçã. E aquilo para que Angélique Kidjo está, mais uma vez, a apontar é o seu sentimento de injustiça e deturpação de igualdade perante uma História do mundo que tem sido invariavelmente contada por homens. Desde a primeira mulher. “Nós aceitamos e vamos avançando”, comenta, mas tal como nos tribunais “há sempre dois lados para uma história: o lado da defesa e o da acusação. Nesta história da Humanidade, temos sido acusadas desde Adão e Eva. Não é preciso duas pessoas para haver sexo? Então porque somos culpadas por isso? Ela tentou-o com uma maçã? Adão não tinha cérebro? Adão não tinha livre arbítrio para escolher? Podemos escrever os livros que quisermos, mas essa história tem de ser contada de forma diferente ou então desaparecer.” O pai vem à conversa recorrentemente. Foi ele quem lhe ensinou que “um homem que diminui uma mulher não é um homem, é um cobarde”, e foi ele quem a empurrou para fora do país quando o Benim se transformou num regime marxista — em 1972, quando um golpe de Estado instalou Mathieu Kérékou no poder durante quase duas décadas —, em que a liberdade de expressão ficara severamente comprometida. “Se pensarmos bem, a ideologia comunista não é má de todo, mas quando uma ideologia prega e diz às pessoas o que devem fazer e não as deixa serem donas da sua vida torna-se uma ditadura”, diz, explicando a sua saída, primeiro para Paris, depois para Nova Iorque, onde ainda vive, aos 54 anos. Se tinha de ter cuidado com o que dizia — sob pena de ser encarcerada ou pior ainda —, Angélique não estava disposta a viver no seu país. Hoje como nessa altura, a sua vida guia-se pela mesma máxima que atravessa a sua autobiografia, Spirit Rising: “Ninguém me vai dizer quem devo ser.” “Ninguém tem escrito na testa em bebé que vai ser presidente deste ou daquele país, que vai ser isto ou aquilo. Claro que há circunstâncias que podem ser mais benéficas e mais fáceis para alguns porque a vida é mesmo assim, mas já alguém viu uma criança acabada de nascer com as mãos cobertas de ouro? Não, pois não?” Não, não há notícias de tal. E enquanto assim for, não contem com o silêncio de Angélique Kidjo. ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 25
O brasileiro que aproxima
a poesia do rap Emicida é o rapper mais conhecido neste momento no Brasil. Actuou a semana passada em Portugal e falámos com ele, a propósito dos problemas por resolver no país e do álbum O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui. 26 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
Vítor Belanciano
É
uma das revelações brasileiras dos últimos anos e esteve a semana passada na Casa da Música do Porto e no festival Super Bock Super Rock. Emicida é nome de rapper. Cresceu em São Paulo, ouvindo rap e samba em casa. O rap levou a melhor e começou desde cedo a lançar rimas nas disputas de improvisação. A palavra sempre foi a sua motivação. E os seus primeiros trabalhos adoptaram o formato de mixtape. Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida até que eu Cheguei Longe e Emicídio foram lançados de forma independente e desde então a sua trajectória tem sido ascendente. A presente digressão é a segunda pela Europa e sucede ao lançamento do primeiro álbum oficial, O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui. Tem muita visibilidade no Brasil, mas na Europa ainda não é muito conhecido. É de supor que aqui tem de fazer um esforço maior para conquistar as pessoas. Como é que vive esse facto? Quando se sai do nosso país, e do conforto daquilo que já se alcançou, é como começar do zero. Mas vejo isso de forma tranquila, porque sei que estou a abrir novos horizontes e do ponto de vista artístico é uma experiência interessante. Depois de tudo o que já alcancei no Brasil é uma espécie de recomeço, num outro ambiente, sem ter que gerir a expectativa da plateia, o que permite uma concentração maior no espectáculo. Tenho essa liberdade. Mas tenho voltado sempre optimista, porque a resposta tem sido positiva. Temos sido felizes nessas digressões. Sendo a palavra determinante na sua música como é actuar para plateias que não percebem português ou, como em Portugal, onde nos podem escapar expressões mais codificadas? Só entendi a pressão do idioma a primeira vez que toquei fora do Brasil. Foi nos EUA. Só chegando lá é que fiz essa reflexão, olhando para as pessoas e percebendo que elas não entendiam porra nenhuma do que estava falando. A música se comunica por dois campos. Quando opera no campo racional é importante perceber do que minhas letras tratam. Mas tem também o campo emocional que opera sobre o estado de espírito de cada um. Quando toca num local onde não percebem o seu idioma você tem de explorar mais a performance. Tem de ser mais expressivo, para que a barreira do idioma seja atenuada. E isso influenciou muito os concertos, mesmo dentro do Brasil. Antes era meio introspectivo. Depois aprendi a comunicar de outras maneiras. Nessa relação entre palavra e estrutura musical, o que é que é mais determinante quando está em preparação criativa? As letras surgem primeiro. A música vai surgindo depois. Em geral vou apontando fragmentos, anoto coisas e vou organizando ideias. Já foi diferente. Sentava-me e me obrigava
a fazer com que a música saísse. Mas não funciona. Já tentei criar rotina e criar música das oito da manhã às seis da tarde mas a inspiração é muito humana, oscila de acordo com o estado de espírito. Inicialmente lançou duas mixtapes e depois um EP. Dá ideia que durante anos operou à margem dos mecanismos tradicionais. Aliás uma vez disse que o álbum só surgiu para satisfazer o mercado tradicional da indústria da música. A minha carreira foge do padrão tradicional no Brasil. Em primeiro lugar porque me tornei conhecido sem ter qualquer material físico editado. As pessoas conheciam o meu nome através das “batalhas de Freestyle”, mas não tinham acesso à música e aí isso é delicado, porque pode dar a ideia que você conquistou um espaço, quando está apenas flutuando. Essas disputas de improviso eram filmadas para a internet? Sim, a internet foi fundamental. Os meios de comunicação no Brasil ainda são muito conservadores em relação ao hip-hop. Não existe uma abordagem ampla sobre o que acontece. Estão mais interessados sobre o que acontece nos EUA e acabam por não compreender que tem uma coisa grandiosa acontecendo ali que pode dar frutos artisticamente. Essa fase do freestyle passou em branco para a imprensa, mas não para o público graças à internet. As pessoas puderam acompanhar essas disputas e aí quando a imprensa percebeu a existência do Emicida, eu já era gigante. O centro do seu álbum é o hiphop, mas reflectindo sempre outras influências, do samba ao baile funk. Da mesma forma trabalhou com convidados de gerações diferentes, como Wilson das Neves. Antes já tinha trabalhado com Tom Zé, por exemplo. Ou seja, mais do que delimitar, procura assimilar. A coisa mais burra que um artista pode fazer é fechar portas para outros artistas que utilizam uma estética diferente da dele. A evolução da arte vem do contacto com outros campos. É importante que conheça arte diferente da minha, para que a consiga absorver. De certa maneira a gente vive samplando as coisas. O hip-hop tem muito disso. Só que às vezes entra num círculo fechado que contradiz a sua própria história. O hip-hop é um género que nasceu pela procura de outras texturas, através de discos de vinil de soul, funk ou jazz. De repente há uma série de pessoas que são conservadoras e dizem que não escutam outro tipo de música, mas essa é uma porta que deve estar sempre aberta. Para mim é fácil ter um amigo como o Tom Zé. Ou o Wilson das Neves. São mestres que tive a honra de conhecer e trabalhar. Os artistas mais novos têm essa energia de querer gritar a sua verdade para o mundo. Os mais antigos já passaram por esse momento e os meios de comuni-
cação já não falam deles da mesma forma, o que cria desconhecimento geracional. Quando Tom Zé lança um disco não se vê na TV ou na capa de jornal. Quando colabora com Tom Zé, o que aprende e que contributo imagina que pode dar para o enriquecer a ele? Foi ele que me procurou a primeira vez e acho fascinante a sua forma de criar. É alguém especial. Às vezes liga-me às oito da manhã para falar sobre Aristóteles e eu, que estou acordando, oiço-o atentamente, mas só lá para o meio-dia é que percebo o que se passou ali. [risos]. É muito à frente. O seu intelecto, a sua liberdade criativa, foram coisas que me encantaram. Quando me convidou para o disco dele foi a primeira vez que cantei qualquer coisa que não escrevi. Por norma convidamme para escrever rima e cantar. Ele não. Disse-me o que tinha de fazer. A música era complexa, contando de forma subtil a história da humanidade e a forma como a música acompanhou essa evolução. No texto do Tom Zé você vai encontrar astrologia, tropicalismo, Grécia ou Aristóteles. Com Seu Wilson a mesma coisa, mas ao nível do ritmo. A maneira como compõe é matemática. A poesia dele é redonda, com as palavras alinhadas de forma elegante. Durante muitos anos o baile funk foi ostracizado pelas classes médias brasileiras e pelo bom gosto instituído. Como é a relação no Brasil entre o hip-hop e o baile funk? Infelizmente o hip-hop é muito conservador em relação ao baile funk. O hip-hop reproduz com o funk o preconceito que a sociedade reproduziu com o hip-hop há dez anos, quando era visto como apologista do crime e da violência. Hoje colocase o funk nessa mesma caixa. Mas há pessoas de mente aberta. O funk é do Rio de Janeiro e ter entrado em São Paulo já sugere reflexão. Quando se fala de si pensase nas letras de intervenção. Mas alguns dos temas do seu disco revelam uma faceta introspectiva, como Crisântemo, onde aborda a morte do seu pai. Todas as músicas são sobre o meu ponto de vista. Mas tem uma coisa delicada quando se tem uma música de cunho politico, que é não bater sempre na mesma tecla. O discurso pode tornar-se repetitivo e cansar. O hip-hop precisa de reflectir sobre isso. A nossa luta é pela liberdade, acima de qualquer outra coisa, para que o povo adquira conhecimento para compreender o quão importante é ser livre. A política não pode ser o único tema do hip-hop. Isso é prisão. Neste disco quis desobrigar o hip-hop de ser o género que vai ser militante 24 horas por dia, porque o ser humano não é assim. Eu vou ter momentos que vou rir, que vou chorar, que vou salvar o mundo e outros em que vou querer que tudo se foda. Percebo que o hip-hop brasileiro foi concebido como politico e isso é fascinante, mas temos
que revisitar esse tema de livre vontade. Se for obrigação vai-se transformar em marketing. Nos últimos tempos falouse imenso do Brasil, pelas manifestações na rua e pelo mundial de futebol. Parece ter-se criado uma imagem para o exterior de crescimento económico e cultura pujante. Por outro lado temos a insatisfação no interior do Brasil. Como é que estas duas imagens coexistem? O Brasil é um imenso paradoxo. Somos um país extremamente jovem. E temos um campo de miscigenação que talvez seja inédito no mundo. E dentro do contexto do século XXI tudo isso se intensifica porque nunca se teve tanta informação circulando tão rápido. Concretamente em relação à política o assunto é extremamente delicado. A chegada do Lula ao poder trouxe muita autoestima ao povo brasileiro, porque o país não tinha o hábito de respeitar o Brasil da rua, fora da Academia. Nos dois últimos anos, com as manifestações e a Copa do mundo, quem foi para a rua foram os jovens. No princípio fizeram-no por uma causa nobre, que era luta contra o aumento do ônibus. É importante reflectir sobre isso. Mas é importante que essas pessoas tenham um projecto, para além do protesto, porque senão vira apenas modismo. Não foi o que aconteceu, infelizmente. O movimento Passe Livre que liderou o protesto inicialmente é sério. Tem trabalhado muito em cima desse tema e tem boas propostas, mas chegou um momento em que a meios conservadores perceberam que podiam usar aquela onda de protestos a favor dos seus próprios ideais e virar aquilo contra a Dilma. E foi o que aconteceu. Mas mesmo assim a reeleição da Dilma é quase certa. As camadas populares gostam dela. Sentem que têm emprego e respeito, coisa que não tinham. Na minha geração, quando se saia da escola, não existia a ambição de entrar na universidade. Isso era coisa para ricos. Não era
“Temos uma imagem muito estereotipada [de Portugal]. Quando vimos para cá vemos que nem toda a gente tem bigode. [risos]. Conhecer o hip-hop daqui me ajudou. Sam The Kid, Dealema, Valete ou Capicua”
uma coisa para o povo. Hoje não. Ou seja, na sua perspectiva, a sociedade brasileira continua com lacunas e problemas, mas melhorou nos últimos anos. Vejo isso claramente. Não podemos retroceder. Mas não é apenas uma questão política. Os problemas do Brasil vêm de duas situações que ficaram em aberto - a escravidão e a ditadura militar. Acabámos com a escravatura, mas lançamo-los para a miséria, sem resguardo nenhum, e isso originou a desigualdade social e a violência urbana. É desse caldo discriminatório que a ditadura militar legitimou a violência policial. E hoje a polícia ainda opera segundo essas ideias. Aprendeu a guardar o património de quem jogou os escravos na miséria. Essas coisas continuam em vigência. Isso é delicado. É sobre isso que devemos pensar. É complexo falar sobre isso, porque no Brasil é como se fossem assuntos resolvidos, mas são páginas em aberto. As questões de coexistência intercultural não foram todas resolvidas, mas o Brasil continua a ser um exemplo na continuação desse caminho, não lhe parece? Por um lado temos a fama do país tropical e da cordialidade, e realmente temos isso, mas há ainda muito por fazer. São Paulo é parecido com Paris, no sentido em que pode lá viver o melhor e o pior dia da sua vida, dependendo de onde está. [risos]. Tudo o que tinha sido distribuído do Brasil era o samba, o Pelé e as mulatas. Agora mais pessoas vão conhecendo realmente o país. É um país gigantesco, muito centralizado no Sudeste, o que empobrece muito em termos culturais. O Brasil não conhece o Brasil. O Sudeste vislumbra a Europa e a América do Norte mas desconhece o resto do Brasil. O Sul se considera um pedaço da Europa no Brasil e tudo isso é nocivo para o conceito de nação. Por falar em chavões, que imagem guarda de Portugal? Temos uma imagem muito estereotipada. Quando vimos para cá vemos que nem toda a gente tem bigode. [risos]. Conhecer o hip-hop daqui me ajudou. Sam The Kid, Dealema, Valete ou Capicua. E coisas de Angola também, que fui descobrindo a partir do hip-hop português. Há muito tempo atrás, na minha cabeça, só Portugal e Brasil falavam português e quando entrei no universo angolano fiquei surpreso. Angola tem evoluído muito rápido. Refere muitas vezes que a sua grande procura é aproximar a poesia do rap. O que quer dizer exactamente com isso? Sim, a minha grande busca é essa. A poesia do rap encanta-me por causa do seu impacto. Mas tento subverter esse impacto não falando só de ódio. E aí oiço os sambistas clássicos do Brasil e penso que deveria usar a poesia do rap para tratar temas que eles abordaram. Gostaria de abordar a realidade do Brasil como um livro de história. E com o rap consegue-se alcançar isso. ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 27
Gonçalo Frota mmmmm Ricardo Rocha Resplandecente Mbari Música
Ricardo Rocha, eterno descrente no futuro da guitarra portuguesa, continua a lançar álbuns em que parece argumentar contra si próprio. Resplandecente, fundado sobre cinco quartetos para guitarra, volta a testemunhar o génio do notável seguidor de Carlos Paredes.
Fracassos eparaficções quatro guitarristas 28 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
I
an Richardson, Pierre Ricard, Wolff Richard von Gerhard e Ricardo Rocha são os nomes de uma impossibilidade. E cada vez mais o percurso do guitarrista português parece embrenhar-se nessa sua ideia de fracasso da guitarra portuguesa. Resplandecente é uma concretização do impossível, uma espécie de provocação ou de projecção ficcionada pelo músico daquilo que poderia ser — e nunca será, no seu entender — o mundo da guitarra. Desde logo, ao convocar três músicos de outras paragens (um irlandês, um francês e um alemão) para se lhe juntarem, espelhando não só a ideia de colapso iminente da Europa que toma por garantido, mas enquanto “fantasia de uma coisa que nunca vai existir — o estatuto internacional da guitarra”. Nos quartetos de cordas do mundo erudito, nota o guitarrista, é comum cada elemento ter uma origem geográfica diferente. A fantasia é também essa — a de um reportório distendido sobre o mapa do territó-
rio europeu. Só que Ian, Pierre e Wolff, como já se terá percebido, são apenas os heterónimos de Ricardo Rocha que lhe permitem artificialmente formar num disco o quarteto de guitarras portuguesas que interpreta o Quarteto Boreal, conjunto de cinco peças que compõe o núcleo central de Resplandecente. A correspondência adivinha-se assim: Ian, o Ricardo Rocha de barba; Pierre, o Ricardo Rocha de bigode; Wolff, o Ricardo Rocha de pêra. Um luxo, portanto. Este jogo de heterónimos pessoanos — Ricardo Rocha cita mesmo o poeta no texto incluso no booklet antes de apresentar os seus companheiros: “Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo” — é, obviamente, uma graça. Mas “uma graça que tem uma componente muito séria e muito deprimente”, garante o músico. Essa componente, explicada resumidamente no parágrafo anterior, desemboca ainda na fatalidade quase garantida de que este Quarteto Boreal dificil-
JOÃO OSÓRIO
mente virá a ganhar uma dimensão real em palco. Até porque mesmo ultrapassando a desconfiança geral que Ricardo Rocha nutre por muitos dos guitarristas da praça, o próprio processo de gravação deste conjun-
to de peças foi pensado inicialmente como algo partilhado com outros músicos. “Não deu porque era necessária bastante disponibilidade da parte dos outros elementos, uma vez que era preciso cada um estudar as suas partes, haver ensaios em conjunto — uma trabalheira imensa e que ia consumir muitíssimo tempo às pessoas.” Foi então, ao convencer-se da impraticabilidade da sua intenção inicial, que pegou no conjunto das peças e as atirou para o fundo de uma gaveta. Só a custo, e após muita insistência do seu editor — “lá andou a massacrar-me”, descreve Ricardo Rocha —, acedeu a experimentar assumir as quatro guitarras na gravação. “Tinha mais ou menos uma noção de como a coisa podia soar, mas não tinha uma ideia nítida do ponto de vista físico. Quando constatei como soava, comecei a fazer tudo. Acho que não conseguiria fazê-lo agora. Foram três meses de paranóia total. Acordava às seis da manhã, começava às 6h45, e gravava entre as 7h e as 10h. Depois, recomeçava a seguir à hora de almoço e continuava até às cinco da tarde [para aproveitar os períodos de silêncio, umas vez que se ouvem crianças — que não suas — a brincar na proximidade da casa]. E às vezes ainda conseguia das nove às onze da noite, quando tinha umas coisas para retocar. Isto todos os dias.” A tarefa foi de tal forma intensa que a ida para estúdio se revelou impraticável em termos financeiros, pelo que montou computador e microfones na sua sala de estar. É esse carácter obsessivo que ouvimos também no Quarteto Boreal de Resplandecente, com as quatro guitarras a funcionarem como ampliação de liberdade para aquilo que tecnicamente é permitido a uma guitarra fazer. “Como há uma série de obstáculos, por ser um instrumento extremamente limitado e cheio de falhas do ponto de vista técnico e dos sons que supostamente se querem ouvir (mas que na prática não se conseguem ouvir porque não se conseguem fazer), aqui, com quatro, atinge-se tudo aquilo que não se pode fazer”, confirma Rocha. “E subdivido as várias regiões da guitarra (agudos, médios e menos agudos) para criar um efeito ilusório
de corpo.” O registo é mais uma vez prova do génio de Ricardo Rocha, funcionando como sobreposição de padrões, entre arpejos e pequenas melodias que se vão transformando lentamente noutra coisa qualquer, um processo de metamorfose constante e uma forma verdadeiramente notável de o guitarrista superar parte das suas frustrações com o instrumento, mesmo se a construção da sua obra vai avançando por um desbravar de caminhos que, na sua perspectiva e por muito bemsucedidos que sejam, se revelam becos. Só que, por muito que cada nova empresa possa ser reveladora de um novel conjunto de impossibilidades, o lastro que vai deixando é um repertório habitado por uma visão única e soberba do campo de batalha em que Ricardo Rocha transforma o instrumento, como se usasse a guitarra para se combater a si próprio. A sua aversão às dificuldades levantadas pela execução emerge assim como um milagre artístico debaixo de uma capa de tortura física. Se, até agora, Ricardo Rocha tem seguido uma via perfilhada por Carlos Paredes e Pedro Caldeira Cabral de libertação da guitarra das mandíbulas do fado, em Resplandecente leva esse desígnio ainda mais além e, de certa forma, liberta a guitarra de si mesma, construindo peças que pertencem mais ao compositor do que ao executante. Ainda que a esperança de poder assistir à sua apresentação pública, e a certeza de que teria “um efeito gigantesco”, estejam enterradas para já. “É revelador da dimensão a que a guitarra se encontra”, insiste. “Se tivesse feito isto para um quarteto de cordas ou para dois ou três pianos, em qualquer parte do mundo haveria uma legião enorme de instrumentistas que tocariam logo. A guitarra situa-se numa dimensão minúscula e acho imensa graça quando oiço determinadas personagens dizerem que a guitarra está a florescer, está-se a transformar, é um instrumento riquíssimo. É de uma ignorância completa. A guitarra é e vai ser um fracasso. No final, ficarão uns pequenos registos de algumas pessoas que fizeram e estão a fazer alguma coisa, mas não vai passar disso.”
“Acho imensa graça quando oiço determinadas personagens dizerem que a guitarra está a florescer, está-se a transformar, é um instrumento riquíssimo. É de uma ignorância completa. A guitarra é e vai ser um fracasso” Fados e Scriabin Apesar da sua descrença quase palpável no futuro do instrumento, Ricardo Rocha reconhece no surgimento recente de Miguel Amaral (que lançou o disco a solo Chuva Oblíqua e integra o Novo Trio de Mário Laginha) um importante acrescento de alguém que pode continuar a lutar pela conquista de uma voz independente para a guitarra portuguesa. “O Miguel Amaral tem um talento incrível”, concede, “e se ele continuar com persistência a querer fazer alguma coisa pode perfeitamente vir a conseguir. Tem ideias fantásticas e uma concepção estética de composição para a guitarra que é brilhante. Mas tem um caminho de espinhos pela frente que é perfeitamente horrível e muito desmotivador”, vaticina. Em contracorrente com a exultação generalizada, Ricardo Rocha considera que o reconhecimento como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO “deixou a guitarra ainda mais ancorada no fado”. “O que não tem problema nenhum”, acrescenta, “está muito bem onde está e onde sempre esteve. Só que torna mais difícil porque a dada altura começam a surgir movimen-
tos em torno da guitarra que são uma mentira total, actos de oportunismo para ganhar dinheiro e visibilidade — Portugal é um quintal de gnomos esponjosos. Para quem está de fora a tentar fazer uma coisa com alguma consistência e algum conteúdo, é desmotivador porque fica tudo dentro do mesmo saco e nivelado por baixo.” O irremediável destino dos guitarristas, mesmo para aqueles que insistem em desenvolver um repertório erudito, é o de “acabar a tocar fados”. Mais uma vez, a situação que Ricardo Rocha descreve como perfeita para o instrumento. Depois de deixar de acompanhar Carlos do Carmo por achar que o seu lugar não é nos palcos, o músico toca agora regularmente acompanhando fadistas num restaurante discreto, onde se sente mais confortável. Está a dez minutos de casa, para onde regressa em seguida, e onde se atira de cabeça para este mundo paralelo de uma guitarra quase alienígena que vem construindo há mais de dez anos, com o propósito de documentar um percurso perscrutador, à conquista de novos espaços. Esses espaços, em Resplandecente, passam tanto pela composição dos quartetos inspirados pontualmente nas linguagens minimalista e impressionista como pelo regresso a um dos seus compositores de eleição — o russo Aleksandr Scriabin, de quem gravou dois prelúdios após o espanto fascinado com a forma escorreita com que as notas compostas para piano pousaram sobre a guitarra — “de repente, parece que ele escreveu aquilo para a guitarra, ficou perfeito”. Como se, ficcionando novamente e por alguns segundos, Ricardo Rocha quisesse acreditar que a guitarra é mais do que um grão de areia quando a compara à história e à tradição de instrumentos como o piano e o violino. “Aqui podemos sentir-nos contentes porque existem três pessoas a fazer repertório para um instrumento”, ri-se. Só que este fracasso que Ricardo Rocha anuncia e repete para a guitarra carrega consigo uma contradição permanente. Porque criar uma obra sublime como a sua, a inscrever-se num fracasso, só pode significar o fracasso do próprio fracasso.
ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 29
Marina Abramovic desafia os Por 512 horas, Marina Abramovic recebe-nos na Serpentine Gallery como quem nos recebe em sua casa. Uma casa despida que precisa de nós para existir. É a primeira performance original da artista no Reino Unido.
Cláudia Carvalho, em Londres
S
ilêncio. Silêncio quase sufocante é o que se sente quando se entra na Serpentine Gallery, em Londres, para a performance da artista sérvia Marina Abramovic. Nem os avisos ainda na rua, na fila à espera para entrar, onde nos é mais ou menos explicado por funcionários da galeria o que se passa ali dentro, nos conseguem preparar realmente para o que vamos encontrar: três salas onde na verdade não se passa nada e ao mesmo tempo onde tudo acontece. Marina Abramovic precisa de nós para que esta performance, a primeira grande experiência artística desde a sua estadia no Museum of Modern Art (MoMA), em Nova Iorque, em 2010, exista; e nós precisamos da artista para ali estar. E ela está: 512 horas, 64 dias. Para podermos entrar na Serpentine, onde Marina Abramovic, de 67 anos, está até 25 de Agosto, todos os dias, das 10h às 18h (excepto às segundas-feiras), temos de passar primeiro pela sala dos cacifos onde 30 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
sentidos com nada aceitamos deixar tudo para trás. Malas, casacos e, claro, telemóveis, máquinas fotográficas e até relógios. Avisam-nos também que o melhor é ir à casa de banho antes, até porque depois não dá para sair e voltar a entrar. Ou dá, mas é preciso ir para a fila novamente. A galeria é limitada a 160 pessoas e cada uma pode permanecer o tempo que quiser lá dentro; por isso, quando uma sai, outra entra. Uma vez mais leves, abrem-nos a porta e é o silêncio contrastante com a agitação da rua que nos atropela. Não se ouve praticamente nada, ainda que estejam dezenas de pessoas à nossa frente. Mexem-se tão devagar. Não falam praticamente. O que estão a fazer? Não percebemos. Mas sem querer, quase sem nos apercebermos como, estamos a fazer o mesmo. De pé, de olhos fechados. Ou sentados a olhar para uma parede ou para um pedaço de cartão de cor. De observadores rapidamente passamos a observados. Como nós olhamos para os outros na tentativa de perceber o que se passa, de ver o que estão a fazer, percebemos que outros o fazem connosco. Somos uma das muitas peças do puzzle de Marina Abramovic, que partilha o momento connosco. Ela está aqui. Caminha muito devagarinho. Respira fundo. Observa uma e outra pessoa. Dá a mão a uma, põe as mãos nos ombros de outra. Movimenta-nos de um lado para o outro na galeria, deixa-nos aqui e ali ao mesmo tempo que nos pede muito baixinho que fechemos os olhos e nos diz para relaxarmos. Marina Abramovic quer-nos a nós por inteiro, sem distracções. Nós somos o público dela mas somos também as peças de que precisa para que a sua arte exista. Sem nós, 512 Hours (o nome da performance é a duração da mesma) não existe. Até porque de facto esta é uma performance que parte do vazio das salas e precisa de nós para as encher de alguma forma. É uma performance que parte do nada. Uma ideia tão simples quanto radical e que todos os dias resulta de forma diferente.
Quando, a 11 de Junho, Marina Abramovic abriu pela primeira vez a porta da Serpentine Gallery — a artista tem uma chave e é ela que, tal como se estivesse na sua casa, abre e fecha a galeria todos os dias —, disse não ter um plano para as horas que ali ia passar. No fundo o que aqui acontece é que nós quisermos, é o que Marina Abramovic sentir no momento. Às vezes pode recorrer a objectos básicos, outras vezes bastamlhe os nossos corpos. “Estava tão preocupada em perceber como é que o público reagiria. Mas de alguma forma, as coisas correram muito bem logo desde o início. Tudo aconteceu de forma tão espontânea”, diz a artista no diário sobre o primeiro dia. Sim, há um diário. Todos os dias a “avó da performance”, como em tempos se proclamou, publica um vídeo on-line (em www. thespace.org) onde fala sobre o dia na Serpentine. Marina faz a sua avaliação e ao mesmo tempo permitenos acompanhá-la nesta jornada. Já passaram 38 dias desde que começou e por isso notamo-la já cansada. Ela própria o diz. “É cada vez mais difícil.” Mas há dias em que não esconde a sua fúria por não ter sentido que a arte tenha acontecido. E também se chateia quando sente que as pessoas não se esforçaram por ali estar. No vídeo que gravou a 28 de Junho, o 16.º dia desde que iniciou a performance, Marina Abramovic foi peremptória: “Foi o pior dia até agora.” “Houve uma energia tão negativa neste espaço”, conta a artista, chateada por perceber que “as pessoas só passam por aqui e vão fazer alguma coisa depois”. “Não sabem o que é a concentração, a energia estava em pedaços, não houve sentido de nenhuma forma”, continua, desiludida, lembrando a história de um homem que por ali tinha passado nesse dia e que olhava intensamente para o amarelo que estava na parede em frente a uma cadeira, numa das salas. “Eu achei que talvez tivesse havido uma realização profunda e por isso, quando ele parou, cheguei-me ao pé dele e pergunteilhe como tinha sido a experiência.
MARCO ANELLI
As salas da Serpentine Gallery estão vazias: Marina Abramovic enche-as apenas com a sua presença e com a presença dos espectadores E ele disse: ‘Inacreditável. Sabe, este amarelo parece-se exactamente com o amarelo do carro desportivo Audi que tive há muitos anos.’” Não era a resposta que Marina esperava. “Um carro desportivo?”, questionase no vídeo. “Não era sobre isso este exercício.” Mas se Marina se desiludiu com este homem, também muitos se poderão desiludir com a artista. As reacções a esta performance têm sido mistas. Há quem adore e acabe por passar as oito horas na Serpentine, e até volte noutros dias, e quem se vá embora ao fim de uns minutos. A 18 de Julho, a Serpentine Gallery assinalou a chegada a meio da performance — Marina já completou 256 horas —, e em jeito de balanço revelou que já mais de 64 mil pessoas passaram por ali. A maioria permaneceu uma média de duas horas. “As pessoas estão a responder de forma incrivelmente positiva. Há pessoas com dúvidas sobre a natureza do trabalho, mas todas estão a tirar tempo para experienciá-lo e percebêlo, e a maior parte acaba por gostar profundamente e sente esta performance como um momento de transformação”, diz ao Ípsilon Sophie O’Brien, curadora sénior da Serpentine Gallery, explicando que por dia passam pela galeria cerca de duas mil pessoas. “Todos os dias a performance muda, uma vez que é um trabalho de improviso e também de resistência. Estamos a meio do projecto e já teve tantos níveis, com tantos ainda para vir.” Para a curadora, Marina Abramovic, que não apresentava no Reino Unido uma performance desta escala há muitos anos, procura em 512 Hours esbater as fronteiras entre performer e espectador, entre testemunha e participante, e por isso “está a fazer um trabalho radical à luz das suas obras até agora”.
Imaterial Numa entrevista ao The Guardian, a própria artista disse “nunca ter feito nada tão radical quanto esta perfor-
“Tudo pode acontecer, está tudo lá. Precisamos do público, precisamos de mim, e precisamos de química”
mance”. E quem diz isto é a mesma Marina Abramovic que em 1974 apresentou em Belgrado, na Sérvia, uma performance em que dispunha numa mesa 72 objectos, desafiando o público a interagir com ela, através deles, da forma que bem entendesse. Na mesa havia, por exemplo uma pistola carregada. Ou uma faca. “Estava preparada para morrer”, conta na entrevista. E de facto, não morreu mas saiu com marcas, há cicatrizes que nunca desapareceram. Para a artista, o público dá aquilo que é desafiado a dar. “Foi um desafio a toda a má energia possível. Se dás a uma pessoa uma serra, estás a provocá-la”, diz Marina, para quem o seu trabalho pode trazer o que de pior ou melhor uma pessoa tem. Prova disso foi o que aconteceu há quatro anos no MoMA com a perfomance The Artist is Present, em que Marina Abramovic esteve durante 716 horas sentada em silêncio a uma pequena mesa, no átrio do museu, e, sem reagir ou falar, fixou os visitantes que eram convidados a sentarem-se à sua frente. Para vivenciar a experiência e partilhar o espaço com a artista sérvia, milhares de pessoas esperaram horas em longas filas, chegando mesmo a pernoitar em frente ao museu. Houve quem conversasse com a artista, mesmo que ela não respondesse, quem se risse com ela e quem se emocionasse com aquele contacto. “A minha ideia para o MoMA era dar amor incondicional a cada estranho, o que aconteceu”, conta. O mesmo volta agora a acontecer. Marina não só nos quer dar o seu amor como nos quer ajudar a relaxar, a fugir à realidade de todos os dias. E por isso mesmo escolheu ter as salas vazias, de forma a precisar ainda mais de nós. “Tudo pode acontecer, está tudo lá. Precisamos do público, precisamos de mim, e precisamos de química”, disse a artista à BBC. “É o mais imaterial a que podes ir.” Sophie O’Brien acredita que a performance na Serpentine é uma forma de a artista e os visitantes se envolverem de uma forma diferente da que aconteceu em The Artist is Present. “É um momento muito importante e único”, diz-nos a curadora, para quem 512 Hours é um trabalho que só poderia existir agora, ao fim de mais de 40 anos de carreira de Marina Abramovic, “reflectindo o seu compromisso em explorar o que é que a performance pode ser”. “É algo que tem de ser experienciado.” E uma coisa é certa. Podemos até nem perceber o que ali se passa, mas não podemos não sentir que ali está a acontecer alguma coisa. O quê? Esperaremos pelo final para ouvir o que Marina Abramovic tem a dizer-nos. ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 31
Exposições 32 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
pedra, um processo cujo melancólico início a imagem regista. Por fim: o único defeito da exposição resulta de o responsável ter decidido transcrever para as tabelas o texto original de identificação das fotografias, uma decisão correcta se, na mesma ou em outra tabela, ou ainda num folheto, tivessem sido rectificados os erros cometidos pelos proprietários. Esperemos pela edição “em linha” do catálogo (13 de Setembro) para o problema ser resolvido definitivamente... e para ficarmos com uma memória mais perene desta exposição excepcional.
Redescobrir a Ásia Uma exposição excepcional que documenta o trânsito de Portugal pelo mundo. Paulo Varela Gomes Viagem ao Oriente no Século XIX Lamego. Arquivo — Museu Diocesano de Lamego. Casa do Poço. Lg. da Sé. Tel.: 254666195. 3ª a Dom., das 10h às 18h. Até 14/09.
Fotografia.
mmmmm Há várias décadas que não tinha lugar em Portugal uma exposição de fotografias do século XIX referentes à Ásia com a dimensão ou a categoria desta que podemos ver no Museu Diocesano de Lamego. São muito raras exposições assim, mesmo no panorama internacional. Tratase, portanto, de um acontecimento da maior relevância tanto artística como documental e histórica. O curador da exposição é José Pessoa, responsável pela secção de inventário do Museu de Lamego. As fotografias, 61 ao todo, pertencem à família Mascarenhas Gaivão, que coleccionou as imagens, datadas de entre 1880 e 1895, como se estas correspondessem a uma viagem de portugueses entre a Europa e Timor, passando por territórios da coroa de Portugal. A viagem tem início no Egipto, chega à Índia (Bombaim, Damão, Nagar-Avely e Goa), corre depois por Ceilão e Java, e aporta finalmente a Timor. De entre as imagens, muitas têm autor identificado: Hyppolite Arnoux, um francês, e António (ou Antoine) Beato, um italiano, fizeram as fotografias do Egipto, sítio onde residiam, para servir sobretudo a clientela europeia que ali buscava o “exótico”. Na Índia, aparece-nos um Adolpho Moniz, de Damão, provavelmente damanense se o relacionarmos com o historiador local do mesmo apelido, e a firma Sousa & Paul, de Goa, que, ao longo de décadas, foi responsável por centenas de imagens daquele território. Em Timor, identifica-se o nome de Sá Vianna, que não sabemos quem tenha sido. As fotografias de Ceilão e da Indonésia são anónimas — e é pena porque são das mais qualificadas da colecção, em particular alguns poderosos retratos cuja humanidade orgulhosa contrasta com a solenidade de, por exemplo, o retrato do Rajá de Sunda e familiares, uma dinastia do Sul da Índia que residia e continua a residir em Goa (a imagem pode ser de Sousa&Paul, mas não é certo).
Inquietar a visão Collinear Breath De Diogo Pimentão. Lisboa. Galeria Múrias Centeno. R. Capitão Leitão, 14. Tel.: 936866492. 3ª a Sáb. das 15h às 20h. Até 26/07.
Desenho.
mmmmm
Pena que as fotografias da Indonésia incluídas nesta colecção sejam anónimas, pois daí provêm alguns dos mais poderosos retratos da exposição, como este Príncipe de Java em traje de gala
Escreve José Pessoa: “Este núcleo de provas positivas, feitas a partir de negativos de vidro pelo processo de colódio húmido e impressas em albuminas, chegou até nós num maço, sem qualquer embalagem especial, sem qualquer informação adicional a não ser, felizmente, as legendas originais e as assinaturas ou carimbos das casas fotográficas que as produziram.” Na exposição vê-se também a caixa de madeira dentro da qual José Pessoa encontrou a colecção. Já em 2008 José Pessoa tomara conta da selecção de imagens e do guião científico de outra grande exposição deste género, realizada no Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa: Impressões do Oriente: de Eça de Queiroz a Leite de Vasconcelos. Este “Oriente” era apenas o Médio Oriente, mas a qualidade das imagens expostas e a pluralidade nacional dos seus autores colocam essa exposição na genealogia directa desta que agora podemos ver. Em Lamego, o projecto, iniciado em 2013, de fazer o levantamento e a exposição do património fotográfico das famílias durienses conduziu a duas exposições, uma de retratos,
outra sobre a construção do caminho de ferro da linha do Douro. Viagem ao Oriente no Século XIX é a terceira mostra desta sequência. Não será certamente a última num museu que começa a afirmar-se como um pólo muito importante da história da fotografia em Portugal. Algumas das imagens são belíssimas e a montagem expositiva caracteriza-se pelo generoso espaço que lhes é oferecido, e a nós que as contemplamos. Além disso, a exposição é indispensável para aqueles que se interessam pelas imagens fotográficas antigas da Ásia e para todos os que querem saber mais de história. Só a título de exemplo, veja-se a imagem feita por Sousa&Paul das ruínas do seminário jesuíta da ilha do Chorão, em Goa, um dos maiores complexos edificados em territórios sob domínio político português, de que só se conhecia um desenho e uma gravura de Lopes Mendes (1886). Pela fotografia agora exposta, ficamos a saber mais sobre o seminário e torna-se ainda mais problemática a história da dramática decisão que levou ao seu desmantelamento até à última
A atmosfera dos trabalhos e das exposições de Diogo Pimentão é sempre densa, nocturna e muito poética. As suas obras negras são princípios de muitas experiências e nunca se deixam reduzir a simples superfícies receptivas primeiro aos gestos do artista e, depois, aos movimentos do espectador. Obras que são superfícies, que são corpos, que são espaços e que transportam para a cena expositiva diferentes movimentos e intensidades. A mais recente exposição de Pimentão na nova galeria de Lisboa Múrias Centeno é composta exclusivamente por obras sobre tela e obras sobre papel em que a bidimensionalidade é, aparentemente, o denominador comum: superfícies que recebem o grafite e se transformam em espaços negros e intensos. Poder-se-ia pensar que o resultado desta acção artística seria um rectângulo de cor, sem diferenciação, homogéneo, indiferenciado. Mas em nenhum momento estes rectângulos são idênticos: cada zona destes desenhos/pinturas é distinta e transporta-nos para uma zona sensível diferenciada, obrigando a sucessivos reposicionamentos do modo como nos aproximamos deles, isto é, a adaptações na forma como o corpo, a visão, a imaginação e o pensamento se colocam na sua frente. Estas obras têm uma filiação na arte minimal e em artistas como Tony Smith, Richard Serra ou Fernando Calhau, uma filiação que não é da ordem da cópia ou da citação, mas da partilha de uma mesma
que não é provocada por nenhum tipo de narrativa, mas pelo vazamento de todo o conteúdo da imagem, face ao qual o olhar se vê livre de todos os seus constrangimentos e da sua definição enquanto estrutura exclusivamente de registo da visualidade do mundo. O paradoxo importante que estes trabalhos põem a descoberto é como conseguir fazer ver a partir de um lugar onde nada se vê a não a ser a sua própria contigência: é o resultado de, no escuro, olhar para a escuridão da noite. Collinear Breath é fértil na maneira como nos lança no questionamento da escuridão dupla que habitamos: a de onde vimos e aquela para onde vamos. Mas é uma exposição desigual. Numa das paredes, um painel lembra a escultura emblemática House of Cards, de Richard Serra, em que as pesadas placas de aço estão apoiadas umas nas outras, sendo essas forças de tracção e suporte que compõem o objecto escultórico. No caso de Pimentão, o jogo de tensões é representado por um conjunto de telas negras que aparentam estar suspensas umas nas outras e tirar partido de vazios e intervalos, para depois se descobrir que essas tensões são inexistentes e se trata de um trompe-l’oeil. O problema desta ilusão não é o de ser ilusória (a boa arte é sempre um importante e bem sucedido truque de ilusionismo) mas o de não ser bem conseguida. Porém, se este painel falha na concretização da ilusão que parece ser a sua premissa, os desenhos de pequenas dimensões que se dobram sobre si mesmos, introduzindo profundidade, espessura e interioridade na experiência desta exposição, são excelentes e mostram as qualidade inegáveis do trabalho deste artista. Nuno Crespo
Livros
inquietação e, sobretudo, da mesma magia. E aqui magia diz respeito ao modo como um cubo ou uma superfície totalmente negras são mostrados enquanto coisas mágicas que não dizem nada, não expressam nada, não imitam ou representam coisa alguma e, mesmo assim, expelem infinitas imagens e são motivo de uma enormidade de experiências. Há nestas obras um radical jogo de esvaziamento — de referências, conteúdos, significados ou símbolos — do qual resulta a assunção de obras totalmente virtuais nas quais se podem inscrever todas as experiências, todos os significados, todas as narrativas. Didi-Huberman coloca a questão radical relativamente aos cubos de Tony Smith de saber a partir de onde olhamos estas obras, a partir de onde estabelecemos uma relação com aquelas formas que, aparentemente, nada dizem. São coisas excessivamente simples, sem qualquer narrativa ou figura, mas que nessa sua radical simplicidade activam a imaginação e fazem o espectador olhar para dentro de si; ou seja, são obras que apresentam um negro essencial face ao qual o olhar se humano se transforma num abismo, descobrindo-se na sua potência produtiva de gerar fantasias e imagens do mundo. Não há aqui nenhum tipo de tautologia em que as imagens negras se dizem a elas mesmas sem acrescentar mais nada; estas obras de Pimentão são dialécticas no sentido em que são interpeladoras, possuem uma energia que a cada olhar se vai libertado e, neste sentido, estão sempre a apontar para além de si próprias e a fazer do lugar da relação com o espectador o seu espaço principal de definição. Está em causa uma muito peculiar inquietação do olhar
Ensaio
A filosofia como filologia Dois nomes centrais do cânone filosófico e do cânone literário lidos por uma autora que sempre se moveu em zonas de confins. António Guerreiro As Nuvens e o Vaso Sagrado (Kant e Goethe. Leituras) Maria Filomena Molder Relógio D’Água
mmmmm Kant e Goethe são os autores em questão nos 13 textos reunidos neste volume, com um título que evoca o poeta alemão. “Textos” é uma maneira neutra de os nomear, já que na apresentação a autora lança uma funda suspeita sobre a possibilidade de dizermos que se tratam de “leituras de Kant e Goethe” (admitindo, porém, a justeza de uma outra declinação que, no frontispício do livro, é
justaposta ao título: Kant e Goethe. Leituras), ou de “estudos”. Não vamos aqui entrar nas questões formais respeitantes a classificações de género, mas esta hesitação terminológica formulada na abertura é um eloquente indício de algo que é essencial em todo o trabalho filosófico de Maria Filomena Molder, a questão terminológica e a factum loquendi, a experiência da linguagem. Compreendemos melhor do que se trata se nos lembrarmos do que Benjamin disse a propósito da terminologia: que ela é o elemento próprio do pensamento, o seu momento propriamente “poético”. E isto segue a par de outra coisa: Maria Filomena Molder procede com maníaca atenção filológica à letra dos textos, de tal modo que filosofia e filologia aproximam-se, entram numa relação de funcionalidade. E, no limite, respeitando muito embora uma velha cisão, tanto a filosofia é praticada como disciplina críticofilológica como a poesia — e a literatura em geral — é atraída para o pólo do conhecimento filosófico. Repare-se, aliás, que quase todos os textos têm como ponto de partida uma citação, um excerto transcrito, que é objecto de leitura e de comentário, tornando-se um ponto de irradiação do pensamento, que se desenvolve ENRIC VIVES-RUBIO
BRUNO LOPES
Alguns dos desenhos de Diogo Pimentão dobram-se sobre si mesmos, introduzindo profundidade, espessura e interioridade na experiência de Collinear Breath
Maria Filomena Molder tem o dom de ler os autores antigos com carácter de urgência e na sua irredutível actualidade ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 33
ROSA CUBILLO
como protocolo de leitura. Assim, o texto filosófico surge como uma espécie de literatura. Podemos ver na justaposição de Kant e Goethe uma manifestação do que acabámos de dizer. Mas talvez até nem seja a mais decisiva, já que Goethe, com os seus tratados, as suas teorias, os seus estudos científicos — e também enquanto autor de uma obra imensa onde se configura uma época — fornece matéria de vários e numerosos âmbitos disciplinares. Além disso, foi um leitor de Kant, de cujas “doutrinas” tentou tirar o “maior proveito”. Mas não é da leitura e recepção de um pelo outro que se ocupa este livro. Tentando fazer um mapa muito sucinto dos temas de que ele trata, devemos começar por dizer que, quanto a Goethe, predominam as questões do pensamento morfológico (e, portanto, são sobretudo os seus “estudos naturais” que estão em foco; mas comparecem também os dois dramas “puramente demoníacos”, Torquato Tasso e Fausto, e, longamente disseminada, a Viagem a Itália), o que permite a passagem para as afinidades entre poesia e ciência, entre arte e natureza, entre arte e conhecimento. Mas há também um capítulo dedicado à concepção goethiana da história; e passagens dedicadas a uma autoconsciência do moderno, tal como ela se manifesta em Goethe; e partes dedicadas ao diálogo com Schiller, passando por uma leitura, de grande alcance, do ensaio schilleriano sobre a oposição entre a “poesia ingénua” e a “poesia sentimental”. Quanto a Kant, trata-se quase exclusivamente da leitura da terceira Crítica, a Crítica da Faculdade de Julgar, atravessada por uma fundamental Unheimlichkeit, uma região inquietante para a qual Maria Filomena Molder aponta logo na apresentação do seu livro. Encontramo nele motivos suficientes para percebermos que a terceira Crítica é a mais actual das obras kantianas e que tal actualidade diz respeito directamente à tarefa da filosofia e ao “programa de uma filosofia vindoura”, como reza o título de um texto kantiano de Walter Benjamin, convocado no penúltimo capítulo deste livro. Os conceitos de arte e natureza (e o modelo kantiano de resolução do problema da relação entre ambos), assim como a “Analítica do Belo” e a “Analítica do Sublime” ocupam um espaço importante. Também aqui se colocam as questões da forma e do sem-forma, da imaginação e dos territórios de confim. O problema do limite em Kant, que Maria Filomena Molder analisa a partir de uma dupla acepção que, em alemão, é consagrada por duas palavras, Schranke e Grenze, encontra aqui o problema da terminologia de que falámos 34 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
inicialmente: em latim, terminus significa precisamente “limite”. Mas há também outro aspecto notável, que marca profundamente todo o trabalho filosófico e ensaístico de Maria Filomena Molder: a capacidade de aproximar de nós os autores mais antigos (os gregos são um exemplo perfeito), de os ler com carácter de urgência e na sua irredutível actualidade. Trata-se de um saber que procede por constelações, esbate as distâncias e os fios cronológicos, procura condições e instrumentos de legibilidade inesperados e trans-históricos.
reflexão, assume a condição de obra literária e a vontade de ser maior do que o ditador que nela fala. E da Angola de que parece estar a falar.
Um compêndio do coração José Eduardo Agualusa resgata uma das personagens mais fascinantes da história de Portugal em África. Rui Lagartinho
Ficção
A Rainha Ginga José Eduardo Agualusa Quetzal
Monólogo do ditador enquanto deus fálico
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Retrato escatológico de uma ditadura — povoado de referências indirectas ao país do autor, Angola. António Rodrigues O Ocaso dos Pirilampos Adriano Mixinge Guerra & Paz
mmmmm Entrar na cabeça de um ditador para ver o mundo de forma distorcida é uma atracção para muita gente, escritores incluídos. Essas personagens maiores do que a vida, que tendem a julgar o mundo pequeno de mais para o tamanho do seu ego, são demasiado tentadoras. Estão mesmo a pedir uma porta como a que Charlie Kaufman encontrou para entrar na cabeça de John Malkovich no filme de Spike Jonze. Norberto Fuentes escreveu a sua Autobiografia de Fidel Castro que não é auto, nem biografia, mas obra de ficção; Gabriel García Márquez havia criado antes O Outono do Patriarca, que Adriano Mixinge cita directamente como referência, onde se descreve uma ditadura latino-americana fictícia para mostrar de que matéria se faz um déspota; Mario Vargas Llosa conta a ditadura dominicana de Trujillo em A Festa do Chibo; bem antes, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias escrevera essa obra-prima do género que é O Senhor Presidente. Isto só para citar alguns exemplos daquilo a que se costuma chamar “romance do ditador”, subgénero em que este O Ocaso dos Pirilampos se encaixa perfeitamente. Apesar de angolano, Mixinge é um herdeiro da tradição literária latino-
Adriano Mixinge vale-se da tradição literária latino-americana, de que é herdeiro, para compor uma narração delirante e amoral
americana — tendo estudado em Cuba desde os 11 anos e passado grande parte da sua vida na ilha caribenha e em Espanha, onde hoje exerce o cargo de adido cultural da Embaixada de Angola em Madrid. Aquilo em que este livro se distingue da maioria dos seus congéneres é no assumir da narração pelo próprio ditador, sem espaço para nenhuma perspectiva se não a própria, num monólogo delirante e amoral, que tem o começo mais peculiar que se pode encontrar na literatura em língua portuguesa: “Ouvi um barulho estranho, persistente, ora abafado, ora agudo. Deu-me vontade de urinar. O que urinei encheu-me de maravilha: começaram a sair aviões e mais aviões da minha uretra, enquanto todo o meu corpo cavernoso, a minha glande e o meu prepúcio pareciam estalar.” Um ditador com cancro na próstata, deixando correr a escrita em catadupas de pensamento verrinoso, num fluxo amoral e acrítico que às vezes é lúcido na sua visão dos outros sem nunca perder esse lado de delírio febril de quem se julga “dono do tempo, da geografia e da ideologia”, confundindo corpo e país: “Os rios do meu corpo coincidem com as comichões da nação.”
O tom escatológico de toda a narração nunca se perde, bem como o falocentrismo de uma cultura machista que coloca ao mesmo nível as conquistas do pénis e a força das ideias e das lutas — “Da minha uretra saem estradas, escolas, hospitais, arranha-céus, autoestradas, fábricas, centros comerciais e de lazer, produtos de todo o tipo.” Por entre todo o delírio narrativo — e uma das conquistas do escritor é a sua capacidade de deixar que as águas desse rio de prosa corram revoltas dentro das suas bem vincadas margens —, o que fica para trás são os sedimentos de uma sociedade lutada em tons idealistas, pintada com a broxa da avidez e da ganância e espreitada com a película do cinismo que tudo contorce e justifica. A corrupção como “verdadeiro motor do mundo” e o mal e a desgraça como “um impulso transformador”. Não tem o livro contemplações no seu retrato (duro, visceral), a não ser o de deixar por nomear ditador e geografia; e há nele suficientes pistas para facilitar o processo de reconhecer de que pirilampos se fala. Porém, ao recusar deixar-se amarrar no desígnio da denúncia, e abdicar do carácter universalista da
De vez em quando, as coisas não corriam de feição no Império Português em África. O novo romance de José Eduardo Agualusa relembra-nos o tempo em que os holandeses cobiçavam Luanda, percebendo as fraquezas da pequena metrópole tomada pelos Filipes de Castela. Longe da pequenez da capital, numa altura em que o século XVII ainda era quase uma novidade, um padre pernambucano chega a Angola e tem uma visão que não é a de Nossa Senhora: “Na manhã em que pela primeira vez vi Ginga, fazia um mar liso e leve e tão cheio de luz que parecia que dentro dele um outro sol se levantava. Dizem os marinheiros que um mar assim está sob o domínio de Galena, uma das nereidas, ou sereias, cujo nome, em grego, tem por significado calmaria luminosa, a calmaria do mar inundado de sol.” O relato celestial de Francisco José de Santa Cruz não vai permanecer idílico, pois em breve, quando a luz se dissipar, perceberá que avistou sem ainda o desconfiar uma das mulheres mais controversas da história de Portugal em África ou de África em Portugal. Dona Ana de Sousa, ou Ngola Ana Nzinga Mbande, ou Rainha Ginga (1583-1663) foi uma rainha dos reinos do Ndongo e de Matamba, no Sudoeste de África. O seu título real na língua quimbundo — Ngola — foi o nome utilizado pelos portugueses para denominar Angola. Ginga, que se tornou mito na história de Angola, é-nos descrita nalgumas destas páginas envolta na geoestratégia da época. Quando escolhe ficar ao lado dela, trabalhando como seu secretário, o missionário Francisco José de Santa Cruz está a fazer uma escolha pecaminosa: “O Paraíso deixara de ser para mim algo
abstrato e remoto. O Inferno também. O Paraíso era ela e o ar que ela respirava, e o Inferno a ausência dela. A toda a volta só havia demónios.” Há nestes primeiros capítulos do relato do padre pernambucano o recurso à técnica da anestesia, o que nos permite desprendermo-nos da realidade e, enfeitiçados de encantos, prosseguirmos atrás dele. Neste contexto a tarefa é fácil, prazenteira e aceite pelo leitor de forma voluntária. O ponto de viragem acontece no capítulo quinto, onde se escreve que “há mentiras que resgatam e há verdade que escravizam.” É nesta altura que começam a saltar perigos dos caminhos que podem ser mosquitos ou leões, inimigos que eram aliados, piratas lendários quando a estrada é feita de mar: “Somos maus pela mesma razão que as pedras não caem para cima, quando as soltamos perdendo-se no céu. Somos maus por indolência.” A Rainha Ginga é um romance de aventuras bem escrito e sem retóricas falsamente sofisticadas onde se misturam lendas, figuras históricas e reflexões intemporais precisamente sobre o tempo. Escreve o padre Francisco: “Não habitamos ao longo da vida um único corpo, e sim inúmeros, um
diverso a cada instante.” Esta é uma vida pacificada por amores e desamores, sobressaltada pelo adrenalina que o cruzamento com verdadeiros piratas lhe deu, com uma duração felizmente grande para se poder distanciar, desprender. Francisco José de Santa Cruz é um achado de personagem na triangulação quase global que a sua biografia permite, unindo Portugal, Brasil e Angola. Quase no final do livro, temos notícias frescas de Ginga: a rainha, que um dia quis ser tratada por rei e que chegou a ter não um séquito de aias mas de aios, morre aos 80 anos em paz com os portugueses e com a Igreja Católica. Um dos trunfos do romance resulta disto: a sua figura tutelar, porque pertence quase ao domínio da lenda, aparece e desaparece e é-nos contada por alguém que, embora tenha respirado o mesmo ar que ela, aplica uma patine ao seu relato, não a deixando sair da imagem que a história fez dela. Aqui e ali o pitoresco e o detalhe de riquezas, modos de vida, datas, façanhas, salpicam o livro. Mas são apenas pintas, antes fruto do fascínio do próprio Agualusa em partilhar o muito que estudou e descobriu na preparação do livro — andanças e trabalhos que, de resto, muito lhe agradecemos. MIGUEL MANSO
História, lendas e reflexões intemporais misturam-se neste romance de aventuras de José Eduardo Agualusa
O velho Werther Um episódio real da vida de Goethe serviu de motivo a Thomas Mann para humanizar o poeta e mostrar as suas contradições. José Riço Direitinho Lotte em Weimar Thomas Mann (Trad. Teresa Seruya) Vega
mmmmm Em 1772, um jovem jurista de 23 anos, Johann Wolfgang Goethe, que por essa altura também iniciava a sua actividade literária, foi estagiar para a pequena cidade de Wetzlar. Apesar de o ambiente não ser dos mais estimulantes, ele acaba por reencontrar num baile o secretário da nunciatura de Hannover, Kestner, acompanhado da sua noiva, Charlotte Buff, por quem se apaixona de imediato. Cria-se uma sólida amizade entre os três, um ménage à trois, com visitas constantes de Goethe à casa da família Buff. Mas, passado algum tempo, o jovem Goethe acaba por deixar a cidade sem se despedir pessoalmente dos noivos. Dois anos depois, o poeta alemão publica o romance epistolar A Paixão do Jovem Werther, em que o protagonista (seu alter-ego) continua a frequentar a casa do casal Kestner (enquanto prepara o suicídio, com que o romance termina), mas não sem realçar que a sua paixão por Lotte (diminutivo de Charlotte), a protagonista feminina, era correspondida. Sabese que a verdadeira Charlotte Kestner, quando já sexagenária, visitou a família em Weimar, em 1816, e foi convidada para almoçar em casa de Goethe (então com 67 anos), “o grande poeta da Alemanha”. Desde que o jovem poeta deixara Wetzlar, nunca mais se tinham visto. Foi com base neste facto histórico (que mereceu a Goethe apenas duas breves notas escritas) que Thomas Mann escreveu as quase 300 páginas do romance Lotte em Weimar — o único do autor alemão que faltava traduzir para português. Escrito entre 1936 e 1939, este é um romance sobre o velho Goethe, ou, talvez melhor, um romance que, mais do que contrariar a tendência para o endeusamento do poeta, o vem humanizar, mostrar as suas contradições. A visita de Charlotte a Weimar funciona assim como um falso motivo para a escrita do romance, e não como a sua “causa”. “Mas aqui vê-se que os homens — e para mais os poetas — só pensam em si; pois a ele não
Estação Meteorológica António Guerreiro
Sendo que
T
ão frívola é a motivação deste texto e tão inútil o seu propósito que no final só fica um rasto de ociosidade. Trata-se, digamos com ênfase e presunção, de isolar uma praga da linguagem, um apêndice sintáctico “duro e resistente como o granito”, para utilizarmos as palavras que serviram a Hannah Arendt para definir a estupidez. E agora que a “coisa” já começou a ganhar alguma dignidade, por via da citação culta, é altura de nomeá-la: trata-se da conjunção “sendo que”, em regime de proliferação desde há já bastante tempo no medialecto, isto é, no dialecto próprio dos media em sentido lato (na imprensa escrita, na rádio e na televisão). Não é exclusiva de um jargão profissional específico, não é um “idiotismo” de profissão, e por isso é que se difundiu como uma praga medialectal (a obediência ao novo Acordo Ortográfico obrigar-nos-ia a escrever “medialetal”, introduzindo assim uma ideia funesta que nem a metáfora da praga, por muito demagógica que seja, consente; fiquemo-nos, pois, por pragas menos letais). É uma doença que atacou os híbridos, “sendo que” — ei-lo, com aspas, formulado como uma demonstração metalinguística — os híbridos são os políticos, comentadores, etc. Neste caso, nem é uma conjunção causal. E não vamos aqui discutir qual é o seu uso considerado gramaticalmente correcto e aquele que é considerado incorrecto: a questão normativa, do ponto de vista gramatical, fica de fora. Em todos os casos, agora que entrou no medialecto e ganhou a condição de um espasmo colectivo, não consegue ser mais do que um tique gerundivo que se apanha por mimetismo. Este tique sintáctico é, no discurso, “uma pequena zona endurecida, sinal de uma ferida cuja superfície é insensível”. A citação, agora, é de Adorno, mas refere-se evidentemente a outra coisa, ainda e sempre a estupidez — que ele também entendeu, de certa maneira (mas não exclusivamente) como uma formação medialectal e, grosso modo, cultural. Como já se percebeu pelas citações, este texto parte de um princípio de equivalência entre a estupidez e os actos linguísticos, entre a estupidez e a linguagem, tanto no aspecto lexical como no aspecto sintáctico; e é uma prova do fascínio que ela exerce e da impossibilidade de não ser contaminado por ela. Mas como pensar nisso é paralisante, e todas as precauções, neste domínio, estão condenadas ao fracasso, avancemos. “Sendo que” é uma forma torpe, equivale a uma injunção mecânica e a um reflexo mimético, abre um espaço liso no momento em que surge, contamina tudo à sua volta e torna-se motivo para uma suspeita mais funda: a de que não é uma pequena anomalia, um momento pontual em que sucumbe o discurso e é rasurado qualquer vestígio de algo a que possamos chamar ideia ou pensamento. Pelo contrário, o “sendo que” torna plausível a suspeita de que a anomalia pode estar por todo o lado, antes e depois. O tique correspondente ao “sendo que” é como um esgar lançado ao leitor, ao espectador, ao ouvinte, ao interlocutor, e funciona como o estereótipo, é dotado de uma forma de vida parasitária, expandese e multiplica-se por incrustação. A longa vida do “sendo que” e a sua capacidade de se difundir encerram um mistério: porque é que há palavras e expressões que “pegam” e se tornam uma praga? Onde está a origem, a fonte do caudal que vai engrossando? O que há nessas palavras e expressões que as torna tão obrigatórias e faz com que elas passem a ser repetidas sem moderação? Barthes escreveu uma vez que a língua era fascista porque obrigava a dizer. A lógica do medialecto pode ser analisada por este critério. ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 35
A partir de um episódio da juventude de Goethe, Thomas Mann reescreve temas como a moral e as suas relações com a arte e a política, a vida da burguesia alemã, o erotismo, a poesia, a verdade
lhe passa pela cabeça que nós temos de suportar as misérias da curiosidade tanto como ele, e ainda por cima há tudo aquilo que ele nos fez, ao teu bom e saudoso pai e a mim, com aquela sua desastrosa mistura de poesia e verdade…” Note-se que, por essa altura, o nazismo fazia um enorme aproveitamento do génio do poeta (aproveitamento esse que se iniciara já em 1932 com as comemorações enfáticas do centenário da morte de Goethe), mitificando-o de maneira a que servisse as suas intenções políticas. Na brilhante apresentação do livro feita por Teresa Seruya, recordamse os três ensaios escritos por Mann para essa efeméride, que apontam para uma “desmonumentalização” feita em sentido contrário ao que se passava nos ilustres círculos académicos simpatizantes do nacionalsocialismo. O nazismo oficial, logo em 1932, e em resposta a esses três ensaios, sublinha num jornal a total incapacidade de Thomas Mann para escrever sobre Goethe, considerando-o “um filosemita aparentado com judeus e um fraco, um pacifista”. Lotte em Weimar, um romance todo ele tecido e arquitectado em redor da visita de poucos dias daquela que foi a grande paixão do jovem Goethe e que lhe serviu de inspiração, é ao mesmo tempo (como muito bem nota a tradutora na introdução) uma reescrita dos temas que desde sempre foram explorados por Thomas Mann (e curiosamente também por Goethe): a moral e as suas relações com a arte e a política, a vida cosmopolita da endinheirada burguesia alemã, os estados pulsionais eróticos na juventude e na velhice, os mecanismos da criação artística, poesia e verdade, os demónios que vindos do inconsciente parecem assaltar de vez em quando as boas consciências, a decadência física, e o nacionalismo alemão em todas 36 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
as suas variantes. De algum modo, este romance agora por cá publicado parece continuar um projecto antigo de Thomas Mann, o de tornar “relativa” a grandeza de Goethe e de fazer dele uma “personagem literária viva”, ao tratar a decadência física e psicológica do artista e “a tragédia das suas paixões tardias” (fizera-o 20 anos antes em A Morte em Veneza), como escreve Teresa Seruya. Construído por nove capítulos, cada um representando de alguma forma a visita de uma personagem, Lotte em Weimar, não sendo um dos mais conhecidos livros do autor alemão, é um romance que faz de maneira singular, e talvez mais do que qualquer outro, um retrato e uma reflexão sobre as contradições e os mitos da Alemanha do século XIX.
Poesia
O mundo meu irmão longínquo A poesia precisa e elíptica de João Almeida encontrou há muito o seu lugar, mesmo que de difícil acesso. Hugo Pinto Santos
2000) — justifica o relativo silêncio que tem recebido a poesia de João Almeida. Sobretudo se atendermos ao facto de o autor ter colaboração dispersa mas frequente em revistas e edições colectivas. Esta escrita, precisa e elíptica, com uma firmeza de expressão adequada à rugosidade de que se rodeia, encontrou há muito o seu lugar. Um lugar escalavrado, cujos acessos não serão os mais fáceis, tortuoso nos seus caminhos. O primeiro verso do livro — “Saímos para a rua” (p. 9) — fornece uma indicação importante para a sua leitura: talvez mesmo para outros passos da poesia de João Almeida. A primeira parte de As Condições Locais chama-se, precisamente, A Estrada Plana, e recorde-se que o título do seu anterior livro era Um Milagre no Caminho (Averno, 2011). Noutros lugares de As Condições Locais, as deslocações — “Passam dois agarrados/ A passo rápido” (p. 29) — e o chão por elas pisado — “E sem acaso/ Vai levar o seu caminho” (p. 13) — têm uma presença que pode, sem grande extrapolação, considerar-se relevante — “Não tenho frio/ Mas
já o vi no caminho/ Como um salteador/ Sem piedade” (p. 25). O que ressalta destes exemplos não será tanto o simples facto, episódico ou meramente processual, de uma recorrência estilística. Passa-se, antes, que a própria atitude do sujeito poético se adequa e necessita, por assim dizer, dessa deambulação. Porque o seu contacto com o mundo, seu “irmão longínquo” (p. 46), é, simultaneamente empenhado e desprendido. A caminhada e os cenários nela rasgados estão, nestes versos, longe de uma postura de vagabundagem solipsista, ou, do outro lado do espectro, de uma posição calculadamente irónica. A energia e a compulsão patentes na atitude do sujeito entram em confronto com a ruindade de que se aproximam; as tensões sociais, os despautérios políticos e económicos aqui defrontados, fazem subir a temperatura do poema, mas apenas até onde o seu próprio termóstato permite, o que trava qualquer excesso. No seu caminho, As Condições Locais apropria-se de um léxico, ora oficial, ora institucional, cuja revolução o poema vai determinando. Termos como “perímetro de segurança” (p. 11), declarações como “escrevi no comunicado várias vezes” (p. 29), reparos, sempre oblíquos mas incisivos, feitos a um “salário/ Ratado” (p. 43), ou a fixação, no poema, de circunstancialismos tornados axiais, como “os inventários a seu tempo/ Serão feitos” (p. 47) — todos eles se insurgem, no tecer do verso, impondo-lhe uma gravitas própria. A qual se suspende sempre a tempo de deixar respirar o andamento elegantemente objectivo destas composições. O poema desenvolve o estado das coisas munindo-se dos aprestos do próprio mundo, pelo que o oficial se torna oficioso, nos foros de uma poesia cuja linha de tiro tem um alcance muito próprio, voltado, precisamente, para o mundo em redor. A proposição deste poeta e desta poesia exprime-se pela negativa — “Nunca cantaria uma ANA GUIMARÃES
As Condições Locais João Almeida Opera Omnia
mmmmm Nem uma publicação comparativamente discreta — cinco livros, desde O Mal dos Postes de Alta Tensão (Black Son Editores,
A poesia de João Almeida tem uma linha de tiro com um alcance muito próprio, voltado para o mundo em redor
cidade/ As ruas as pessoas todas as ladainhas/ Nem as serras e os montes/ Talvez um cão” (p. 43). Ao listar os temas que recusa — mas que, na verdade, desenvolve —, o que João Almeida faz é demarcar um território e projectar um limite. Assim, a sua poesia não se resigna ao servilismo de fazer assim, ou de outra forma qualquer, de escolher este tema, ou aquele, mas estreita o seu âmbito até chegar ao cão. Este bem poderia constituir um dos símbolos para o entendimento da poesia de quem já escreveu: “riscar o que não interessa” (Glória e Eternidade, Teatro de Vila Real, 2009), ou “o resto é abaixo de gato” (id.). Nisso revela uma opção clara: descer, descer e descer, desde a elevação lírica, até ao chão. E lá ficar. Um poema como Sobe Fumo do Vale Fértil (p. 45) permitiu a João Almeida problematizar certos aspectos conotados com o fenómeno religioso e, porventura, também relacionáveis com as “condições locais”. Nele, parte de um conjunto de elementos declaradamente inscritos no mecanismo, léxico e ritualismo eclesiásticos – “Os cónegos regulares”, “Santo Antão”, “os crentes” —, reconverte alguns desses sinais noutra coisa que não exactamente o ponto de partida, transformando a fórmula de uma prece na denúncia de um estado de coisas — “pão-nosso daquele dia” –, para, por fim, dirigir a sua adaptação da Palavra num verso que, isolado em monóstico, dissolve a atmosfera espiritual que se insinuara, mas se subverte gradualmente — “Eu posso atirar a primeira pedra”. Não é que o poeta, ou o seu avatar, o sujeito deste poema, se invista de qualquer poder ou estatuto especial; simplesmente, o seu poder de observação permite-lhe o afastamento e a aproximação essenciais para poder encetar aquele gesto. Quais as “condições locais” deste livro? Talvez as de uma “cidade sitiada” (p. 9), ou as contidas num “alfinete municipal” (p. 39). E, porventura, as mesmas que ditaram que, num outro livro, João Almeida tivesse citado um edil energúmeno — “quem faz greve não tem direito a consoada” (A Formiga Argentina, Averno, 2005). Ou seja: em meio hostil, esta poesia reage perante o que a condiciona e a impele. Lugares cercados por fogo e por explosões: de fogo e de carne; animais que já não é possível voltar a ver; um ar que se respira deliberadamente; um novo Prometeu, roído nos fígados, e um estropiado coração “no caixote do lixo indiferenciado” (p. 30); o alimento resumido a uma ração; o nomadismo do salário em salário. Não serão estas as condições? Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets
Discos
O novo disco dos Swans acende luzes na zona do cérebro onde se congemina o medo: o mal, antes grotescamente explícito em torrentes de som, é agora uma detalhada operação de atentado à psique
Pop
Tochada da grossa Ainda há ruído nos Swans — mas agora também há cordas, coros e até um groove sexual. Bem-vindos ao inferno (ou à vida) segundo Michael Gira. João Bonifácio Swans To Be Kind Young God Records
mmmmm Por amor à vossa saúde, mantenham um espelho à vossa frente durante a escuta de To Be Kind. É que os Swans podem já não ser a máquina de espancar aparelhos auditivos de antigamente, mas no lugar do ruído absurdo que usavam antes para nos atacar está agora uma máquina indutora de disrupção, muito mais refinada na arte da tortura mental, com uma capacidade insana de conjugar sons assustadores cuja audição consecutiva pode muito bem endrominar o vosso aparelho perceptivo, ao ponto de ficarem com um dos lados da boca apanhado (possível AVC) ou com o batimento cardíaco acelerado (possível ataque de ansiedade) ou com a audição e a visão alteradas (possível ataque de pânico), entre outras maleitas. Antes, o mal nos Swans era grotescamente explícito em torrentes de som; agora é uma cruel e detalhada operação de atentado à psique, em que um simples truque (um móbil rítmico, uma ideia melódica) vai sendo repetido, incrementado por minúsculas harmonias dissonantes (que podem advir de instrumentos orgânicos ou não, é difícil precisar a origem do som e quer-me parecer que essa
confusão é propositada) que assinalam luzes na zona do cérebro onde se congemina o medo. Detalhes harmónicos acumulam-se, aumentam de intensidade, crescem, enquanto a voz de Michael Gira começa por sugerir um registo meditação oriental (seja isso o que for), antes de a meditação ir para o galheiro e acabar tudo à pancada com a instrumentação a ser vítima de abuso. Bring the sun/Touissant l’ouverture, a quarta faixa, é exemplo disso: se conseguirem escapar às incontáveis canções diferentes encerradas nestes 34 minutos sem os vossos intestinos, estômago e baço acabarem num nó, se conseguirem chegar impávidos ao fim destes 34 minutos desenhados para escachar o interior da vossa caixa craniana, se conseguirem chegar ao fim destes 34 minutos sem se deitarem na cama em posição fetal a chuchar no dedo e a murmurar “mamã, mamã, porque me abandonaste?”, então parabéns: ou sois dos duros, ou precisais de urgente ajuda psiquiátrica. Não se retire daqui que os Swans andam formulaicos: a ideia de acumulação tem demasiadas variantes para que se possa rotular To Be Kind; na escassa meia-dúzia de minutos de Some things we do (a canção mais curta do disco fica-se pelos cinco minutos, mas em média os temas atiram-se à dezena) há cordas e um órgão pleno de reverberação enquanto Michael Gira, o xamã da banda, narra “We fuck, we love, we forget, we regret, we cheat”; durante os 17 minutos de She loves us há palmas, coros, cânticos que parecem movidos a alucinogéneos, uma explosão noise pelo meio e rock cheio de groove mais à frente. Groove que, não sendo um dos elementos mais presentes de To Be Kind, quando surge é à séria — e não é por acaso que Gira tem afirmado que este é um disco que também serve (e parafraseamos a eloquente definição de Gira) para foder, mas foder durante muito tempo e à bruta. Uma faixa atmosférica abranda o ritmo cardíaco antes do ataque aos sentidos de Oxygen, e o
groove regressa numa secção de Nathalie Neal (10 minutos de rock pérfido e suado). No final de To be kind, a última faixa, há mais explosão sonora antes do silêncio — para trás ficou uma travessia pelas emoções mais extremas que um ser humano ocidental pode experimentar, musicadas de forma a que nunca se adivinhe o que vem a seguir. O que Michael Gira nos diz, com os seus período de silêncio seguidos de rajadas de guitarras ou múltipla artilharia sonora atacando-nos de todos os lados, pode ser reduzido a isto: tu podes tentar controlar tudo o que quiseres; mas o caos domina o mundo e é muito mais poderoso do que tu. Sê humilde e reza para que não te caia o azar em cima. Obraprima.
A soul que vem dos Jungle Jungle Jungle XL Recordings; distri. Edel
mmmmm Há um ano, os ingleses Jungle, ou seja a dupla Josh LloydWatson e Tom McFarland (só
conhecidos pelas siglas J. e T.), lançaram o single Platoon, que acabou por fazer relativo furor em Inglaterra. Surgiram depois videoclipes e alguns espectáculos ao vivo, onde a formação se alarga para sete membros, que lhes granjearam projecção — actuaram há uma semana no festival Alive em Lisboa. Chega agora o álbum de estreia que persegue os desígnios que já se lhes reconheciam. Ou seja, são o tipo de projecto que parece ter sido laboriosamente pensado em estúdio, com uma sonoridade que parece apenas de cariz electrónico, mas onde na verdade todos os elementos foram tocados em detalhe. O que daí resulta é uma sonoridade soul-funk personalizada, com tanto de cerebral como de emocional. Dito assim, pode não parecer entusiasmante. E é verdade que não é um álbum uniforme. Mas as canções mais inspiradas acabam por suplantar eventuais fragilidades, com uma estrutura rítmica simples, harmonias bem desenhadas e uma voz em falsete eficaz. É uma música luxuriante, com tanto de fervor como de contenção, sendo capaz de evocar o passado da soul, do funk ou da pop, sem ficar presa a qualquer nomenclatura. Uma música que tanto pode ser desfrutada em ambiente doméstico, em contexto de dança ou em espectáculo ao vivo, sem que seja totalmente perceptível qual o seu habitat natural. O que não constitui propriamente um problema, já que a se equilibra de forma subtil entre opostos. Há quem compare os Jungle aos Massive Attack do primeiro álbum, no sentido em que no longínquo ano de 1991 o grupo de Bristol foi capaz de misturar tipologias diferenciadas, fazendo renascer em algumas canções a soul em toda a sua frescura. São contextos diferentes. O álbum dos Jungle não tem esse fôlego. Mas acaba por resultar num bom conjunto de canções com soul lá dentro. Vítor Belanciano Veja os videoclips na edição do ípsilon para tablets
Harmonias bem desenhadas, luxuriantes, com soul lá dentro, e um falsete eficaz: eis os Jungle ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 37
Cinema Apesar de tudo o que os aproxima, Bom Dia, A Flor do Equinócio e O Fim do Outono são filmes bastante diferentes
38 | ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014
Estreiam
Um Verão com Yasujiro Três filmes do período final do cineasta japonês, que abraçou a cor como uma cereja — bem vermelha — em cima do bolo. Luís Miguel Oliveira Bom Dia Ohayô De Yasujirô Ozu Com Keiji Sada, Yoshiko Kuga, Chishû Ryû
mmmmm A Flor do Equinócio Higanbana De Yasujirô Ozu Com Shin Saburi, Kinuyo Tanaka, Ineko Arima
mmmmm O Fim do Outono Akibiyori De Yasujirô Ozu Com Setsuko Hara, Yôko Tsukasa, Mariko Okada
mmmmm Depois de Viagem a Tóquio e O Gosto do Saké, no ano passado, o Verão de 2014 traz às salas comerciais mais três filmes de Yasujiro Ozu. Pertencem todos ao período final, e colorido, da obra do genial cineasta japonês, e foram realizados quase em sequência: A Flor do Equinócio, que foi o primeiro filme a cores de Ozu e inaugura, portanto, esta derradeira fase, é de 1958, Bom Dia de 1959, e O Fim do Outono de 1960. Para se cobrir na íntegra o período colorido de Ozu ficam a faltar Ervas Flutuantes, realizado entre o segundo e o terceiro destes títulos, e O Outono da Família Kohayagawa, penúltimo filme antes do fecho de obra com O Gosto do Saké. Por esta altura Ozu, que filmava desde os anos 20, tinha mais do que estabilizado um estilo e um “sistema”. Abraçou a cor como
uma cereja — bem vermelha — em cima do bolo, e compreendeu imediatamente, e de forma inequívoca, como podia utilizá-la de maneira expressiva e ao mesmo tempo subliminar — é reparar, por exemplo, nas tonalidades dominantes de cada um destes três filmes e no modo como elas afectam não tanto a história que está a ser contada mas a maneira como o espectador a recebe: em A Flor do Equinócio os tons claros, amarelos acastanhados e cinzentos (sem menosprezar a chaleira vermelha que parece lá estar, sempre no mesmo canto, para o espectador não se perder na organização arquitectónica da casa da família protagonista); em Bom Dia, os vermelhos e os castanhos escuros, como que a rimarem a juventude rebelde dos miúdos que o protagonizam; em O Fim do Outono, cinzentos e verdes em várias gradações. Mas o arsenal expressivo e os elementos essenciais da mise en scène de Ozu, cada vez mais “limpos”, mais minimais, mais isentos de palha supérflua, prosseguem o caminho a que ele já tinha chegado, há anos, no preto e branco: a câmara em posição muito baixa, sempre em contrapicado, para que se inventou a designação de “câmara-tatami”; os campos-contracampos em ângulo recto e frontalidade absoluta e os outros, que parecem erros de raccord, em que os interlocutores são filmados como se estivessem a olhar em direcções diferentes (em A Flor do Equinócio Ozu faz um uso magistral disto, na cena da conversa entre o pai e a mãe no passeio dominical); os planos ditos de “pontuação”, quase sempre estruturalmente semelhantes, como os corredores vazios cruzados ao fundo por outro, perpendicular (formando um “tê”), onde alguém passa, ou os interiores temporariamente desabitados, ou ainda esses exlibris de Ozu que são os planos de roupa estendida e os planos de comboios no horizonte. Vezes sem conta, ao longo destes três filmes, encontraremos este tipo de imagens e de procedimentos. Que são, apesar de tudo o que os aproxima e da evidência da assinatura de Ozu, filmes bastante diferentes. A Flor do Equinócio põese na perspectiva dos pais (e portanto da geração que tinha a idade de Ozu, 55 anos, naquela época) para a comentar criticamente. Há um pai que fica furibundo quando a filha recusa o casamento “arranjado” que ele planeava para ela (como “arranjado” fora o dele e da mulher, a lendária e sempre espantosa Kinuyo Tanaka). O que o enfurece é menos o noivo que a filha escolheu de moto próprio, que parece bom rapaz e nada indicia vir a ser mau marido, e mais ela tê-lo escolhido sem o consultar e sem se importar com as convenções do que “deve ser”. A questão cultural que Ozu põe,
neste filme onde as filhas aparecem e desaparecem (das casas e dos planos) como se não houvesse mão nelas, é profundamente japonesa: a obediência. É um valor essencial para o pai, como se vê, perto do fim, na estarrecedora cena da reunião de velhos amigos em que um deles (Chishu Ryu) declama um poema do tempo da guerra que começa por jurar obediência ao Imperador. Cristalinamente, e sem qualquer retórica, A Flor do Equinócio reflecte a mudança de mentalidades no Japão moderno, a falha geracional entre a geração de antes da guerra e a geração que cresceu depois dela. A obediência também é uma questão em Bom Dia, o filme que, destes três, mais genuinamente pode ser considerado uma comédia (incluindo piadas com gases intestinais e tudo). O cenário social é mais complexo, um subúrbio de Tóquio, e as personagens não são os homens de negócios, bem na vida e bem na cidade, de outros filmes. Mas a questão das convenções é, mais uma vez, motriz, através da confusão e intriguice lançada na vizinhança quando dois garotos, como “greve” para reivindicar aos pais a compra de uma televisão, deixam de falar e de cumprimentar seja quem for. É de certa maneira um filme sobre a linguagem de circunstância e sobre os formalismos sociais tão presentes na vida japonesa, mas é também, e mais directamente, outro olhar “em corte” sobre um momento preciso: o início da “era do electrodoméstico” (também há uma questão com máquinas de lavar), a chegada em massa da televisão aos lares japoneses. Resolvido em ambiguidade, porque se Ozu está claramente com os miúdos na sua reivindicação, não deixa por isso de estar também com o pai deles (Chishu Ryu, actor-chave de Ozu, aqui mais protagonista do que nos outros dois filmes), que se recusa a comprar o aparelho por profetizar que “a televisão vai criar uma sociedade de idiotas”. Finalmente, O Fim do Outono é o filme que mais se entrega àquela espécie de romantismo, muito seco, muito sereno e muito dilacerado, com que Ozu olhou para as relações familiares. É um filme de mulheres, curiosamente, várias mulheres jovens, aguerridas e senhoras do seu nariz, e uma mais velha (Setsuko Hara). Os homens fazem planos para elas (um grupo de amigos quer casar a filha órfã de um deles, já falecido, e lembram-se de encontrar novo marido para a viúva), mas o filme, depois de vários e movimentados quiproquós (talvez seja o mais rápido destes filmes, embora seja o mais longo), acaba com as mulheres a decidirem por elas próprias e os homens entregues aos seus whiskys e aos seus sakés. Acima de tudo é uma história de amor entre mãe e filha, quase uma versão feminina de O Gosto do
Saké, em longa preparação para o momento em que a mais nova irá à sua vida e a mãe ficará entregue à sua solidão e às suas memórias. É sublime, como sublime é Setsuko Hara, capaz de rematar o diálogo mais despedaçador com um sorriso e uma rápida mudança de assunto, “foi mesmo agradável esta viagem”. Deseja-se que a viagem do leitor por estes três filmes geniais seja, igualmente, agradável.
Um espelho quebrado Um filme italiano dos anos 50 feito nos Estados Unidos do século XXI. Luís Miguel Oliveira A Emigrante De James Gray Com Marion Cotillard, Joaquin Phoenix, Jeremy Renner
mmmmm Na superfície, A Emigrante não foge ao que James Gray anda a fazer há 20 anos, em pouca quantidade (este é só o quinto filme de longa-metragem) mas com a convicção suficiente para fazer desta curta obra uma das poucas coisas realmente essenciais no cinema americano contemporâneo. O caminho aberto por Viver e Morrer em Little Odessa, de 1994 (os 20 anos são exactos), ainda não deixou de ser trilhado, continuam a ser a imigração e as comunidades imigrantes na região de Nova Iorque o centro do interesse de Gray, mais precisamente as comunidades oriundas da Europa do Leste e, muito em particular, a russa — origem familiar de James Gray, cujos avós chegaram à América nos anos 20 e podem ser vislumbrados em A Emigrante, numa referência “privada” que o realizador descodificou a posteriori, através duma fotografia num medalhão. Gesto simples e silencioso, a incrustar uma dimensão pessoal numa história que, para além do contorno comum, não é a dos seus antepassados (a começar pela origem da “emigrante”, que no caso é polaca). Mas para além da superfície, é possivelmente o filme mais radical que Gray já fez. Sobre o tema, em primeiro lugar, visto que vai à raiz. Se nos seus outros filmes o ambiente ou era contemporâneo ou visto com um recuo temporal escasso (caso de Nós Controlamos a Noite, situado no final dos anos 80), e se tratava portanto de comunidades já integradas, mal ou bem, e submetidas a algumas camadas de aculturação, aqui vamos ao momento inicial, ao momento que podia ser o princípio das quatro famílias descritas nos precedentes quatro filmes do realizador: o momento em que alguém, com uma mão à frente e
A ópera tem presença real no filme, e James Gray falou dela como uma das suas principais inspirações
outra atrás, aportou a Ellis Island nos anos 20, fugindo do rasto de pobreza deixado a Leste da Europa pela I Guerra Mundial. É por aí que o filme começa, e pelo símbolo maior do acolhimento americano aos desvalidos do mundo inteiro, a Estátua da Liberdade, mostrada num dia de cinzento outonal que não mais abandonará o filme, e marcada por uma silhueta sombria (a de Joaquin Phoenix, outra vez the man in black) que antecipa a moral da história: o “sonho americano” não é um conto de fadas. Não é em fada, mas em algo bem distante de uma fada, que a pobre Marion Cotillard (Ewa, “a emigrante”) se verá transformada às mãos de Phoenix. A Emigrante, que reverbera alusões religiosas por todo o lado e tem uma das suas cenas mais memoráveis num confessionário, é uma via crucis, uma tragédia de sofrimento e sobrevivência, ou de sofrimento para a sobrevivência, onde faz todo o sentido que Gray venha dizer que pensou em Cotillard como na Falconetti de Dreyer (sendo que, e é a única reserva ao filme, se poderia perguntar se Cotillard está mesmo à altura de tudo o que o filme deposita nela). Nesse sentido, e mais ainda do que em Duplo Amor (onde pela primeira vez Gray largava o universo de género policial), esse é o filme em que o realizador mergulha radicalmente no melodrama, e se
assim faz sentido dizer, na sua expressão mais pura, aquela que ainda não esqueceu a sua raiz melómana. A ópera tem presença real no filme, e Gray falou de ópera como uma das suas principais inspirações (concretamente, a encenação de William Friedkin para uma das óperas do Tríptico de Puccini), mas é no seu movimento, no seu élan, que A Emigrante adquire uma dimensão “operática”, através duma dramaturgia transbordante que faz do “sentimento” (do “senso” no sentido viscontiano do termo) o seu motor, total e unificador. Gray já tinha falado de Visconti a propósito de Duplo Amor, mas é aqui que a referência faz todo o sentido. Não é Ford, não é Coppola, não é sequer o cinema americano: A Emigrante é um filme italiano dos anos 50 feito nos Estados Unidos do século XXI. Nem por isso deixa, evidentemente, de ser uma história americana. E de certo modo a história de uma cisão, ou de um choque com a realidade, de uma ideia da América. Há dois homens na vida de Ewa, o sombrio Phoenix e o seu primo mais luminoso ( Jeremy Renner). Até certo ponto, são como os irmãos desavindos, ou atraídos por lados diferentes do Bem e do Mal, que conhecemos doutros filmes de Gray. Neste caso, sem serem “arquétipos” de coisa
AS ESTRELAS DO PÚBLICO
Jorge Mourinha
Luís M. Oliveira
Bom Dia
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Vasco Câmara
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A Emigrante
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Um Castelo em Itália O Fim do Outono
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A Flor do Equinócio
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Ida
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Night Moves
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mmmmm
Omar
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O Teorema Zero
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Snowpiercer
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a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
nenhuma (a personagem de Phoenix é espantosa na sua complexidade moral, não é uma “ideia”, é um homem perturbado, capaz, como os homens perturbados, de fazer uma patifaria com uma mão e um gesto altruísta com a outra), representam algo que está para além deles. Phoenix, o proxeneta, é o comerciante, chamemos-lhe o Mr. Business; Renner, o ilusionista, é o homem do espectáculo, chamemos-lhe o Mr. Show. Juntos, representam dois pólos diferentes, a realidade pragmática, e a ilusão. O filme é também o diálogo entre estes dois termos, se o quisermos ver como “filme sobre a América” que a algum nível nunca deixa de ser. Para narrar, rumo a uma estranha paz, a da aceitação, a cisão desta imagem original, como se fosse um espelho quebrado. E não é, naquele extraordinário plano final onde Gray re-inventa (mas reinventa mesmo) o split screen, um espelho quebrado aquilo que toma conta do ecrã?
#occupy o comboio A primeira experiência internacional do coreano Bong Joon-ho é um entretenimento visceralmente moral em tom de ficção científica apocalíptica. Jorge Mourinha Snowpiercer — O Expresso do Amanhã Snowpiercer De Bong Joon-ho Com Chris Evans, Song Kang Ho, Tilda Swinton
mmmmm Era uma questão de tempo até os cineastas da recente nova geração coreana se deixarem seduzir pelo mercado internacional — e se de Kim Jee-woon a dirigir Arnold Schwarzenegger em O Último Desafio ninguém se lembrará, Bong Joon-ho (ele dos excelentes The Host — A Criatura, 2006, e Mother — Uma Força Única, 2009) evita à tangente esse destino. Dizemos “à tangente” porque Snowpiercer foi alvo de uma guerra surda com o bully Harvey Weinstein, o ex-patrão da Miramax, que bloqueou a distribuição internacional
Snowpiercer: um talento em “compasso de espera”
enquanto Bong não cedesse a alterações no filme, e que o cineasta coreano ganhou sem precisar de fazer concessões. Ainda bem que Bong ganhou. Snowpiercer, que adapta livremente uma BD distópica francesa e foi co-escrito por Kelly Masterson (argumentista do adeus de Sidney Lumet, Antes que o Diabo Saiba que Morreste), é aquilo que Hollywood já há muito não nos consegue dar — um grande filme popular de acção e ficção científica que funciona também como pequeno manual político sobre o potencial revolucionário de uma sociedade em crise. Snowpiercer não se deita fora logo em seguida como o balde das pipocas, a sua distopia perigosamente plausível é um espelho distorcido do presente em que vivemos, onde as disparidades sociais atingem o âmago da dignidade humana e uma acção violenta tem uma consequência moral que não se pode descartar. Num mundo futuro que a tecnologia e o aquecimento global condenaram a uma apocalíptica idade do gelo, os únicos sobreviventes habitam um comboio em movimento perpétuo onde a sociedade está rigidamente dividida de acordo com papéis pré-determinados, e as “carruagens de trás”, cansados de serem tratados como carne para canhão, decidem revoltar-se e assumir o controlo. Nestes dias do movimento #occupy, das primaveras árabes e das revoluções nas redes sociais, Snowpiercer é uma espécie de #occupy-o-comboio que escapa à dimensão puramente didáctica que podia ter porque Bong Joonho o trata como entretenimento visceral e clássico, cujo aparente maniqueísmo é gradualmente matizado até ao final que baralha os dados do que ficou para trás. Esse baralhar os dados é uma das marcas centrais do cinema do coreano — uma insistência em olhar para lá da evidência, em não ficar apenas pela superfície, sempre ancorada nas personagens e no seu perfil (e, mais uma vez, é de família que aqui se fala, por portas travessas). E essa atenção às personagens atribui a cada evento, a cada incidente da viagem em direcção à locomotiva, um questionamento moral, sobre os limites da dignidade humana, onde a violência (muito “coreana”) que jorra se torna essencial para a compreensão. É verdade que, comparado com o que Bong fez antes, há um lado mais formatado em Snowpiercer, pensado desde o princípio com vista ao mercado internacional, mas a boa notícia é que é o cineasta não se deixou “tolher” nem perdeu de vista a dimensão imprevisível do seu cinema. Não se espere aqui o choque da descoberta, apenas um talento em “compasso de espera” mas em absoluto controlo daquilo que está a fazer. Hoje em dia, já é muito.
Continuam Ida De Pawel Pawlikowski Com Agata Kulezsa, Agata Trzebuchowa, Dawid Ogrodnik
mmmmm Uma das pequenas boas surpresas que por vezes aparecem pelo meio de lançamentos só para tapar buracos, Ida é uma miniatura modesta e inteligentíssima, sobre o “despertar” para a vida de uma jovem noviça na Polónia comunista de 1962. O encontro de Ida com a sua única parente viva abre uma “caixa de Pandora” dobrada de olhar lúcido sobre um país em transformação, entre os sonhos de futuro de um músico encontrado por acaso e o passado transtornado que a tia transporta desde a II Guerra Mundial. Ida está no meio, entre o espiritual e o carnal, entre a religião e a política, e Ida é a história das suas escolhas e dos seus porquês, encenada ao mesmo tempo com uma austeridade cinéfila à prova de bala e uma atenção às personagens herdada da “tradição britânica” em que Pawel Pawlikowski se formou. J.M. Omar De Hany Abu-Assad Com Adam Bakri, Leem Lubany, Waleed F. Zuaiter
mmmmm Depois do êxito global de O Paraíso, Agora! (2005), o palestiniano Hany Abu-Assad deixou-se seduzir por uma complicada experiência em Hollywood que deixou sequelas: o “regresso a casa” de Omar enquadra o conflito israelopalestiniano num prisma de filme policial, com um herói titular apanhado numa engrenagem de traições que o ultrapassa, forçado a descobrir por si próprio quem o entalou entre a espada e a parede. Dos dois lados do muro da Cisjordânia, Omar ouve que a escolha de pegar em armas contra Israel foi sua — o que Abu-Assad demonstra, com um fatalismo quase desesperado, é que essa escolha nunca lhe pertenceu verdadeiramente, que estava condenado a ela por ter nascido na Palestina contemporânea. Mas, apesar dos melhores esforços de autor e actores, é impossível ver Omar como um film noir ao sol de Gaza: o lado de género que AbuAssad procura é inevitavelmente abafado pela dimensão política a que nunca se pode subtrair, sem nunca encontrar o equilíbrio entre ficção narrativa e olhar sobre uma realidade política que O Paraíso, Agora! conseguia ter, sobretudo com uma primeira metade francamente desinspirada. J.M. Veja os trailers das estreias na edição do ípsilon para tablets ípsilon | Sexta-feira 25 Julho 2014 | 39
01 — 10 / JAZZ EM AGOSTO 2014 / LISBOA
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