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O Cavaleiro Inexistente contra o platonismo Nuno Nunes
O Cavaleiro Inexistente contra o platonismo – Nuno Nunes
Todos os direitos reservados ao autor © Nuno Nunes, 2007. nunonunes3@gmail.com www.nunonunes.vox.com Saci Edições www.saciedicoes.blogspot.com
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O Cavaleiro Inexistente contra o platonismo – Nuno Nunes
O Cavaleir o I nexistente contr a o platonismo Nuno Nunes Florianópolis, Dezembro de 2007.
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Introdução
Tendo que escrever um artigo para apresentar ao Professor da disciplina Antropologia das violências e dos conflitos, levantome da cama ensopada de textos e livros e sentome na cadeira de fronte ao computador para ver quais idéias saemme da caixola, depois de um semestre lendo e debatendo páginas sobre o tema. Eis que, de repente, algo inusitado me ocorre. Tão inusitado que custo a crer em sua existência real, sendo o mais óbvio crer em sua inexistência. Aproximome da estante de livros e textos fotocopiados em meu quarto de estudante, bagunçado e com cheiro de café nas bordas das páginas, e a obra clássica do pensamento fantástico de Ítalo Calvino arremessase do alto da prateleira sobre minha cabeça causando dor. Tamanha a queda e o choque com minha testa, caio desmaiado. Estou no chão com a mão na testa. Sobre mim o livro que despencara da estante: “O cavaleiro inexistente”, de Ítalo Calvino. Verifico minha posição e levanto. Ainda tonto pelo golpe do amontoado de folhas, lembreime de quando lia aquele livro, narrativa da estória de um cavaleiro paladino fiel ao Imperador da França Carlos Magno, que além de sua impecável armadura branca em meio à poeira da guerra, trazia como estranha virtude o fato de inexistir. Questionado pelo seu Imperador “Como está servindo se não existe?”, respondeulhe: “Com força de vontade!”.
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O fato de um cavaleiro inexistir acompanha intrigantemente a qualquer que venha ler esta obra fantástica, por certo. Ainda mais que a simples condição de sua (in)existência seja sua própria “força de vontade”. Bem, destarte que foi questionado ao longo do texto sobre sua real nobreza em carregar um nome de “cavaleiro”. O agora chamado Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, corria o risco de não poder mais carregar esta patente, pois o feito inicial que lhe permitira a nomeação de cavaleiro, a saber, a salvaguarda da virgindade de uma donzela de família nobre, havia sido posta em cheque por um rapaz, Torrismundo da Cornualha, que afirmava ser parido daquela antes do feito heróico do armado cavaleiro inexistente. Dando a declarar a todos da imperial cavalaria, inclusive ao Imperador Carlos Magno, poder estar errada a primeira nomeação, colocando em suspenso toda a existência de cavaleiro naquela armadura branca erguida por sua própria “força de vontade” e chamada: cavaleiro inexistente. Tendo sido forjada, aquela armadura em cavaleiro, num tempo em que “era confuso o estado das coisas no mundo”, segundo o autor, onde Não era raro defrontarse com nomes, pensamentos, formas e instituições a que não correspondia nada existente. E, por outro lado, o mundo pululava de objetos e faculdades e pessoas que não possuíam nome nem distinção do restante. Era uma época em que a vontade e a obstinação de
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existir, de deixar marcas, de provocar atrito com tudo aquilo que existisse, não era inteiramente usada, dado que muitos não faziam nada com isso – por miséria ou ignorância ou porque tudo dava certo para eles do mesmo jeito – e assim uma certa quantidade andava perdida no vazio. Podia até acontecer então que num ponto essa vontade e consciência de si, tão diluída, se condensasse, formasse um coágulo, como a imperceptível partícula de água de condensa em flocos de nuvem, e esse emaranhado, por acaso ou por instinto, tropeçasse num nome ou numa estirpe, como então havia muitos disponíveis, numa certa patente da organização militar, num conjunto de tarefas a serem executadas e de regras estabelecidas; e – sobretudo – numa armadura vazia.1
Pois bem, o fato estórico interessante, e que nos leva a até aqui, quando deveríamos escrever um artigo para a disciplina o qual o professor espera que seja entregue, é que, após abandonar a campanha de guerra a fim de comprovar sua real nomeação pela salvaguarda da virgindade da donzela, percorrendo a Europa e África atrás do paradeiro da moça, reencontraa o cavaleiro inexistente e descobre, enfim, que aos treze anos não era mesmo virgem por ter parido um menino que lá estava também para comprovar o engano, juntamente com Carlos Magno, o Imperador. Defronte à vergonha da comprovação de seu erro, ter (in)existido como cavaleiro por tanto 1
CALVINO, Ítalo, O cavaleiro inexistente, Companhia das letras, São Paulo, 2005. (p. 31).
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tempo, resguardandose por detrás de um nome e uma patente, declarados a si por seu feito heróico, e agora desmentido, Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, com coragem, desfez de sua armadura que concedia “existência” à sua inexistência, e desinexistiu esvaindose na mata. Porém, logo explicado que na verdade a donzela ainda era virgem, por uma confusão feita por Torrismundo da Cornualha, que fora parido então pela Rainha da Escócia, esta que após uma longa viagem do Rei andou amoitandose com a Sagrada Ordem dos Cavaleiros do Graal, e embarrigara um menino. E a virgem protegida pelo cavaleiro inexistente, não era sua mãe, mas adotada pela Rainha por ser filha do Rei com a mulher de um feitor. Para não deixar que o Rei soubesse do filho da Sagrada Ordem, e para se livrar da indesejada bastarda, abandonoua com a criança proclamando ao Rei que sim esta, a filha, havia engravidado e fugido para a mata para parir o já parido Torrismundo da Cornualha. Deste modo, a existência do feito heróico do cavaleiro inexistente havia sido comprovada e seu nome poderia terlhe sido reposto, assim como sua patente. Porém, ele, de sua (in)existência, comprovada apenas pela armadura alva, havia se desfeito e, de algum modo, desinexistido. E como seria isso possível: um cavaleiro que não existia vir a desinexistir? Pois o fato que recorre agora é, para meu desespero (pelo pouco tempo para apresentar um 5
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artigo ao Professor), algo estranho passa dentro de minha cabeça. Não sei exatamente o que, ou como... Talvez a queda do livro em minha testa! Será? Agora que me recupero da tontura... Hann?! Que voz é essa?
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Capitulo I Você pode me ouvir? Claro que sim! Você está dentro de minha cabeça e certamente não é pensamento meu. Ou é?! Creio que agora sou! Consegui enfim voltar a inexistir! O quê? Como assim: conseguiu inexistir? É apenas uma voz que me incomoda. Claro que não existe. Tanto não existe que ordeno: pare de incomodar e saia de minha cabeça! Não posso! Quer dizer... também não o quero! Por quê? Quem manda em você sou eu. Você não passa de pensamento em minha mente. Cale a boca! Quem sabe até gostaria. Mas é que você me fez inexistir novamente. O final de minha estória, quando abandonei a armadura, era por ter perdido a “força de vontade” que me fazia inexistir como cavaleiro. Porém, agora que você, lendo sobre mim, levantou a questão de como poderia eu desinexistir, já que não existia, ainda por ter descoberto que, ao final do livro, não estava errado na salvaguarda da virgindade da donzela, tentei há muito retornar a minha armadura e inexistir novamente. É, mas sabemos que sua armadura foi doada por você mesmo a outro cavaleiro que, se apossando dela, ocupou o espaço que você des ocupava dentro dela e deua vida de carne realmente existente.
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Sim! Sei disso. Foi então que resolvi aproveitar sua desarrumação no quarto, inclusive na estante de livros, onde eu estava para cair a qualquer momento, e bastou um impulso de você retirando um daqueles textos mal cheirosos para balançar tudo e assim fazerme despencar sobre sua cabeça. Fácil assim, foi você quem permitiu de eu existir em seu pensamento. A culpa é sua, duplamente: por questionar minha desin existência; e por não arrumar sua bagunça. Há! Esqueci que você tem mania de arrumação. Também! Pra quem não tem necessidade de dormir, só resta ocupar o tempo arrumando tudo! Agora que recuperei a “força de vontade” de inexistir, a única forma de tentar desvendar o mistério de minha inexistência é com sua ajuda! E como foi você mesmo quem provocou isso, tem o dever de ajudarme. Tá bem! Vou cooperar. Mas com a condição de que você abandone sua (in)existência em meu pensamento logo que sentir convencido que seu problema foi solucionado. Combinado! Um trato entre cavaleiros! Erga sua espada, sire! Que espada, ô, figura? Esqueceu que você não tem mais nem armadura?! E eu também não poderia erguer se quer um cabo de vassoura (como fazia na infância fingindo ser espada), tamanha minha dor na testa. O faria só se para batêla em minha cabeça para acertar você, expulsandoo de mim! Favor cumprir nosso trato, cavaleiro! 5
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Tá certo! Vamos lá, então. (Agora vou ter de dar de psicólogo de personagem de estória fantástica! Pode?). Eu ouvi isso, heim! Ham, ham! Senhor Cavaleiro? Podemos começar a sessão? Comprometase em me interromper apenas quando não compreender alguma palavra, mas nunca por não entender a lógica do que digo, certo? (É uma questão de etiqueta acadêmica). ... O silêncio de sua voz enlatada em minha cabeça dizme que concorda. Sigamos uma linha de raciocínio, então. Deixeme abrir seu livro... Aqui está. Se o fato de sua existência inexistente ter sido consumada, segundo o autor de sua estória, pelo simples motivo de que, em sua época, “não era raro defrontarse com nomes, pensamentos, formas e instituições a que não correspondia nada existente”, sendo assim que, “era uma época em que a vontade e a obstinação de existir, de deixar marcas, de provocar atrito com tudo aquilo que existisse, não era inteiramente usada”, normalmente aceitável que, “podia até acontecer então que num ponto essa vontade e consciência de si, tão diluída, se condensasse”. Deste modo, de “forças de vontade” de existir perdidas terem se aglomerado em sua armadura é a causa de sua existência inexistente. De modo que, e por aqui concluímos, sire! Que “força de vontade” de existir, simplesmente, não existe! Isto é, “força de vontade” não se encontra para comprar numa 5
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mercearia, nem muito menos se retira debaixo da terra como batatas, ponto. Satisfeito? Mas o fato é que pude, apesar da inexistência desta “força de vontade”, existir. Assim como, quando fui acossado por uma tremenda dor de barriga ao receber a informação que aquilo que garantia minha existência, ou melhor, minha inexistência, a saber, a falsidade da virgindade da donzela, decidi abandonar esta inexistência em forma de armadura e, então, desin existi. E como isso foi possível? Ai meu saco! Sei lá! Por que não pergunta a outro e me deixa escrever o artigo ao Professor? Por que foi você quem me fez inculcar com esta questão! E agora temos um trato, lembra? Tá beeem! Vamos tentar de novo... Para compreender como foi possível, de algo que não existe, como a tal “força de vontade”, você vir a existir, é preciso compreender o princípio da Filosofia! Tenho aqui algumas anotações sobre isso que vou repassar rapidamente. Certo!
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Capítulo II O primeiro filósofo de que se tem notícia se chamava Tales, e ele nascera na colônia grega de Mileto, na Ásia Menor, por volta de 550 a.C. Este homem foi quem teve a grande sacada... Desculpe! Mas você disse que poderia interromper caso não compreendesse alguma palavra. O que seria essa “sacada”? Ah, sim! Desculpe. É uma gíria! Tales foi o primeiro a pensar que tudo o que existe (diferentemente daquilo que não existe, como você!) tenha tido um surgimento comum, nascendo de uma mesma coisa, uma mesma substância. E esta substância ele acreditava ser a água. Deixeme pegar outro livro: Coleção “Os Pensadores”, PréSocráticos. Assim Friedrich Nietzsche, alemão (18441900), disserta sobre a afirmação de Tales e sua conseqüência à filosofia: Se tivesse dito: “Da água provém a terra”, teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. (...) o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços
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sempre renovados para exprimila melhor – a proposição: “Tudo é um”.2
O que disse Tales naquela época pode ajudar você (e a mim!) agora, sire. Pois, pensando que este homem, por ter apontado para algo, não importando o que, como sendo o responsável pelo surgimento de todo o resto do mundo, ele começa a pensar filosoficamente. Sim... entendo... Acalmese, é só o começo da história. Pulando a seqüência de filósofos que a Grécia antiga fez surgir (Anaximandro, Heráclito, etc), aparece Pitágoras que é nascido em Samos, região conhecida como rival comercial de Mileto, mas que deslocouse para a Magna Grécia (sul da Itália), na cidade de Crotona, onde fundou uma “espécie de associação de caráter mais religioso que filosófico”3. Segundo minhas anotações, o pensamento de Pitágoras partiu de idéias órficas, sendo o orfismo uma “seita filosóficoreligiosa bastante difundida na Grécia a partir do séc. VI a.C. e que se julgava fundada por Orfeu”4. Assim “o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de natureza divina, entre todos os seres”5 . Essa identidade seria qualificada de harmonia 2
Os Présocráticos, fragmentos, doxografia e comentários, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1996. (p. 44). 3 Idem (p. 61). 4 ABBAGNANO, N., Dicionário de Filosofia, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000. (p. 732). 5 Os Présocráticos, fragmentos, doxografia e comentários, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1996. (p. 17)
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(αρµονια ), que seria garantida pela presença de algo divino nas coisas, e entendendo a desarmonia como o que não tem o divino em si, por isso seria o mal. Para os pitagóricos, então, “a purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo, em harmonia, proporção, beleza”6. Nietzsche analisa o pensamento de Pitágoras e sua influência para a posteridade da seguinte maneira: (...) Poderseia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da química e das ciências naturais. Tratase de encontrar fórmulas matemáticas para as forças absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica.7
Assim, tendo a música como exemplo de como se poderia alcançar a compreensão filosófica do universo, e tendo os números como o que permitiria explicitar uma espécie de “lei da composição” da divina harmonia, foi dado um enorme passo para a formulação do pensar filosófico. A certeza pitagórica de que caminhavam no rumo certo se dava ao analisarem a realidade pela seguinte lógica:
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Idem, (p.18). Ibidem (p. 63).
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Os primeiros números, representados dessa forma, bastavam para justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto (.), mínimo do corpo, unidade de extensão; o dois determina a linha (._.); o três gera a superfície./; enquanto o quatro produz o volume: ./ 8
Vejamos também como Nietzsche vê o pensamento pitagórico e sua analogia com os números:
Simbolismo dos números pitagóricos: um é a razão, dois a opinião, quatro a justiça, cinco o casamento, dez a perfeição etc.
Desta forma, quando os pitagóricos afirmam haver uma relação de imitação (mímesis) entre as coisas e os números, “dizem num sentido perfeitamente realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura numérica que lhes é inerente”9. Enteeendo… Acalmese, amigo inexistente. É apenas uma explanação principiante para chegarmos compreendidos ao final desta argumentação complicadíssima sobre sua desinexistência. Pensemos agora como Parmênides percebeu todas estas afirmações de seus predecessores. Segundo Nietzsche, poderemos separar o pensamento pré socrático em “duas metades, sendo que a primeira pode ser chamada de anaximândrica (de Anaximandro, filósofo que pulamos), e a segunda parmenídica”. Anaximandro e seus sucessores 9
Ibidem (p. 18). Ibidem (p. 18).
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haviam pensado um sistema em que o ilimitado se encontrava no início de tudo, na origem, demonstrando que a essência era una. Mas isso tinha por conseqüência um forte dualismo, pois a realidade é múltipla e poderia ser compreendida se dividimola em duas partes: delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno, múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau; quadrado, oblongo; ser, não ser. O dualismo se encontraria intrínseco a qualquer explicação, pois se no início era o uno, após isso as coisas iriam se dividir em fatores opostos até chegar a formarse na multiplicidade que nossos sentidos percebem. Porém, com o sistema de Parmênides, o mesmo problema é visto por outro ponto: o ser e o nãoser. “Historicamente, o que Parmênides faz é extrair do fundo das primeiras cosmogonias filosóficas seu arcabouço lógico, centralizado na noção de unidade”10. Nietzsche vê a descoberta de Parmênides como tentamos expor aqui: Parmênides, (...) teve de Anaximandro seu ponto de partida, tinha as mesmas suspeitas em relação à perfeita separação entre o mundo que apenas é e um mundo que apenas vem a ser, suspeita que também Heráclito apreendera e que o conduzira à negação do ser. Ambos procuravam uma saída, fora daquela oposição e separação de uma dupla ordem do mundo11.
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Ibidem (p. 21). Ibidem (p. 128).
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Porém Heráclito, através da explicação sobre o logos, como afirma Nietzsche, “descobria que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza manifestavamse em todo viraser; daí concluía ele que o viraser não poderia ser injusto nem criminoso”12. Parmênides teria percorrido o mesmo trajeto que seus antecessores, porém diferenciandose num ponto. Como afirma Nietzsche: (...) Ele comparava as qualidades umas com as outras e acreditava descobrir que elas não seriam todas idênticas, mas precisavam ser ordenadas em duas classes. Por exemplo: ele comparou a luz e a obscuridade e, assim, a segunda qualidade era manifestamente apenas a negação da primeira; e assim ele diferenciava qualidades positivas e negativas, esforçandose seriamente por reencontrar e assinalar esta oposição fundamental em todo o reino da natureza.13
Com este método, Parmênides conseguia distinguir opostos e classificálos como fazendo parte ou da luz, ou da obscuridade. A conseqüência lógica disso era “o que correspondia à luz era a qualidade positiva e o que correspondia à obscuridade, a qualidade negativa”14. E Nietzsche continua sua avaliação:
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Ibidem (p. 128). Ibidem (p. 128). 14 Ibidem (p. 128). 13
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Neste método já se revela uma aptidão ao procedimento lógico abstrato, resistente e fechado às instituições dos sentidos. (...) Segundo sua visão, nosso mundo empírico cindiase em duas esferas separadas: naquela das qualidades positivas [luminoso, quente, ativo, etc.] e naquela das qualidades negativas [obscuro, frio, passivo, etc.]. [Sendo que] as últimas exprimem propriamente apenas a falta, a ausência das outras, das positivas. (...) [Porém] ao invés das expressões “positivo” e “negativo”, ele tomava os rígidos termos “ser” e “não ser”15.
Porém havia aí outro problema, pois como poderia algo passar a existir, isto é, viraser tendo em si, ao mesmo tempo, o ser e o nãoser? Assim, segundo Nietzsche, restava para ele (Parmênides) a tarefa de dar a resposta à pergunta: o que é vira ser? Ele mergulhava então no banho frio de suas terríveis abstrações. O que é verdadeiro precisa estar no presente eterno, dele não pode ser dito “ele era”, “ele será”. O ser não pode viraser: pois de que ele teria vindo? Do nãoser? Mas o nãoser não é e não pode produzir nada. Do ser? Isto não seria senão produzirse a si mesmo.16
A abstração do problema gerado pelo vira ser era tamanha que os sentidos como visão e audição, que mostravam a toda hora o viraser, não
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Ibidem (p. 129). Ibidem (p. 132).
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poderiam mais ser dignos de confiança. Nietzsche afirma que, por causa disso, Parmênides separou os sentidos e a capacidade de pensar abstrações, a razão, como se fossem duas faculdades inteiramente distintas, desintegrou o próprio intelecto e animou aquela divisão completamente errônea entre corpo e espírito que, especialmente desde Platão, pesa sobre a filosofia como uma maldição.17
O problema criado não foi resolvido facilmente, mas gerou uma grande certeza que influenciaria o ocidente de forma radical, pois a lógica por trás do problema do ser e nãoser era a afirmação “o que é, é; e o que não é, não é”. Na linguagem lógica formal temos: A=A, e A≠nãoA. Assim Nietzsche afirma que Parmênides “encontrou um princípio, a chave para o mistério universal, separado de toda ilusão humana”18. Agora, negando quaisquer informações que vinham das sensações, pois tratamse apenas de aparências, ilusões, assim “não há nada para aprender dela(s), está perdido todo trabalho que se tem com este mundo mentiroso, nulo e alcançado através dos sentidos”19. Agora a verdade apenas pode habitar nas mais desbotadas e pálidas generalidades, nas caixas vazias das mais indeterminadas palavras, como num castelo de teias de 17
Ibidem (p. 132). Ibidem (p. 131). 19 Ibidem (p. 132). 18
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aranha; e ao lado de uma tal “verdade” sentase o filósofo, igualmente exangue como uma abstração, e luta enclausurado em fórmulas.20
Conseqüência direta da filosofia de Parmênides é a metafísica (do grego τα µετα τα ϕυσικα ta meta ta fisica), enquanto “ciência primeira por ter como objeto o objeto de todas as outras ciências, e como princípio um princípio que condiciona a validade de todos os outros”21. Assim como a ontologia, esta enquanto estudo “dos caracteres fundamentais do ser: os que todo ser tem e não pode deixar de ter”22. Então, para Nietzsche, a “experiência não lhe apresentava em nenhuma parte um ser tal como ele o pensava, mas, do fato que podia pensálo, ele concluía que ele precisava existir: uma conclusão que repousava sobre o pressuposto de que nós temos um órgão de conhecimento que vai à essência das coisas e é independente da experiência”23. Para concluir o comentário sobre o pensar filosófico com os présocráticos, fechamos com um último comentário de Nietzsche: Segundo Parmênides, o elemento de nosso pensamento não está presente na intuição 20
Ibidem (p. 133). ABBAGNANO, N., Dicionário de Filosofia, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000 (p. 660). 22 Idem (p. 662). 23 Os Présocráticos, fragmentos, doxografia e comentários, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1996 (p. 134). 21
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mas é trazido de outra parte, de um mundo extrasensível ao qual nós temos um acesso direto através do pensamento.24
Interessaaante... Você entende agora, sire, como você foi possível de viraser? À primeira vista, você não era, mas como afirma seu autor, de tanta “força de vontade” espalhada, agrupandose ao acaso, surgiu você, um cavaleiro existente pela própria “força de vontade”, porém que não existe por que “força de vontade” é pensamento e, por isso, não existe na realidade, só na metafísica. Ou seja, você, sire, querido, é um ser metafísico! Metafísico?... Que não existo na realidade, mas sim no pensamento! E como, se não existo, pude lutar ao lado do Imperador Carlos Magno? Pois, neste caso, ele sim existe. É, você tem razão. Se Nietzsche estava certo sobre os pensadores présocráticos, então nesta lógica, você que é pensamento, não poderia lutar ao lado de um homem real. Vixe! Desculpe! Não entendi esta palavra. Deixa pra lá, meu caro. Agora sou eu quem não entende... Espere ai! Tenho aqui num dos cadernos de aula (sobre a mesa, entre as folhas fotocopiadas e livros com bordas de café). Achei! Aqui está minha salvação. Sua? Quer dizer... nossa salvação. Por que creio que depois desta argumentação você não me incomodará mais! Idem (p. 134).
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Quer dizer que deixarei de inexistir de novo? Que assim deus o queira, pois permanecer entre seus pensamento, meu jovem, declaro que não é das mais belas formas de vida. O que você quer dizer com isso? Bem, enquanto você argumentava sobre os présocráticos, tive que fazer um esforço enorme para afastar pensamentos concorrentes aqui dentro de sua cabeça. Quando você falava de Pitágoras e a música, veio uma enxurrada de canções aqui de trás que quase não deu para ouvir o final de sua frase. Corri para fechar a porta antes que mais ruído se fizesse presente entre nós e atrapalhasse o raciocínio. Peço mais cuidado para não desviar sua atenção. Da próxima vez não sei o que poderá sair lá do fundo. Mas, prossiga. Diga ai o que encontrou nestes hieróglifos. Sim, desculpe pela desatenção. Mas, se assim funciona ai dentro, caso queira descansar um pouco posso pensar em algumas donzelas “virgens” das revistas que tenho debaixo da cama! Desonrado! Como quer que me distraia com tamanho problema que trago para resolver? Foi apenas uma idéia, mestre! Acalmese. Continuemos então. O que encontrei aqui são umas anotações sobre o que venho pensando há um tempo. Remete se as filósofos da outra ponta. Ou seja, falávamos dos primeiros filósofos, agora vejamos o que dizem os filósofos contemporâneos sobre o problema formulado pelos primeiros.
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Capítulo III E para começar, faço a você uma pergunta: o que você faria se descobrisse que toda sua desgraça em inexistir surgiu pelas mãos de um homem, sendo este o responsável também, contraditoriamente, pela sua eterna graça? Como assim? Quem me criou também me descriou? Outra confusão do ser e nãoser? Essa sua cabeça é realmente cheia de mistérios, jovem. Diga quem é este que me atravanca a vida, ou a morte, que irei desatravancar a existência dele em vingança pela inexistência que me condenou. Então, sire... é quee... Digame logo, rapaz! Tenho sede de vingança e minha espada pede sangue! Tá bem! Você pediu. Não estou afirmando nada, heim! Apenas perguntando. Você já pensou que o responsável pela sua inexistência e desin existência confusa possa ser seu Imperador? Queem? Carlos Magno, o rei dos francos? Jamais poderia ter sido alma tão bondosa a me colocar neste dualismo espinhento em que a nenhum lado posso me encostar para morrer em paz! O que você quer dizer, rapaz? Quer provocar uma insurreição de meus sentimentos contra aquele por quem lutei e defendi por anos? Calma, sire! Relaxe!! Como relaxar? E quem é que se aproxima aqui pelos fundos? Digame rapaz? Onde quer chegar com insinuações?
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Calma! Apenas pensei em uma linda mulher para ir acalmálo. Mas já tirei essa idéia da cabeça. E também não trago insinuações. Deixeme explicar. O problema se configura da seguinte forma. Após Parmênides ter formulado sua teoria do ser e nãoser, em que a única forma de resolver este dualismo seria pelo pensamento, atingindo a razão e, ainda mais, por uma lógica (A=A, e A≠nãoA) como método para alcançar a verdade, este método de alcançar a verdade, então, chegaria a Platão (também grego da época daquele, um pouco depois, porém) fundando aí o que, naturalmente, chamase platonismo. Humm... O platonismo seria a tradição filosófica que trabalha com o princípio parmenídeco de que o mundo que nossos olhos vêem não passa de sombras, portanto, noção imperfeita da realidade. Esta, em sua mais alta expressão, estaria num mundo mais profundo, no mundo iluminado, fora da caverna25 em que fomos colocados, além da noção irreal que nossos sentidos (única forma até então utilizada para conhecer a realidade) nos dão. Além disso, o método é através do pensamento racional. O platonismo diria mais. Que a razão pode nos levar a conhecer a verdadeira realidade, isto é, o mundo das idéias! Lá, neste mundo somente acessível pelo pensamento racional, filosófico portanto, encontrarseia a verdade. Livro VII, República, Platão.
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Sim! Magnífico! É daí que venho, então, deste tal mundo das idéias? Por suposto! Isto que gostaria que você compreendesse. Compreendi, então! Sou grato a você por ter me acalmado e me explicado de onde venho, nobre cavaleiro da filosofia. Espere! Acha que acabou? Apenas comecei a questão sobre ser o Imperador o seu graçador desgraçante! Pois o pior ainda está por vir! Apenas expliquei a você como você pôde surgir. E como não quero que você volte a aparecer, ou permaneça escondido, em minha caixola o resto de meus dias, é questão de honra convencêlo de que é possível você desinexistir. É verdade! Prossiga então, sire. Avante! O problema do platonismo é que, se Platão tivesse sofrido um ataque do coração ao elaborar a teoria de que existe um “mundo das idéias”, estaríamos bem! Mas ele insistiu e queria elaborar uma forma de organização social baseada em sua teoria dualista. E assim, escreveu República, um livro imenso em que narra conversas de Sócrates com demais sofistas, buscando elencar caracteres para uma sociedade perfeita, a fim de propor aos gregos aquele sistema. República... interessante! Seria, resumidamente, o seguinte: a verdade seria conhecida pela razão (certo?); a melhor forma de alcançar a razão (neste caso) seria pela filosofia; assim, quem para melhor administrar uma sociedade verdadeiramente plena, pura e bela que
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não o filósofo, isto é, aquele que conhece o método de alcançar a verdade(?). Faz sentido! Exatamente! Faz sentido!! Faz tanto sentido que cabe ao filósofo dar as regras, sendo o canalizador da verdade diretamente do mundo das idéias até os ouvidos dos pobres mortais cidadãos. E a estes caberia nada mais do que, como cumprindo ordens num exército, bater continência e dizer em alto e bom som: sentido! Mesma que as ordens façam sentido algum. Ouvir você falando nisso, confesso que, aqui dentro de sua cabeça, olhei para o fundo de onde vêm aqueles outros pensamentos e pude ver, como numa magia, o que eu mesmo vivi enquanto cavaleiro de campanha de Carlos Magno. Passou um filme aí é? Desculpe! Passou o quê? É que me esforcei para, além de concentrar me na explicação, também promover imagens a você para que visse algumas situações históricas criadas por minha memória. Humm... Vi sim! Vi meu Imperador dando ordens para atacarmos os sarracenos inimigos, sujos e infiéis ao nosso Deus. Mas também vi Isoarre, o comandante mouro, do outro lado do fronte, dar as mesmas ordens aos seus, acrescentando também o comentário sobre “inimigos sujos e infiéis”. Pareceume que algo ficara sem sentido. Afinal, por que nos matávamos naquela guerra? Você quem deve saber? Ou ainda não descobriu? 5
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Bem... Eu, particularmente, ia à guerra em busca de agregar façanhas à minha história e, assim, títulos ao meu nome. Isto era uma forma de assegurar minha existência como cavaleiro e, além disso, um jeito de me tornar mais existente dentro de minha inexistência. E por que você acha que os “inimigos” também iam à guerra? Por apenas serem loucos , sujos, etc? Bem... Eles poderiam ter, naquele exército, uma forma de procurar realizar seus desejos mais pessoais... Mas para saberlo dever seia ouvir um a um, caso a caso... Fenomenologicamente! Assim como Katz26, que queria compreender a violência. Quem? Nada, nada! Isto é sobre o que deveria estar escrevendo, mas você apareceu na minha cabeça! Katz queria saber o que o sujeito acha que está fazendo quando está sendo violento. Ah! O tal artigo para seu mestre? Você, sire, foi violento com muitos outros seres iguais a você, e por apenas uma razão: agregar façanhas e títulos à sua (in)existência. E acha isto certo? Altamente certo! A honra de um homem está em suas façanhas! Tá bem... deixa pra lá! Voltando ao platonismo, Platão acreditava em sua teoria e até 26
KATZ, J. “What makes crime ‘news’? ERCSON, R.V. (ed) Crime and the Media. Brookfield, Darthmouth Publishing Company, 1995.
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tentou colocála em prática num reinado da Grécia. Mas desanimou por não ter encontrado um rei tão inteligente como esperava encontrar! (haha! Desculpe...). O que interessa para nós é o fato de que sua teoria atravessou gerações. Seu método de organização se tornou um modelo perseguido por muitos reinos. Praticamente até hoje se busca alcançar um modelo de sociedade que Platão descreveu! Inclusive o seu Imperador, Carlos Magno, tentou executar o modelo platônico. E como se não bastasse, o modelo que ele se baseava ainda era influenciado pelo cristianismo, que... Claro! E por isso éramos cavaleiros cristãos que combatiam os sarracenos infiéis! Fique quieto ai, preste atenção nas cenas que vão vir do fundo da minha cabeça. Está vendo este que está sentado no trono, com uma túnica sobre as costas, rodeado de homens com roupas extravagantes? Sim, este com a espada na mão, porém parece não ser bom guerreiro por não saber manuseála. Que espada, sire! Isso é uma cruz! Este é o Papa cristão! Sua Santidade! É uma honra estar em sua presença. Ajoelhome perante voz. Calaboca, Agilulfo! Levanta daí. Isso é só uma imagem da minha memória! Esse Papa, assim como muitos antes e depois dele, foram responsáveis por inúmeras guerras e invasões, saques e assassinatos a outros povos, outras etnias, outras sociedades que não seguiam o modelo de 5
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Platão. Seu Imperador cristão seguia os conselhos destes papas e servia, assim, como guerreiro dos interesses do papa e de sua igreja. Katz afirmaria que até Carlos Magno teria motivos, se analisado fenomenologicamente, de ter executado atos violentos. Mas deixemos de lado isto e passemos ao seu problema, óh cavaleiro inexistente! O que gostaria que você compreendesse é que, depois daquele filósofo que citamos antes, já no século XIX e XX, o tal Nietzsche, surgiu um movimento de reelaborar a filosofia. Como percebemos, Nietzsche era ferrenho crítico ao platonismo, e fez escola. Depois dele, e seremos rápidos nestas citações, surgiram Heidegger, Wittgenstein, por exemplo, que tentaram elaborar críticas à tradição filosófica, tentando elaborar uma forma de pensamento adaptada ao seu tempo. Martin Heidegger, alemão como Nietzsche, apontava que a filosofia trabalhava com metáforas, como aquelas que vimos em Parmênides, sobre o ser e o nãoser, e a busca de uma lógica para alcançar a verdade. Como Pitágoras utilizou os números como metáfora, como método, como linguagem, ou seja, como ferramentas para poder “calcular a verdade”. Ludwig Wittgenstein também apontava isto, em sua segunda fase nas Investigações Filosóficas, apontando que a linguagem filosófica foi levada muito a sério, a ponto de ferramentas conceituais, que deveriam nos auxiliar a solucionar problemas, acabaram se tornando o próprio problema.
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A estes pensadores, juntamse outros norte americanos que queriam um novo jeito de alcançar a resolução de seus problemas. Entre eles está Charles Peirce, William James e John Dewey. Vejamos em minhas anotações o que diz Paulo Ghiraldelli27 sobre estes últimos: Peirce, James e Dewey estavam descontentes com a maneira como a Filosofia Antiga, nomeadamente Platão e Aristóteles, tratavam a verdade. E também torciam o nariz para a Filosofia Moderna, em especial para com a maneira como Descartes ligou verdade e certeza. (...) Eles se colocaram em uma posição metafilosófica, e tornaram suas observações sobre a verdade menos definições e mais descrições do que até então a filosofia, a ciência e o senso comum faziam para firmar e distinguir o que era verdadeiro e o que não era verdadeiro. Se a história acabasse neles, em Peirce, James e Dewey, diríamos que eles não construíram uma “teoria da verdade”, mas sim uma metateoria da verdade28.
Deste modo, levando em conta o descontentamento com a busca da verdade feita pela filosofia clássica e moderna, e também o fato de os pragmatistas buscarem tal verdade através da ação humana e preocupandose com a relação que a verdade tem com a vida humana cotidiana, 27
GHIRALDELLI Jr., P., Pragmatismo e NeoPragmatismo, Universidade Estadual Paulista – Marília, em Enciclopédia de Filosofia da Educação (www.filosofia.pro.br). 28 ibid, GHIRALDELLI, P.
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poderíamos afirmar que os pragmatistas compactuam por serem nãometafísicos, como afirma Ghiraldelli: “no sentido em que queriam evitar uma das características do pensamento metafísicoplatônico, a dualidade”29. Seguiremos de agora em diante os passos dados por Richard Rorty, outro norteamericano do século XX, em sua obra Filosofia e o espelho da natureza, que tenho aqui pelo chão. Achei! Neste livro ele fala em metáforas oculares, e está altamente influenciado pelos filósofos pragmatistas que questionavam o conceito clássico de verdade e que buscavam um outro procedimento que não o metafísico. Dizia ele que: são as imagens mais que as proposições, as metáforas mais que as afirmações que determinam a maior parte de nossas convicções filosóficas. A imagem que mantém cativa a filosofia tradicional é a mente como um grande espelho, contendo variadas representações – algumas exatas, outras não – e capaz de ser estudado por meio de métodos puros, nãoempíricos. Sem a noção da mente como espelho, a noção de conhecimento como exatidão de representação não se teria sugerido30.
Assim, ele se refere ao início da atividade filosófica na Grécia clássica e sugere algumas 29
ibid, GHIRALDELLI, P. RORTY, R. Filosofia e o espelho da natureza, Relume Dumará, 1994 (p.27). 30
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passagens em que marcam o início da utilização de tais metáforas. (...) A poesia fala do homem, do nascimento e da morte como tais, e a matemática orgulhase de não tomar conhecimento de detalhes individuais. Quando a poesia e a matemática chegaram à autoconsciência (...) havia chegado o tempo de que algo genérico fosse dito sobre o conhecimento de universais.31
Ainda sobre as metáforas oculares, ele aponta: Não houve (...) nenhuma razão particular para que essa metáfora ocular tivesse capturado a imaginação dos fundadores do pensamento ocidental. Mas isso aconteceu, e os filósofos contemporâneos ainda estão trabalhando nas conseqüências desse fato, analisando os problemas que o mesmo criou e perguntando se não haverá nisso algo importante, afinal.32
E sobre as influências disto no pensamento ocidental: O mundo sobrenatural, para os intelectuais do século XVI, era modelado a partir do mundo das Idéias, de Platão, assim como nosso contato com ele era modelado a partir de sua metáfora da visão. Há poucos que acreditam nas Idéias platônicas hoje e,
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Idem, (p.51). Idem, (p.51).
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mesmo, não muitos que fazem uma distinção entre alma sensitiva e intelectual. Mas a imagem de nossa Essência Especular permanece conosco.33
Humm... Que mais?... Sei que está meio chato, mas já chegaremos ao nosso objetivo. Passa que Rorty nos auxilia a perceber nossa própria tradição de pensamento, assim como os demais Pragmatistas. E como isto pode ajudálo cavaleiro? E eu quem sei? Me sentia inexistente, agora nem sentirme consigo mais, de tão perdido! Fique tranqüilo... Vamos lá! O que estes filósofos do século XIX e XX estão apontando é que, algo de errado se sucedeu na antiga Grécia e isso se alastrou ao mundo. Como? Pode ter sido pela violência! Ora. Veja você que é um cavaleiro que defende sua honra. O que tem a ver a violência praticada contra outras pessoas com sua auto estima em sustentar seu nome e título? Talvez tenha pego pesado agora, mas é por ai mesmo o caminho que poderá livrarme de você. Percebe que em nome de uma instituição, um Imperador, um Papa, ou seja, em nome de pessoas como você (ops!, não exatamente como você, mas... compreende?), levou pessoas a executar tarefas violentas, por acreditarem numa idéia, numa representação, numa metáfora? Bem, sabemos agora, com apoio dos Pragmatistas, que as ações humanas seguem crenças e, estas, são Idem, (p.56).
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“verdadeiras” apenas quando têm validade. Depois de não terem mais necessidade de existirem, as “verdades” podem desaparecer. Porém isso deveria acontecer com as metáforas de Platão e Aristóteles, de Parmênides e Pitágoras, mas permaneceram até os dias atuais. O que temos a questionar com isso é: quem há de julgar uma ou outra ação humana como correta ou errada? Você defenderia até a morte (se pudesse morrer!) seu Imperador. E ele ao seu Papa. Isto pode ser reconhecido como uma lógica da sociedade de sua época, as regras que vocês tinham que viver. Assim, também os mouros tinham regras e as seguiam. E por estas “verdades” muitas coisas foram capazes de acontecer... inclusive a aglomeração de idéias, ou de “forças de vontade” perdidas, em uma armadura esquecida, dando existência a um cavaleiro inexistente! Sim! Enteendo!! Então, meu querido! O que faz aqui ainda? Saai da minha cabeça. Ainda não posso! Falta compreender como seria possível desinexistir daqui! Ora... É simples! Você existiu na época em que, na Europa, havia a crença, como um hábito de ação, de que o mundo visível vinha do mundo das idéias. Assim, você foi possível, pois a qualquer um que perguntasse como foi capaz de fazerse do nada, responderia, como respondeu a Carlos Magno: vimaser “pela fé que tenho em nossa santa causa”! E todos acreditariam, pois acreditam também na tal “fé e na santa causa”! 5
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Mas agora, no mundo neopragmatista! Vixe!
Desculpe! Eu quis dizer: Virgem! A que fica debaixo de sua cama? Esquece! Neste mundo globalizado, em que as “verdades” fluem como as capas diárias dos jornais, você teria vida tão breve quanto a respiração de um beijaflor! Mas se sou falso como a verdade de meu tempo... Quem irá, hoje, julgar meus pecados cometidos por mim no passado? Preciso de um julgamento digno para jazer em paz! Veja bem, meu caro! Julgar você, atualmente, só se for a Corte Internacional das Nações Unidas, pois eles ainda acreditam que é possível julgar alguém pelos crimes cometidos. Como assim? Estou brincando... mas há um fundo de seriedade no que disse! Pense comigo. Existiu na Alemanha um cara chamado Adolf Hitler. Ele era como você, acreditava no platonismo (mesmo sem saber o que era isso!). Para ele o ser humano poderia atingir uma sociedade perfeita, o qual chamou de nacional socialismo. E em nome desta idéia ele se sentia a vontade para aniquilar pessoas que discordassem dele. Espere um instante que vou pensar na figura dele para que você o veja ai dentro de minha cabeça. Pronto! Há, há! Que bigode engraçado!! Então! Este cara, de tanta crença que tinha no ideal platônico, conseguiu fazer seu país inteiro 5
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acreditar na mesma idéia. Só que, ao redor dele, de um lado na América e de outro na Ásia, viviam outros senhores que também tinham crenças fortes em seus modelos de sociedade, chamados capitalismo e socialismo, respectivamente. Engraçado que, no sonho platonista, todos eles achavam que estavam um mais próximo à realização que o outro! Pois bem, o tal Hitler foi apertado pelos dois lados e acabou perdendo. À esta confusão deram o nome de II Guerra Mundial. E depois dela, os sobreviventes resolveram estabelecer regras mundiais de respeito ao ser humano. E aí se encontra um problema que Rorty aponta, em outro texto34 (ih! Por sinal me lembrei do artigo ao Professor!). Pois bem. Rorty aponta que a elaboração destas regras que deveriam ser seguidas por todos os seres humanos, é parte de um projeto, por uma espécie de fundamentalismo, platonista. Este desonrado Platão de novo?! Imagine você que, como aponta Rorty, o mundo nem pôde escolher outro jeito. Pois com medo de um novo bigodinho engraçado surgir, votaram rapidamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Percebeu o universal entre as palavras? Então, este caráter de que a Declaração vale a todo o mundo, dá a ela um viés platônico. Ou seja, de que, não importando onde, todo o mundo seguiria a mesma regra e isso seria natural! 34
RORTY, R. Humans Rights, racionality and sentimentality. IN: SHUTE, S. & HURLEY, S. (ed.) On human rights. The Oxford Lectures. New York, Basic Books, 1993.
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Ai ele aponta uns casos em que um ser humano é capaz de desrespeitar artigos da Declaração e defenderse de julgamentos simplesmente afirmando que, o violentado, não era humano como o violentador! E como a Organização das Nações Unidas, o órgão responsável pela criação da Declaração, iria intervir diante deste problema, mais uma vez, filosófico? Bem, ai Rorty aponta que o que deveria ser feito, para acabar com este tal platonismo de uma vez, seria uma aproximação dos envolvidos na violência. Como se uma conversação pedagógica entre eles, para descobrirem suas diferenças e perceberem como poderiam se respeitar a partir delas. Interessante! Mas... quem puniria o violentador? Sim... Esta é uma questão que fica para outro autor, Rafael Mendonça. E sua pergunta seria: porque deveria alguém de fora da peleja, um juiz portanto, definir quem está certo e quem está errado? Ou seja: como uma terceira pessoa poderia decidir sobre uma punição, já que ele vem carregado com seus conceitos e préconceitos. Tentando ser justo (platônico, ou de acordo com a Filosofia da Consciência, segundo Mendonça), o julgador poderia estar pendendo para um dos lados em sua decisão. Assim, Mendonça aponta para a Mediação na resolução de conflitos. Ele afirma que: Desmentidas muitas das teorias da Modernidade, as construções teóricas
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realizadas sobre aquela base desaba, a Máquina Autônoma do Direito não mais tem combustível. Paradigmas como o da neutralidade do Juiz, mesmo por força dos conhecimentos transdisciplinares, são descaracterizados, a mens legis e demais axiomas da Filosofia da Consciência não encontram guarida visto a personalidade existencial do interpretante que, por decorrência da sua experiência pessoal e conhecimentos adquiridos, terá uma parcela nesse dizer que se encontra no “espírito” das palavras. Outra parcela é atribuída ao Senso Comum Teórico e as manipulações das “verdades” ditadas pelos “monastérios do saber”, por seus “patriarcas”, os quais determinam os rumos do conhecimento dito “científico”. Rumos os quais beneficiam poucos.35
E para basear seu ponto de fala, ele também segue, ao que parece, o viés pragmatista. Vejamos: Ainda se apresentam algumas transições no pensamento do Direito contemporâneo, com vistas a um pragmatismo, aceitando a complexidade e o relativismo das ações, na compreensão da pluralidade de pensamentos e de um reacreditar na capacidade da sociedade civil.36
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MENDONÇA, Rafael. (Trans)Modernidade e Mediação de Conflitos: pensando paradigmas, devires e seus laços com um método de resolução de conflitos. Florianópolis, Habitus, 2006. (p.129) 36 Idem (p.129)
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Interessante que, quanto à função do Estado em resolver conflitos, ele aponta que (...) Verificouse que a jurisdição estatal tem um papel falho para solver tais des entendimentos, por decorrência do método adversarial que lhe é característico, o qual encaminha a sociedade à desagregação, oposta à pacificação (convivência harmoniosa, não querendo dizer: sem conflitos), pois incute o desejo de aniquilação e vitória sobre a “parte” oposta, o “outro” não compreendido37.
O “método adversarial” que toca este autor seria aquele em que percebese, numa relação, um que há de vencer e outro perder: a concorrência. E apontando uma solução nãoplatonista, continua: Nesse ensejo se apresenta a Mediação como alternativa a uma atitude diferenciada perante o conflito, pois realiza uma reaproximação dos indivíduos dissociados, levandoos a readministrarem suas dificuldades.38
Certo! Quer dizer que agora, seria eu comigo mesmo, diante de toda minha inexistência, a resolver meus conflitos? De certa forma, sim, caro cavaleiro. Pois quem mais que o violentador e o violentado para resolverem as causas e conseqüências de suas violências? Já que, diante de todas as críticas à
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Ibidem (p.130). Ibidem (p.130).
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sociedade platonista que parecemos viver, para onde correr? A não ser que você queira continuar a servir, voluntariamente, alguma idéia de alguém. Pois não seria outra forma de ser percebida sua insistência, uma Servidão Voluntária39, amigo. Bem, assim espero que tenhamos resolvido seu problema, nobre cavaleiro. Desvendado o mistério de seu viraser a partir da “força de vontade” de sua época, espalhada pelos campos e florestas da Europa. Assim como resolvemos o mistério de sua desinexistência, já que você pode simplesmente fazêlo com o simples fato de que as crenças que deram sustentação à praticar algo como você se esvaíram pela falta de aplicabilidade cotidiana. Também o mistério de sua punição, que não há quem possa julgar corretamente, pois isto seria acreditar no platonismo, numa justiça única e universal válida a todos, e, pior, num juiz que alcançaria a “verdade” desta justiça e daria sentença crendo cumprir um desejo universal. Portanto, meu caro, trate de sumir de volta ao livro, pois você bem sabe que tenho que elaborar um artigo para meu Professor, e o dia já amanhece, sendo que tenho poucas horas para terminálo e ainda nem o comecei. Sim, desculpe o transtorno. Mas ainda tenho mais uns problemas! Aaaiii!! Diga. Se tanto do que foi apontado nesta sociedade ocidental, provém deste platonismo, 39
LA BOETIE, E., Discurso da Servidão Voluntária. Editora Brasiliense, São Paulo.
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como vivem outras sociedades? Pois os próprios sarracenos com quem digladiei, ainda outros povos que nem minha imaginação platonista seria capaz de conceber, como vivem, o que pensam, como resolvem seus conflitos? Ah, meu caro! Aí é que você me faz lembrar mais uma vez de meu Professor. Pois um dos textos que estudamos em aula fora de Pierre Clastres, um francês que estudou sociedades indígenas das américas. Até foi bom você ter questionado sobre este assunto, pois, estas sociedades, segundo Clastres, organizamse de forma diferenciada da ocidental. Inclusive ele escreve sobre elas para defendêlas, de certo modo, do massacrante preconceito ocidental, darwinista (quer dizer, crença na idéia platonista de que as espécies são umas mais evoluídas que as outras, isto sendo transportado às organizações sociais, umas sociedades seriam mais evoluídas que as outras) de que seriam involuídas por não organizaremse aos modelos de Platão. Portanto, caídos estes ideais platonistas (de uma vez por todas!), outras organizações sociais como as descritas por Clastres40, seriam sociedades contraoestado. No sentido de que, nelas, as pessoas organizamse de forma a não aceitarem centralização de poder em uma pessoa ou numa instituição. Como se tudo girasse para manter as relações sem separar entre um que manda e um que obedece. Para Clastres41, isto devese à característica destas sociedades prezarem pela 40
CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado, pesquisas de antropologia política. Rio de janeiro, F. Alves, 1978.
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diferenciação perante outras sociedades. Uma exaltação da diferença ao outro para garantir a autonomia. E para isso, não negavam a violência, mas pelo contrário, produziam guerreiros armados e prontos a defender a autonomia de sua comunidade. Para defender sua verdade? De certa forma sim. Não há evidências que Clastres tinha acesso aos questionamentos pragmatistas, mas podese dizer (em boca pequena) que pensava como um deles. Cada sociedade defendia, em absoluto, a autonomia tanto de si quanto de seus indivíduos. Por exemplo, não aceitavam ser, enquanto comunidade, submissas a outra comunidade, do mesmo modo que, cada indivíduo não aceitaria ser submisso à outro ou ao coletivo. (Eita! Que confusão! Mas é por ai...). Entendo... E há que se pensar, meu caro, em qual forma de resolução de conflitos têm estes povos. Que forma de resolver suas desavenças demonstram a nós. Não com objetivo de julgar de certas ou erradas (platonismo!), até por que são variadas sociedades indígenas e minoritárias que existem pelo mundo. Mas com objetivo de, quem sabe, aprender com elas sobre modelos, tanto de sociedades, como de resolução de conflitos. Afinal, como diz Mendonça sobre o conflito, que é
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CLASTRES, P. Arqueologia da violência. Ensaio de Antropologia Política. São Paulo, Brasiliense, 1982.
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visto pela Modernidade como um problema que se instala durante as interrelações das pessoas, algo negativo que deve ser extirpado das relações de toda maneira para que assim se gere a ‘bem dita’ paz social, que no mundo ideal seria, como se verifica, o Paraíso na Terra, todos como cordeiros mansos, compartilhando de interrelações estáveis e imutáveis. Sonhos ideais, que simplesmente demonstram um desejo de extirpar aquilo que não se consegue entender ou resolver. Colocase, assim, em toda trajetória jurídica ocidental a máscara de negatividade na compreensão de conflito.42
E no mundo globalizado, como vemos hoje, meu caro, em que as sociedades indígenas vivem em contato direto com a ocidental, onde nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU/dez/1948), nem a recém votada Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas e Minorias (ONU/set/2007) é capaz de resguardar seus protegidos das violências, poderíamos ver o conflito nas sociedades estatais, assim como Clastres via nas sociedadescontraoestado, vide Mendonça: “voltase a uma dinâmica onde o conflito é compreendido como a forma de produzir, com o outro, a diferença, ou seja, de inscrever a diferença no tempo como a produção de algo novo”43. 42
MENDONÇA, Rafael. (Trans)Modernidade e Mediação de Conflitos: pensando paradigmas, devires e seus laços com um método de resolução de conflitos. Florianópolis, Habitus, 2006. (p.118, nota) 43 Ibidem, (p.118).
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Neste mesmo sentido escreve o sociólogo Simmel. Tenho um artigo dele aqui sobre a cama. Aqui.. bem no início, ele fala do conflito como sociação, ou seja, se a sociedade é formada por sócios, o conflito existente nela também é uma maneira de busca de sociação. Vejamos o que diz: Se toda interação entre homens é uma sociação, o conflito – afinal, uma das mais vívidas interações e que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo apenas – deve certamente ser considerado uma sociação. E de fato, os fatores de dissociação – ódio, inveja, necessidade, desejo – são as causas do conflito; este irrompe devido a essas causas. O conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade (...).44
Simmel afirma que o conflito apesar de visto com negatividade, também é positivo para uma sociedade. Inclusive ele fala de seu chefe, Carlos Magno, e como este se utilizou da compreensão do conflito para defenderse da separação de seu império. Após dominar várias regiões com o auxílio de seus cavaleiros (entre eles você, sire!), temendo rebeliões locais contra seu Estado, Magno “proibiu as corporações enquanto associações juramentadas e as permitiu explicitamente para propósitos de caridade, sem juramento. (...) Podem facilmente se combinar com 44
SIMMEL, G. Sociologia. Ed. Ática, 1983. MORAES, E. (org). (p. 122).
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outros, os quais são perigosos para o Estado”. Veja o que diz uma carta de Carlos de 1628: De acordo com isso, filiarse ou erigir federações ou sindicatos, para quaisquer propósitos ou contra quem quer que seja, não é permitido a mais ninguém além do rei.45
Destarte, amigo inexistente, você sumiu na hora certa, pois caso não o fizesse, seu rei se responsabilizaria por criar um mandato para extinguir sua inexistência de uma vez por todas!
Idem (p.158).
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Considerações Finais Então? Mais alguma questão a sanarmos para que possas retornar em paz a sua eterna inexistência? ... Amigo? Sire? ... Agilulfo?? Você está ai? Teria desinexistido? ... Vou tentar me concentrar para ver dentro de minha mente a presença ou ausência do cavaleiro inexistente. Mas.. espere ai! Como seria possível observarme por dentro, se dentro/fora, mente/corpo, isto tudo é dualismo platônico/parmenídeco? Como poderia resgatar de meus pensamentos o pobre cavaleiro, caso tenha ele se perdido com algum outro pensamento, ou ainda sido apagado por permanecer em algum neurônio queimado por ação do... “tempo”? E como poderia, Agilufo, habitar um neurônio? Afinal, nem existência tem, como poderia eu ficar preocupado com seu silêncio? Agilulfo? (Insisto). Cavaleiro Inexistente? Você está ainda ai? Sem respostas.. o dia amanheceu e eu junto. O que fazer se não há mais tempo para escrever o artigo ao meu Professor? Tempo... e acaso isto também existe ou é invenção grega?! Rá!! De tanta crítica minha cabeça entra em crise... ou entro eu inteiro, sem dualismo corpo/mente. Enfim, tonto, penso na tamanha poesia que levou Ítalo Calvino a escrever tão bela obra como “O cavaleiro inexistente”. Não fosse a 5
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poesia, platônica ou não; a arte, grega ou sarracena; as palavras ditas e escritas, indígena ou ocidental; de que serviria a vida? Aí sim, seria uma existência sem razão como de Agilulfo. Mas mesmo ele, em sua inexistência, existiu em armadura, depois em minha cabeça, de acordo com os paradigmas de seu tempo, demonstrando coragem em compreendêlos e aceitálos. Grande Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, cavaleiro inexistente, que em sua simplicidade ensinoume um bocado. Agradeço sua aparição em meus pensamentos. Ai, minha cabeça! Busco um recanto na mesa, um recosto, mesmo que frio, para meu cansaço. Não encontro. A dor volta a minha cabeça, na testa, dói! Aii... Acorde! Diz uma voz... seria o cavaleiro? Já é hora de ir à aula entregar seu artigo ao mestre! Quem? Quem está ai? Agilulfo? Estou no chão com a mão na testa. Sobre mim o livro que despencara da estante: “O cavaleiro inexistente”, de Ítalo Calvino. Verifico minha posição e levanto me. Lembrome da conversa que tive com ele... Teria sido um sonho? Um cavaleiro que penetrou na minha cabeça como uma espada. O sol raia na janela cegandome. Que ruído é esse? O computador ligado, percebo que as teclas se apertam sozinhas, como se autodigitassem. Na 5
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tela, algumas páginas escritas. Enquanto penso, neste momento, as palavras que penso, como se saíssem de minha cabeça ao teclado, são escritas na tela. Não acredito no que vejo! É inexistente para mim. Como seria possível? Faço uma brincadeira... penso em bla bla bla.. O quê?! Escreveuse bla bla bla!! E de novo? Agilulfo?? É você?! Quem está ai? Como isso é possível? Penso em ver aquele texto do começo ao fim. Hã? As páginas passaram rapidamente de baixo acima e retornando agora. É a descrição de toda conversa (ou sonho!) que tive com Agilulfo. Mas como? Se nada disso existiu? Se eu estava desmaiado ali no chão, depois de levar uma pancada na testa. Ai! Tenho que ir, o que fazer se não escrevi o artigo para entregar em alguns minutos? Poderia imprimir este texto da tela do computador, que se autoescreve enquanto penso, misteriosamente. Porém falta o título e Referências Bibliográficas. Poderia ser “o cavaleiro inexistente contra o platonismo” escrito no topo, com meu nome e as informações sobre o Professor, assim como da disciplina e da Universidade, local e data. Dividiria em alguns capítulos e... Referências Bibliográficas! Poderiam escreverse sozinhas! (Estou atrasado! Caramba!! Depressa! Ande logo, mistério.. escreva estas Referências que já é tarde!) Citações! Notas de roda! (Preciso ir...). Uma breve introdução no início, sobre como ocorreu de o livro cair na minha cabeça e mais bla bla bla, também seria útil, para que o professor 5
O Cavaleiro Inexistente contra o platonismo – Nuno Nunes
compreenda o que aconteceu! Considerações finais também é importante. Engraçado, percebo que se autoescreve o que ordeno e nem acho mais estranho. Creio que, de acordo com a necessidade, este absurdo se tornou verdade para mim e aprendi a lidar com ele. Agora tornase até normal! Posso ordenar palavras ao computador sem digitar! (Seria bom se este encantamento durasse até fim de meus estudos!...). Mas este texto não está nos moldes científicos ou filosóficos... Mas o que é a ciência, ou a filosofia, se não uma literatura especializada?! De quem é esta frase? Ah! de Rorty.. Seria assim mesmo? Onde a li? Não lembro.. Deixa pra lá.. Acho que vou ditando as últimas palavras por que tenho de ir... Escrevase: agradeço a Agilulfo, o cavaleiro inexistente, por ensinarme como é mesmo possível, por meio da “força de vontade” espalhada no mundo, aglomerála onde quisermos e fazer produzir o que desejarmos. No tempo dele, a existência de um cavaleiro foi possível, no meu, um artigo ao Professor. Nenhuma razão seria melhor que outra, de acordo com as novas teorias filosóficas... Acho que a bibliografia ficou pronta! Agora é só imprimir!! Onde estará meu sapato? Caracas! Que fome... Preciso tomar um caf...
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O Cavaleiro Inexistente contra o platonismo – Nuno Nunes
Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N., Dicionário de Filosofia, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000. CALVINO, Ítalo, O cavaleiro inexistente, Companhia das letras, São Paulo, 2005. CLASTRES, P. A Sociedade contra o Estado, pesquisas de antropologia política. Rio de janeiro, F. Alves, 1978. CLASTRES, P. Arqueologia da violência. Ensaio de Antropologia Política. São Paulo, Brasiliense, 1982. GHIRALDELLI Jr., P., Pragmatismo e Neo Pragmatismo, Universidade Estadual Paulista – Marília, em Enciclopédia de Filosofia da Educação (www.filosofia.pro.br). LA BOETIE, E., Discurso da Servidão Voluntária. Editora Brasiliense, São Paulo. KATZ, J. “What makes crime ‘news’? ERCSON, R.V. (ed) Crime and the Media. Brookfield, Darthmouth Publishing Company, 1995. MENDONÇA, Rafael. (Trans)Modernidade e Mediação de Conflitos: pensando paradigmas, devires e seus laços com um método de resolução de conflitos. Florianópolis, Habitus, 2006.
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O Cavaleiro Inexistente contra o platonismo – Nuno Nunes
Os Présocráticos, fragmentos, doxografia e comentários, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 1996 RORTY, R. Humans Rights, racionality and sentimentality. IN: SHUTE, S. & HURLEY, S. (ed.) On human rights. The Oxford Lectures. New York, Basic Books, 1993 RORTY, R., Filosofia e o espelho da natureza, Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1994.
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