Baseline Study Regarding Mozambique Family Law

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ESTUDO DE BASE SOBRE O IMPACTO DA LEI DA FAMÍLIA PRINCIPAIS CONCLUSÕES

Isabel Casimiro Liazzat Bonate Rudo Gaidzanwa Sonia Seuane


Índice 1. Introdução ........................................................................................................................................ 1

2. Principais Resultados do Estudo ...................................................................................................... 2 2.1 Tipo de casamento, formas de constituição da família e o registo ............................................. 2 2.2. Direitos Patrimoniais das Mulheres .......................................................................................... 3 2.2.1. Divórcio e Direitos Patrimoniais da Mulher ...................................................................... 3 2.2.2. Sucessão e Direitos Patrimoniais da Mulher...................................................................... 5 2.3. Direito de Alimentos ................................................................................................................. 7 2.4. Tipo de Casos e Instâncias de Resolução de Conflitos ............................................................. 8 2.4.1. Distrito de Manica .............................................................................................................. 9 2.4.2. Bairro de Paquitequete ..................................................................................................... 11 2.4.3. Bairro de Natite ................................................................................................................ 12 2.5. Conhecimento e Utilização da Lei e Acesso à Justiça ............................................................ 13

3. Recomendações .............................................................................................................................. 14


1. Introdução O presente relatório é do resultado de um trabalho de investigação sobre o impacto da Lei da Família em Moçambique, levado a cabo por uma equipa multidisciplinar, composta por investigadoras da Universidade Eduardo Mondlane e da Universidade de Zimbabwe. O estudo insere-se no sistema de avaliação e de aprendizagem desenvolvido no âmbito Programa “Género e Reforma Legal” da Oxfam America's Southern Africa Regional Office (SARO) e teve três componentes principais: recolha de dados empíricos básicos que no futuro servirão de referência para os estudos, permitindo fazer comparações e acompanhar o grau de evolução da situação; levantamento de indicadores que permitam avaliar o impacto do programa no seu todo; identificação de pontos de referência que tornem possível medir as transformações contextuais que ocorram nas diversas áreas de intervenção do Programa. O trabalho foi conduzido com base numa multiplicidade de estratégias e instrumentos metodológicos, nomeadamente discussões com grupos focais, entrevistas individuais com interlocutores-chave (tanto das instituições formais, como das instâncias informais de resolução de conflitos), estudos de caso (como forma de analisar as dinâmicas sociais, os métodos de resolução de conflitos e identificar as tensões e/ou discrepâncias entre a lei e a sua aplicação, trazendo à luz as consequências negativas ou não intencionais da reforma legal), análise de casos/processos entrados nos tribunais nos anos 2002, 2004, 2006 e 2008. A escolha dos anos e do intervalo que os separa, prende-se com a necessidade de compreender a evolução dos casos, antes e posteriormente à aprovação da Lei da Família.1 O trabalho de campo foi realizado nas províncias de Cabo Delgado (bairros de Natite e Paquitequete), Manica (distrito de Manica) e Maputo (distrito de Boane), procurando, com base na exemplaridade, assegurar a representatividade geográfica e sócio-cultural do país. A província de Cabo Delgado situa-se na região norte do país, é predominantemente matrilinear e tem muita influência islâmica (embora o bairro Natite seja dominado por católicos). Manica, província do centro de Moçambique (que faz fronteira com o Zimbabwe) é marcadamente patrilinear. A sul situase a província de Maputo, sujeita a uma pluralidade de influências e práticas, dada a proximidade com a África do Sul e a cidade de Maputo, capital do país. O relatório apresenta os principais resultados e recomendações sobre as seguintes questões: 

Tipo de casamento ou forma de constituição da família;

Direitos patrimoniais da mulher no caso de divórcio/separação;

Direito da mulher à sucessão;

1 A Lei de Família (Lei n.º 10/2004, de 25 de Agosto) foi aprovada no ano 2004 e entrou em vigor em Março de 2005.


Direito de alimentos;

Instâncias de resolução de conflitos;

Conhecimento e utilização da lei e acesso à justiça

2. Principais Resultados do Estudo 2.1 Tipo de casamento, formas de constituição da família e o registo Enquanto reflexo da diversidade de opções, necessidades e possibilidades ao dispor dos cidadãos, as formas de constituição da família são as mais variadas em todos os contextos geográficos e socioculturais estudados. Contudo, foi possível identificar a predominância da união de facto no distrito de Boane, do casamento tradicional em Manica (envolvendo o pagamento do lobolo) e, no caso da cidade de Pemba, uma “disputa” entre o casamento religioso, islâmico, (no bairro de Paquitequete) e do casamento tradicional (no bairro de Natite). No caso de Manica verifica-se, no entanto, uma tendência para a redução dos casamentos tradicionais sobretudo por parte das camadas mais jovens, na maior dos casos sem condições económicas ou financeiras para pagar o lobolo. A questão da união de facto é problemática tem suscitado alguns problemas conceptuais e práticos, sobretudo quando confrontada com a lei e com os usos e costumes. Aliás, muitos dos entrevistados entendem que a Lei da Família não permite captar a diversidade de relações em curso, muitas das quais não se reconduzem necessariamente aos conceitos de poligamia, monogamia ou união de facto. As consequências jurídicas da lei, afirmam os entrevistados, nem sempre correspondem à real intenção das pessoas. Considerando a forma como actualmente é praticada, a união de facto situa-se numa zona intermédia, não claramente definida, entre o casamento e as relações casuais, principalmente quando o homem não está unido por qualquer outro vínculo matrimonial. De acordo com os costumes, o homem pode casar-se com mais do que uma mulher e estabelecer outras relações casuais. Contudo, os homens combinam uma multiplicidade de relações, cruzando diferentes formas de casamento ou de constituição da família. Esta realidade tem trazido problemas para as mulheres e respectivos filhos, sobretudo quando aquelas estão convictas de que se envolveram numa relação monogâmica. Há uma tendência generalizada para o não reconhecimento da validade das uniões de facto por parte dos cidadãos, em especial para fins patrimoniais. Estas situações tornam-se mais problemáticas pelo facto de, por um lado, o registo dos casamentos tradicionais e religiosos não ser uma prática corrente. Por outro lado, porque o Estado tem fraca capacidade de intervenção em vastas áreas do país, especialmente nas zonas rurais, de modo que o registo dos nascimentos, dos casamentos e das mortes ainda não é suficientemente sistemático. Finalmente, porque o registo do casamento custa no mínimo o equivalente a USD 50,00, o que é


muito caro para uma boa parte dos cidadãos. Na verdade, há pouco reconhecimento dos problemas quotidianos dos cidadãos por parte das entidades oficiais, do mesmo modo que a lei formal nem sempre é capaz de responder às realidades em aqueles vivem. Além do mais, a emissão de documentos oficiais é muito lenta, o que acarreta problemas acrescidos para o exercício de direitos elementares como estudar, votar, casar numa Conservatória, herdar bens, etc. Estes constrangimentos tornam mais difícil a aplicação da lei no sentido de proteger as mulheres e crianças, uma vez que lhes falta uma das premissas mais importantes: o registo que possibilite provar a sua identidade ou situação conjugal.

2.2. Direitos Patrimoniais das Mulheres 2.2.1. Divórcio e Direitos Patrimoniais da Mulher A investigação mostra-nos que, no geral, as mulheres estão dependentes dos homens (maridos ou familiares) no que respeita às estratégias de vida, quer estas sejam de natureza económica ou social. Nas sociedades patrilineares, há uma tensão clara entre as práticas costumeiras e lei. Os homens entendem que a lei é contrária à forma como nos contextos familiares se resolvem os casos de divórcio. Argumentam que não se pode seguir a lei porque geralmente as mulheres não trabalham, sendo todo o património da família adquirido pelos homens. Não tendo uma expectativa legítima de dividir os bens, afirmam ainda, evita-se que as mulheres se casem por mero interesse patrimonial. Assim, de acordo com o direito costumeiro, no caso de separação ou divórcio, a mulher volta para casa dos seus pais, levando consigo apenas os bens que o homem (marido) autoriza, normalmente bens pessoais e utensílios domésticos. Contudo, se separação dever-se ao adultério praticado pela mulher, é-lhe permitido levar menos bens ainda. A circunstância de muitas famílias serem constituídas por união de facto aumenta a vulnerabilidade das mulheres em caso de divórcio. O trabalho de investigação permitiu recolher muitos casos que ilustram este problema. Vejamos um exemplo: Lúcia, natural de Magude, tem 44 anos de idade. Viveu em união de facto com um homem durante 12 anos. Dessa relação nasceram 6 filhos, sendo que Lúcia já tinha um filho. Depois de beneficiar de uma indemnização no seu emprego (porque a empresa faliu), o companheiro de Lúcia abandonou a casa e juntou-se a outra mulher. Depois de muitos anos de separação, o “companheiro” de Lúcia reclama a propriedade da casa. Pretende vendê-la e expulsar a Lúcia. Com a ajuda do Secretário de Bairro e da polícia, Lúcia e seus filhos foram efectivamente tirados da casa em Dezembro de 2007. Além do mais, o Secretário de Bairro “confiscou” o telemóvel de Lúcia e exigiu o pagamento de 9.000,00MT. Neste momento Lúcia e os filhos dormem na casa dos vizinhos.


No bairro de Paquitequete, como afirmámos, há uma forte influência do Islão, sendo esta religião uma referência importante de estruturação da vida da comunidade. Segundo o islão, há uma certa relação entre os direitos patrimoniais da mulher na constância do matrimónio (nafaqa) e após o divórcio. No Paquitequete, o valor da nafaqa depende do nível de vida de que a mulher goza antes do casamento, em princípio, não sendo ao homem permitido casar se não tiver condições para proporcionar à mulher a mesma qualidade de vida. Durante o casamento, o homem deve assegurar o sustento da mulher, fornecendo uma casa, comida, roupa e outros bens. A casa deve ser sólida e localizada num lugar seguro, de modo a permitir que a mulher viva sem nenhum receio. Se a casa não obedecer a estes requisitos, a mulher é livre de recusar a viver com o marido, até que este regularize a situação. Os familiares do marido estão proibidos de viver nessa casa. Abre-se uma excepção em relação aos filhos menores provenientes de um casamento anterior, embora a mulher deva, ainda assim, consentir que aqueles habitem a casa. Se o homem for polígamo, deverá dar as mesmas condições de vida às várias mulheres, sendo que cada uma delas tem o direito de viver numa casa própria. Contudo, se as mulheres tiverem filhos, recebem o valor da nafaqa proporcionalmente ao número de filhos que tiverem ao seu cuidado. É o caso de um dos entrevistados, natural de Namapa e residente no Paquitequete desde 1979. Nenhuma das suas três mulheres tem um emprego formal, tendo o entrevistado apoiado duas delas a começar um pequeno negócio familiar e a outra a abrir uma machamba. A primeira mulher (que tem sete filhos) recebe 500,00 MT mensais do marido; a segunda mulher (com quatro filhos) recebe 450,00 MT; a terceira, não tendo filhos, recebe 300,00 MT. No Paquitequete, o dever de sustentar a mulher prolonga-se para depois do divórcio por um período de três meses ou, se porventura a mulher estiver grávida, até ao parto. Para além do dever de assistência, as doações para casamento são obrigatórias no casamento islâmico por parte do homem para com a mulher, localmente designadas mahari. Se o mahari não for pago durante o matrimónio, deve ser entregue se o casal se divorciar ou se o marido morrer. Se o mahari não for pago, a mulher tem o direito de não consumar o casamento. O valor do mahari varia em função dos contextos. Em Pemba usualmente oferece-se uma cama e colchão casal cujo valor não deverá ser inferir a 1.000,00 MT. A Lei da Família prevê determinadas situações que, uma vez verificadas, podem conduzir à caducidade das doações entre casais: morte do donatário, salvo se o doador confirmar a doação nos três meses seguintes; anulação do casamento; divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, sendo o donatário declarado o exclusivo culpado (artigo 169.º). No Paquitequete segue-se a regra do Islão segundo a qual a mulher pode perder o direito ao mahari se o casamento for anulado antes da sua consumação ou se, à semelhança do que está previsto na Lei da Família, o casamento for anulado por culpa da mulher.


Em princípio, no casamento islâmico não há lugar à comunhão de bens nem, obviamente, à administração conjunta dos bens do casal, mencionada no artigo 102.º da Lei da Família. Actualmente verificam-se, no entanto, algumas transformações no respeita às regras do matrimónio no Paquitequete, procurando-se ajustar as regras do Islão à realidade local e ao contexto de pobreza. Ao contrário do que prescrevem as regras, raramente as mulheres permanecem em casa sem trabalhar, cuidando dos filhos e agradando os maridos. Antes trabalham e contribuem para a economia doméstica. Aliás, quando as pessoas se casam são aconselhadas pelo qadis (juiz ou entidade oficial) a apoiarem-se mutuamente e a prestarem assistência aos seus familiares. Outra diferença importante em relação ao diz respeito ao regime de bens. Os muçulmanos de Paquitequete têm agem de forma diversa da lei islâmica, aproximando-se das provisões da Lei de Família. Como explica um shaykh-kadi do bairro, contando a sua própria experiência: “no casamento há bens que devem ser considerados comuns. Casei-me há cerca de 40 anos. Tudo o que levei para a casa, incluindo equipamentos e dinheiro, pertence aos dois. Qualquer coisa que compre, digo à minha esposa que também a pertence”. No bairro de Natite as questões relativas ao casamento e às obrigações dos cônjuges são colocadas de maneira ligeiramente diferente em relação a Paquitequete, embora não haja coincidência de opiniões entre homens e mulheres. Para estas, o homem é obrigado a construir uma casa de família. Pelo contrário, os homens entendem que não têm especial obrigação de construir uma casa, podendo o casal inclusivamente viver na casa dos familiares da mulher ou do marido. Contudo, na prática os homens é que constroem a casa de família. Apesar das relativas diferenças de regras que regulam o casamento, quando estamos perante uma situação de ruptura da relação matrimonial encontramos muitas semelhanças entre os vários contextos socioculturais estudados. Como noutros lugares, no Paquitequete há uma tendência para despojar as mulheres dos bens adquiridos durante o casamento. Os tios maternos do marido ficam com todos os bens da mulher e dos filhos. Contudo, conforme informação prestada pelos nossos interlocutores, a situação tende a melhorar graças à intervenção do tribunal comunitário do bairro.

2.2.2. Sucessão e Direitos Patrimoniais da Mulher Quanto ao exercício de direitos sucessórios, as mulheres enfrentam constrangimentos muito sérios em todos os contextos em que decorreu a investigação. É certo que actualmente as sucessões não são reguladas na Lei da Família, continuando a vigorar o regime do Código Civil de 1966. No então, a questão das sucessões é também estruturante das relações de família, condicionando a sua organização, as relativas responsabilidades dos seus membros, o acesso e distribuição dos recursos. A falta de actualização do regime das sucessões pode, pois, condicionar a concretização dos objectivos prosseguidos pela Lei da Família.


Segundo a tradição das sociedades patrilineares, a sucessão também feita de acordo com as regras do patriarcado. Por exemplo, se para as mulheres é relativamente fácil aceder à terra e outros recursos por via dos familiares, do casamento ou de uma autoridade administrativa, é extremamente problemática a conservação da posse (ou a propriedade) desses recursos. Em caso de morte dos maridos, as mulheres são sujeitas à “expropriação” dos bens por parte dos familiares do marido. A pobreza tem sido uma das justificações para este tipo de práticas, na medida em que se entende que a viúva encontrará melhores condições de vida junto dos seus familiares. Contudo, a justificação mais corrente é que pretende-se assegurar que o património permaneça na família do marido, acautelando-se, assim, da eventualidade de haver novas núpcias por parte da viúva. É, no entanto, importante frisar que não se trata de uma regra consensual, havendo homens que defendem a expulsão da mulher “apenas” nas situações em que ela seja culpada da morte do marido. De qualquer modo, é preocupante constatar que a ideia de que a mulher deve abandonar a casa de família e regressar para o lar dos pais está ainda muito enraizada e que nem sempre é contestada, no discurso ou através dos actos, pelos diversos actores sociais. Na maior parte dos casos, o exercício de direitos sucessórios dependerá da correlação de forças na família, do tipo de propriedade em causa e dos interesses existentes, sendo que a vulnerabilidade das mulheres, em princípio, torna-se maior quanto mais novas forem e não tiverem filhos. Havendo filhos adultos há maiores possibilidades de evitar a “expropriação” dos bens pertencentes à mulher por via da meação ou da herança. Também em Pemba a posição das viúvas é problemática no que respeito aos direitos sucessórios, embora possamos afirmar que situação é pior no Natite, quando comparada a Paquitequete. Normalmente há conflitos entre a família do marido (falecido) e a viúva, principalmente por causa da casa e do respectivo recheio. Na maioria dos casos, as acusações de feitiçaria são o leitmotiv da “expropriação”. À semelhança do que acontece no Sul do país, os familiares do marido decidem o destino a dar ao seu património. Podem inclusivamente ficar com todos os bens, sobretudo se a mulher não tiver filhos. Às vezes, os familiares do marido determinam como condição para que a mulher e os filhos fiquem com os bens, que aquela não volte a casar-se. Ainda assim, a mulher continua vulnerável, havendo inclusivamente exemplos de expulsão com o pretexto de que foi visto um homem a sair da casa durante a noite. Nos casos em que a mulher e os filhos ficam com a casa e outros bens do casal, os familiares do marido determinam como condição que a mulher não volte a casar-se. Se, como vimos, os interesses subjacentes às regras costumeiras constituem um problema para o exercício de direitos sucessórios por parte da mulher, a inexistência de uma cultura jurídica preventiva e o desconhecimento (ou não utilização) dos processos de partilha podem trazer outro


tipo de problemas para homens e mulheres. É caso exemplar de Kay, um jovem de 26 anos de idade, residente em Chimoio, cuja mãe morreu há seis anos. O pai de Kay voltou a casar-se. Do novo casamento nasceram filhos. Entretanto o pai de Kay morreu. Três anos mais tarde, a madrasta de Kay juntou-se a outro homem e levou consigo todos os bens da casa (incluindo a pensão do anterior marido), deixando Kay e seus irmãos menores sem qualquer sustento. Kay apresentou o problema à polícia local e à Liga Moçambicana dos Direitos Humanos. Este caso mostra precisamente as dificuldades que podem advir para os cidadãos em sede de direito sucessório, pelo facto de não se recorrer ao tribunal para formalizar as partilhas e de não existir testamento.

2.3. Direito de Alimentos A questão de alimentos é muito problemática, havendo uma tensão clara entre o direito costumeiro e a Lei da Família, tanto nas sociedades matrilineares como nas patrilineares. A Lei da Família reconhece o direito à alimentos aos cônjuges, filhos e estende-se a outros familiares, irmãos, ascendentes ou descendentes, assim como às mães solteiras e às mulheres de uma relação polígama, em caso de morte do marido. Neste caso, a relação polígama deverá ter durado mais de cinco anos e se, à data da morte do marido, o casal não estiver separado de facto há mais de um ano. Nas sociedades patrilineares, a obrigação de prestar alimentos aos menores recai no homem, enquanto pai ou chefe de família. As mulheres também têm a obrigação de cuidar dos menores, fornecendo para o efeito carinho uma série de trabalhos domésticos. Estas regras resultam do facto de se considerar que os filhos pertencem ao pai, a não ser que a mulher não tenha sido lobolada. Se porventura os filhos vivam com a mãe e/ou seus familiares, o pai deverá compensá-los de forma a cobrir o valor despendido com a sua manutenção, caso reivindique as crianças para si. Se não houver lugar ao lobolo, os filhos de mãe solteira acabam por ver restringidos os seus direitos sucessórios, na medida em que não poderá herdar determinado tipo de bens da família materna. Se durante o casamento não se questiona que o direito de alimentos se estende para as mulheres, no caso de divórcio a situação é diferente, considerando-se que os homens não são obrigados a prestar alimentos a favor da ex-esposa. Alega-se que a mulher, sendo adulta, está em condições de encontrar um emprego que garanta o seu sustento. Nas sociedades matrilineares, a questão de alimentos das mulheres e dos filhos quando ocorre um divórcio coloca-se de maneira diversa porque entende-se a responsabilidade de prestar alimentos recai sobre o tio materno. Deste modo, o pai biológico pode partir e começar uma nova relação sem o dever de assegurar a sobrevivência da antiga mulher e dos filhos. No Paquitequete, a mulher pode simplesmente, se for o caso, receber o resto do muhari a que tem direito. Quanto aos filhos, a regra é que recebam do pai total apoio. Contudo, em todas as regiões do país, isso nem sempre acontece. Na maioria dos casos, os pais deixam de prestar alimentos quando termina a


relação conjugal. Mas mesmo nos casos em que os pais ficam com os filhos, o pagamento dos alimentos tem sido bastante irregular. Os problemas de alimentos estão associados aos conflitos conjugais e à problemática do não registo dos filhos. O caso da Arlete é paradigmático. Arlete tem 44 anos de idade, quatro filhos e vivia em união de facto desde 1978. O marido, natural da Zambézia, era imigrante na África do Sul. Quase sem nenhum apoio do marido, Arlete construiu uma casa no bairro da Mafalala em 1987. No ano 2005, o marido da Arlete começou a assumir um comportamento violento, alegando que ela tinha maus espíritos. Os actos de violência incluíram o abuso sexual de uma filha de 15 anos de idade. Desde então o marido decidiu, contra a vontade de Arlete, que deveriam vender a casa e partir para a Zambézia, onde vivem os seus familiares. Arlete pediu apoio aos seus familiares, mas não foi possível a reconciliação do casal. O marido insiste que Arlete não tem direito ao produto da venda da casa porque ela é mulher e não contribui para o rendimento familiar. Aconselhada pelo Secretário de Bairro, Arlete recorreu a uma associação que presta assistência jurídica às mulheres que a apoiou intentando uma acção de alimentos no tribunal de menores. Só assim foi possível registar dois dos filhos de Arlete. Quanto à casa, corre no tribunal da cidade um processo judicial de divisão de coisa comum que decidirá o desfecho do problema. Associado aos casos como os da Arlete, existe uma dificuldade de provar legalmente a paternidade e de desencadear um processo judicial para o efeito. Ainda assim, quando determinada acção é bem sucedida, há muitos casos de homens que tentam furtar-se ao cumprimento das decisões judiciais, mudando de emprego ou de residência, ocultando a real situação profissional e económica, entre outros artifícios. Ademais, dado o estado de vulnerabilidade em que normalmente se encontram as mulheres e os filhos, alguns homens que prestam alimentos sentem-se no direito de manter relações sexuais com as ex-esposas.

2.4. Tipo de Casos e Instâncias de Resolução de Conflitos Confirmando os estudos sobre administração da justiça que têm sido realizados em Moçambique, a investigação encontrou uma pluralidade de instâncias de resolução e de encaminhamento dos conflitos familiares, nomeadamente a família, os chefes de quarteirão, secretários de bairro, tribunais comunitários, comité do Partido Frelimo (no caso específico de Natite), entidades religiosas, organizações não-governamentais, Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ), procuradorias e tribunais judiciais. As informações dos interlocutores do sector judiciário sobre o tipo de casos e os problemas que lhes estão subjacentes, confirmam as evidências do terreno. Destacamos os seguintes casos: 

Divisão de bens: resulta dos problemas existentes na separação se casais que vivem em união de facto ou quando um deles morre;


Regulação do exercício do poder parental: normalmente surgem por causa da questão dos alimentos porque muitas vezes os homens aceitam que as crianças fiquem ao cuidado das mulheres, mas não contribuem para o seu sustento;

Regulação oficiosa da paternidade: normalmente antecede a acção de alimentos, uma vez que há uma necessidade jurídica de provar a paternidade, antes de se exigir o pagamento de alimentos;

Tutela: alguns casos têm como fundamento o desejo de movimentar dinheiro que o falecido tenha alegadamente deixado.

Dada a diversidade de instâncias e de formas de funcionamento, apresentamos as principais constatações separando os distritos e bairros estudados.

2.4.1. Distrito de Manica O grau de conhecimento da lei condiciona o acesso à justice. A maior parte dos cidadãos recorre aos conselhos de família, aos líderes tradicionais e religiosos e aos tribunais comunitários para a resolução dos conflitos de natureza familiar. Normalmente o tribunal judicial é a última esperança, depois da resolução de conflitos ter falhado noutras instâncias. A maior parte dos casos apresentados nos tribunais comunitários está relacionada com problemas dos casais (unidos por casamento tradicional), causados por adultério, poligamia, pouca assistência à família (particularmente quando o homem tem mais do que uma mulher) e difamação envolvendo acusações de feitiçaria. As decisões dos tribunais comunitários são proferidas com base na tradição e na moral, estando muitas vezes em condições de reconciliar as partes. O adultério cometido pelo homem não está sujeito a sanção dos tribunais comunitários. Se for cometido pela mulher, o homem com quem ela se relacionou deve pagar uma compensação ao “ofendido” (marido) entre USD 100,00 e 200,00 e os sogros devem devolver o valor do lobolo. A sanção pecuniária é igualmente aplicada quando uma menor (de 14 a 16 anos de idade) perde a virgindade ou quando é engravidada sem que se observassem as normas tradicionais. Os pais da menor exigem o pagamento de uma compensação pela perda da virgindade e o pagamento do lobolo. O montante da compensação depende da capacidade económica do participado. Encontrámos casos que nos revelam uma certa transformação das regras tradicionais que poderá ser resultado das campanhas de educação jurídica desenvolvidas na província: ainda que a mulher tenha cometido adultério, em caso de divórcio os bens adquiridos durante o casamento são divididos em duas partes iguais entre o marido e a mulher. Quanto aos filhos, ficam com a mãe até aos 7 anos de idade, passando depois a viver com o pai. Enquanto vive com a mãe, o pai deve


prestar assistência ao filho. Este movimento de mudança foi-nos igualmente confirmado pelos próprios juízes do Tribunal Comunitário de Makudu que afirmam que as comunidades começam a perceber, por exemplo, que não devem privar as viúvas de usufruírem os bens que recebe a título de herança. A actuação dos membros do tribunal comunitário de Chinfura também reflecte esse processo de transformação interna do direito tradicional no sentido de respeitar os direitos das mulheres e das crianças. Na resolução dos divórcios em que o homem manifeste a intenção de abandonar a família, os juízes primeiro tentam convencê-lo a ficar. Se mesmo assim o homem decidir partir, os juízes convencem-no a assinar uma declaração, comprometendo-se a garantir a assistência dos filhos. Se o homem estiver empregado, o tribunal faz chegar a declaração ao seu local de trabalho, de modo a que seja descontado o valor correspondente à pensão de alimentos. Para além disso, o tribunal aconselha o homem a deixar a casa com a mulher e os filhos. No tribunal judicial a maioria dos casos registados no tribunal judicial é de regulação do poder parental e de prestação de alimentos. Estes casos são apresentados sobretudo por mulheres. Contudo, uma parte considerável dos casos entrados no tribunal judicial termina por desistência das autoras. Isto pode estar relacionado com o fraco conhecimento dos direitos por parte das mulheres, aliado à pressão que sofrem dos respectivos familiares e à indisponibilidade de advogados ou de outros serviços de representação de interesses jurídicos. Como se sabe, o IPAJ tem a responsabilidade legal de representar os cidadãos carentes que não têm condições económicas para contratar um advogado. No entanto, em Manica, como noutros distritos e províncias do país, o IPAJ não cumpre a função para a qual foi criado porque os seus membros cobram honorários pelos serviços prestados. Como nos foi relatado pelos próprios profissionais do foro judiciário, a morosidade processual é também um dos constrangimentos para a efectivação da Lei da Família e, consequentemente, um dos principais bloqueios do acesso à justiça. Foi-nos dado o exemplo de províncias como Gaza que registam muitas mortes de imigrantes que trabalham nas minas África do Sul. Muitos desses casos são levados ao tribunal pelas viúvas, perante o risco eminente de perderem os bens para os familiares do marido. A regra é que esses processos sejam tão lentos de tal sorte por vezes as requerentes morrem antes do seu término, o que faz com que também os órfãos fiquem prejudicados.


2.4.2. Bairro de Paquitequete No bairro de Paquitequete estão implantadas duas instâncias principais, o tribunal comunitário e a autoridade entidade religiosa. O Tribunal Comunitário do Bairro de Paquiteque não tem instalações próprias, o que torna difícil a arrumação e a localização dos documentos. O tribunal responde perante a direcção provincial dos registos e notariado, para onde envia relatórios anuais. O tribunal recebe, em media, 70 a 70 casos por ano, cerca de 60% dos quais são “casos sociais”, isto é, conflitos familiares. Para a apresentação e discussão dos casos, o tribunal cobra uma taxa fixa de 100,00 MT ao queixoso e ao participado. O valor serve para comprar material de trabalho e assegurar minimamente o pagamento das despesas de funcionamento do tribunal. Tal como noutros bairros e localidades, o tribunal comunitária procura resolver os conflitos de acordo com os costumes locais, bom senso, equidade e sentido de justice, tal como se prescreve na lei que o regula. Para além do tribunal comunitário, no Paquitequete é relevante a intervenção da autoridade religiosa na resolução de conflitos conjugais de acordo com a lei islâmica. O Corão exige que no caso de desentendimento de casais sejam nomeados dois árbitros, um em representação de cada família. Os árbitros procuram a reconciliação do casal. Na impossibilidade de reconciliar as partes, se o marido for culpado da separação, pode ser obrigado a declarar talaq (rejeição formal da mulher). Se a culpa recair sobre a mulher, os árbitros têm duas alternativas: obrigá-la a voltar para o marido, depois de pedir que este a trate com carinho; ou simplesmente declarar o divórcio, obrigando a mulher a pagar uma compensação ao marido. De acordo com as regras do Islão, para que seja regular, o talaq deve ser entregue três vezes durante três meses, devendo a mulher manter-se pura e sem manter relações sexuais. Depois de receber o primeiro talaq, a mulher entra para um período de espera que deve durar três ciclos menstruais ou, se estiver gravid, até ao nascimento da criança. Este é o período em que a reconciliação ainda é possível. O terceiro talaq é irrevogável. Transforma a mera separação no divórcio. No Paquitequete não se seguem todos os procedimentos do talaq regular. Normalmente escrever formaliza-se e efectiva-se o divórcio num único acto. De qualquer modo, a diversidade de instâncias presentes no bairro faz com os casais escolham as que contextualmente melhor servem os seus interesses. Do lado dos actores sociais que resolvem conflitos, também recorrem a uma pluralidade de procedimentos e de corpus jurídicos que melhor ajudam na resolução concreta dos problemas. Deste modo, tanto os utentes como as instâncias não reivindicam e aplicam exclusivamente a lei islâmica, antes combinam-na com as tradições locais, com o direito estatal e


com as regras e o sentido de justice de outras estruturas locais e provinciais de resolução de conflitos, como os chefes de quarteirão, a polícia comunitária, a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), as organizações não-governamentais, a Procuradoria da República e os tribunais judiciais. Um caso exemplar de recurso à uma autoridade judiciária, contado na primeira pessoa: “quando uma mulher torna-se viúva há muitos problemas. Fui viúva durante vinte anos e sofri. A família do falecido criou-me muitos problemas. Numa altura em que os meus filhos ainda eram menores, tentaram mandar-nos todos embora. Eu estava sempre no tribunal tentando fazer o melhor pelos meus filhos. Pensava em ir-me embora, mas isso traria mais problemas para as crianças. Tive que falar com o procurador provincial. Ele chamou a família e explicou que eu não voltaria a casar porque tenho filhos e que não podiam expulsar-me de casa. Os problemas cessaram mas nunca recebi qualquer apoio da família do meu marido. Trabalhei como empregada doméstica. Lavando a roupa e passando à ferro. Trabalhei durante dez anos e os meus filhos foram crescendo e estudando [...] Este caso levou-me ao tribunal há 20 anos. Desde então tenho ouvido histórias semelhantes”.

2.4.3. Bairro de Natite No bairro de Natite os conflitos familiares ocorrem principalmente por causa de ciúmes, adultério e consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Normalmente as partes em conflito dirigem-se em primeira instância para o humu ou para o tio materno. Caso o problema não seja resolvido ou uma das partes não esteja satisfeita com a solução recorrem sucessivamente para o chefe de quarteirão e para o tribunal comunitário do bairro. O Tribunal Comunitário do Bairro de Natite foi criado em 1979. O corpo de juízes (três homens) vem dos tempos dos tribunais populares. Apenas um dos juízes do tribunal beneficiou de uma formação sobre os direitos da criança. Ao contrário do que foi visto no Paquitequete, o tribunal de Natite não elabora relatórios de actividades, nem regista os casos. O tribunal comunitário cobra uma taxa pela resolução de conflitos. Ao contrário do tribunal de Paquitequete, as decisões não são fundamentadas com base na lei, bastando-se com uma apreciação genérica do problema e a constatação de que foi alcançado acordo: “de acordo com o consenso alcançado, o tribunal, depois de apresentadas as provas e ouvidas as testemunhas e partes, os juízes decidem por unanimidade...Depois de julgado o caso, os juízes deste Tribunal Comunitário do Bairro de Natite em Pemba assinam juntamente com as partes.” Correspondendo à identidade cultural e política de uma boa parte dos habitantes de Natite, por vezes a comunidade católica e o Comité do Partido Frelimo são chamados a intervir nos problemas que ocorrem no bairro.


2.5. Conhecimento e Utilização da Lei e Acesso à Justiça O trabalho de campo tornou evidente que no geral a Lei da Família não é conhecida pelos cidadãos, nem pela maior parte das instituições e estruturas que operam no terreno, incluindo os tribunais comunitários, a polícia e as autoridades tradicionais. Aliás, muitos deles não têm sequer acesso à lei. As organizações não-governamentais que trabalham na área da família, com a AFRICARE (que trabalha com órfãos e sobre a questão das sucessões) também conhecem muito mal a lei. Outras divulgam interpretações erradas da lei ou fazendo juízos de valor susceptíveis de comprometer os objectivos apara os quais foi aprovada. Muitas das organizações que estiveram envolvidas no processo de reforma da Lei da Família não têm representações na maior parte das províncias e dos distritos. Por exemplo, em Manica as poucas organizações que têm contribuído para a divulgação da lei e que fazem mediação familiar são a LEMUSICA (que trabalha principalmente com órfãos e com vítimas de violência doméstica), a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH), a Kwaedza Simukai Mania (KSM), a CARITAS e a ANDA. Essas organizações carecem ainda de mais conhecimentos sobre a lei e de melhores competências para a disseminação da informação. Ainda assim, excepcionalmente em Manica existe algum (embora pouco) conhecimento dos direitos, na medida em que as ONGs distribuem panfletos e cartazes com alguns artigos da Lei da Família. Em contrapartida, os funcionários de uma rádio local, embora sendo os actores-chave para a divulgação dos direitos, não conhecem a lei. Mas a questão consiste não só em facultar o acesso à lei, mas também adoptar a estratégia correcta para permitir a assimilação do conteúdo, uma vez que há ainda muitas resistências e barreiras culturais por transpor. Essa estratégia de comunicação deveria inclusivamente informar o próprio processo de elaboração legislativa. Alguns conceitos, princípios e regras não têm correspondência com o quadro de valores dos cidadãos, de modo que é necessário levar a cabo um cuidadoso trabalho de informação e formação para que sejam acolhidos. Por exemplo, a obrigação de prestar alimentos a uma mulher divorciada não tem sido aceite com facilidade, sobretudo quando essa mulher é saudável e está em condições de trabalhar. Na verdade, Moçambique a lei é melhor conhecida na cidade de Maputo, onde a oferta de serviços estatais e não estatais de assistência jurídica é muito maior. Quanto mais nos afastamos da capital do país, mais precário é o conhecimento das leis e dos direitos. Nas províncias as partes estão quase sempre dependentes da iniciativa das instâncias para as quais recorrem, o que condiciona o acesso à justiça. Na maior parte dos casos e principalmente quando se recorre para as (instâncias comunitárias cujos campos e formas de actuação não estão regulamentados), tudo dependerá do perfil dos respectivos juízes ou membros que as integram. Nem sempre estará


assegurado o exercício dos direitos, como foi o caso da Lúcia (acima transcrito). Num contexto em que a maioria da população é analfabeta e em que o Estado, através do IPAJ não assegura assistência jurídica efectiva aos cidadãos, compreende-se que o conhecimento precário dos direitos ponha decididamente em causa o acesso à justiça. A inexistência de um sistema de representação de interesses abrangente aos mais pobres contribui para que, mesmo nos tribunais judiciais onde em princípio o controlo da legalidade é mais forte, os cidadãos assumam acordos que põem em causa os seus próprios interesses. Um caso ilustrativo: Gee divorciou-se há três anos, tendo estado casada quinze. Optou pelo divórcio por mútuo consentimento. Gee e o marido foram representados pelo mesmo advogado. Gee é da opinião que recebeu menos do que devia porque não entendia o conteúdo nem as consequências jurídicas do que assinou. O processo de divórcio correu num tribunal situado a 200 Km de distância da sua residência. Gee tem duas filhas que ainda estudam na escola secundária. Nos termos do acordo, Gee ficou com um apartamento comprado durante o casamento. O marido ficou com uma vivenda. Gee recebe uma pensão de 15.000,00 MT da qual deve pagar a alimentação, a escola, a roupa e outras despesas das filhas. O acordo contemplava um carro para si, mas Gee não chegou a receber. O apartamento ainda está no nome do ex-marido, embora tivessem acordado que deve passar para o nome das filhas. O acordo determina ainda que se Gee deixar a casa, metade da renda será para o marido e a outra para as filhas. Para além da vivenda o ex-marido de Gee ficou com as poupanças do casal. Gee está desempregada porque tem problemas de saúde. Aliás, o facto de ser de nacionalidade portuguesa e ter pouca escolaridade, está numa situação de desvantagens no mercado de trabalho. Gee nunca tinha ouvido falar na Lei da Família quando se divorciou. Suspeita que o teor do acordo foi engendrado pelo marido, o advogado e o funcionário dos Registos.” Algumas das necessidades de informação jurídica e de defesa dos direitos são mitigadas por organizações da sociedade civil, especialmente as associações defensoras dos direitos humanos e dos direitos humanos das mulheres que prestam assistência jurídica gratuita aos cidadãos. Contudo, estão longe de respondem plenamente à demanda cada vez maior, diversificada e mais complexa, às vezes carente de serviços muito especializados.

3. Recomendações 

O Estado deve assegurar de forma abrangente o registo de nascimentos, de casamentos, de divórcios e de óbitos. Para o efeito, para além dos seus agentes pode o Estado utilizar recorrer a facilitadores que se encontram fisicamente mais próximos das comunidades, nomeadamente chefes locais, líderes religiosos, estudantes e outros indivíduos. Estes podem fazer chegar mais rapidamente aos cidadãos os formulários


dos registos e apoiar no seu preenchimento; 

O registo e o acesso à documentação deve ser fácil e gratuito, de forma a permitir a inclusão dos cidadãos mais pobres, os analfabetos e todos aqueles que, de um modo geral, enfrentam alguma dificuldade para fazer uso dos serviços públicos;

Deve ser adoptada uma estratégia clara e eficaz de disseminação da lei, de modo a satisfazer as necessidades nos diferentes contextos socioculturais. Nessa estratégia deve-se privilegiar o uso da rádio enquanto o meio de comunicação mais acessível para a maioria da população. Outros veículos de transmissão de conhecimentos devem ser incentivados, a saber o teatro, a música, os panfletos, etc;

O processo de divulgação da lei deve ser complementado com iniciativas de promoção da autonomia das mulheres nas diferentes áreas da sua vida, especialmente do ponto de vista económico;

A elaboração legislativa deve conciliar a técnica jurídica com a necessidade de transmissão eficaz de sentidos;

A lei dever ser traduzida para todas as línguas locais, de modo a que possa ser interiorizada e debatida nos parâmetros das referências linguísticas e simbólicas das comunidades. Actualmente, 57% dos moçambicanos não sabe ler nem escrever português. Esta não é, de facto, a língua utilizada pela maioria dos cidadãos no dia-adia;

Os programas de formação nas escolas, universidades e instituições de formação profissional, em especial de formação de magistrados e outros profissionais judiciários, devem acentuar a perspectiva dos direitos humanos das mulheres e das crianças;

Deve ser clarificado o papel dos tribunais comunitários e demais instâncias “informais”de resolução de conflitos, assim como o tipo de relações que devam estabelecer com os tribunais comunitários;

A lei dos tribunais comunitários deve ser actualizada e regulamentada;

Deve ser organizado um processo democrático de revitalização dos tribunais comunitários;

Devem ser organizados cursos sobre matérias relacionados com os direitos humanos, a Constituição da República e organização judiciária para os juízes dos tribunais comunitários e autoridades comunitárias locais;

Os serviços do IPAJ devem ser alargados para todo o país e, para além da assistência jurídica, apostar na informação;

Deve ser incentiva a cooperação entre o IPAJ e as associações e instituições do ensino


superior que prestam assistência jurídica aos cidadãos carenciados; 

Necessidade de organizar seminários de esclarecimento do regime da Lei da Família, dirigido a um publico diversificado, incluindo os funcionários do Estado que têm a obrigação profissional de a aplicar.


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