Cultura, ideologia e representações Alípio de Sousa Filho*
Proporemos aqui entender que existe uma relação estrutural entre cultura, ideologia e representações. De início, convém esclarecer que o que concebemos por ideologia é algo, se não inteiramente, em grande medida diferente do conceito utilizado por legiões de autores em filosofia e ciências humanas. Assim como totalmente afastado do sentido dado ao termo por um certo senso comum social que já o tornou “conceito” da vida cotidiana: a ideologia como sinônimo de opinião, idéias, convicções. Em outro lugar1, já assinalamos a necessidade de uma nova acepção para o conceito de ideologia que seja capaz de afastar inteiramente seu sentido como simplesmente equivalendo a idéias, opinião ou convicções e que seja capaz também de superar limitações da reflexão marxista sobre tal fenômeno, tratando-se da tradição teórica que mais longamente se ocupou do assunto. Esta tradição sempre vinculou a ideologia à dominação de classe e à existência do Estado, vista como as idéias que legitimariam a existência desse poder separado da sociedade, dando-lhe uma aparência de neutralidade, ao serem capaz (como idéias) de ocultar que o Estado é o órgão da dominação da classe econômica e politicamente dominante. A ideologia serviria para mascarar a divisão da sociedade em classes e o domínio particular de uma dessas classes através do Estado. Como crê a maioria dos autores que adotam essa concepção, a ideologia seria o modo próprio do imaginário das sociedades burguesas modernas, que, na sua função específica, asseguraria a reprodução das relações de produção capitalistas e, sob sua égide, a dominação econômica e política da burguesia. Ela seria, ainda, o instrumento que asseguraria essa dominação e, de modo próprio, somente se poderia pensar sua existência para o caso das sociedades nascidas com o advento do capitalismo. Trata-se aí, entretanto, de se ter tomado uma forma particular da ideologia na história – a “ideologia burguesa” – como sendo sua forma única e geral, deixando-se de reconhecê-la enquanto fenômeno de cultura, independente de modo de produção. E ainda que, para outros, seja possível falar de ideologia para o caso de sociedades que não apresentam nem mesmo uma importante diferenciação *
Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V – Sorbonne – França. Coordenador do Grupo de Estudos do Imaginário, do Cotidiano e do Atual/UFRN.
1
Cf. Sousa Filho, Alípio. Medos, mitos e castigos. São Paulo, Cortez, 1995.
social de hierarquias – como são os casos das sociedades tribais, indígenas, primitivas –, como continuam abordando o assunto a partir exclusivamente de uma perspectiva marxista, a ideologia é pensada em termos de um conjunto de representações cuja função é assegurar as condições simbólicas da reprodução das relações de produção dominantes nessas sociedades. Com diferenças entre eles, essas são grosso modo as concepções sustentadas por autores como Louis Althusser, Maurice Godelier, Emmanuel Terray, Claude Lefort e Marilena Chauí. Uma outra concepção, de certa maneira próxima da anterior, define a ideologia como um discurso de poder, mas este visto como um objeto de disputas em diversos campos, nos quais os “atores” envolvidos nessas disputas transfigurariam relações de força em relações de sentido. A ideologia seria o discurso que esses “atores” produziriam na situação de “disputa de poder”, justificando para si próprios e para os outros o sentido de suas ações: algo como o engendramento de uma espécie de “poder simbólico” (mas inteiramente esvaziado do sentido crítico com o qual o definiu Pierre Bourdieu), convertendo-se num conceito neutro, sem a análise do poder como constituído de relações assimétricas de sujeição, dominação (tão detalhada e criticamente descritas por Michel Foucault). Tratar-se-ia de uma função da relação de uma elocução com os interesses que expressa, num campo específico, para constituir-se como um “pólo de poder”. Algo como uma arma com a qual atores sociais conscientes lutariam na arena discursiva, tratando-se, pois, de apenas “obter adesão” a significados (ou a significações) propostos. Grosso modo, essa é a concepção que aparece (confusamente) num bom número de aplicadores das idéias de Terry Eagleton, John Thompson, Antony Giddens e (curiosamente) também de Pierre Bourdieu – embora não se trate de aplicadores que tenham se ocupado com a análise do fenômeno do ideológico como tal, nem também, ao que parece, preocupados em considerar com exatidão o pensamento desses autores. Essas concepções anteriores não tornam possível ver que a ideologia constitui fenômeno mais abrangente e que a dominação e o poder de que se tem que tratar são outros. Não tornam possível ver que a ideologia responde a exigências mais profundas, determinantes e estruturais que apenas a reprodução de relações econômicas e políticas. Anterior a toda outra coisa, ela assegura, em qualquer sociedade, que a ordem social não desabe enquanto também uma Ordem Simbólica. Resultado que a ideologia consegue obter ao assegurar – através de representações – crenças que conferem à ordem – socialmente construída, arbitrária e convencional – uma aparência de natural, inevitável, universal, sagrada. É, em primeiro lugar, a perpetuação das crenças que convertem as normas, padrões, costumes, instituições de uma ordem em coisas dadas, universais e imutáveis que torna possível que essa mesma ordem
se conserve sem que seja posta em questão pelos que a ela estão submetidos. A ideologia, portanto, atende a esse “anseio” de toda ordem social em se preservar, preservando as crenças que asseguram a consagração simbólica de suas normas, padrões, instituições, costumes – não sendo um atributo específico desta ou daquela expressão social, mas inerente a todo sistema de sociedade, e só secundariamente (por extensão de seus efeitos) podemos pensar que concorre para a reprodução das relações de produção. Contrariamente ao que foi proposto pelo materialismo histórico, a reprodução das relações de produção não é o que a ideologia visa realizar em primeiro lugar, este aspecto não é senão mais um dentre todos os demais da reprodução social, e mesmo a idéia de que a ideologia “visa” alguma coisa não faz sentido: ela não visa nada, pois não é pensamento racional, consciente, voluntário. Enquanto um fenômeno de cultura – da ordem de um acontecer anônimo, involuntário, impessoal –, a ideologia traduz o temor de toda ordem à sua desagregação e torna-se uma resposta metafísica a esse temor. Sua gênese e função, portanto, são determinadas diretamente pelo ser de toda ordem social em sua “aflição” de se preservar como ordem. Do ponto de vista de sua determinação ontológica, a existência da ideologia e a existência de organização social são inseparáveis. Em qualquer sociedade em que se manifeste, a ideologia assegura a coesão social, regulando os vínculos que unem os indivíduos às normas e aos papéis que lhe são atribuídos. Em termos durkheimianos2, trata-se do “cimento social” de toda ordem, pois permite que os membros de uma sociedade (qualquer sociedade) aceitem sem maiores resistências as tarefas, os papéis e os lugares sociais que lhe são atribuídos, engendrando as condutas – o que Pierre Bourdieu chamou de habitus – indispensáveis ao funcionamento da ordem e suas engrenagens. Em decorrência do fato de que toda cultura inscreve seus sujeitos em um conjunto de convenções (normas, padrões, costumes, instituições), mas sem que estes saibam que estão sendo inscritos – e que se trata sempre de convenções humanas, culturais e históricas – e sem que eles possam fazer suas escolhas, e porque, na longa duração histórica e antropológica, desaparecem todos os vestígios do caráter arbitrário e convencional da ordem social, engendra-se o desconhecimento, por parte dos próprios sujeitos, da natureza da cultura e desse 2
É preciso dizer que uma teoria da forma geral da ideologia obriga-se a retomar Durkheim e suas teses sobre a sociedade e a reprodução social. Trata-se de autor banido dos estudos de ideologia por bom número de autores marxistas pelo erro de ser considerado “funcionalista” – o que não quer dizer qualquer coisa de importante do ponto de vista do conhecimento teórico: afinal, desde os seus fundadores, o materialismo histórico contém desenvolvimentos do “funcionalismo”, do “estruturalismo”, etc. comuns a qualquer esforço de compreensão da vida coletiva –, mas autor cujas obras, se vistas sem preconceitos teóricos, constituem tratados sobre a natureza social da ideologia e sua eficácia na reprodução social.
caráter da ordem a que estão submetidos. A ideologia se sustenta justamente nesse desconhecimento. Um desconhecimento que é fonte da produção de representações que autonomizam como natural, única, inevitável, universal, sagrada, eterna e imutável a ordem instituída. Esse desconhecimento e essa autonomização do instituído caracterizam a situação de alienação e de sujeição vividas pelos sujeitos humanos na própria experiência da cultura, independente de modo de produção e de realidades sociais específicas (existência de classes, Estado, etc.). Essa realidade do desconhecimento torna possível um discurso da cultura sobre si mesma que faz com que não seja percebida como construção social, humana, particular e histórica e, ao mesmo tempo, se faça perceber como natural, divina, universal e eterna. A ideologia é propriamente esse discurso da cultura sobre os sujeitos, tornando-se o próprio modo de operar da cultura – é sua língua – enquanto um sistema de convenções, mas cuja natureza e estrutura profunda os sujeitos ignoram. Através dela, a cultura oferece de si uma imagem invertida quanto à sua gênese, natureza e funcionamento. A ideologia afasta assim o perigo da tomada de consciência pelos sujeitos do caráter convencional da cultura e sua ordem. A tomada de consciência do arbitrário cultural é um interdito como outros e medida sobre a qual todos os outros interditos se apóiam: tabu universal, considerado pela antropologia como fundante da cultura, da vida de grupo, que é a proibição do incesto senão um interdito calcado na convenção do parentesco ignorada como convenção por todos? Os estudos etnológicos o demonstram, a proibição do incesto é a lei de um pacto e de um silêncio: o que não se pode tocar – o interdito, o recalcado – é também o que não se pode falar, dizer. (Entre todas as sociedades, o exemplo dos Na, na China, talvez seja o que mais claramente exprima o sentido do não dizer que o interdito obriga3.) A proibição do incesto é uma forma humana que se sustenta num não saber sobre a lógica das coisas que funda um não fazer e um não dizer essenciais à reprodução dessa própria lógica – uma lógica oculta. Embora não seja a Linguagem como tal, a ideologia se confunde com esta porque, não sendo a linguagem, somente se torna possível na linguagem, e é ela própria também uma linguagem. Não é, contudo, redutível a esta porque a ideologia é uma modalidade de relação com a linguagem: aquela na qual o sujeito se constitui numa relação de alienação com ela, que, embora dominante, não é, entretanto, a única modalidade possível. De fato, a linguagem 3
Cf. Cai Hua, Une société sans père ni mari: les Na de Chine. Paris, PUF, 1997. Trata-se uma etnia chinesa, habitante de cidades do vale do Yongning, no sudoeste da China, cuja forma da organização social é matrilinear e apoiada na instituição da visita sexual noturna que sustenta as formas do encontro sexual entre homens e mulheres e suas descendências. Entre os Na, não há casamento e assim nem as figuras do pai nem do marido. A mulher Na cria seus filhos com seus irmãos e irmãs e o que é considerado incesto é a evocação do sexual entre aqueles que habitam a mesma casa.
é quase toda ela essa relação de alienação, mas podemos ter com a linguagem uma outra relação em que ela não seja mais (mesmo temporariamente, por um efeito de suspensão, separação) código, ordo (?), designação, repetidos na automação social e no desconhecimento, mas uma possibilidade instituinte, criadora, modificadora, a partir do que, como linguagem, pode fazer ser e tornar possível um mais que o código, a designação deixaram de fora. A ideologia, como uma linguagem, opera igualmente através de uma lógica simbólica graças a qual o arbitrário cultural se torna invisível aos sujeitos. Tal como ocorre com os signos lingüísticos – estes são de natureza arbitrário-convencional, mas essa realidade os falantes das línguas ignoram, como já apontado por Saussure (o que já indica um efeito de alienação e de sujeição nas operações da Linguagem como tal) –, na ideologia, a cultura desaparece como convenções histórica e socialmente construídas pelos homens e aparece como independente de toda ação humana, a-histórica, universal, intransformável. Assim, uma vez que se trata de desconhecer as operações e os sentidos profundos que presidem a construção do arbitrário cultural, os sujeitos humanos se vêem vinculados a um conjunto de convenções que ignoram a origem e o destino, ocorrendo aí o efeito de alienação (observado por Marx, embora pensado por este como um produto da divisão do trabalho) e de sujeição, entendendo-se por isso um efeito de assujeitamento às convenções culturais e um efeito de sujeito: isto é, a própria via pela qual o indivíduo humano é constituído como sujeito social. Nesta altura de nossa reflexão, torna-se importante assinalar que a ideologia constitui, portanto, a forma simbólica da dominação a que todos os sujeitos sociais estão submetidos no espaço da cultura, sabendo que “a ordem simbólica funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação” (Bourdieu). O que acabamos de descrever é correlato (e não apenas correlato, mas inteiramente relacionado e dependente) à situação em que, ignorando uma clivagem determinante, o indivíduo se reconhece em sua própria imagem, caucionada pela presença e pelo olhar do outro (movimento situado, num primeiro momento, no que a psicanálise chamou “estádio do espelho”), identificando-se num eu imaginário que desconhece o sujeito que o funda. O indivíduo, que não sabe o que é, capturado por uma ilusão, acredita ser aquele eu a quem vê existir na representação e no reconhecimento do Outro. Trata-se, porém, de um engano, pois o discurso desse eu é um discurso consciente, que se toma por único, todavia atravessado pelo discurso não controlável do sujeito do inconsciente. Não podemos ignorar que, em grande medida, o conhecimento produzido pela psicanálise interessa a uma teoria da forma geral da ideologia, como a que nos ocupamos em
dar prosseguimento. A obra de Freud, seguido por Lacan, descreve essa realidade da “estrutura do desconhecimento” – tal como falou dela Althusser4 –, fundante do sujeito, e por ele ignorada enquanto uma estrutura profunda que o determina. A relação existente entre ideologia e inconsciente torna-se evidente se aceitarmos que o sujeito do inconsciente é, em grande parte, o sujeito da ideologia, e vice-versa, não sendo possível compreender um sem o outro. A primeira indicação dessa relação foi dada pelo próprio Freud. Por sua vez, Althusser, em curtas sugestões que deixou sem desenvolvimento, indica essa mesma relação, mas sem que se possa saber ao certo como as desenvolveria, pois concebia a ideologia como uma “opacidade” determinada pela divisão da sociedade em classes e pela existência do Estado, e cujo fim precípuo seria assegurar a reprodução das relações de produção. Ora, não haveria, então, nem ideologia nem inconsciente nas sociedades sem classes e sem Estado? De nossa parte, interessa prosseguir com as indicações que sugerem a relação entre ideologia e inconsciente, para desenvolvimento da hipótese de que a força da ideologia advém – mais do que por outras razões – do fato dela se constituir também como parte do psiquismo inconsciente. 5 No próprio Freud, encontramos uma indicação dessa relação que estamos propondo aqui entre ideologia e inconsciente. Em sua famosa conferência intitulada “A dissecação da personalidade psíquica”6, Freud, numa rápida alusão ao materialismo histórico, critica-o por subestimar a ideologia como puro produto de condições econômicas (e, como se sabe, no marxismo, desenvolveram-se teses segundo as quais a ideologia teria pouca importância na reprodução social, sendo apenas um pálido reflexo invertido das relações de produção), sugerindo que a herança cultural “opera através do supereu, desempenhando um poderoso papel na vida do homem, independente de condições econômicas”. Freud pensará essa herança em termos de “ideologias do supereu” e destaca sua força na instauração do comportamento social duradouro. Não deixaremos de considerar aqui o uso do termo ideologia(s) por Freud e o que ele pensou em sua aplicação, pois, não restaria dúvida que o autor o que pretende é chamar atenção para o efeito da longa memória do precipitado cultural sobre o indivíduo (primeiro na forma da autoridade parental) – que corresponde, no psiquismo inconsciente, à instância do supereu (“o supereu de uma criança é, com efeito, construído 4
Cf. Louis Althusser, Freud e Lacan/Marx e Freud. Rio de Janeiro, Graal,1985 Desdobramento dessa hipótese, atualmente, sob minha orientação no mestrado em Ciências Sociais da UFRN, a psicanalista Claudia Maria Formiga Barbosa desenvolve estudo sobre o que está chamando um “campo favorável”, no processo de constituição do sujeito, no qual se desenvolveria uma articulação entre ideologia e inconsciente que, em grande medida, torna possível compreender como a ideologia se torna eficaz ao nível do sujeito. 6 Freud, Sigmund. “A dissecação da personalidade psíquica”. Rio de Janeiro, Imago, 1976 (Obras Completas, v.XXII) 5
segundo o modelo não de seus pais, mas do supereu de seus pais; os conteúdos que ele encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que dessa forma se transmitem de geração em geração”) –, precipitado inteiramente correspondente ao que aqui designamos por ideologia. Em obras como Mal-estar na civilização ou O Eu e o isso, esse precipitado da cultura aparece como os Ideais: “as restrições morais”, “o passado”, “a tradição”, “a religião”, “a educação”, “o comportamento social”. Não sem razão, é no contexto da reflexão sobre o papel dos Ideais que Freud formula o conceito de “supereu cultural”7. Que significaria esta instância – outros a pensaram como “inconsciente cultural"8 – senão a ideologia? Assim, podemos insistir em nossa hipótese segundo a qual a ideologia adquire força porque, em cada sujeito, ela opera através do inconsciente, sendo o supereu uma de suas portas de entrada (embora, como instância psíquica, o supereu não se restrinja a essa atividade), e igualmente se exerça através da instância psíquica designada por Freud como sendo o eu – “grande parte do eu e do supereu pode permanecer inconsciente e é normalmente inconsciente” –, o eu que “não é senhor em sua própria casa” – “pobre criatura que tem que servir a três senhores, por conseguinte, sofre a ameaça de três perigos, por parte do mundo externo, da libido, do isso e da severidade do supereu” –, tornando-se também instância psíquica pela qual a ideologia atua. Todavia, por agora, deixaremos suspenso o desenvolvimento do assunto. Se uma parte da explicação marxista deve ser conservada, deve ser aquela que compreende o que Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, assinalaram como sendo próprio da ideologia: inverter a realidade. Com efeito, o que caracteriza essencialmente o ser da ideologia é promover a inversão da realidade social, através de representações que afastam inteiramente sua gênese histórica e seu caráter de produto humano, pondo em seu lugar uma representação da realidade social que a torna uma verdadeira segunda natureza. Assim, o que é próprio da ideologia é converter os objetos de natureza social em objetos de natureza natural. O mundo humano-social como objeto social, cultural e historicamente construído é transfigurado em objeto dado, natural, eterno, sagrado. A ideologia – como se fosse um fenômeno de “magia social” (Mauss) – assegura a imposição e a “eternização do arbitrário” (Bourdieu), mas apagando todos os vestígios dessa operação de imposição e eternização. A própria Natureza é também representada na ideologia como sem história e como um produto 7
8
Cf. Sigmund Freud. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1974 (Obras Completas, v. XXI)
Cf. Claude Lévi-Strauss. Antropologia Estrutural I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Cf. igualmente Pierre Bourdieu. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertran Brasil,1999
dado, eterno e sagrado. A chamada “hipótese criacionista” – Deus como criador da Natureza e do homem – é um exemplo dessa representação. A ideologia, como a religião em Durkheim, é um “delírio bem fundado” ou, como em Marx, é uma “ilusão” que torna possível a dominação, pois, sendo um discurso social sobre o próprio social faz este desaparecer como aquilo que ele é – construção humana, cultural e histórica, particularizada como um conjunto de escolhas arbitrárias – para em seu lugar instituir uma imagem que seja sua consagração simbólica como algo cuja existência não é histórica nem produto da ação humana. É através de uma tal representação da realidade social que se torna possível que a dominação – vista aqui como a realidade do assujeitamento na cultura, um dado antropológico – não seja experimentada como tal, mas vivida pelos sujeitos simplesmente como “cultura”: costumes, padrões, moral, direito, etc. (Aliás, este é um problema que permanece em muitas análises em antropologia, quando os autores tratam de cultura como um congelado neutro, sem considerar a dimensão de dominação sobre os sujeitos que está no centro de todo processo de instituição e reprodução das culturas humanas.) Desse modo, quando determinamos o papel da ideologia em tornar “invisível” a dominação, isso deve ser entendido como efeito, em primeiro lugar, de representações espontâneas, coletivas e impessoais, nas quais todos os sujeitos estão implicados, que tornam invisível o próprio caráter social, humano e histórico da ordem social e, por conseguinte, também invisível a realidade da sujeição às convenções dessa mesma ordem. Nada disso será compreendido se for mantida a concepção segundo a qual essas representações são produtos de uma intenção voluntária e consciente de classes ou grupos que dominam a sociedade, tal como muitos ainda crêem. A dominação como algo invisível para os sujeitos que a ela estão submetidos é fenômeno que se origina da autonomização das instituições em relação à sociedade (tal como Cornelius Castoriadis abordou o assunto9) e da impossibilidade, na situação da vida cotidiana, da tomada de consciência do arbitrário cultural – aqui, mais uma vez, inspiramo-nos de Pierre Bourdieu10. Podemos ainda acrescentar, a ideologia constitui o canal de ingresso do indivíduo na cultura. Aquilo que a antropologia chama endoculturação somente pode ser compreendido através do trabalho de inculcação do arbitrário cultural ignorado como tal. Toda endoculturação é resultado de um processo de socialização que, em última instância, significa a interiorização das convenções culturais, sociais, morais, através de diversos ritos e instituições, tornando-se a via pela qual se tornar membro da sociedade é não apenas a 9
Cf. Cornelius Castoriadis. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. Cf. Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1987
10
efetivação de uma destinação forçada a que o ser humano está obrigado (para se constituir como humano), mas também a via de sua constituição na alienação e na sujeição, sem que o sujeito disso se dê conta, como já assinalamos. Uma teoria adequada da socialização dos indivíduos se obriga a pensar o trabalho de interiorização como o próprio trabalho pelo qual a ideologia se torna a realidade do pensar e do agir dos sujeitos, mas sem que nem esse trabalho nem a ideologia apareçam como existindo. De volta a Bourdieu, poderíamos aqui tratar de habitus – as disposições duradouras de comportamento, uma obra de cultura como a héxis entre os gregos antigos. A ideologia funda o consensus omnium, ao mesmo tempo em que nele se apóia, cumprindo as funções de uma “consciência coletiva” – tal como Durkheim pensou o assunto para o caso das sociedades primitivas –, ao menos quanto a uma aproximação que se pode fazer entre as funções do imaginário social nas sociedades tribais e nas sociedades complexas: produção da coesão social, a partir da coerção simbólica (da Lei Social), cujo efeito maior é o de converter a todos em sujeitos (dessa Lei) – os sujeitos sociais. Num e noutro casos, com diferenças importantes que não iremos tratar aqui, a ideologia, como a “consciência coletiva” da sociedade, funda o “conformismo lógico” e o “conformismo moral” que transformam os sujeitos sociais em prisioneiros daquilo que, no entanto, eles são os criadores e os modelos – o leitor reconhecerá, fazemos aqui aplicações modificadas de Durkheim11. Se nas sociedades primitivas as “representações coletivas” são o que fundam e são os veículos da consciência coletiva, nas sociedades complexas o mesmo podemos dizer das “representações sociais”. (Uma diferença entre representações coletivas e representações sociais é proposta por Serge Moscovici, e aqui a tomaremos como suficiente.) Até aqui, referimo-nos a representações, à representação invertida da realidade, etc. Mas nada dissemos de mais claro sobre a relação das representações com a ideologia. Como já se disse muitas vezes, a força da representação advém do fato de que ela é capaz de incluir como fazendo parte da realidade a representação que dela se faz. Isto é, a representação é capaz de produzir imagens, conceitos, idéias, etc. de modo a fazer com que, no pensamento dos sujeitos, torne-se possível passar da representação da realidade para a realidade da representação como sendo a própria realidade.
A ideologia se realiza justamente nessa
natureza da representação, passando de algo virtual a alguma coisa a mais, podendo circular e exercer-se como idéias, conceitos, opiniões, visões, etc.
11
Émile Durkheim. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989
Convém, então, definir as representações como a menor parte da ideologia. Elas constituem o veículo através do qual a ideologia circula na sociedade e pelo qual se realiza sua ancoragem no interior dos sujeitos. Como materialização da ideologia em sua menor parte, as representações se tornam visões e práticas duradouras de sujeitos que estão investidos de crenças que as adotam para conceber o mundo, a si próprios e os outros, embora desconheçam a história dessas mesmas crenças e práticas. Através das representações, a ideologia é capaz de significar para cada um o que se é e significar como se deve conduzir em conseqüência. Naturalmente, o que dissemos antes sobre a linguagem vale também para as representações. Embora as representações constituam mônadas sem as quais a ideologia não tem vida, nem todas as representações são ideológicas. Nem todas estão parasitadas por ela. Insistimos aqui na tese de que o que define o ideológico no essencial é ser o ocultamento da dominação a que os sujeitos sociais estão submetidos, dado que estes desconhecem a natureza convencional (arbitrária) da ordem social e das instituições que lhe dão sustentação. A ancoragem da ideologia pelas representações sociais é a medida de sua eficácia social. Alguns exemplos bastariam para ilustrar o que aqui estamos formulando. Talvez os exemplos mais claros sejam aqueles que tratam da linguagem do parentesco nas diversas sociedades e o exemplo da sexualidade. Como demonstram os estudos antropológicos, os diversos povos utilizam termos para expressar os lugares dos indivíduos na rede do parentesco de maneira que, espontaneamente, passam a crer que estes lugares respondem a necessidades inscritas no biológico, sem mais nada. A ideologia é capaz de fazer desaparecer o caráter social da consangüinidade e da filiação e em seu lugar fazer aparecer a Natureza e o sagrado. Os termos do parentesco se transformam de convenções sociais em realidades biológicas e império de desígnios divinos. Se é fato que o parentesco está constituído de dados biológicos de base, é também certo que o que o parentesco institui é uma nomenclatura – verdadeira língua – de caráter puramente convencional, informada por representações (mitos, etc.), não apresentando nenhum traço que possa ser tomado como “fundamento natural” das lógicas dos parentescos nos diversos povos. Em nosso auxílio, podemos citar aqui uma estudiosa do assunto: “Concluamos, a consangüinidade é tão somente uma relação socialmente reconhecida e não biológica”12. Ou como afirma em outro lugar: “a taxionomia do parentesco é o idioma biológico de relações sociais.” Da mesma maneira, a sexualidade humana, vista pelos diversos povos como produzida pela natureza– seria também determinada pelo biológico –, é desconhecida como construção cultural e histórica. Homens e mulheres,
12
Cf. Françoise Héritier. Masculino/Feminino : o pensamento da diferença. Lisboa, Instituto Piaget, 1996
em todas as sociedades, vivem a ilusão de que o são por uma definição natural, ignorando que são produtos de construções sociais. Ignoram que a sexualidade segue de par com a instituição do parentesco, pois é na “teia ideológica” do parentesco que se define o gênero e os ideais sexuais. Brevemente, situaremos aqui a gênese dos diversos preconceitos em torno da sexualidade. Ignorando que não se nasce homem nem mulher, mas que se vem a sê-lo, homens e mulheres seguem modelos de gênero e vivem suas sexualidades sob o domínio de convenções culturais e históricas, mas ignoradas como tais, passando a representar preconceituosamente tudo o que foge às convenções estabelecidas. A ideologia conforma a todos nas representações que os conformam na dominação dos padrões culturais aceitos.
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