PRO-DISCENTE_Trab.Academicos_v15_N1_Jan_Jun_2009

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Pró-Discente Caderno de Produções Acadêmico-Cientificas do Programa de Pós-Graduação em Educação V. 15, N. 1, Janeiro/Junho 2009

ISSN 2177-6628


PRÓ-DISCENTE

CADERNO DE PRODUÇÕES ACADÊMICO-CIENTÍFICAS DO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO v. 15 – n. 1 – Janeiro/Julho 2009

ISSN 2177-6628

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO – CE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE REITOR Rubens Sérgio Rasseli DIRETORA DO CENTRO DE EDUCAÇÃO Maria Aparecida dos Santos Corrêa Barreto COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO Denise Meyrelles de Jesus COORDENADORA ADJUNTA Regina Helena Silva Simões

CONSELHOS EDITORIAL E CONSULTIVO Adriana Magro (UFES) Ana Luiza Ruschel Nunes (UEPG) Carlos Eduardo Ferraço (UFES) Flávio Corsini Lírio (UFRR) Janete Magalhães Carvalho (UFES) José Américo Cararo (UFES) Maria Amélia Dalvi (UFES) Maria das Graças Cota (UFES) Maria das Graças Carvalho de Sá (UFES) Moema Martins Rebouças (UFES) Nadja Valéria dos Santos Ferreira (UERJ) Ozirlei Teresa Marcilino (UFES) Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni (UFES) COMISSÃO ORGANIZADORA Adriana Magro Andréia Weiss Fabiana Rangel Fernanda Zanetti Becalli Lucyenne da Costa Maria Amélia Dalvi Ozirlei Teresa Marcilino Rosianny Campos Berto Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni REVISÃO Dos autores EDITORAÇÃO ELETRÔNICA, PROJETO GRÁFICO E ARTE Leandro Macêdo

É permitida a reprodução parcial ou total dos textos desta publicação, desde que citada a fonte. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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PERIODICIDADE: Semestral

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores.

DIREITOS RESERVADOS PRÓ-DISCENTE: CADERNO DE PRODUÇÕES ACADÊMICO-CIENTÍFICAS DO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DO CENTRO PEDAGÓGICO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO.

Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) P962

Pró-discente : caderno de produções acadêmico-científicas do Programa de Pós-Graduação em Educação / Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. – Vol. 15, n. 1 (jan./jun. 2009)- . - Vitória, ES : UFES, Programa de PósGraduação em Educação, 2009- . v. Quadrimestral: 1995-2000. Semestral, 2001 Descrição baseada em: Vol. 15, n. 1 (jan./jun. 2009). ISSN: 2177-6628 1. Educação - Periódicos. I. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.

CDU: 37(05)

ENDEREÇO Av. Fernando Ferrari, s/n, Campus Universitário – Goiabeiras 29060-900 – Vitória – ES – BRASIL Tel.: (27)3335-2547 – Fax: (27)3335-2549 E-mail: ppge@npd.ufes.br URL: http://www.ppge.ufes.br

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SUMÁRIO 07

Editorial

09

BARCELLOS, Adriana Pionttkovsky RABELO, Denise Lima RODRIGUES, Larissa Ferreira POR UMA EDUCAÇÃO QUE PENSE A ÉTICA E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA

19

CRUZ, Gisele Thiel Della DEMETERCO, Solange Menezes da Silva O EU E O OUTRO: INDIVIDUALISMO, ALTERIDADE E CIDADANIA – QUESTÕES PARA A EDUCAÇÃO

30

FIORIO, Angela Francisca Caliman ENTRE TRAJETÓRIAS E PLANOS DE RESISTÊNCIA – EDUCAÇÃO INFANTIL EM LINHAS CURRICULARES...

43

GOMIDE, Marcela Gama da Silva A MEDIAÇÃO E O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE EM CRIANÇAS COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

55

POUBEL, Idelvon da Silva REFLEXÕES SOBRE DIVERSIDADE: TATEANDO PISTAS PARA SE PENSAR A EDUCAÇÃO AMBIENTAL

65

RIBEIRO, Flávia Nascimento EDUCAÇÃO AMBIENTAL E FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS E EDUCADORES/AS AMBIENTAIS A PARTIR DAS VERTENTES: TRADICIONAL, CRÍTICA E PÓS-CRÍTICA

74

RODRIGUES, Ana Raquel de Souza EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SOLIDARIEDADE: CARTOGRAFANDO FUTUROS POSSÍVEIS

84

SILVA, Sandra Kretli da POR QUE TER MICHEL DE CERTEAU COMO REFERÊNCIA?

94

SOARES, Maria da Conceição Silva ESCOLA, CULTURA E SOCIEDADE: CONHECIMENTOS, SUBJETIVIDADES E SENTIDOS TECIDOS EM REDES DE COMUNICAÇÕES/CONEXÕES

105

SOUZA, Susane Petinelli PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE NO TRABALHO DOCENTE

114

RESENHA ELIA, Luciano da Fonseca Sujeito , este suposto , nascido na modernidade

118

ENTREVISTA LINHARES, Célia (entrevistadores: PIONTKOVSKY, Danielle; PEREIRA, Dulcimar; SILVA, Sandra Kretli da)

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EDITORIAL

Neste número da Revista Pró-Discente, tivemos por objetivo cartografar parte da produção discente do ano de 2009, tanto em nível de mestrado quanto de doutorado. Além da produção endógena, pudemos contar com colaborações de ex-alunos que hoje integram outros programas, num diálogo que não cessa de se renovar. Cada linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo “dá a cara”, neste número da revista, com suas preocupações e filiações teóricas, acrescentando seu tijolinho a este edifício, que ora apresentamos. Nosso edifício, da fundação às paredes, do projeto estrutural ao acabamento, contou com a força (intelectual sim, mas, várias vezes, física ou material mesmo) de muitos corpos (individuais sim, mas majoritariamente coletivos, discursivos, institucionais, sociais). Todo o processo – de composição da comissão editorial e dos conselhos editorial e consultivo, de elaboração das normas para submissão de trabalhos, de seleção e formatação de textos e, por fim, de sua publicação – foi feito de modo participativo e, queremos crer, democrático; conseguimos provar que, mesmo em tempos de tão agudo individualismo, é possível trabalhar efetivamente como uma equipe, ou como um time. Contamos com artigos, uma resenha e uma entrevista – de Célia Linhares, com grande honra. Houvemos por bem respeitar a multiplicidade de tendências – daí a diversidade de temáticas, orientações metodológicas e filiações teóricas: elas dão a ver nossas formações e nossa história. O nosso Programa se faz pulsante e vivo por isso mesmo: desrespeitar essa característica seria, mais que um equívoco, uma violência. Esperamos ter contribuído, assim, para a fertilização do exercício do pensamento e para a consolidação dos laços de colaboração e respeito mútuo que têm caracterizado nossas redes de significação. Aproveitamos, por fim, para agradecer a todos os envolvidos e para desejar aos nossos leitores, naturalmente, uma ótima leitura. Cordialmente, Maria Amélia Dalvi Representante discente do Doutorado 2009-2010 Presidente da comissão editorial da Revista Pró-Discente 2009

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9 POR UMA EDUCAÇÃO QUE PENSE A ÉTICA E A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA1 BARCELLOS, Adriana Pionttkovsky RABELO, Denise Lima RODRIGUES, Larissa Ferreira RESUMO Como se chega a ser quem se é? Segundo Foucault, a estética da existência não só abre a possibilidade de um caminho singular capaz de conduzir a ação de um indivíduo, como também produz mudanças neste indivíduo. O cuidado de si não é um convite a um tipo de inércia narcisista ou à inação, mas pelo contrário, este possibilita nos constituirmos eticamente como o sujeito de nossos atos. Larrosa propõe ainda pensar a educação a partir de um enfoque existencial e estético, que ele chama de experiência, defendida como o que nos passa, ou o que nos toca, ou ainda o que nos acontece. PALAVRAS-CHAVES Educação. Ética e Estética da Existência. Cuidado de si.

INTRODUÇÃO Educação não é tarefa. Se entendermos que tarefas são procedimentos possíveis de serem padronizados, que podem se repetir com regularidade, com a finalidade de se atingir determinado fim tangível e identificável num determinado prazo, veremos que a transmissão de conteúdos pode assim ser vista, e ainda que estes conteúdos possam ser transmitidos das formas mais variadas e de acordo com as mais diversas tecnologias disponíveis em cada época, esta transmissão de conhecimentos acumulados se dá apenas como um dos elementos da Educação. Pensar na Educação como uma possibilidade de ser quem se é, nos leva à imprevisibilidade dos tempos e espaços em que ela pode ocorrer. 1 Artigo apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, em agosto/2009, como exigência final da disciplina de Filosofia da Educação, sob a orientação da Professora Dra. Janete Magalhães Carvalho.

A escola é uma invenção moderna, que se cristalizou no nosso imaginário como a instituição onde se dá a Educação por excelência, ainda que essa associação se faça levando em conta a transmissão de conteúdos. Dificilmente pensamos na Educação como acontecimento ou como experiência. A educação pensada a partir das experiências está para além das relações entre teoria e prática, ciência e técnica, pois “a experiência é aquilo que nos passa, ou nos toca, ou nos acontece, e ao nos passar, nos forma e transforma” (Larrosa, 2004 p.163); é dar sentido ao que somos com palavras que constituem o pensamento. “O sujeito da experiência é sobretudo o espaço onde tem lugar os acontecimentos” (LARROSA, 2004, p.161). Mas como se chega a ser quem se é? Esta reflexão, feita por Nietzsche, hoje é uma pergunta renovada que está para ser respondida, e precisa de data para possíveis respostas, pois ser acontece em espaço e tempo, e em relações.

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10 possibilidades, quando falamos de Ética e Estética da Existência no decorrer deste trabalho, falamos também de possibilidades. Falamos de diferentes racionalidades, que possibilitam tantas formas de conhecer, de ser, de ser e estar junto com o Outro e falamos de integrar essas possibilidades à Educação. Da Ética e Estética como possibilidade de “provocar perguntas, Para compreender a Ética, é preciso saber sacudir inércias” (PERISSÉ, 2009, p. 26). quem fala. Se for o mercado, ele possivelmente Em educação não se trata de caracterizar a compreenderá como uma conduta em direção a um bem maior (a riqueza, o desenvolvimento), de uma ou outra forma as diversas formas de que se sobrepõe às suas consequências negativas expressão e diversidade, “mas de compreender e inexoráveis, como o desemprego, a fome, a como as diferenças nos constituem como exclusão. Dirá também que esse é o preço a pagar. humanos, como feitos de diferenças” (SKLIAR, Se a fala for a de um, dentre tantos filósofos, a 2005, p. 59). sua compreensão poderá ser a de Ética como uma reflexão sobre o comportamento moral, que não diz o que é certo ou errado em cada caso (isso seria competência da moral) mas sim tira conclusões, APROXIMAÇÕES COM A IDÉIA DE elaborando princípios sobre o comportamento ÉTICA E ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA moral (CORDI, et al., 1995, p. 46). Ética e Estética é mais que desejo, Estética, se falada pela sociedade de tornou-se possível na palavra. A segunda consumo, tem a ver com o belo elitizado, ofereceu hospitalidade à primeira, no sentido instituído, imposto, inclusive para os nossos mesmo de Derrida, com atenção e acolhida: corpos! Estética pode ser compreendida pela Ética, a Estrangeira, falando uma outra língua, origem etimológica da palavra: vem do grego recebeu o sim da outra. Que ética, então, recusa aisthesis, com o significado de “faculdade hospitalidade à estética? de sentir”, “compreensão pelos sentidos” Nosso projeto quase comum de (ARANHA; MARTINS, 1986, p. 378). Em filosofia, pode-se compreender a Estética como modernidade deveria ser uma construção o estudo das formas de arte, do trabalho artístico indestrutível, erguida sobre dois pilares, como explica Boaventura: (CHAUÍ, 1998, p. 55). As três palavras juntas – Ética, Estética e Existência - emprestam uma à outra um pouco de si, criando uma expressão em que cada uma sai modificada, mudando a rota que fariam caso permanecessem sozinhas. Não precisamos de conceitos fechados em si mesmos, mas de compreensão.

O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; e pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito, e a racionalidade congnitivoinstrumental da ciência e da técnica (apud OLIVEIRA, 2008, p. 47).

Caso a perspectiva seja a Filosofia Fenomenológica-Existencial de Heidegger, pode-se falar da existência como a possibilidade do ser de abrir-se, exteriorizar-se, privilegiando a função do poeta e do pensador que, possuídos pela palavra, manifestam a presença do ser; ou, ainda, do ser sem porquê, em que a arte e a poesia são formas de se revelar (LACERDA, et all, 2004, p. 22). Assim, com essas possibilidades de compreensão, dentre inúmeras outras

A modernidade, em busca da verdade que gradativamente levaria o homem a um mundo

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11 Para melhor nos aproximarmos da idéia perfeito, é mesmo um tempo de desigualdades, um tempo de imperfeições! A racionalidade de ética e estética da existência, buscamos cognitivo-instrumental condenou as demais ao conforme Gondra as palavras fortes, inquietantes desmerecimento. Condenadas à invisibilidade, e difíceis de Paul-Michel Foucault (2005): como o são todos os excluídos do projeto Palavras usadas como arma de sedução, de modernidade, Ética e Estética não foram provocação e de combate. Seduzem à reflexão permanente, atraem para uma forma de pensar reconhecidas como ricas oportunidades de ver, móvel, encantam pelas possibilidades que sentir e conhecer. Na modernidade busca-se um deixam entrever, fascinam pelos arranjos que outro tipo de riqueza, e só adquire valor aquilo promovem, deslumbram pela proposição de que pode ser medido e experimentado, por um um mundo heterogêneo e inacabado, do qual a observador neutro. vida é derivada, ao mesmo tempo em que por O desmerecimento da racionalidade estético-expressiva é muito antigo. Para Sócrates, poetas e profetas não possuíam uma arte ou ciência em geral – eram inspirados pelos deuses para realizar tarefas determinadas. Para Platão, a poesia era loucura sublime (PERISSÉ, 2009, p. 15-17). Já o desmerecimento da racionalidade moral-prática da ética e do direito pode-se entender como um esquecimento necessário, para que haja supremacia do princípio do mercado. Ou seja, os dois esquecimentos estão imbricados. Para Boff (2005, p. 65), em Ética da Vida, Essa hegemonia [do logos] acabou por se transformar numa espécie de ditadura do logos sobre as demais dimensões da existência e de sua compreensão, especialmente quando o logos foi afunilado numa compreensão utilitarista e funcional, a assim chamada razão instrumental analítica, própria dos tempos modernos. O pathos e o eros, o daimon e o ethos foram colocados sob suspeita; eram acolhidos somente na medida em que passavam pelo crivo da razão questionadora. Especialmente o pathos, como capacidade de sentimento profundo, de enternecimento e de com-paixão, foi acantonado no âmbito da estrita subjetividade.

ele é responsável (p. 286).

Foucault é um pensador que propõe uma inversão ao nosso olhar, assim como o fez Certeau. Inversão aqui quer dizer ver de um outro e novo lugar, para ver o que ainda não foi propriamente pensado, ver o que é desconcertante e inesperado, embora estivesse sempre lá, presente, que não vimos porque vimos o mais imediato. Onde se viu somente a estratégia do forte, que de seu lugar de querer e poder envia seus produtos a um consumidor que se pensa (e se deseja) passivo, Certeau viu a arte do fraco, que, sem um lugar próprio, inventa sua arte de fazer no cotidiano, fazendo piada da formalidade do forte. Onde se viu uma evolução da humanidade – a criação de códigos de conduta que todos deveriam obedecer, visando o bem comum – Foucault viu a dominação, o avesso do discurso da liberdade. Conforme Nascimento, Foucault se opõe à tentativa contemporânea de encontrar o fundamento para uma moral universal de caráter normativo e avalia: “a busca de uma forma moral que seja aceitável para todos – no sentido de que todos devam submeter-se a ela – parece-me catastrófica” (FOUCAULT apud NASCIMENTO, 2001, p. 1).

A primazia da racionalidade cognitivoAssim, segundo Nascimento (2001, p. 1), instrumental foi concebida e consentida por a proposta de Foucault é a de “sujeitos de querer e poder”. No entanto, artistas, Um modo de relacionamento do indivíduo amantes, loucos, seres humanos apaixonados consigo mesmo (conf. FOCAULT, 1984, p. 219) [...] Não se trata de investigar o que, de pela vida, são mestres nas artes do fazer sem propor um fundamento que volte a legitimar consentimento, e teimam em olhar com Ética e um código (ainda que mínimo); mas de Estética, de modo diferente do planejado. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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12 perguntar-se pelo como, de como se constitui o indivíduo como sujeito moral de suas ações. O como introduz a variabilidade, a transformação possível, a diversidade. Investigar o como conduz a encontrar-se com o fato de que o fundamento é móvel e altamente transformável (FOUCAULT demonstrou essa tese tanto para o âmbito do conhecimento como para o político e moral nos seus livros mais célebres). Perguntar pelo como em relação à constituição do indivíduo como sujeito de suas ações supõe aceitar a variabilidade e a diversidade, pensar a ética como criação de e a partir da liberdade e pensar o sujeito como obra, obra de si mesmo, obra de arte.

Foucault fala da experiência estética como uma possibilidade para essa moral individual: O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduo ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida? (FOUCAULT apud NASCIMENTO, 2001, p.1).

existência não só abre a possibilidade de um caminho singular capaz de conduzir a ação de um indivíduo, como também produz mudanças neste indivíduo, quando afirma que: As “artes da existência” devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também buscam transformar-se e modificar seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 1983, p. 198-199).

Assim, a estética da existência, sob o signo do cuidado de si e da transformação da existência em uma espécie de exercício permanente, define os critérios estéticos e também éticos do bem viver. Por isso, o tema da estética da existência ganha ainda mais importância quando é destacada a sua dimensão ética. Para Foucault, o problema ético consiste em responder a questão de como se pode praticar a liberdade. A ética seria a prática racional e refletida da liberdade e a liberdade a condição ontológica da ética.

Segundo Foucault, para tantos limites que Logo, a ética do cuidado de si concerne sejam criados, haverá outras tantas possibilidades de transgressão (NASCIMENTO, 2001, p. 3) e, à maneira pela qual cada indivíduo constitui a si mesmo como sujeito de sua própria conduta, ainda, de acordo com o autor Uma estética da existência, tal como Foucault estando intimamente relacionada com os seus a concebe, propiciaria uma maior possibilidade atos e suas ações para consigo e também para de escolhas pessoais, convida a considerar a com os outros. O cuidado de si não é um convite própria vida como uma obra de arte, propõe a um tipo de inércia narcisista ou à inação, mas uma ética de estilo, o que se acha possibilitado e pelo contrário, este possibilita nos constituirmos limitado pelos domínios do saber e construções normativas que constituem o indivíduo como eticamente como o sujeito de nossos atos. Antes sujeito/objeto de determinados conhecimentos que nos isolar do mundo, é o que nos permite e poderes. [...] Esta constatação converte a nele nos situar e agir. estética da existência em um modo de ver a ética [...] (NASCIMENTO, 2001, p. 2).

Desta forma, a estética da existência pensada como uma ética do cuidado de si, A estética da existência, que teve seu apogeu durante a antiguidade greco-romana, que se efetua em atos e ações para consigo e está diretamente relacionada com a criação de para com os outros, está implicada diretamente um estilo próprio, através da prática de técnicas na produção inventiva de si (novas formas de de cuidado de si, e visa a constituição de si subjetivação), fazendo da sua própria vida uma mesmo como o artesão da beleza de sua própria obra de arte, assim como também está implicada na capacidade de transformação do mundo que vida. o cerca. Segundo Foucault (1983), a estética da Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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13 Nessa dimensão, Larrosa (1994) enfatiza que o sujeito, sua história e sua constituição como objeto para si mesmo, seriam, então, inseparáveis das tecnologias do eu, definidas por Foucault como aquelas nas quais um indivíduo estabelece uma relação consigo mesmo. Em suas próprias palavras, como aquelas práticas que permitem ao indivíduo efetuar por conta própria ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou qualquer outra forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmos com o fim de alcançar certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade (FOUCAULT, 1990, p. 48).

A EXPERIÊNCIA PARA UMA ÉTICA E ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA NOS CONTEXTOS ESCOLARES

que nos passa, o que nos acontece ou nos toca”. No cotidiano escolar, aquilo que se sente em comum quando se presta atenção à mesma coisa, é a experiência da pluralidade e do infinito do sentido (LARROSA, 2006, p. 141). Esse comum, segundo Carvalho, não pode ser reduzido a uma unidade homogeneizada. Ao contrário, é no infinito e na pluralidade presentes no interior da comunidade que está a potência para produzir os deslocamentos coletivos. A autora lembra Derrida, que afirma que a unidade ou a aspiração à unidade se constituem como o perigo a ser evitado e que o hibridismo e a pluralidade seriam a sua superação (CARVALHO, 2009, p. 144-145). Os sujeitos da experiência que queremos visualizar, compartilhar, narrar e potencializar podem ser movidos por experiências éticas e estéticas, capazes de trazer um outro brilho para a expressividade da escola. Pensamos na constituição do indivíduo como sujeito de suas ações, que aceitam a variabilidade e a diversidade; pensamos a ética como criação de e a partir da liberdade; como Foucault, pensamos o sujeito como obra, obra de si mesmo, obra de arte (NASCIMENTO, 2001); por fim, acreditamos que as experiências éticas e estéticas como práticas de liberdade, tem potência para fazer acontecer o cuidado de si, e o cuidado com o outro.

O cenário escolar é atravessado por fatores históricos, políticos, sócio-econômicos e culturais, que se enredam e legitimam esse espaço. Esses atravessamentos fazem da escola um lugar praticado, cheio de vida, de encantamentos e de desafios, e ela se torna cada vez mais significativa quando se permite reconhecer o emaranhado de cheiros, sons, cores, saberes, sabores e afetos que emergem em seus cotidianos. O cenário escolar é espaço de criação, de inventividade. Seu cotidiano é muito mais do que o que está nas linhas formais que Na busca por visibilizar outros/novos pretendem conformá-lo – ele é, principalmente, modos de se compreender a expressividade entrelinha, viva e dinâmica. humana pelo viés das experiências éticas e estéticas, se torna fundamental analisá-las a Concebemos o cotidiano escolar e partir das concepções de Larrosa (2001; 2004) as relações que são estabelecidas entre os sobre a experiência como uma possibilidade para seus sujeitos como lócus para experiências uma a dialógica da transmissão. Essa dialógica incomuns, aquelas que possam ser ampliadas se configura, para Larrosa, como uma forma e que ultrapassem as fronteiras da aquisição de dar contornos às palavras, que são dadas e de conteúdos, de normalização e de controle, tomadas, criando lugares de possibilidades do ou seja, a concepção de experiência em que outro, da descontinuidade e da diferença, em acreditamos está pautada, assim como para nossas escolas. Larrosa (2004, p. 154), no que “nos passa, ou o que nos acontece, ou o que nos toca. Não o que Essas possibilidades a que nos referimos, passa ou o que acontece, ou o que toca, mas o Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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14 perpassam por uma concepção de experiências éticas e estéticas que superem o modelo de pensamento implementado pela ciência moderna, que se apresenta como único, linear, eurocêntrico e discriminatório. É imprescindível problematizar as relações que ocorrem nas escolas que ainda se pautam nesta forma de conceber o mundo, que mantém invisibilizadas e silenciadas as expressividades do “outro”. Desta maneira, a educação que vislumbramos só pode de fato ter significado se estiver ancorada na existência de um pluralismo, tanto no sentido das linguagens quanto no âmbito cultural, permitindo que a descontinuidade e as diferenças possam ser dialogadas e instituídas no sistema educativo.

e estéticos que constituem uma pessoa e sua expressividade humana. O acontecimento expresso por Larrosa, nos faz acreditar que este nasça na experiência, pois aquela que nos passa, nos afeta, nos transforma e nos acontece só pode ser plural, sem começo, meio e fim, inventiva e criativa, que é nova e que se renova. A pluralidade do acontecimento como experiência nos faz questionar as concepções de criança que circulam nas escolas e na sociedade, associadas à inocência e a de matéria prima para fabricação de um mundo novo. Larrosa (2001) aponta que esses entendimentos parecem surgir de um cansaço do homem moderno com sua própria história e cultura, com o assédio por qualquer forma de pensamento e de expressão artística que acaba por perceber a infância como figura da recuperação, “meramente passado”, ou de progresso, “meramente futuro”.

Não podemos negar que as experiências ocorram nas escolas, mas em muitos casos se dão de maneira superficial ou não são valorizadas e compartilhadas, representando, Larrosa (2006, p. 183) nos pergunta: o conforme Benjamin (apud LARROSA, 2004b) que sabemos nós sobre as crianças, “esses seres “pobreza de experiências”. estranhos dos quais não se sabe nada, esses seres selvagens que não entendem a nossa língua? E Neste sentido, nos indagamos, como, afirma: em meio ao “conteudismo”, a violência, a Assim, a alteridade da infância não significa desmotivação dos professores, as exigências que as crianças ainda resistam a serem sociais e tantas outras dificuldades, poderemos plenamente capturáveis por nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições; nem promover experiências éticas e estéticas nas sequer significa que essa apropriação talvez escolas?

nunca poderá realizar-se completamente. A alteridade da infância é algo muito mais radical: nada mais, nada menos, que sua absoluta heterogeneidade em relação a nós e ao nosso mundo, sua absoluta diferença. E se a presença enigmática da infância é a presença de algo radical e irredutivelmente outro, terse-á de pensá-la na medida em que sempre nos escapa: na medida em que inquieta o que sabemos (e inquieta a soberba da nossa vontade de saber), na medida em que suspende o que podemos (e a arrogância de nossa vontade de poder) e na medida em que coloca em questão os lugares que construímos para ela (e a presunção de nossa vontade de abarcála). Aí está a vertigem: no como a alteridade da infância nos leva a uma região em que não comandam as medidas de nosso saber e de nosso poder (LARROSA, 2006, p. 185).

Na tentativa, não de responder a este questionamento, mas de contorná-lo com possibilidades de reflexões, nos reportamos à infância, como uma etapa de explosão de experiências, que vão constituindo as expressividades humanas, os acontecimentos. A infância que convidamos a refletir é a que se estabelece como figura de acontecimento, pois para Larrosa (2001, p. 282) “acontecimentos são, por exemplo, interrupção, novidade, catástrofe, surpresa, começo, nascimento, milagre, revolução, criação, liberdade”. Essa compreensão de acontecimento em relação à infância possibilita o vislumbrá-lo como um dos vários atravessamentos éticos Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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15 Desta forma, a ética e a estética da existência que procuramos em nossas escolas deve pensar a infância não como colonização do homem por seu passado inocente ou futuro próspero, seguindo o tempo linear e evolutivo. O acontecimento que ressaltamos é o que não se pode prever ou compreender, é o caracteriza a infância como uma temporalidade descontínua.

O conceito de futuro que se estabelece diariamente nas ações dos cotidianos escolares, se associa a antecipação, projeção, fabricação, como bem resume Larrosa (2001, p. 286) é “aquilo que depende de nosso saber, de nosso poder e de nossa vontade”. Obedecendo a esta lógica, muitas possibilidades de experiências são negadas aos alunos: a preocupação maior é oferecer o maior número de aulas, é esmiuçar Essa descontinuidade não é só os conteúdos curriculares para atender as representada pela ruptura com a linearidade de exigências de um mercado de trabalho cada vez um tempo, mas com a descontinuidade cultural mais mutante e seletivo. que possibilita que os modos de conhecer o mundo que as crianças trazem de casa, de Desta forma, as experiências artísticas, suas comunidades, seus conhecimentos, suas corporais e culturais dos sujeitos que compõe experiências tanto cognitivas quanto corporais e que dão vida as escolas estão a cada dia possam se fazer presentes, marcantes e sendo deixadas de lado; as possibilidades valorizadas, ou seja, que crie abertura para um de convivência ética são por muitas vezes porvir diferente nas escolas. substituídas pela competição entre alunos e entre professores. As possibilidades estéticas Essa infância-acontecimento traz a idéia de estão sendo negligenciadas e a expressividade uma educação como figura de descontinuidade, humana nas escolas muitas vezes só ganha visto que permite a transmissão educativa espaço em dias de exposição cultural e como um acontecimento que produz intervalo, apresentações como festa junina, dias das mães diferença, descontinuidade e abertura do porvir. e outras datas comemorativas, sendo, no dia a dia, silenciadas e imobilizadas pela exigência Pensar uma educação voltada para uma de “ordem e progresso”. ética e uma estética da existência é ressaltar a descontinuidade como outra forma de Por muitas vezes, impregnados em um experiências possíveis, é propor assim como lema positivista, dizemos que um aluno vai Larrosa (2001), um pensamento que perturbe “longe” ou que “tem futuro” damos-lhe a a totalização temporal humanista, que se fixa responsabilidade e a capacidade de formar-se em figuras demasiado seguras e asseguradas sozinho, como ressalta Larrosa (2001, p. 286) a história da tradição, a comunicação como “dizemos que ele é capaz de “fabricar-se a si construção comum e o diálogo enquanto mesmo”, “fazer-se a si mesmo”, de “chegar a compreensão da mediação entre passado e o ser alguém””. Desta forma, implanta-se uma futuro. meritocracia, ou seja, que basta aproveitar as oportunidades de forma racional e tecnicamente Sendo assim, a educação soa calculada para se obter sucesso e dar descontinuidade e acontecimento, não como continuidade ao tempo. determinação, mas tem que ver como liberdade, experiências libertadoras da história humana, Contrário a isto, percebemos que as libertação do passado e abertura do porvir. O possibilidades de experiências na perspectiva porvir e o futuro são dois conceitos relevantes do porvir na educação se expandem e que para auxiliar na compreensão da educação como se caracterizam por sua abertura. O porvir uma das modalidades de relação com a infância reconhece um aluno do tempo receptivo, que e com a experiência. não é nem passivo, nem passional, constitui o Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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16 aluno desde sua ignorância até a compreensão porvir na educação é potente por permitir que de sua mortalidade, ou seja, se constitui como experiências éticas e estéticas sejam lançadas ao encontro do outro, para a vida do outro; nos figura da descontinuidade do tempo. mostram uma possibilidade nova de ética e A experiência estética pode ser estética da existência da vida e da liberdade do acontecimento quando travamos contato outro. A fecundidade da educação é promover com o inesperado que uma obra de arte nos a capacidade de destinos diferentes, é ser capaz traz, vendo em nós mesmos algo do que foi de outra vida diferente da que possuo. “dito” ali. Perissé (2009, p.36) nos convida a [...] a educação tem a ver com o talvez de uma “pensar a experiência estética não tanto ou não vida que nunca poderemos possuir, com o só pela ótica do prazer e da distração, ou do talvez de um tempo no qual nunca poderemos permanecer, com o talvez de uma palavra entretenimento, mas como fonte de descobertas que não compreenderemos, com o talvez existenciais, de aprendizado. de um pensamento que nunca poderemos pensar, com o talvez de um homem que não será um de nós. Mas que, ao mesmo tempo, para que sua possibilidade surja, talvez, do interior do impossível, precisam de nossa vida, de nosso tempo, de nossas palavras, de nossos pensamentos e de nossa humanidade (LARROSA, 2001, p. 289).

Assim, quando pensamos as relações entre o porvir e a infância-acontecimento nos sistemas escolares, somos remetidos a um mundo de possibilidades impossíveis, neste caso, o mundo do talvez. O talvez nos leva a pensar nos acontecimentos, nas experiências produzidas pelas crianças, como engrenagens que movem, potencializam e que proporcionam descontinuidades e interrupções, abrindo brechas no interior do impossível. Larrosa (2001, p. 288) acredita no talvez, pois:

No sentido de dar o que não temos, como pensamentos, palavras, experiências e humanidade, buscamos uma ética e uma estética da existência construída pela experiência da descontinuidade e da fecundidade entre o dom e [...] leva a pensar a vinda do porvir, do que a tomada da palavra, pois as palavras carregam não se sabe e não se espera, do que não se sentidos múltiplos e diferentes. pode projetar, nem antecipar, nem prever, nem planificar, ou em outras palavras, do que não depende do nosso saber, nem do nosso poder, nem da nossa vontade.

Mesmo cientes de que a educação mantém um paradoxo entre a continuidade e descontinuidade, em outras palavras, entre futuro e porvir, destacamos a importância de se refletir sobre uma educação capaz de promover experiências e de ser acontecimento, a educação do possível porvir e não meramente do futuro. E é neste sentido que a educação, articulada com a figura do porvir, é altamente fecunda, pois se apresenta como outra possibilidade de se promover experiências éticas e estéticas nas escolas, permite pensar em dar uma vida que não é a continuação da nossa vida, que foge da continuidade.

Desta forma, dar a palavra é propiciar o porvir, que não se instaura em um sentido piedoso ou tolerante. Dar a palavra é buscar as interrupções, as novidades, as catástrofes, a revolução e a liberdade. Dar a palavra nas escolas, assim como para Larrosa (2004, p. 69) precisa ganhar o sentido de uma condição babélica, pois, “Babel significa que não existe tal coisa como linguagem. A linguagem, assim no singular e com maiúscula”, ou seja, a palavra do porvir é dada para ultrapassar as fronteiras e os limites da linguagem hegemônica da modernidade, é dada para ganhar as diversas vozes, as vozes do negro, do índio, do homossexual, do obeso e de tantos “outros”.

A fecundidade promovida pelos ideais do Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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17 POR UMA EDUCAÇÃO MOVIDA PELA ÉTICA E ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA – NOSSAS TENTATIVAS DE CONCLUSÃO

mais devagar, suspender a opinião, o juízo. Escutar os outros, cultivar a arte do encontro e da paciência. O sujeito da experiência é um sujeito tombado, derrubado de suas certezas, de A concepção de pluralidade nas escolas seus sucessos e poderes para ser interpelado, não pode estar atrelada apenas a tolerar o que transformado pela experiência/acontecimento e se diferente e não moldado, mas precisa se dominado pela paixão. constituir na diferença, nas diferentes pessoas, em suas diferentes linguagens, diferentes No ato de se fazer entender, o sentido histórias e diferentes culturas. Nas palavras de se dá multiplicado, transportado, traduzido Gadamer a pluralidade: pela “minha” compreensão e interpretação e [...] não deve se burocratizar ou racionalizar- assim é possível que se apague ou invisibilize a se, mas deve manter-se viva. A pluralidade das diferença, a pluralidade e o lugar do outro. línguas não é irracional, mas o elemento de uma razão dialógica e mediadora, de uma razão viva, de uma razão de mil caras. E a pluralidade não é tampouco um problema que se deva administrar politicamente, mas é a vida mesma do homem e da linguagem em seu estado de dispersão. (apud LARROSA, 2004, p. 82).

Inspirados em Larrosa, surgem várias interrogações que nos remetem a pensar a experiência ética e estética na educação, mais especificamente nas salas de aula. Os processos de saberesfazeres são movidos, interpelados e atravessados pela experiência e pela paixão? A Para Carvalho (2008), são necessárias leitura/tradução pode ser comparada à colheita, experiências educativas de possibilidade de ao transporte e à condução do saber de um estabelecimento real de trocas, intercâmbios, lugar para outro, num movimento de confusão redes de relações e compartilhamentos. É e desconstrução para enfim, criar processos de preciso reconhecer que o outro é diferente, sem deslocamentos da prática educativa? desqualificá-lo; é necessária, ainda, a passagem do multiculturalismo para uma perspectiva Posto isto, entendemos que promover fundada em processos dialógicos baseados no experiências éticas e estéticas na educação reconhecimento das incompletudes mútuas das perpassa primeiramente pela forma culturas, de todas as culturas. apaixonada de educar e de perceber a vida, Larrosa propõe ainda pensar a educação a partir de um enfoque existencial e estético, que ele chama de experiência. Experiência defendida como o que nos passa, ou o que nos toca, ou ainda o que nos acontece. Trata a experiência não como o resultado daquilo que fazemos repetidamente ou por um longo tempo, mas como o que se dá em determinado momento e nos move, nos desloca, nos arremete como nunca antes havíamos percebido.

pois concordamos com Larrosa (2004, p.163) quando diz que “experiência é paixão”, paixão em potencializar e ampliar os acontecimentos, as descontinuidades, o porvir, o talvez e a pluralidade nas escolas.

Almejamos uma ética e uma estética presente na educação que não se limite aos dons da palavra e da vida que temos, que não seja apenas fabricada, mas que nasça, que fecunde a vida, que aceita a sua morte para dar outra vida, para dar outras palavras, para Afirma que o excesso de informação, ter responsabilidade com a diferença, com de opinião, de trabalho e a falta de tempo são as possibilidades e também para dar outra inimigos da experiência porque ela se dá no humanidade. encontro, em algo que se experimenta e se prova. Alerta para a necessidade de parar. Parar para olhar, para observar, para escutar. Sentir Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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18 REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986. BOFF, Leonardo. Ética da vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2005.

JOSGRILBERG, Fabio B. Cotidiano e invenção: os espaços de Michel de Certeau. São Paulo: Escrituras Editora, 2005. Coleção Ensaios Transversais.

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SKLIAR, Carlos (Org). Derrida & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Coleção Pensadores & Educação. ______. A questão e a obsessão pelo outro: em educação. In: GARCIA, Regina Leite. Cotidiano: diálogos sobre diálogos. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 49-62.

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19 O EU E O OUTRO: INDIVIDUALISMO, ALTERIDADE E CIDADANIA – QUESTÕES PARA A EDUCAÇÃO CRUZ, Gisele Thiel Della DEMETERCO, Solange Menezes da Silva RESUMO O presente trabalho propõe uma abordagem sobre a construção do individualismo, da vigilância e da coerção modernas, tão caras à sociedade industrial. Em oposição, discute a noção de alteridade e respeito/conhecimento das diferenças. Os meios midiáticos são um ponto de análise e de referência para formular as concepções de individuo e do outro, assimiladas pela juventude. O artigo se desdobra ao discutir funções para a educação e para o educador na construção de um convívio humano “humanizado”, plural e ético. PALAVRAS-CHAVE Alteridade. Identidade e cidadania. Meios midiáticos. Educação. Num mundo marcado por tantos conflitos relacionados ao crescente individualismo, à intolerância e ao não reconhecimento das diferenças, e dentro de um novo papel que deve ter o professor e a escola, faz-se necessário discutir a alteridade e o respeito ao outro. Este é o desafio a ser enfrentado tanto na vida pessoal quanto na prática pedagógica. Questões apontadas pelas Ciências Humanas e os estudos sobre o outro – objeto por excelência dessas ciências - e a idéia de que não há identidade sem esse outro, proporcionam pensar a alteridade como algo que enriquece e capacita a pessoa a tentar agir na construção de um mundo melhor para todos. Quando se fala “em mundo melhor” não está se falando aqui de uma questão utópica ou completamente abstrata, mas sim de uma tentativa de se trazer de volta a ética como ponto central de referência para as relações sociais. A questão ética se coloca de forma crescente em todas as instâncias da vida social, em todos os setores da atividade humana e, finalmente, a cada indivíduo. Hoje tornouse indiscutível o sentimento de que é urgente que se revisem as práticas sociais à luz da ética

como forma de se construir uma sociedade mais fraterna. O próprio desenvolvimento do capitalismo, de início marcadamente voltado para o enriquecimento individual e o desenvolvimento técnico e financeiro, foi se deslocando ao longo da história da produção para o consumo. Isso ocorreu em parte pelo crescimento do mercado e a crescente sofisticação dos produtos, apontando para a necessidade constante de produzir mais e satisfazer os consumidores, tendo como meta a qualidade de vida. O que se percebe é que pouco se refletiu ao longo desse caminho sobre o que seria essa “qualidade de vida”. As relações entre os homens também seriam analisadas pelo critério de qualidade? O que seria ter qualidade quando se fala em convivência? Teria sido bastante promissor se essa mudança tivesse sido orientada a partir da lógica do mais para o melhor, isto é, da quantidade para a qualidade. Mas o que se nota, particularmente quando se fala em alteridade, é que nem sempre foi isso que aconteceu. E o que se pretende discutir é que falar em qualidade das relações sociais, em última instância, seria reorientar essas relações para a ética. Nesse sentido, parece

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20 ser efetivamente falar em qualidade de vida, oportunidades para tornar as relações entre em humanidade, em respeito à alteridade e às as pessoas mais justas e solidárias, ao mesmo identidades plurais. tempo em que se tenta combater o preconceito. Por meio de uma pedagogia ética se criam A escola se coloca nessa discussão na as condições para o bem comum e o respeito medida em que tem como uma de suas funções mútuo, enfim, para a realização dos indivíduos a socialização (sem coação) do indivíduo e a como sujeitos éticos. É fundamental que os discussão de valores. Falar em qualidade em educandos percebam a importância do outro educação é lembrar do objetivo maior de todo para a sua própria identificação. educador que vem a ser a perspectiva do que os educandos devem se tornar. Muito mais do que A preocupação com a identidade acaba pensar em conteúdo e bons desempenhos em por gestar a modernidade e com ela se expande, provas e concursos, o que interessa efetivamente trazendo consigo a questão da individualidade é que se realizem como seres humanos. Trata-se como subjetividade. Para Touraine, de procurar despertar, orientar e dar sustentação [...] a idéia de modernidade [...] foi a afirmação a um processo de amadurecimento e reflexão de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais crítica que os torne cidadãos conscientes de estreita entre a produção, tornada mais eficaz seu papel na sociedade. Nesse processo, o pela ciência, a tecnologia ou a administração, educador poderá se debater com a insatisfação e a organização da sociedade, regulada pela lei a impaciência do educando, uma vez que tanto e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas o aluno quanto suas famílias muitas vezes não também pela vontade de se liberar de todas as opressões. (TOURAINE, 1994, p. 9). percebem a profundidade e o alcance desse projeto, cobrando da escola resultados mais E continua o autor questionando: concretos e imediatos. A pressão para atender “sobre o que repousa essa correspondência ao modelo social hegemônico de “pessoa bem de uma cultura científica, de uma sociedade sucedida” muitas vezes atropela o processo. ordenada e de indivíduos livres, senão sobre Conseguir tornar atraente o processo de construção de um convívio humano “humanizado”, fundado na justiça, na solidariedade e, finalmente, no respeito ao outro é um dos maiores desafios da escola e do educador na atualidade. São muitas as “atrações”, especialmente para os jovens, que parecem não acreditar mais em boa parte daquelas regras e normas que devem ser observadas na vida social e pessoal, na política e nas relações econômicas. Questionam qualquer exigência que signifique um limite imposto, questionam valores e muitas vezes não compreendem a liberdade como autodeterminação.

o triunfo da razão?” (idem). Dessa forma, “a humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade” (idem).

Mas, assim como Touraine, pergunta-se: mas de que liberdade e felicidade pessoal está se falando? Como lidar com a desigualdade, a exclusão, a segregação, a intolerância e o preconceito crescentes em várias sociedades e/ ou grupos sociais? O próprio autor faz uma crítica contundente a essa modernidade que perdeu sua força de libertação e criação. Afirma que “[...] ela [a modernidade] resiste tão mal às forças adversas como o apelo generoso aos direitos do homem, ao crescimento do diferencialismo e Educar eticamente pressupõe esse processo do racismo” (ibidem, p. 12-13). Entretanto, não de orientação rumo à liberdade consciente, e se trata de simplesmente negar ou descartar a não ficar discutindo o que é permitido, proibido racionalidade ou o individualismo, mas sim de ou obrigatório. Não se pode “obrigar” alguém a incorporar idéias como igualdade, solidariedade respeitar o outro, mas é possível proporcionar e justiça, em direção a uma sociedade fundada Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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21 sobre valores integradores. Cresce também a tensão entre o individual e o coletivo, o público e o privado, o contextual e o universal. Valores tidos como universais são questionados em prol do bemestar individual. O confronto com o outro, de certa forma tão presente em toda a história da humanidade permanece como algo “estranho”, “difícil” e aparentemente sem possibilidade de resolução. Mas será novamente Touraine que lembrará que “modernidade não é separável da esperança. Esperança colocada na razão e nas suas conquistas, esperança investida nos combates libertadores, esperança depositada na capacidade de cada indivíduo livre de viver cada vez mais como Sujeito” (ibidem, p. 309). Na atualidade tem-se a forte presença da tecnologia na mediação dos contatos sociais, chegando mesmo a criar e/ou modificar as relações sociais. A juventude tem sido a camada da sociedade que mais facilidade tem em implementar e vivenciar essa comunicação mediada pela tecnologia, especialmente pela informática.

ou não para a humanidade, uma vez que “[...] uma técnica não é boa, nem má (isto depende dos contextos, dos usos e dos pontos de vista), tampouco neutra (já que é condicionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o espectro de possibilidades).” (LÉVY, 2000, p. 26). Também, segundo o autor, não é o caso de avaliar seus impactos, “mas situar as irreversibilidades às quais um de seus usos nos levaria, de formular os projetos que explorariam as virtualidades que ela transporta e de decidir o que fazer dela.” (idem). A técnica em si não é positiva ou negativa, e nem promove o sucesso ou leva ao fracasso do indivíduo, uma vez que a responsabilidade é e sempre será daqueles que a concebem, executam e utilizam2. Esse é o foco da discussão proposta nesse artigo: refletir como os jovens têm utilizado a tecnologia da comunicação, especialmente a televisão (com foco nos chamados reality shows) e a internet, que permite o acompanhamento em tempo real desse tipo de atração, bem como a troca de impressões sobre o que se observa. Afinal, de acordo com Lévy, “a emergência do ciberespaço é fruto de um verdadeiro movimento social, com seu grupo líder (a juventude metropolitana escolarizada), suas palavras de ordem (interconexão, criação de comunidades virtuais, inteligência coletiva) e suas aspirações coerentes.” (ibidem, p. 123). Além disso, busca-se pensar de que maneira a disseminação da comunicação virtual tem contribuído para promover o intercâmbio entre diferentes e o quanto esse processo tem promovido o diálogo e o respeito ao outro e como esses processos podem ser tratados na escola, particularmente entre alunos de Ensino Médio.

A grande mídia e as redes informacionais têm um papel importante (e nem sempre positivo) na construção do conhecimento e de percepções relativas à diversidade. Mas o que se tem observado é que também tem propiciado movimentos reacionários que podem levar à discriminação e ao repúdio ao diferente. O diálogo e o respeito ao outro podem promover mudanças, ainda que modestas, e dar o início a um processo que se quer maior: a remodelação de valores sociais e a mudança de comportamento, contrapondo-se às atitudes extremistas que podem, em última instância, O uso da tecnologia e as formas de utilizádesencadear violência. la se caracterizam pela rapidez com que se impõem, mal dando tempo de se conscientizar A presença e utilização da técnica a serviço dessas idéias, práticas e produtos. De acordo também do convívio social é um desdobramento com Lévy quase que natural do avanço da sua disseminação em todas as instâncias da vida social. E o que se deve questionar não é o fato de ser isso benéfico 2 Sobre o ciberespaço como suporte da inteligência coletiva, ver a obra supra citada de Pierre Lévy, Cibercultura.

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22 se nos interessarmos sobretudo por seu significado para os homens, parece que [...] o digital, o fluido, em constante mutação, seja desprovido de qualquer essência estável. Mas, justamente, a velocidade de transformação é em si mesma uma constante – paradoxal – da cibercultura. Ela explica parcialmente a sensação de impacto, de exterioridade, de estranheza que nos toma sempre que tentamos apreender o movimento contemporâneo das técnicas. (ibidem, p. 27).

O fenômeno do crescimento do ciberespaço e das redes digitais interativas pode acabar por gerar isolamento, sobrecarga cognitiva e de informações, dependência, dominação e até mesmo exploração3. O chamado mundo virtual remete às idéias de técnica, de corrente e ao mesmo tempo não deixa de ter um caráter filosófico. Para esclarecer do que se está falando, vale recorrer novamente e Pierre Lévy, quando o autor distingue esses três aspectos da palavra “virtual”: Na acepção filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolverse em uma atualização. O virtual encontra-se antes da concretização efetiva ou formal (a árvore está virtualmente presente no grão). No sentido filosófico, o virtual é obviamente uma dimensão muito importante da realidade. Mas no uso corrente, a palavra virtual é muitas vezes empregada para significar a irrealidade – enquanto a “realidade” pressupõe uma efetivação material, uma presença tangível. [...] Em geral acredita-se que uma coisa deva ser ou real ou virtual, que ela não pode, portanto, possuir as duas qualidades ao mesmo tempo (ibidem, p. 47).

mesmo repudiar a realidade concreta. Não são raros os casos em que o jovem se fecha no seu “mundo virtual” em detrimento à vida real e aos compromissos e responsabilidades a ela correlatos. E mais: a possibilidade de “vir a ser o que não é” tornase bastante atraente, tanto entre indivíduos que não negam suas vidas, mas também entre aqueles que procuram viver uma vida diferente da sua. Para isso se espelham em personagens da televisão e criam para si identidades falsas, atribuindo a si próprios características que gostariam de ter e que consideram importantes para se obter distinção social. Advém desse processo certo prazer em “enganar” ou ludibriar o outro, esquecendo que se trata antes de tudo de um auto-engano. Assim, tem-se casos de indivíduos que, por não aceitar sua condição, forjam características físicas, uma condição social e econômica, inventam falsas identidades e obtêm disso um prazer que “[...]não se realiza no ato efetivo, mas sim na apropriação do fetiche que o antecede.” (ZUIN, in LASTÓRIA, 2001, p. 185). Ainda segundo o autor, A eufórica sensação do “poder fazer tudo” parece espraiar-se com grande força, e também no psíquico as fronteiras e os limites de realização do desejo tornam-se cada vez mais difíceis de serem observados e sentidos. Isso significa, nos casos extremos, que a construção da individualidade não se baseia no estabelecimento de planos coletivos fundamentados na efetivação das diferenças e no convívio democrático. Ao contrário, os planos coletivos e a própria formação das identidades se limitam crescentemente ao momento de exclusão e, até mesmo, eliminação do outro. A tolerância mútua parece ser realizada apenas para aqueles eleitos que se reconhecem como “iguais”. Acima de tudo o que conta é a satisfação imediata do desejo de se sentir alguém no meio de uma multidão ilusoriamente diferenciada (ibidem, p. 190).

E o que se percebe no cotidiano de quem faz uso das tecnologias que envolvem o ciberespaço é que parece “escapar” ao usuário essa dimensão da virtualidade, passando a perceber a realidade virtual como real, chegando, muitas vezes a negligenciar e até

3 Sobre a emergência do ciberespaço, ver Pierre Lévy, Cibercultura, cap. II, 2000 (ver referência completa no final do artigo). E sobre o surgimento da rede digital ver também, do mesmo autor, As tecnologias da inteligência - o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Ed. 34, 1993.

Essa parece ser a idéia central que norteia o comportamento e as atitudes dos jovens diante da possibilidade de ser o que não são, de viver

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23 a vida que não têm e de excluir aqueles que percebam como diferentes. E o impressionante é que muitas vezes discriminam e/ou excluem aqueles que efetivamente são iguais ao que eles próprios são na vida real, orientados pelo personagem que criaram para si. O preconceito e a discriminação existem também no cotidiano escolar. Eles podem ser observados no discurso e nas atitudes dos diversos atores envolvidos no processo educativo, sejam professores, alunos, gestores e funcionários de escolas, autores de livros didáticos e outros. Piadas racistas ou de cunho sexista ou religioso são comuns no ambiente escolar, assim como alguns livros didáticos que discriminam, desvalorizam e/ou desqualificam determinados grupos. O imaginário preconceituoso contra o diferente é construído socialmente e pode se cristalizar na escola se não houver um trabalho contínuo de discussão de temas delicados como religião e diferenças sociais, culturais, étnicas e outras.

Vera Candau aponta para o fato de que é nas situações concretas de discriminação que se pode atuar. A autora destaca a proposta do interculturalismo, que é a inter-relação dinâmica entre as diferentes culturas presentes na sociedade, chamando a atenção para a complexidade que assume a educação nesse processo. Tentar romper com a tradicional homogeneização, padronização e uniformização que comumente caracteriza o ensino pode colaborar para diminuir a segregação, a desunião e a exclusão. Tem-se, a partir do reconhecimento da diversidade como riqueza e não negatividade, uma perspectiva intercultural na educação. Ao citar um dos critérios básicos para uma educação fundada nesses princípios, Candau deixa claro que a educação intercultural não pode ser reduzida a algumas situações e/ou atividades realizadas em momentos específicos ou por determinadas áreas curriculares, nem focalizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos sociais. Trata-se de um enfoque global que deve afetar a cultura escolar e a cultura da escola como um todo, a todos os atores e a todas as dimensões do processo educativo, assim como a cada uma das escolas e ao sistema de ensino como um todo (CANDAU, 2002, p. 99.).

A discussão sobre a pluralidade cultural é fundamental e por isso foi contemplada quando da edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que se colocam como proposições para a elaboração de orientações didáticas e A simples inclusão da pluralidade cultural práticas pedagógicas (PCN, v. 1, p. 26). proposta nos Parâmetros Curriculares como um tema a ser trabalhado no cotidiano escolar, O papel da educação é primordial para não significa necessariamente que na prática se a reflexão sobre as diferentes culturas que efetiva. É preciso que esse tema seja também configuram social e historicamente a sociedade incluído nos currículos e nos programas de cada – é trazer o tema do multiculturalismo para a disciplina, uma vez que sala de aula. Conforme aponta Boaventura [...] a temática da Pluralidade Cultural diz Santos, é necessária uma orientação respeito ao conhecimento e à valorização das multicultural nas escolas, passando pelos características étnicas e culturais dos diferentes currículos e que contemple a discussão (nem grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas sempre pacífica...) entre políticas de igualdade e à crítica às relações sociais discriminatórias e da diferença. O autor afirma que “as versões e excludentes que permeiam a sociedade emancipatórias do multiculturalismo baseiambrasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade se no reconhecimento da diferença e do direito de conhecer o Brasil como um país complexo, à diferença e da coexistência ou construção de multifacetado e algumas vezes paradoxal (PCN, op.cit., p. 16). uma vida em comum além de diferenças de vários tipos” (SANTOS, 2003, p. 33). Torna-se fundamental a discussão sobre a dignidade do ser humano, a luta pela

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24 igualdade de direitos, a tentativa de combater todas as formas de discriminação e promover a solidariedade e o respeito. Assim, “[...]cabe ao campo educacional propiciar aos alunos as capacidades de vivenciar as diferentes formas de inserção sociopolítica e cultural. Apresentase para a escola, hoje mais do que nunca, a necessidade de assumir-se como espaço social de construção dos significados éticos necessários e constitutivos de toda e qualquer ação de cidadania.” (ibidem, p. 24), lembrando sempre que “pluralidade vive-se, ensina-se e aprende-se”. (ibidem, p. 39). A escola como instituição voltada para a constituição de sujeitos sociais deve tentar mostrar as diversas formas de organização da sociedade, desenvolvidas por diferentes comunidades étnicas e grupos sociais, explicitando que a pluralidade e o respeito ao outro é fator de fortalecimento das culturas e de entrelaçamento das diferentes formas de organização social. Assim, entende-se como fundamental que o aluno tenha o máximo de oportunidades para conhecer e valorizar as diferentes culturas, seus componentes históricos e o dinamismo das transformações sociais. A escola pode ser um espaço capaz de reconfigurar as relações humanas e promover um processo dinâmico e sistemático de transformação social.

burguesa industrial do século XIX5. Se, por um lado, aquele individualismo expunha o sujeito ao mundo público e o levava à construção de uma identidade pública e política, por outro lado, a esfera privada o encerrava dos olhos do mundo. O espaço das relações “externas” não mais se articulava à rede de amigos e de favores. Famílias e homens de negócios tinham os mesmos sobrenomes até o setecentos e parte do oitocentos. A competitividade e um bom negócio passa a valer mais nesse novo mundo capitalista. A sociedade burguesa do XIX impõe “[...] a instituição de um novo imaginário social, de novas formas de percepção cultural e de uma nova sensibilidade” (CORBIN, 1987, p. 14). A via pública é o pânico e o artificial. No público as coisas são frias e fingidas, no exílio interior recobramos as defesas e a segurança, livres do “olhar do outro”. Essa sociedade sucumbe o ser humano aos encantos do “mundo interior” e as maravilhas do lucro, da manipulação econômica e do que Sennett denominou de “declínio do homem público”.

Adjetivos e valores facilmente encontráveis anteriormente, na sociedade do Antigo Regime, como honra, pudor, fidelidade e amizade trazidos à cena do social e ao público sem máscaras e aparências, no “ritual É um traço da sociedade contemporânea da etiqueta” e no que Elias denominou “vida ocidental o sentimento de impotência ou na sociedade de corte”6, caem por terra na imobilidade diante das desigualdades e do sociedade burguesa. A sociedade do século XIX ataque à dignidade humana. Posição essa que é carregada de individualismo, indiferenças e é alimentada por ações individualistas e pelo crescente narcisismo.4 O individualismo que se constitui na sociedade do século XX tem, de alguma maneira, suas raízes naquele forjado pela sociedade

4 O individualismo do século XIX é uma manifestação interior que Sennett denominou “narcisismo”. Sobre a idéia de narcisismo elaborada pelo autor, ver (SENETT, 1998, p. 21).

5 Segundo Margareth Rago, as novidades desse espaço de sociabilidade, o espaço público, aliado às tecnologias trouxeram consigo problemas de segunda ordem como: a mendicância, o roubo, a prostituição, o desemprego, as doenças, a competitividade, as greves,.. Essas questões, por sua vez, ascenderam as práticas do individualismo moderno e a decadência da esfera pública, fortalecendo as estratégias disciplinares que promovem o indivíduo inodor, sem rosto e aparentemente ausente de desejos e emoções (RAGO, 1993, p.13). 6 Conceito construído por Norbert Elias para identificar os costumes da sociedade de corte e o processo de civilização do ser humano (ELIAS, 1994).

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25 máscaras sociais. Dissimulam-se sentimentos, afetos, cordialidades e ideais – práticas de sociabilidade restritas à esfera privada, nunca explícitas no/ao espaço público. É com o florescer da sociedade urbanoindustrial que se observa a rapidez das comunicações; os cuidados e as práticas de higiene e da saúde pública, as noções de esquadrinhamento das vias e dos limites urbanos e, porque não, da própria vida de seus habitantes. Os poderes do Estado impõem a norma, a disciplina e a conduta à família, célula primária da sociedade. Para isso, o Estado se vale dos discursos de médicos, de engenheiros, da literatura. A mesma sociedade do XIX confina a mulher ao espaço doméstico e, aliada aos “poderes” de Estado, em suas múltiplas instâncias, redefine a família burguesa e operária.7 O espaço da casa é controlado, no entanto, não é exposto.

de trabalho, o menor número de filhos, entre outros fatores, redimensionou e redirecionou os papéis e os gêneros. Em contrapartida, o espaço de atuação da família na construção do cidadão tem sido outro ou, por vezes, assumido por outras instituições como escolas ou clubes. Ainda, uma parte desse espaço de atuação da família tem sido preenchida pelos meios de comunicação, principalmente a televisão. Mas suas mensagens têm sido assimiladas sem um critério prévio de seleção e de cuidado. Esse novo cidadão da modernidade é formado em grande parte por dados, informações, valores que são derramados cotidianamente pela televisão com uma proporção assustadora. Valores comportamentais, formas de atuação social, referenciais conceituais e padrões de consumo são revelados e apropriados dos meios midiáticos. Como já foi discutido aqui, a sociedade atual incentiva as condutas de sucesso e o culto ao prazer imediato a qualquer custo, impondo, sobretudo aos adolescentes e jovens, a competitividade e o individualismo. O jovem ao optar pela exclusão e não pela solidariedade, pelo egoísmo e não pela generosidade, pelo imediatismo e não pela posteridade referencia um comportamento e uma postura social.

Norteados por esse comportamento típico da sociedade burguesa, o século XX emergiu tomado pela filosofia do narcisismo. No século XX, segundo Tedesco, o individualismo ganha um novo contorno, sai especificamente da esfera política e econômica e passa a envolver e estar relacionado ao “estilo de vida”. De acordo com o autor, “a forma de individualismo dá ênfase sobretudo à auto- expressão, ao respeito à Ao se falar de jovens deve-se lembrar liberdade interna, à expansão da personalidade.” que há vários fatores que influenciam o Nesse sentido, o autor afirma que cada um comportamento do adolescente, além dos deveria criar uma forma de vida para si. sócio-culturais; existe um embasamento psicobiológico que confere uma característica quase O que Tedesco sugere é que a família universal aos jovens e à sua maneira de ser. moderna tem uma nova constituição e novos Sendo um período de transição, a adolescência papéis que podem ser assumidos pelos tem um caráter de transformação, quando o envolvidos. A família nuclear burguesa do indivíduo faz uma reformulação de conceitos século XIX ganha um novo arranjo. No século sobre si mesmo e sobre o mundo. O caráter XX, a incorporação da mulher pelo mercado imediatista do comportamento dos jovens, a instabilidade, a oscilação entre tantos valores (muitos contraditórios e/ou que não condizem 7 Sobre o esquadrinhamento do espaço urbano, normatização e disciplina da família e da mulher (burguesa e/ou operária) no com o que observam na prática do mundo), a Brasil é interessante ver os trabalhos de Jurandir Freire Costa importância que adquire o grupo no qual se – Ordem médica e norma familiar - e Margareth Rago – Do insere, entre outras, são características que cabaré ao lar, a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930), definem esse período de vida. entre outros autores. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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26 OS MÚLTIPLOS CONTATOS COM O OUTRO: REALITY SHOWS TELEVISIVOS E O MUNDO DA INTERNET Ao contrário do que se projetou sobre a sociedade burguesa do XIX, em que era preciso vigiar e punir8, instituindo uma rígida disciplina em todos os espaços sociais, seja público ou privado, guardando e dissimulando o olhar que tudo via, do que Foucault menciona serem olhares que devem ver sem ser vistos, das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, as modernas sociedades invertem essa lógica e tornam visível o seu papel de vigia, expondo ao público, à rua, o que é da esfera privada. Dessa forma, a vida nas sociedades contemporâneas passa a ser permanentemente observada, controlada, monitorada. Mediante a falta de perspectivas e de estímulos, uma vez que o espaço público político tornou-se desinteressante e pouco atrativo, a juventude volta suas preocupações para si e fortalece a idéia de individualismo e de narcisismo. Constrói em torno de si um mundo sofisticado para a sua sobrevivência, de relações pouco comprometedoras que, ao toque da mão, podem ser desligadas/desconectadas. A diversidade do mundo midiático favorece essa nova dimensão/construção do sujeito e das relações por ele estabelecidas. Trata-se, ao mesmo tempo, do descomprometimento e da possibilidade de tornar explícito o olhar sobre o outro e de exercer a capacidade de controle. George Orwell, em seu livro “1984”, descreve o domínio do Estado totalitário sobre tudo e todos. O controle estatal era mantido por

8 Termo que faz referência à obra de Michel Foucault, Vigiar e punir, na qual o filósofo destaca as formas de controle e os meios e os métodos coercitivos e punitivos utilizados pelos homens, desde sociedades passadas até a Modernidade. A construção da idéia de controle aparece mais especificadamente no capítulo “O Panoptismo”.

uma espécie de olho eletrônico que espionava as pessoas em todos os lugares. Escrito na década de 40, a obra narra a vida de um homem (Winston) que vive em uma sociedade onde todos os cidadãos são observados 24 horas por dia, por teletelas e câmeras ocultas, exigindo total fidelidade ao sistema vigente. Esse era o lema, ou melhor, as três divisas do Partido: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.” Numa estrutura pautada no controle e em instituições tais como a Polícia do Pensamento e o Ministério da Verdade, o Grande Irmão zelava por todos, sempre vigiados, uma vez que [...] qualquer barulho que [fizessem], mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo que observasse todo mundo ao mesmo tempo (ORWELL, 1984, p. 8).

Trata-se de uma crítica aos regimes totalitários onde não há espaço para o indivíduo livre e desejoso de cidadania. Através de uma metáfora, o autor discorre sobre a capacidade de controle que o Estado tem sobre os cidadãos, construindo o termo Big Brother, o Grande Irmão. De certa maneira tornou-se quase que uma antevisão dos dias atuais, quando o poder é exercido sob as mais diversas formas: por governantes inescrupulosos, pela propaganda, pela mídia, etc. A adoção da expressão big brother é por si mesma emblemática. Particularmente em um caso, os criadores do programa de televisão não tiveram a preocupação de “camuflar” a verdadeira intenção ou, melhor dizendo, a idéia que inspirava a nova atração: a banalização do eu e da dignidade humana em nome da fama instantânea e fugaz. A fama a qualquer custo precisa ser questionada, especialmente quando advém da experiência que antecipa a obra, isto é, a fama é a própria obra. Nesse momento, realmente parece ser fundamental discutir-

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27 se sempre a questão da dignidade humana via webcams, entre outras, todas com o objetivo sustentada pela auto-estima que, por sua vez, de tornar visível algo que supostamente – e impulsiona a construção da cidadania plena. muitas vezes -, deveria ser preservado ou mesmo oculto. A exposição que a internet e programas Dessa mesma maneira, no formato do Big como os reality shows promovem parecem Brother, inspirado na ficção de Orwell, criam-se satisfazer o desejo dos jovens de liberdade, inúmeros reality shows televisivos. A vigilância visibilidade, reconhecimento, pertencimento e que não mais coage e dissimula, mas explicita distinção. o que é íntimo. E quando se fala e se trabalha com jovens Na televisão brasileira o Big Brother, torna-se primordial a discussão dos mecanismos desenvolvido pela produtora holandesa Endemol utilizados para o uso do poder, por se tratar de e exibido em 17 países, caiu no gosto e na uma faixa etária que ainda está tentando situarcuriosidade do público. Esse tipo de programas se em termos de modelos e maneiras de viver, apareceu pela primeira vez na década de 1940 e cuja sensibilidade dependerá dos valores que e mostrava pessoas em situação de improviso e serão internalizados nessa época. podem ser vistos como os precursores do gênero reality shows. Muitos outros vieram depois, Além disso, ao acompanhar o desenrolar como An American Family (1973), Cops (1989) dos shows pela TV e/ou pela internet, e Number 28 (1991). eventualmente sentem-se “poderosos”, uma vez que estão “decidindo” o destino de uns e O perigo para o qual Orwell chamava excluindo outros. Tem-se um paradoxo nesse a atenção – uma sociedade controlada pelas contexto, marcado pelo conflito entre o desejo teletelas e por uma figura obscura, oculta criada de pertencer a um grupo, o desinteresse pelo pela propaganda do regime, de certa forma diferente (uma vez que se busca sempre reaparece nos reality shows televisivos, que “os iguais”) e o simultâneo sentimento de assumem um caráter de voyerismo e invasão de isolamento e solidão. privacidade. Da crítica original ao totalitarismo chega-se à aceitação do controle, do vigiar e A atração por um cotidiano que parece ser caso fosse o caso, do punir. Essa privacidade mais interessante e glamouroso do que o seu, “criada” pela produção e pelos participantes sem se dar conta que hoje se vive num mundo dos programas é para ser mostrada ao público, cada vez mais esvaziado de solidariedade, constituindo-se em mais um modo pouco sutil e fraternidade, respeito ao outro e a si mesmo, indireto de exercício do poder. torna-se uma ameaça à alteridade e ao amplo exercício da cidadania. Nesse universo sem o A vida passou a ser instrumentalizada e outro e onde não há mais um vigilante absoluto controlada pela produção audiovisual. Nesse (o Grande Irmão), que exercia um controle mundo de vigiar tem-se uma lógica pautada na aterrorizante e totalitário, passa-se a uma idéia de que “eu sei tudo do outro, elimino o forma sutil de sujeição pela sedução. O que se outro quando não me agradam as suas atitudes, pretende mostrar é que não é possível excluir o mas não me comprometo com ele”. outro impunemente: ele sempre volta, às vezes de forma violenta e explosiva. De acordo com o que se discutiu anteriormente, programas nesse formato se Tanto por meio dos sites de relacionamento enquadram nesse novo mundo virtual, ao lado quanto pelo acompanhamento em tempo real ou e articulados com outras coisas relacionadas a não da rotina dos “confinados” dos reality shows, essa realidade virtual, tais como blogs, fotologs, bem como pela participação nas decisões mais vídeos, supostos flagrantes, muitos transmitidos Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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28 importantes dos programas, o que se percebe é que parece haver certo descaso com o outro, que não raras vezes desemboca no desrespeito e na exclusão pura e simples. Exclui-se da “casa” assim como se “bloqueia” ou “ignora” aquele que não interessa. Não se “adiciona” alguém sem que sejam necessárias muitas explicações. Afinal, amanhã (ou logo mais...) pode aparecer alguém mais interessante.

Ambientes de aprendizagem que promovam uma prática pedagógica reflexiva e favoreçam oportunidades para conhecer e valorizar as diferentes culturas são capazes de contribuir para a construção de novos indivíduos. A escola pode ser um espaço capaz de reconfigurar as relações humanas, estabelecer momentos de cooperação, de diálogo e de conhecimento do outro.

A sala de aula e, principalmente as disciplinas das Ciências Humanas, favorecem o acesso à informação sobre diferentes culturas O PAPEL DA ESCOLA: O e facilitam o re(conhecimento) da diversidade RECONHECIMENTO DA ALTERIDADE através do contato com variadas atividades, E A CONSTRUÇÃO DA TOLERÂNCIA textos e informações. Cria-se, dessa forma, É pensando nessas questões que se deve uma consciência investigativa, crítica e tentar privilegiar na escola a discussão de comprometida, alavancando possibilidades de temas como multiculturalismo, construção ver o outro como sujeito e não apenas ver o outro da cidadania e a valorização da dignidade sob o olhar da indiferença, da discriminação e/ humana. Segundo Maria Cândida Moraes, é ou da personagem “plástica” do reality show. preciso educar para uma cidadania global, o que O trabalho dos professores pode fornecer significa informações mais adequadas sobre o uso dos formar seres capazes de conviver, comunicar e dialogar num mundo mais interativo e instrumentos midiáticos, tais como televisão e interdependente utilizando os instrumentos computares. É possível fazer com que a mídia, da cultura. Significa preparar o indivíduo para possa ser vista e utilizada para abrir múltiplos ser contemporâneo de si mesmo, membro espaços de conhecimento sobre outro e reduzir de uma cultura planetária e, ao mesmo o isolamento e o individualismo. Atividades de tempo, comunitária, próxima, que, além de exigir sua instrumentalização técnica para releitura desse instrumental são fundamentais comunicação a longa distância, requer também para que redes telemáticas e de computador se o desenvolvimento de uma consciência de tornem uma ferramenta de abertura ao mundo, fraternidade, de solidariedade e a compreensão ao público, ao compromisso e a um projeto de de que a evolução é individual e, ao mesmo vida. É essencial que o professor, reconhecendo tempo, coletiva. Significa prepará-lo para compreender que, acima do individual, deverá a importância da mídia e da informação, e aproveitando as novas capacidades dos sempre prevalecer o coletivo. Educar para a cidadania global requer jovens “pós-modernos”, perceba o conjunto a compreensão da multiculturalidade, o de relações que existem na sala de aula e reconhecimento da interdependência com procure desenvolver uma prática que relacione o meio ambiente e a criação de espaço para consenso entre os diferentes segmentos da tecnologias e pedagogias voltadas sempre para a realidade em que seu aluno se insere. Como sociedade (MORAES, 2000, p. 225). não há informação neutra, é fundamental que É importante mostrar aos educandos professores e alunos adotem uma postura ativa quanto uma sociedade pode se tornar repressiva para que seja possível fazer uma leitura crítica e insuportável quando a liberdade é sobrepujada da informação. à força por quem exerce o poder, subjugando a população e os direitos individuais. A escola como instituição voltada para Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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29 a constituição de sujeitos sociais deve tentar mostrar as diversas formas de organização da sociedade, desenvolvidas por diferentes comunidades étnicas e grupos sociais, explicitando a pluralidade e o respeito ao outro como fator de fortalecimento das culturas e das identidades.

REFERÊNCIAS BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997, v. 1 e 10.

RAGO, M. Políticas da (In)diferença: individualismo e esfera pública na sociedade contemporânea. Anuário do Laboratório de Subjetividade e Política. Departamento de Psicologia, Universidade federal Fluminense, ano II, 1993.

CANDAU, V. M. F. (org.). Sociedade, educação SANTOS, B. S. Reconhecer para libertar. Rio e cultura(s). Questões e Propostas. Petrópolis: de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Vozes, 2002. SENNET, R. O domínio público. O declínio do CORBIN, A. Saberes e odores: o olfato e o homem público: as tiranias da intimidade. São imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 15-44. Paulo: Companhia das Letras, 1987. TEDESCO, J. C. O novo pacto educativo: ELIAS, N. O processo civilizador: uma educação, competitividade e cidadania na história dos costumes. 2 ed. Rio de Janeiro: sociedade moderna. 5 impressão. São Paulo: Zahar Editor, 1994. Editora Ática, 2004. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 11 TOURAINE, A. Crítica da modernidade. reimpressão. Rio de Janeiro: Graal, 1995. Petrópolis: Vozes, 1994. ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. ZUIN, A. A. S. A indústria cultural globalizada 8 ed. Petrópolis: Vozes, 1987. e os prejuízos da formação. In: LASTÓRIA, L. A. C. N. (org.). Teoria crítica, ética e a LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, educação. Piracicaba/Campinas: Editora 2000. UNIMEP/Editora Autores Associados, 2001. MORAES, M. C. O paradigma educacional emergente. 5 ed. Campinas: Papirus, 2000. ORWELL, G. 1984. 17ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1984.

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30 ENTRE TRAJETÓRIAS E PLANOS DE RESISTÊNCIA – EDUCAÇÃO INFANTIL EM LINHAS CURRICULARES... FIORIO, Angela Francisca Caliman9 RESUMO Trago neste artigo, problematizações acerca de algumas imagens construídas sobre criança, cotidiano e aprendizagem, travadas na dissertação. Levada por afetos lanço-me na arte de registrar as linhas curriculares traçadas pelas crianças. Entrando com elas num devir, pronto para criar, pude perceber que por entre os campos de ação dos valores estabelecidos encontramos a Rita, o Davi, a Vivi, o Matias... PALAVRAS-CHAVE Criança. Cotidiano. Acontecimento. “Com” o pensamento cartográfico de Gilles Deleuze, autor que arrisco uma leitura nesta pesquisa, problematizamos algumas imagens construídas sobre a criança, o cotidiano e a aprendizagem. Levada pela experiência (LARROSA, 2004) e pelos afetos, lançome na arte de registrar as linhas curriculares traçadas pelas crianças em seus jogos de experimentações, extraindo de suas cartografias o que nos tem a dizer sobre a escola, sobre a vida, enfim, sobre tudo aquilo que as empurram e as levam a pensar, potencializando as pistas que elas nos dão, fazendo-nos repensar as questões curriculares na Educação Infantil.

Nessa perspectiva, a aprendizagem não passa somente pela capacidade de explicar e nem de representar, mas em deixar-se afetar pelo acontecimento.

9 Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Espírito Santo, em 2006, na Linha de Pesquisa Cultura, Currículo e Formação de Educadores sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço.

Neste sentido, passo a narrar uma reunião de pais da turma do pré em que, notadamente, em alguns aspectos, a educação da infância

Entrar num devir é seguir uma linha de fuga que consiste em resistir diante das formas de enquadramentos que nos impedem de criar.

Pelo que foi sentido e percebido arrisco em dizer que os movimentos cotidianos de rebeldia estão agindo por entre os campos de ação dos valores estabelecidos, provocando mudanças, mesmo que pequenas. Sob as leis e as normas encontramos a Rita, o Davi, a Vivi, a Nesta empreitada, me embolei com as Saionara, o Matias... crianças de um Centro de Educação Infantil Se, de um modo geral, existem ou são de Vitória, entrando com elas num devir produzidas imagens de crianças que vigoram pronto para protestar e elaborar novos planos nos esquemas pedagógicos preparados antes de resistência. E criar é resistir. Para Deleuze mesmo da chegada delas, estas imagens não (1998), o sentido da criação é encontrado na nos interessam. Para além dessas imagens, experimentação, em sua condição de imanência, estamos falando da criança encarnada ou seja, considerando as relações singulares que (NAJMANOVICH, 2001) e sensível que se travamos com as coisas que cruzam o nosso vale de sua experimentação para interpretar o caminho. que lhe acontece.

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31 é movida pelo futuro, ou seja, como uma mera preparação para o Ensino Fundamental. Porém, precisamos registrar os protestos vitais de algumas crianças que nos apontam uma lógica para a educação da infância ancorada no presente cotidiano.

Na leitura desse fragmento, percebemos que as crianças estão tentando nos dizer algumas coisas, de diferentes maneiras... Só sabemos disso quando nos permitimos experimentar o novo que surge a partir do nosso encontro “com” elas; isso significa que ao invés de se ajustarem aos esquemas pedagógicos preparados para A professora iniciou a reunião expondo recebê-las, tecem suas redes de saberes e fazeres os projetos trabalhados no primeiro semestre nos espaçostempos de liberdade. e a forma como foram desenvolvidos. Ela frisou que trabalhava leitura e escrita todos os Ao invés de procurarmos compreender o dias e almejava que, ao final do ano, a maioria que acontece no cotidiano da educação infantil estivesse alfabetizada. Disse que trabalhava procurando pela memória, o que é isso ou o que assim porque não queria reclamações. A mãe é aquilo, como se as coisas tivessem um ponto de Tamara, uma das alunas do pré, prometeu de partida e um ponto de chegada é melhor um computador à sua filha caso ela conseguisse procurarmos pelo acontecimento. Neste sentido, aprender a ler até o final do ano. As mães de podemos falar de uma dimensão labiríntica do Josué, Manoel e Saionara disseram que seus cotidiano na medida em que sobre ele não se filhos tinham reclamado do excesso de dever estende nenhum fio condutor. O risco de nos e da falta de brincadeiras e que, segundo eles, perdermos neste labirinto vale a chance de nos ficavam cansados. Inclusive, a mãe de Saionara encontramos como um ser em devir que não se disse que já havia acontecido dela se recusar ir define antecipadamente. À maneira de Deleuze, à “creche”, chorando, por medo de não saber devemos procurar o que se passa no meio de uma a lição. Deu o exemplo de uma atividade experimentação: percorrer por entre as linhas que se referia ao Sítio do Pica-pau Amarelo. que compõem um lugar. Arrancar os devires, as A professora disse que fazia isso mesmo, multiplicidades e os acontecimentos implica em passava muito dever e que no segundo semestre cartografar o que está em pleno movimento e pretendia intensificar mais ainda, inclusive, não que não se submete a nenhuma posição do tipo ia mais nem fazer rodinha de conversa porque é. as crianças precisavam se acostumar, desde já, Se para Deleuze, interpretar é atribuir com o ritmo do Ensino Fundamental. De acordo com a professora, lá não haveria brincadeiras, só sentidos estou, dessa forma, assumindo alguns estudo. Frisou que a partir do segundo semestre, sentidos para a criança. Assim como todos nós, as crianças estão expostas a vários contextos de brincadeiras só no pátio. agenciamentos como a escola, a igreja, o bairro, Para Deleuze (1998, p. 74), um dos os amigos, as músicas, a violência, a rua, o que autores com o qual tenho dialogado, “[...] as não significa que estão se sujeitando o tempo crianças são rápidas porque sabem deslizar todo ao que está posto, mas que respondem a entre”. Rápido não quer dizer que são velozes estas chamadas. Elas sabem se relacionar com e que correm muito – embora também o sejam o fora. As crianças sabem disso. Não fazem – mas que as crianças tornam-se sujeitos da ponto. Não marcam “toca”. Não dão “bobera”. experiência com o mundo, permitindo-se Elas estão sempre no meio. Quem está no meio desviar dos modelos instituídos traçando linhas só faz linha. Em Deleuze, não existe a eterna de ruptura. Neste caso, fugir não é abster-se do busca da verdade escondida no fundo das coisas. mundo é, antes, talhá-lo aproveitando-se de uma vaga, traindo a ordem estabelecida, traçando toda uma cartografia. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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32 SOBRAS DE ALGUMAS EXTRAVAGÂNCIAS PELA FILOSOFIA DELEUZIANA Nos silêncios de nossa vida, por entre nossas memórias, se localizam os nossos devires minoritários e se eles gostam de ficar pelo meio é por força de sua potência em protestar e elaborar novos planos de resistência. E criar é resistir. Minoritário não tem qualquer relação com a quantidade, mas com aquilo que colocamos em questão numa certa lógica de funcionamento. Isso nos leva a perceber também que os processos de mudanças estão em curso nos movimentos do cotidiano. As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho habitante das cidades... Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo. Pode-se dizer que a maioria não é ninguém. Todo mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo [...] (DELEUZE, 1992, p. 209).

Tratando-se de Deleuze, autor que arrisco uma leitura nesta pesquisa, torna-se quase um imperativo, por força de seu pensamento filosófico, furtar-me a uma leitura conduzida por um fio temporal que se estenda “sobre” ela feito um decalque. O que me ocorre então é curtir suas idéias ou jogá-las fora na mesma intensidade. Nas dobras e nas sobras dessas leituras, no silêncio que se faz entre nós, me perder e me encontrar. O mais importante disso tudo não é escrever o que seu texto diz e nem o que sou capaz de explicar “sobre” ele.

e as populações que nos povoam, enfim, é um encontro com todas as coisas que cruzaram/ cruzam o nosso caminho. É poder falar do fundo de nosso subdesenvolvimento, ou seja, daquilo que escapa às significações explícitas, objetivadas. Poder falar do que não sabemos e do que ignoramos é combater essa imagem do saber entendida como o lugar da verdade e a fonte de todas as respostas. Se a escrita, a fotografia ou qualquer outro registro não pode dar explicação ou testemunho claro daquilo que é real, ela visa a golpear a pretensa correspondência entre o registro e a realidade. Uma escrita-experimentação pode provocar um estranhamento em quem lê como também forçar uma quebra nas relações de continuidade na escola. A criança já é esse acontecimento sem um antes e um depois; um novo começo que segue errante pela vida sem o peso dos valores estabelecidos. Pronta para criar. Assim, os movimentos desta escrita não vão de um ponto a outro; eles traçam linhas de fuga... e, pelo visto, a escritura desta pesquisa pretende posicionar-se no meio correndo todos os riscos que essa posição lhe confere, traçando linhas de ruptura com os saberes que circulam pela nossa cultura como se fossem naturais.

Por fora dos rigores dos organismos, o popular e o ignorante encontram sua genialidade e o seu número nos signos,10 ou seja, naquilo que os faz pensar sem medida. A medida limita e interrompe o devir. Ela pretende garantir a estabilidade das relações (hierarquizantes e excludentes) numa posição que só vale pela continuidade, enquanto os signos nos expõem à sua violência, inflamando nossa imaginação, constituindo-nos como um ser em devir que não pode ser antecipado. Sem a exata medida de tudo e do fundo do meu desconhecimento, é que Referindo-se à escrita, Deleuze (1998, p. pude me envolver com os escritos de Deleuze. 16) fala que “[...] o gosto de cada um poder dizer Tal cumplicidade não tem explicação, só pode coisas simples em seu próprio nome, de poder ser escrita de uma maneira amorosa... falar por afectos, intensidades, experiências, experimentações” é muito curioso, pois não é em absoluto nos tomarmos por um Eu. Ao contrário, poder falar em nosso nome é extrair de 10 Essa análise tem como referência Proust e os Signos (2003), nossa vida as zonas que nos habitam, os grupos no capítulo em que fala do Antilogos. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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33 ALGUÉM TEM ALGUMA COISA A DIZER?

- Ela aparece e dá susto nos outros. Ela é um monstro. (Rita) - A morte vem à toa. (Tânia) - Aqui, lá perto da minha casa, né? Um ônibus tava parando no ponto para a mulher descer, né? Aí, quando a mulher desceu né? Quando a mulher foi atravessar, a moto veio e passou bem assim, voadona, e a mulher bum! Caiu no chão. Aí a boca dela machucou todinha. Aí ela morreu. (José) - Não existe a morte porque a televisão só passa coisas mentirosas. A televisão engana algumas gente. Mas tem hora que a televisão passa a verdade. (Rita) - Você pode falar uma mentira que a televisão conta? (Angela) - Tem filme que faz um montão de coisa mentirosa. Que eles atiram... É tudo mentira. Aí atira, aí morre é mentira é só filme... (Rita) - Tem vez que a televisão fala a verdade e a verdade que a televisão falou um dia foi que a estrada pegou fogo, lá perto onde eu moro. (Tânia) - E pegou fogo mesmo? (Angela) - Pegou. Só o desenho é mentira. (Tânia) - Por quê? (Angela) - Porque é feito de computador. (Tânia) - Tia, eu tava no ônibus que tinha três ladrões. Pediram pra passar as grana e o trocador não passou. Aí mataram o trocador. (Marcos)

Na tentativa de não aprisionar os sentidos do vivido numa forma anti-devir, transcreveremos as falas das crianças que, em meio a conversações, soltaram suas redes de sentidos. Consegui captar algumas em que falavam sobre animais de estimação, como o cachorro, o gato, o coelho... Rita, que a caminho da “creche” encontrou um cachorro morto no meio da rua, fez uma cara de medo e Amanda questionou: ”por que não se enterram cachorros mortos?” Falou que um dia seu pai enterrou um gato morto. Ao mergulhar nas experimentações das crianças, encontrei uma multiplicidade de agenciamentos e de coisas que se conectam e se relacionam, e nesse emaranhado de linhas, puxei o fio que se ligava à morte, perguntando sobre os seus sentidos. Apesar de, nesse momento eu ter associado morte a medo – não consegui disfarçar; a resposta de Rita se desvia do sentido que eu havia atribuído, dizendo que tem medo de cachorro. Podemos deduzir disso que as crianças são mais resistentes do que nós. Suas linhas fogem com muito mais velocidade do que as nossas. Se a morte já tem alguns sentidos construídos em nossa cultura, para as crianças, esses sentidos não lhe dizem quase nada. Quanto a José, também se desvia de minha questão. Fala das circunstâncias da morte como aquelas existentes na relação com o cotidiano do seu bairro e diz respeito à violência: - O que é a morte? 11 (Angela) - Quem tem medo da morte? (Angela) - Eu tenho medo de cachorro. Tem um cachorro lá que fica andando na rua. Um dia um menino assustou o cachorro e saiu correndo e o cachorro veio atrás de mim. (Rita) - A morte é um fantasma, aí, aí, pega a gente e mata. (Vitória). - A morte mata a gente. (Tânia)

Estar “com” esse mundo é experimentálo no que ele tem de belo e trágico. Estar cara a cara “com” o mundo presente é responder por algum acontecimento. A resposta vem sempre articulada ao campo da experimentação. Respondemos por aquilo que nos afeta, nos toca e nos choca. É um chamamento à responsabilidade diante do acontecimento, quer dizer, diante do que criamos a partir do nosso encontro “com” esse mundo. Em sua entrevista a Toni Negri, Deleuze, ao falar do processo político engendrado no e pelo acontecimento, refere-se a esse sentimento “com” o mundo: Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos [...]. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de

11 Essas transcrições são falas das crianças onde a pesquisa foi realizada. Os nomes são fictícios para manter em sigilo suas identificações. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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34 resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e o povo (DELEUZE, 1992, p. 218).

ensaiava uma ida até a cadeira da professora para mostrar-lhe o “dever pronto”.

Esse sentimento “com” o mundo, segundo Zourabichvili (2000, p. 339), supõe desenvolver uma capacidade de ser afetado: “[...] um acontecimento político é uma nova distribuição dos afetos, uma nova circunscrição do intolerável [...]”. Livre de qualquer imagem, daquilo que poderia ser, o que conta num acontecimento são as mutações, o engendramento de novas relações com o corpo, com o aprender, com o espaço, com o tempo, com o amor, com o trabalho, com a pesquisa... O que muda é a nossa maneira singular de perceber e de sentir o que nos chega, recebendo o deleitável e rejeitando o insuportável. Essas percepções colocam em questão as formas instituídas produzindo modos de vida mais felizes, potentes, abertos à criação.

Ao chegar perto de sua professora, para sua decepção, ela disse-lhe: “Vai ter de fazer tudo de novo, porque você copiou tudo de cabeça pra baixo no caderno”. Ele não respondeu nada. Inconformado, pediu a Danilo, um colega sentado ao seu lado, que fizesse a cópia pra ele. Eduarda, que estava numa carteira à frente da sua, não perdeu nenhum detalhe do que estava acontecendo e disse:

- Ah, é lá que minha irmã trabalha! Você sabia que lá tem um papagaio que fala? - É mesmo? (Angela) - Fala besteira! (Luis) - Sabe o que ela faz lá, tia? Lava roupa, passa, faz comida também. (Luis)

- Ele não sabe fazer letra de mão. [Tampando a boca com a mão do tipo de quem quer falar um segredo]. - Quem falou que ele não sabe? (Angela) - É porque ele não sabe mesmo. (Eduarda) - Você sabe, Luis, letra de mão? (Angela) - Não. (Luis) - Qual você vai fazer? (Angela) - Aquela do canto. (Luis) - Então copia. (Angela) - Eu quero fazer a data. (Luis) - Então faça, olha é o 2 e o 9, 29. (Angela) - Eu não sei. (Luis) - Tia, quando eu não sabia lê, eu pedia pra minha irmã pra ela me ensiná. Eu gostava de aprendê. (Rita) - E agora já aprendeu, Rita? (Angela) - Minha mãe mandou eu lê, eu li tudinho. Mas este dever aí eu num gosto de faze, não. (Rita) - Ele sabe sim, o Luis? Ele tá enrolando! (Professora) - Diz ele que não sabe fazer letra de mão. (Angela) - Sabe, sim. O Luis fez agora. Olha aí no caderno dele! (Professora)

No quadro, duas cópias de um mesmo poema. De um lado, na versão letra de mão; de outro, letra de livro, como dizem as crianças. A professora, sentada em sua mesa, ao lado direito da sala bem pertinho da janela, lugar onde se senta todos os dias, no qual, segundo ela, corre um ventinho, controlava a turma de longe pelos olhares que, volta e meia, lançava sobre os alunos. Meio sem saber onde me encaixar naquele esquema, sentei-me ao lado de Luis. Permaneci sentada e percebi que foi com muito gosto que ele me recebeu ali. Luis, que já tinha terminado sua cópia na versão letra de livro,

Danilo, que não estava muito a fim, começou a fazer a cópia para o Luis após muita insistência e a promessa de uma recompensa. Tudo isso ocorria escondido da professora, que, sentada em sua cadeira, não percebia o movimento. Danilo disse que só faria a cópia com letra de livro, porque não gosta da outra letra e que nem pra ele tinha feito ainda. Mas isso parecia não ter muita importância para o Luis, uma vez que só estava preocupado em resolver o problema da cópia com a professora e livrar-se de uma tarefa que, para ele, não tinha o menor sentido. Luis mostrou o objeto de troca

Apesar de ter estado freqüentemente com sua turma, em especial com essa professora, conversávamos muito pouco sobre assuntos particulares exceto naquele dia em que ela me perguntou onde morava. Ao responder que morava em Campo Grande, Luis, um dos alunos considerados “fraquinho” por ela, entrou na conversa e disse:

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35 a Danilo. Tão apertado estava em sua mão, que dava pra notar a umidade do suor misturado à poeira – era um tazo. No seu caderno, dava pra ver algumas marcas de mão suja de terra que lembravam as formas de uma impressão digital.

singulares aprendizagens. [...] [os sujeitos da experiência] tecem as suas repetições antes de mais nas profundezas da terra e do coração, onde as leis ainda não existem. O interior da repetição é sempre afectado por uma ordem de diferença (DELEUZE, 2000, p. 77).

Será que Rita jogava nos dois times? No jogo de cartas marcadas e no jogo das singularidades? Ela realiza o jogo da diferença no qual constrói suas aprendizagens partindo de suas redes de sentido que são produzidas para além do espaçotempo escolar e nelas estão incluídas, pelo que pude perceber, a igreja e a família. A cópia do poema estampada no quadro verde, sob duas versões de letras, não lhe servia de elemento para sua composição. Explorava outras linhas para compor seus mapas curriculares. Linhas da vida. Entre as Ela, segundo sua mãe afirmou no dia cópias obrigatórias e as atividades “livres”, da reunião de pais, adora vir à escola. É uma ela transitava, tecendo o jogo de sua repetição. das primeiras a terminar a cópia, para, logo Aproveitando-se das vagas, lançava-se nas em seguida, apanhar umas de suas revistinhas profundezas de seu coração, uma terra tão ou pedaços de papel para desenhar e escrever. estranha para mim feito as paisagens da lua... Em sua mochila, tem papel recortado, panfletos da igreja e uns lápis nas diversas cores e tamanhos usados em suas atividades “livres”. Ela é muito quieta, age calada e, quando a O QUE VOCÊ TÁ FAZENDO AQUI, 12 professora convoca a turma, ela guarda/esconde TIA? ELA É PROFESSORA. ELA 13 os seus objetos de interesse. Custei a decifrar a ENSINA . TIA, VOCÊ TEM FILHOS? paradoxal resistência de Rita. Por algum tempo, NÃO... ENTÃO COMO É QUE VOCÊ É 14 achei que fosse quase submissa. Quando me PROFESSORA? aproximei dela e ela de mim, pude perceber seu O que vamos fazer nas escolas nas quais estilo, seu disfarce. pesquisamos? É possível separar os papéis e nos Na sala de aula, ela é usada como exemplo fixarmos num dos pólos, seja no de professora, que deveria ser seguido pelas demais crianças. seja no de pesquisadora? Na perspectiva das Ela sempre termina primeiro sua tarefa: “[...] Se multiplicidades, os pólos não existem. No a Rita terminou é porque não ficou conversando discurso da pesquisa positivista, há uma suposta e por isso todo mundo já devia ter terminado separabilidade entre o sujeito e o objeto em que também”. O sentido atribuído pela professora um dos pólos toma a cena central comandando não tinha a menor relação com o sentido dado a produção de sentido, determinando um por Rita. Terminar logo sua cópia era uma lugar para o outro, produzindo dualismos. maneira de criar seu espaço de liberdade no A abordagem de Lorena nos obriga a pensar qual manifestava sua singularidade: Ao ouvir de Luis que não sabia fazer letra de mão, Rita falou de sua saída, de suas linhas de fuga para criar suas possibilidades: “Quando eu não sabia lê eu pedia pra minha irmã pra ela me ensina”. A operação política de Rita consiste em criar saídas. Na sala, copiava tudo, ainda que não gostasse daquele dever. Ela diverge, coloca em questão a cópia, dizendo que, em casa, ela lia tudinho o que sua mãe pedia e que assim gostava de “aprendê”. Não via sentido na cópia; fazê-la depressa era seu disfarce.

[...] sob o trabalho geral das leis, subsiste sempre o jogo das singularidades [...] sob as generalidades do hábito reencontramos

12 Lorena. 13 Rogério. 14 Nália.

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36 nos sentidos de nossas pesquisas, em suas implicações tanto ética quanto política. A resposta do Rogério fala de sua experimentação. O tempo todo as crianças estão deslizando entre nós, brotando pelo meio feito grama. Sua resposta disparou meu pensamento, potencializando uma escrita desse acontecimento. “Ela ensina” lança uma suspeita sobre o suposto lugar de poder ocupado pela pesquisadora. Uma invenção, do tipo cartesiana, que tenta justificar a imagem de um saber especializado. Rogério coloca em questão o pensamento dualista traçando uma linha que não quer representar nem uma nem outra, a professora ou a pesquisadora. Ele traça uma linha que salta entre elas pronta para criar pondo em uso um devir minoritário criador de acontecimentos. Faz circular uma afecção. Encontramos nas crianças agenciamentos que nos transmitem um conjunto de afetos e de paixões heterogêneas que funcionam junto com os nossos. Nesses encontros, novas formulações aparecem na obra mudando seu rumo e sua direção, no entanto o que aparece não é da ordem do esperado, é o novo, a diferença. Por isso, na cartografia, desaparece tanto o sujeito quanto o objeto. Não há entre eles nenhuma ponte, nem mesmo uma troca recíproca: “[...] o que se passa entre os dois termos ou os dois conjuntos, é um estreito riacho que não pertence nem a um nem a outro, mas os leva, a ambos [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 45). Não há, nesse pensamento, nenhum relativismo, do tipo vale tudo, mas uma implicação mútua em que ambos, sujeito e objeto, se transformam dificultando, dessa maneira, uma identificação que defina onde um começa e o outro termina. Com isso Deleuze e Guattari querem dizer que não há um sujeito em si e muito menos um objeto pronto e acabado. A implicação é sempre o efeito de um encontro, ou seja, algo que se dá nas relações. É assim que se quebram os dualismos, pelo meio, por onde se passam os fluxos, as

multiplicidades, derrubando os dois. Não importa quantos sejam os termos da relação porque a multiplicidade se define pelo “E”: algo que passa entre e fora de nós, independentemente de nossa boa vontade, mas que nos arrasta, tirando-nos dos sedentarismos, das arrogâncias e dos egos envaidecidos. Perdemos totalmente nossa identidade: ela é o que mesmo? Professora ou pesquisadora? Não sabemos, mas coisas que passam entre ambas e que não é uma síntese do tipo professora-pesquisadora. São linhas que se cruzam e se atravessam e as fazem funcionar juntas, num co-engendramento. Não se tratando de uma síntese entre as duas, Deleuze (1998, p. 152) fala de uma outra possibilidade que trata de cortar as máquinas binárias, na qual surge [...] um terceiro que vem sempre de outra parte, e atrapalha a binaridade de [ambas], não se inscrevendo nem em sua oposição nem em sua complementaridade. Não se trata de acrescentar sobre a linha um novo segmento aos segmentos precedentes (um terceiro sexo, uma terceira idade), mas de traçar outra linha no meio da linha segmentária, no meio dos segmentos, e que as carrega conforme velocidade e lentidões variáveis em um movimento de fuga ou de fluxo.

Retomar o caso da aluna Saionara, já relatado, parece-me interessante, na medida em que suas linhas traçadas não fizeram nenhuma concessão aos significados existentes. Assim que terminou a reunião, aproximei-me de sua mãe para conversarmos um pouco sobre o que ela havia dito. Essa idéia ocorreu-me durante sua fala em que dizia que Saionara vinha manifestando desinteresse pela “creche”. Em nossa conversa, disse-me que sua “filha é muito inteligente e educada”; “Saionara adora ficá pegada nos caderno velho e nos livro usado.” Quase todas as tardes, ela vai para a casa das primas mais velhas para brincar de estudar. Segundo a mãe, ela tem aprendido muito, e adora escrever o nome dos irmãos, que são cinco, o nome do pai, da mãe e o das primas. A mãe não entendeu muito bem o motivo pelo qual Saionara vem se desinteressando pela “creche”, mas deixou “pra lá”, saiu e foi embora.

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37 As linhas curriculares traçadas por Saionara, por exemplo, são movidas por desejos que circulam noutros espaçostempos mais livres, “[...] são opções políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu desejo” (DELEUZE, 1995, p. 22). Uma ação política está ligada a percepções; e não são apenas percepções, elas envolvem encontros, relações e experimentações. A nova possibilidade de Saionara foi encontrada com as primas, quando inventa novas relações com o aprender, com o tempo, com o espaço... Com a ajuda de Deleuze, podemos dizer que, ao problematizar um espaçotempo, supostamente homogêneo, como o de sua sala, Saionara fez eclodir sua diferença, sua inexplicável diferença que, no pensamento de Deleuze, não tem explicação justamente porque só há diferença, diferindo. Qualquer tentativa de explicarmos a existência da diferença, ela partirá de uma forma já dada, já conhecida sobre o outro.

valetas andam seus barquinhos de papel? As fugas traçam pequenas modificações, são quase imperceptíveis, mas conseguem reverter processos. Elas não têm território, são clandestinas. Por isso são complicadas, “[...] são um puro movimento difícil de descobrir, elas jamais começam, tomam as coisas pelo meio” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 149). Só nos deixamos levar por essas linhas, quando somos arrastadas por algum desejo. O desejo só circula por meio do rizoma, produzindo mapas. Nunca por um sujeito em si, de corpo fechado, mas inteiramente voltado para o campo da experimentação...

O desejo é coletivo, ou seja, agenciado por múltiplos vetores, movido pelas relações e pelos encontros. Não é um dado natural nascido do fundo de nosso âmago, muito menos decalcado sobre uma infância – vista como fator determinante na vida de uma pessoa adulta – ou de uma gravidez, ou de algo que tenha nos faltado e que ficou escondido num Tomar a filosofia de Deleuze (1998, p. canto escuro da memória. Segundo Deleuze 136) como um acontecimento consiste em e Guattari (1995, p. 7) o desejo é uma coisa “[...] fazer a cada instante uma cartografia do que dá e não que falta, exatamente porque ele que está [...] em pleno movimento, mutante, é produzido, engendrado: “[...] o inconsciente em vias de liberação, traçando este ou aquele funciona como uma usina e não como um teatro trecho para um plano de consistência”; trair a (questão de produção e não de representação)”. pretensa lógica do discurso preponderante na As cartografias são máquinas de luta, elas pesquisa cartesiana, que aprisiona o vivido em categorias preestabelecidas; engendrar novas correspondem também à produção de desejo. O leituras com o cotidiano em que as diferenças desejo, em Deleuze (1998, p. 94 – 167), “[...] sejam valorizadas. Assim, a cartografia é é revolucionário porque quer sempre mais tomada, nesta pesquisa, como uma política de conexões e agenciamentos”. É assim porque pensamento pronta para criar um caminho em não há desejo que não questione as estruturas que a ética e a estética tenham passagem pelo estabelecidas. Dessa forma, o desejo, em Deleuze, se afirma como um agenciamento de cotidiano da educação infantil. ordem política operando por impulsões do fora. Segundo Deleuze, a nossa única chance Assim, as cartografias são construídas como está no devir revolucionário, só ele é capaz de ação política. Ação involuntária, da ordem dos responder ao intolerável. A nossa saída está encontros, e não conseqüência de uma escolha em nossa capacidade de sentir e de perceber o pessoal, premeditada, racionalizada. Em que nos chega: qual o movimento de resposta Deleuze, política e desejo se processam juntos. das crianças diante de um agenciamento Por que fazer da cartografia uma capitalístico, pedagógico, escolar? Por quais Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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38 mergulhados em nosso objeto, chegando, às vezes, a nos confundir com ele, no lugar dos estudos “sobre”, de fato, acontecem os estudos “com” os cotidianos. Somos, no final de tudo, pesquisadores de nós mesmos, somos nosso próprio tema de investigação. Então, em nossos estudos ”com” os cotidianos das escolas, no lugar de perguntas como que significa essa Começar pelo meio implica desviarmos atitude? que quer dizer esse cartaz? que do que já está dado como modelo, e pensar para significa esse texto? qual o sentido dessa fala?, além do que está dado como pronto e acabado, devemos perguntar que leituras “eu” faço dessa não é uma tarefa confortável e nem fácil. O que atitude, cartaz, texto ou fala? é dado como o certo, o verdadeiro, o desejável Assim, em nossos estudos “com” os confere poder, dividendos e reconhecimento. cotidianos das escolas há sempre uma busca por Um dos galhos da árvore do saber sobre o qual se sente tranqüilidade, certeza, segurança nós mesmos. Apesar de pretendermos, nesses estudos, explicar os “outros”, no fundo estamos onde se reconhece o normal, o racional, o nos explicando. Buscamos nos entender fazendo democrático, é o confortável lugar. Estar no de conta que estamos entendendo os outros. meio implica operações de deslocamentos em Mas nós somos também esses outros e outros nós e nos saberes universais e abstratos para “outros”. revertê-los em saberes do cotidiano.

metodologia, pelo menos da forma tradicional como a conhecemos, se Deleuze abomina qualquer mediação que impeça o pensamento de pensar? Ao jeito de Deleuze e Guattari (1995), seria melhor dizermos que a cartografia se parece mais com uma programação, uma longa programação.

Torna-se impossível falar da existência de pesquisas em si. Essa palavra traz muitas marcas, entre elas, a frieza, a distância, a arrogância, a imagem de um saber... Tentei me esquivar dela de muitas maneiras. É provável que isso tenha me tornado mais sensível para perceber as questões que as crianças me colocavam. As fotos, por exemplo, o David queria as suas porque não tinha nenhuma em sua casa e queria mostrá-las a seu pai. Acabei entregando-lhe todas. Não fiquei com nenhuma de suas fotos. As vozes, a Vitória só queria ouvir sua voz no gravador! O Mateus e a Vivi também queriam ouvir suas vozes, contar piadas e falar bobeiras. Os registros: “O que você tanto escreve aí, tia”?. Certamente, Paulo percebeu que eu escrevia “sobre” sua turma e que estava ali na espreita. No entanto, fui caça e caçadora – uma presa fácil: Ao nos assumirmos como nosso próprio objeto de estudo, se coloca para nós a impossibilidade de se pesquisar ou de se falar “sobre” os cotidianos das escolas. Se estamos

Por vezes, quando nós nos explicamos, pensando explicar os outros, falamos coisas próximas daqueles que queremos explicar. Mas, mesmo assim, ainda somos os sujeitos explicados em nossas explicações. Somos caçacaçador [...] (FERRAÇO, 2003, p. 160). - Tia, o que você tanto escreve aí?15 (Paulo) - Você não vai tirá foto hoje, não? (Murilo) - Ô gravadô, ô gravadô, eu vim aqui só pra ti vê e você só tá mi filmando, né? (Daniel) - Pra quê que você quer minha foto? Me dá ela, tia, eu não tenho nenhuma em casa! (David) - Você trouxe minha foto hoje?16 Eu quero mostrá pro meu pai. (David) - Você num vai gravá hoje, não? Ele está com defeito. Então grava no celular. O meu tio tem um que grava a voz da gente. (Eduarda) - Você foi na sala do meu primo. Você não vai ficá na minha sala hoje não? (Cristielen) - Você tem filho? Não. Ué, como é que você é

15 No princípio, eu fazia alguns registros em sala. Ao ficar constrangida passei a fazê-los em casa. 16 Pela segunda vez, eu havia me esquecido de trazer sua foto. Toda vez que ele me via, me perguntava: “Tia, você trouxe hoje?”. Eu já estava no centro de Vitória, quando me dei conta de que havia me esquecido de novo – voltei lá em casa e levei suas fotos.

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39 professora? (Larissa) - Tia, você num vai gravá hoje, não? Ah! Grava. Eu queria ouvir minha voz. (Vitória) - Ah! Você contou mentira pra nós! Olha a luz vermelha. Ela tá gravando! Ela tá gravando! (João)

As crianças escapavam, inclusive, das minhas programações. Quando eu planejava ir para uma determinada turma, logo na entrada, uma criança me abordava e dizia: “Tia, vai pra minha turma, porque hoje tem teatro e você fotografa a gente”; “Ah, você foi pra sala do meu primo e não foi na minha, né”? Acontecia também de eles perceberem a luz vermelha do gravador acesa... aí, uma delas gritava para todo mundo: -Ela botô pra gravar! Ela botô pra gravar! (?) -Tá enganando a gente, né, tia? Ah, bota pra gravar... -Pra quê? (Angela) -Pra gente contá piada pra depois a gente ouvi, tia. (Vivian) -E vocês sabem contar piada? (Angela) -Eu sei a do macarrão e a do Jesus. (Diego) -Qual é então? (Angela) -O cara foi compra macarrão, aí o papagaio falo: ‘Ai que medo do macarrão...é minhoca!’ Aí ele falou: ‘Se você falar de novo eu te jogo na descarga’. Aí ele falou e ele jogou ele na descarga. Aí o papagaio cantô: ‘Eu vô, eu vô pra casa do coco’. [bis] Ele foi cantando assim... [risos] -A gente tem um monte de piada... (Vivian) -É, todo mundo. Mas quem tem mais piada é o Daniel. (Diego) -Vocês contam piada que horas? (Ângela) -Na sala, a tia num deixa, não! Só lá no pátio que a gente conta, não é? (Diego) -É. Só no pátio... (Vivian) -Mesmo se acabá o dever, não pode. (Vivian) -Só que a gente conta. Só que baixinho, né. (Diego) -Tia, eu quero contá uma. (Vivian) -Então conta, Vivian. - A mãe de Jesus falou assim: ‘Vai lá na venda comprar fubá’. ‘Mas eu num to ouvindo!’. ‘Mas vai no lugá que tivé mais cheio!’. Aí, ele foi e passou na porta duma igreja cheia de gente e escutou: ‘Jesus, vem me salvá!’. Aí Jesus falô assim: ‘Eu só vim pra comprá fubá!’ [risos].

“QUEM PINTA FORA DA LINHA FAZ XIXI FORA DO PENICO”: BORROCARAM OS SCRIPTS E DESAPARECERAM OS CONTORNOS... “Tia, hoje é dia da árvore”! “Nossa! Eu nem me lembrava mais disso...”. A árvore tinha em sua copa muitas flores coloridas pregadas sobre o verde das folhagens. Acima da copa, em letra maiúscula, estava escrito: 21 DE SETEMBRO DIA DA ÁRVORE. Centralizado no quadro, estava pregado o cartaz. Uma referência a partir da qual as crianças poderiam se valer para fazerem suas árvores. Para minha sorte, os lápis de cor estavam sem ponta e me coloquei a fazê-las. Nisso, fui passando de mesa em mesa, gravando algumas conversas, fotografando, até me deparar com um grupo que chamou minha atenção pela quantidade de folhas amassadas no chão e pelo agitado movimento. Segundo algumas crianças, as folhas tinham sido jogadas por Brendo. Quando parei de contá-las já somavam sete, olhei uma a uma e todas elas traziam o traçado de troncos e folhas, um diferente do outro. “Tá vendo, não falei que não tava igual a da tia?”. As conversações na mesa giravam em torno da questão colocada por Brendo que, sem esconder os seus sentimentos, contou o que estava acontecendo:

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- Minha árvore tá feia, não consigo fazê uma bonita igual aquela lá. [referindo-se ao modelo pregado no quadro] - Quer que eu faço pra você, Brendo? (Henrique) - Não. (Brendo) - A sua num tá muito feia, não, só um pouco feia, porque você desmanchou um monte de vez. (Henrique) - Isso num tem nada a vê, né, tia? (Jader) - Cada um faz do jeito que qué, num é tia? Cada um faz do seu jeito! (Henrique) - É, mais você falou que tava um pouco feia! (Brendo) - Só um pouco eu falei. Só um pouco porque tava borrocado. (Henrique) - A professora me falô um dia que quem pinta fora da linha faz xixi fora do penico. (Gracinha) - O que significa “fazer xixi fora do penico”? (Angela) - Pintá borrocado, ué. (Gracinha) Vitória

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40 - Tia, o Brendo sempre fica nervoso assim, quando ele briga com a Sara. (Jader) - Quem é a Sara? (Ângela) - É uma garota muito levada que o Brendo namora. (Jader) - Ela estuda aqui com a gente. (Gracinha) - Me mostre quem é ela. (Ângela) - Ela num veio hoje, não. Ela falta muito, tia, e quando ela vem, ela só arranja confusão. (Henrique) - A tia bota ela de castigo, ela foge... (Gracinha) - É mesmo! Ela até sobe em cima da mesa, joga cadeira nos outro. Nossa! Ela é muito bagunceira! (Jader) - Pára de falá dela! (Brendo) - É mesmo, tia, eles briga muito! (Jader) - Eu brigo mesmo! Ela bate ni mim eu bato nela também. (Brendo) - Então você não gosta dela. (Ângela) - Tem vez que eu gosto tem vez que não. (Brendo) - Tia, hoje os menino ficaro mostrando os pinto pra gente lá no banheiro...(Gracinha) - É, mas voceis também tava mostrando as calcinha pra nós. [muita risada] - É mentira, tá? É tudo mentira... (Gracinha) - Olha, Brendo, quanto tipo diferente de árvore que tem lá fora! (Ângela) - Eu sei disso! Mas a tia falô que pra ficá bonita tem que fazê igual a dela pra ela botá lá fora. [ele se referiu a exposição dos desenhos em função do dia da árvore].

Ao tomarmos a idéia de Deleuze de que o mundo é algo a ser decifrado e interpretado, entendemos com isso que a aprendizagem se torna um processo de criação. Nesse sentido, o processo de conhecimento dispensa as mediações e as categorias, na medida em que elas, segundo Jacques Rancière (2004), consistem na arte da distância que se coloca entre o mundo e a criança. É a palavra explicadora do professor, a voz da razão dos especialistas, dos livros didáticos, dos músicos infantis, dos produtores de moda e de programas infantis, que, freqüentemente, rompem com o mutismo da matéria. Entre a criança e o mundo se instala, feito uma vidraça, a palavra interventora, opaca e sem graça que desvela e comunica o sentido que cobre os signos. Aprender não é nada mais que traduzir, interpretar, produzir sentidos. Nesse caso, querer

fazer uma árvore parecida com a da professora fez parte de um “jogo de cintura” do Brendo, ao avaliar os canais pelos quais passariam o reconhecimento do seu trabalho. Desfrutar do reconhecimento de um trabalho exposto no mural da escola foi o sentido atribuído por ele ao tentar fazer uma árvore “bonita”, “igual” à da professora. A questão de Brendo, pelo que pude perceber, não era a árvore em si, mas o desejo de fazer parte de um agenciamento do qual não gostaria de ser excluído. “Pesquisar” o cotidiano escolar, a partir da experiência de nossos personagens mirins, é caminhar para decifrar paradoxos, perceber na repetição processos de criação. A despeito do que é dito “sobre” o cotidiano como sendo um dia igual ao outro, queremos afirmar, juntamente com Deleuze (2000), a partir do seu conceito de repetição, a capacidade de criação das crianças e o potência que elas têm para transformar as relações com os espaçostempos em que a vida escolar é tecida, diariamente: A arte não imita, mas isso acontece, primeiramente, porque ela repete, e repete todas as repetições, conforme uma potência interior (a imitação é uma cópia, mas a arte é simulacro, ela reverte a cópia em simulacros). Mesmo a repetição mais mecânica, mais quotidiana, mais habitual, mais estereotipada encontra o seu lugar na arte, estando sempre deslocada em relação a outras repetições com a condição de que se saiba extrair dela uma diferença para [estas outras] repetições. Isto porque não há outro problema estético a não ser o da inserção da arte na vida quotidiana. Quanto mais a nossa vida quotidiana aparece estandardizada, estereotipada, submetida a uma reprodução acelerada de objetos de consumo, mais deve a arte ligar-se a ela e dela arrancar [uma] pequena diferença [...] (DELEUZE, 2000, p. 462).

Parece que o cotidiano sempre assumiu os acontecimentos ou, pelo menos, opera por lógicas que acabam sendo sempre malvistas, desviantes, inconcebíveis aos olhos de alguns observadores. O cotidiano não se comporta tão bem, do tipo que se enquadre numa definição ou que se deixe representar por categorias;

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41 que apazigúe os conflitos ou que se reconcilie com programas, teorias, projetos, avaliações, metas, conselhos, dogmas. Ao contrário, ele é carente de razão e completamente impessoal. Como já foi citado, para Deleuze (2000), “[...] não há outro problema estético a não ser o da inserção da arte na vida cotidiana”, o que não significa dizer que não sejam feitos exercícios de racionalidade. Há sempre uma nova/velha tentativa de colocar um pouco de ordem no caos, racionalizar algumas medidas, sancionar algumas leis... Arranjar um culpado. Salvar o cotidiano.

- Um montão? Então ela gastou toda a bateria! (Diego) - A bateria de quê? Não. Minha mãe tinha uma máquina só que quebraram tudo. Meu irmão mexeu. Não tem meu carrinho de controle que eu te falei? Tem não sei quanto de tempo que ele não anda mais. Sabe por quê? É porque... Não, é porque a pilha não acabou, não, é porque tem que carregar a pilha pra ele andar. Se a pilha tiver ruim... Ele tem cinco pilhas. Mas não tem carregador lá em casa... (Daniel) - Tia, meu pai trabalha de gesseiro. (Tâmara) - Faz gesso de teto. (Tâmara) - Meu pai também, ele trabalha junto com o pai dela. (Vivian) - Tia, meu pai trabalha de quê, mesmo? Meu pai usa dois carros, um é dele e o outro é do meu tio, mas ele não pode andá, não, porque meu tio não tem carteira assinada. Não... É como é que é o nome mesmo? É uma carterinha. [carteira de motorista - Angela]. É isso! Então, aí meu tio não pode andá. Aí, quando o carro do meu pai fura o pneu, aí ele pega o carro do meu tio. Aí, depois, meu pai conserta. (Daniel) - Sabe de que que minha mãe trabalha? De médica. (Daniel) - De médica... (Tamara) - Não. Minha mãe tem um patrão que ele que é médico. Minha mãe marca as consulta. (Daniel) - Ah, ela é secretária. (Ângela) - Gravado, ô; gravado, ô; oi, cadê você? Eu vim aqui só pra te vê e você tá só me filmando, né? (Daniel)

No entanto, a brutal multiplicidade de vetores, a violenta força que nos arrasta para o meio, fronteira da qual não podemos escapar, nos força a pensar, a divergir e a problematizar o campo educacional. Compreender o cotidiano como um campo problemático é extrair dele movimentos que interrompem/barram o curso de um tempo linear e dualista. No meio desse caminho, nos livramos de nossa culpa, na medida em que o cotidiano não guarda “em si” nada de pessoal, essa ou aquela pessoa. Aí, ao invés de ordenarmos o caótico cotidiano, nos enganando com idéias “sobre”, é melhor desterritorializarmos nele para arrancarmos os elementos para compormos novas relações “com” o aprender, “com” as crianças, “com” todos aqueles (as) que freqüentam a escola, diariamente... - Tia, você num vai tirá foto hoje, não? - O filme acabou. (Angela) - Domingo, tia, nós fomos lá na Pedra da Cebola pra tirá umas fotos lá, mas só que minha mãe pegou a máquina emprestada com a irmã dela. (Daniel) - E tirou as fotos? (Angela) - Tem um monte de foto de bebê. Meu irmão e eu. Andando de bicicleta, pescando. Lá em casa tem foto da minha mãe e do meu pai casando. Ela tá de noiva. (Daniel) - Tem tudo isso, Daniel? (Diego) - Tem meu pai me deitando na cama, quando eu era bebezinho. (Daniel) - Tem muito tempo já. (Daniel) - Depois ela tirou uma foto lá do médico, quando eu era bebezinho, mamando... um monte de foto. (Daniel)

REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. Rio Janeiro: Editora 34,1992. ______. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Relógio D’agua, 2000. Capítulo III. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. V. 1. História da educação no ES: vestígios de uma construção

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42 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. ______. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003 FERRAÇO, Carlos Eduardo. Eu, caçador de mim. In: GARCIA, Regina Leite (Org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP & A, 2003. LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de babel. Tradução de Cynthia Farina. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP & A, 2001. ZOURABICHVILI, François. Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política). In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. Tradutora Ana Lúcia de Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 2000.

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43 A MEDIAÇÃO E O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE EM CRIANÇAS COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL GOMIDE, Marcela Gama da Silva RESUMO Há em nossa sociedade a extrema necessidade de se assegurar meios de constituições subjetivas singulares e de reconhecer a subjetivação do outro como legítima. A compreensão do processo de desenvolvimento da criança com necessidades educacionais especiais, a partir principalmente das relações pedagógicas, que se apresentam permeadas por complexas e múltiplas relações, se faz de extrema importância. Dessa forma, autores como Bakhtin e Vygotsky vêm nos embasar a partir dos pressupostos sócio-históricos, em torno da subjetivação do sujeito na/com a sociedade, como um processo de constituição dinâmico. O referido estudo nos fez compreender a importância da mediação na transformação do modo de ser e estar de alunos com necessidades educacionais especiais que apresentam avanços pedagógicos e superações de limites que inicialmente estavam co-relacionados com seus comprometimentos. PALAVRAS-CHAVE Mediação. Subjetividade. Infância. INICIANDO A REFLEXÃO... Em nossa sociedade, não tem sido considerada a visão que as pessoas com necessidades educacionais especiais (nee) têm de si e do mundo, essa ideia preconceituosa, que perpassa séculos, de que eles não são capazes de falar por si, interfere na constituição de seus modos de ser e estar no mundo, contribuindo para a exclusão social.

Nas últimas décadas, vem se acentuando a defesa da inclusão, porém para uma efetiva inserção social de todos é necessário ultrapassar o pensamento simplista e reducionista sobre a inclusão como apenas o alcance físico do sujeito nos diferentes contextos sociais, há a necessidade de fundamentá-la na equidade social, garantido possibilidades reais de efetivação da inclusão, compreendendo-a como real acesso e permanência na escola dentro de condições viáveis necessárias para que todos os alunos possam ser efetivamente incluídos.

Durante o processo histórico, diversas foram as concepções que rodearam os sujeitos com alguma deficiência na sociedade, o que os Nas práticas que se colocam, as levou a ocuparem diferentes lugares de acordo diferenças existentes nos âmbitos sociais não com o contexto vivido. vêm se apresentando como sinônimos de singularidades, mas sim de inferioridade, muitas É importante ficarmos atentos a quanto vezes classificando e reduzindo os sujeitos a os diversos contextos influenciaram em marcas que passam a constituí-los, levando-os a uma constituição de sujeitos incapacitados assumirem uma concepção estigmatizada. e dependentes, sem poderes igualitários, possuidores de subjetividades homogêneas, Em meio a esse contexto, há a extrema indiferenciados. necessidade de se assegurarem meios de constituições subjetivas singulares e de Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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44 se reconhecer a subjetivação do outro como legítima, afirmando dessa maneira o direito à igualdade e o respeito à diferença, proporcionando oportunidades diferenciadas, de acordo com as necessidades específicas de cada indivíduo. Sendo assim, a escola possui um papel fundamental no desenvolvimento da criança, proporcionando apropriações de elementos da cultura que a insere no curso do desenvolvimento social e histórico. Durante anos os sujeitos com necessidades especiais foram silenciados, dessa forma é necessário que fiquemos alerta aos possíveis sinais por eles expostos, que nos forneçam indícios sobre os conceitos que fazem de si, para que possamos compreender o que vem os constituindo, o que vem sendo determinante na constituição de suas subjetividades, visto que em muitos contextos o silenciamento ainda persiste. As mínimas reações explicitadas pelos alunos no cotidiano escolar podem refletir o sentimento que eles vêm internalizando por meio das interações excludentes ou não as quais eles estão expostos. Uma observação mais detalhada sobre interações desse tipo se faz necessária, para que a partir dela possa ser refletido, junto aos professores e funcionários das escolas, o quanto, tais mediações, são prejudiciais ou não para o desenvolvimento do sujeito e levando todos os profissionais a pensarem mediações mais adequadas junto aos alunos e favorecendo assim, a constituição de crianças mais autônomas e críticas. Diante do nosso grande interesse em estudar esse processo de constituição da subjetividade do sujeito no contexto da escola, e por acreditarmos no outro como grande responsável nesse processo constitutivo da subjetividade, a partir da relação discursiva estabelecida entre os pares, buscamos refletir sobre como esse processo vem ocorrendo nas

escolas, em especial com alunos com nee, que compõem o quadro dos excluídos na escola. Dessa forma, a referida pesquisa buscou problematizar algumas questões essenciais como: que mediações vêm ocorrendo nas escolas? Quais dessas mediações são realmente significativas para essas crianças? Qual o movimento ocasionado pelas mediações dentro da escola e que transformações elas potencializam? A partir dessas mediações quais as possibilidades se abrem para os alunos com nee? Qual a relação das mediações com a constituição da subjetividade em alunos com nee? A compreensão do processo de desenvolvimento da criança com nee, principalmente no contexto escolar, que se apresenta permeado por complexas e múltiplas relações, favorecedoras ou não, na constituição da subjetividade, se faz de extrema importância para que essas mediações e o efeito que elas vêm causando na constituição das subjetividades desses sujeitos possam ser repensados, tornando-se subsídios para um trabalho mais consciente, na busca do desenvolvimento das potencialidades desses alunos. Sendo assim, diante do contexto social em que vivemos, julgamos ser de extrema importância atentar para o processo de subjetivação das crianças pequenas e com deficiência, com o intuito de adensarmos o conhecimento que pouco tem sido trabalhado, em uma busca incansável de possibilitar, socialmente, a afirmação de subjetividades singulares.

DIALOGANDO COM ALGUNS AUTORES E TEORIAS... Com a implementação gradual da educação inclusiva no contexto social e político da sociedade ampliou-se a necessidade de

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45 estudos que dêem base a compreensão dessa complexa realidade, bem como publicação e produção de conhecimentos científicos sobre essa questão, visto que é uma área que apresenta uma grande escassez de investigações.

Ao nos embasarmos nos pensamentos de Vygotsky, para estudarmos a constituição da subjetividade no sujeito a partir da cultura, tornase clara a importância do outro nesse processo, visto que o eu se constitui na relação social, na qual a palavra é fundamental, desempenhando Dentre os estudos já realizados poucos a função de relação social, ao mesmo tempo são os que abordam temáticas sobre mediação e em que constitui o comportamento cultural e da a constituição da subjetividade, principalmente consciência. no que se refere aos sujeitos com nee. Vygotsky vêm nos apontando em seus Dessa forma, autores como Bakhtin estudos que o ser humano já está entrelaçado e Vygotsky vêm nos auxiliar a partir dos às condições socioculturais antes mesmo de pressupostos sócio-históricos, embasando seu nascimento, levando-nos a pensar em uma nossos estudos sobre a constituição do sujeito constituição subjetiva a partir da vivência de na/com a sociedade, como algo dinâmico que mundo no qual está inserido. O autor aponta vai se instituindo. a constituição da subjetividade emergindo a partir das relações intra-subjetivas, sendo Na busca de aprofundar o estudo sobre possibilitado a partir dessas inter-relações, os a mediação e sua influência na constituição processos inter-subjetivos. do modo de ser dos sujeitos com deficiência, recorremos às obras de Vygotsky (1983, 2000) Nesse sentido, é importante refletirmos no que se refere ao estudo sobre o sujeito e em torno da criança com deficiência tendo uma sobre a subjetividade. devolução social, muitas vezes, negativa de sua existência. A criança com alguma deficiência Vygotsky, desde suas primeiras obras, congênita desde o nascimento já está cercada defende a constituição da consciência a partir por olhares e expectativas negativas das de uma origem social, para ele os fenômenos pessoas que lhe são próximas e significativas. subjetivos não existem por si mesmo e nem Este entorno fornece à criança com deficiência afastados da dimensão espaço-temporal, sendo uma imagem, embasada na negação, a qual ela a linguagem a responsável direta por essa é exposta. Portanto, é importante refletirmos constituição. em torno da criança com deficiência tendo uma Por considerar o contexto social e devolução social, muitas vezes, negativa de sua histórico, que envolve o sujeito, como de grande existência. relevância na constituição de sua subjetividade, Buscando estudar crianças com nee destacamos à teoria do desenvolvimento do estamos nos referindo às crianças com algum autor como fundamental para a compreensão da comprometimento, atravessada por todas as constituição da consciência do sujeito. outras questões macro que fazem dela uma Vale ressaltar que, Vygotsky concebe o criança com deficiência, não desconsiderando a homem como um ser, eminentemente social, perspectiva multifacetada como condição dessa e que o seu psiquismo se desenvolve, a partir criança ser sujeito. de processos de internalizações pelo sujeito Bakhtin (1995) vem ao encontro desse de modos de ação realizados pelos outros pensamento Vygotskyano, apontando a sujeitos de seu meio social, constituindo-se, comunicação ideológica como a lógica da constantemente, por meio da interação com o consciência, tendo como abrigo a palavra, que contexto Sócio-histórico do qual faz parte. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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46 diferentes sujeitos da escola principalmente professores e colegas, possuem por meio das manifestações, verbais ou não, e ações Bakhtin destaca em seus estudos o para com a criança, uma grande influência no papel da interação verbal na constituição desenvolvimento da mesma. da subjetividade, ressaltando que a fala não Para além das teorias que desconsideram é apenas uma expressão do pensamento individual, mas uma produção social envolvida as influências sociais e econômicas no processo por uma ideologia. E que a linguagem carrega de constituição do sujeito, buscamos discutir consigo o papel semiótico e a função da que a subjetividade não é inata, ela vai sendo comunicação social por meio das palavras constituída a partir das diversas experiências com seu caráter eminentemente ideológico, as acumuladas pelo indivíduo como parte vivência quais “[...] são tecidas a partir de uma multidão no mundo cultural. de fios ideológicos e servem de trama a todas Como apontado anteriormente, a escola, as relações sociais em todos os domínios” em especial professores e colegas, passam a (BAKHTIN, 1995, p. 41). fazer parte do quadro das pessoas significativas Para Bakhtin, a voz do outro penetra a voz na constituição da subjetividade do aluno desde de quem enuncia em um constante processo de a sua entrada na escola, e é na escola que, em aproximação e distanciamento, quem enuncia, muitas vezes, se legitima o posicionamento necessita do outro para servir de base a sua desse aluno como impossibilitado. enunciação, ela se fundamenta no dialogismo As mediações que ocorrem no ambiente “eu” e “outro”. escolar são grandes responsáveis na constituição O processo de constituição do sujeito da subjetividade do aluno, as práticas de como social e histórico não é algo perceptível, linguagem são de grande importância nesse é algo que se apresenta de forma tênue em um processo não só por meio das palavras, como movimento que vai transformando as diversas também por meio das ações, silêncios e olhares, vozes em uma única voz internamente, sem repletos de estereótipos instituídos na escola. que possamos nos dar conta de que essa voz foi A partir de todo o contexto que envolve a produzida por diversos autores externos. criança com nee, contribuindo significativamente É relevante levantarmos a importância na constituição de subjetividades, nosso estudo da escola e as experiências vividas em seu buscou observar as ações por parte delas contexto, repletas de situações de fracasso e que demonstrassem como elas estavam se êxito nesse processo. Nesse sentido o professor, percebendo no contexto escolar junto aos seus que durante o período escolar ocupa uma pares. posição de referência para a criança, carrega em O estudo de Vaz (2005), A “criança suas falas, seus olhares, suas ações em geral o problema” e a normatização do cotidiano da peso da (des)valorização do aluno. educação infantil, revela como as subjetividades Nada é menos neutro que a maneira de se movimentar na sala de aula, de olhar cada vão se constituindo no interior das instituições um e cada uma, de parar ao lado da carteira de educação infantil, em um processo mútuo em deste ou daquele, de dar a palavra àquele em que sujeitos e instituição se constituem. vai se tornando viva por meio dos signos criados no curso cultural das relações.

vez de a este... Nada é menos neutro e tudo faz sentido. Tudo fala (MEIRIEU, 2005, p. 134)

Toda prática institucional se caracteriza, portanto, por um conjunto de relações específicas marcadas por um plano discursivo que estrutura essas relações. Esse plano se

Os pais e familiares e, quando a criança cresce e começa a freqüentar a escola, os Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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47 Dessa forma, para auxiliar a reflexão sobre a constituição da subjetividade utilizando a perspectiva da Rede de Significação (RedSig) que finca sua base em teóricos sócio-históricos, A autora ressalta que os discursos tecendo possíveis diálogos com outras percebidos por meio das entrevistas demonstram perspectivas na busca da compreensão da que as professoras falam de si e das crianças, realidade. a partir de ideias construídas na/pela relação, A RedSig vem se colocando a permear desenhando, no entanto, subjetividades que diversos campos do saber, buscando quebrar sustentam seus lugares e o lugar do outro na paradigmas já consolidados, mediante um relação. olhar diferenciado em torno dos fenômenos O referido estudo que aponta para uma pesquisados, configurando-se para além de um direção que buscamos refletir em nosso estudo, instrumento de pesquisa, como uma base teórica o quanto as ações e os discursos mediativos ampla que dialoga com consagrados teóricos. produzidos em torno dos alunos com nee vem A perspectiva da Rede de Significações produzindo subjetividades nos mesmos. defende que o desenvolvimento humano se Igualmente importante é o trabalho de dá durante toda a vida, por meio de interações Gonçalves (2008) que nos auxilia a refletir em sociais complexas, mergulhadas em uma malha torno do desenvolvimento dos alunos com nee de elementos de natureza semiótica. Apontando pela via da mediação. O trabalho vem ampliar que as interações entre as pessoas contribuem a nossa reflexão em torno dos processos de para a circunscrição de seu desenvolvimento e mediação, destacando a influência das relações o dos outros sujeitos ao seu redor. macro-sociais nesse processo e a importância É na interação social que a pessoa dá sentido das práticas pedagógicas bem fundamentadas às suas múltiplas e complexas experiências, na busca de uma superação do praticismo, o que constrói valores, concepções e crenças, define e articula papéis e posicionamentos, constitui só se faz possível por meio da reflexão. expressa, a partir da imagem de si e do outro na relação, nos lugares/posições simbolicamente definidos e assumidos pelos sujeitos (VAZ, 2005, p. 4).

sua realidade, reconhece os balizamentos de

uma cultura e tece uma história. Daí o caráter Sendo assim, não se pode pensar em discursivo e semiótico de seu funcionamento subjetivação por outra via que não seja por meio psíquico (PEDROSA, 2002, p. 212) da mediação do outro, ponto que aprofundaremos A perspectiva da RedSig caminha junto à mais adiante. E por acreditar nessa premissa, é matriz sócio-histórica, ao defender a natureza que buscamos aprofundar nosso estudo sobre a constituição da criança com nee, em torno da discursiva e o caráter semiótico da constituição humana. O ser humano se constitui na interação base Sócio-Histórica. com o outro e com o mundo, diferenciando-se As problemáticas que estão surgindo nos nas relações sociais que vão sendo construídas. últimos anos possuem amplitudes as quais,em Quando pensamos na constituição dos muitos casos, não são possíveis de serem solucionadas com base apenas em perspectivas sujeitos que estão inseridos nas escolas, em isoladas de estudo. Dessa forma, chegamos específico, os sujeitos com nee, devemos à perspectiva teórico-metodológica da Rede ressaltar a importância das diversas linguagens de Significações (RedSig) a partir da qual é que se fazem presentes nas interações, como possível pensarmos em um modelo de pesquisa o gesto, o olhar, o contexto e múltiplos outros que busque capturar, ainda que, por meio de uma sinais. Nesse sentido, nos processos mediativos, incompletude, a complexidade dos diferentes o corpo do outro fala, significa, anuncia e denuncia a função desses sujeitos nas relações elementos e suas relações. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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48 sociais, que vão sendo inter-subjetivados educação surge para colocar a criança em seu por eles, em muitos casos, como verdades devido lugar assim como fez com os loucos, as prostitutas e os pobres, surge então com insuperáveis. uma função controladora, ora para disciplinar ora para ensinar conhecimentos técnicos, que posteriormente se dividiria em uma escola para A INFÂNCIA E O PROCESSO DE elite e outra para o povo. CONSTITUIÇÃO DO SER CRIANÇA Mas é entre os séculos XVIII e XIX, Alguns estudos como o de Araújo (1996), a partir da nova ordem urbana higienista Áries (1978), Pinto (1997), Quinteiro (2002) responsável pelo rompimento das famílias com nos fornecem dados históricos importantes a função pública e levando-as ao interior de suas para pensarmos o processo de constituição do casas, que se inicia o cuidado com a intimidade, sentido de Infância no decorrer dos tempos.A proporcionando elementos constitutivos da infância, por muitos séculos, ficou reduzida família conjugal, fazendo com que a criança ao período que ia do nascimento aos 7 anos de seja percebida de outra forma como aponta idade, período em que são necessários cuidados Redin (apud ARAÚJO, 1996, p. 50): básicos à sobrevivência como alimentação, Família e infância fazem parte do projeto proteção e higiene, sendo apenas considerada político traçado pelo estado, que ocupou os espaços (geográficos, sociais, psicológicos), sujeito social a partir do momento em que dava antes ocupados pelas relações espontâneas. É início a sua vida integrada ao mundo adulto. fácil perceber aqui que o espaço de construção da criança se restringiu tanto fisicamente, como socialmente e psicologicamente. Ao contrário do que pareceria à primeira vista, a importância dada à criança na família é fruto de uma nova organização sócio-cultural muito mais que uma descoberta da criança.

A partir do Renascimento, período de transformações culturais, políticas, sociais, e econômicas, é possível observar lentas mudanças no que se refere à etapa de ingresso das crianças no mundo adulto, mudanças que estiveram vinculadas, primeiramente, às classes Como abordamos na discussão acima, a altas e que surgiram acopladas ao conceito de raiz da infância é sustentada pela dependência aprendizagem e escolarização. ao adulto, mesmo na sociedade atual, onde muitas crianças vivem uma infância solitária Mas é nesse processo em que a criança e marginalizada, esse aspecto é pertinente. A começa a ser destacada na sociedade devido criança é vista como deficiente na sociedade dos a uma perspectiva moralista de um forte adultos à medida que apresentam fragilidades movimento promovido pela Igreja, leis e Estado, referentes ao sentimento, segurança e que a Educação surge como instrumento de autonomia. coesão sobre as crianças da época. Os estudos sobre a Sociologia da Por muito tempo, a ideia do filósofo Infância nos apontam que por um longo Rousseau que considera a criança como tempo os processos mentais da criança muito um ser puro e bom necessitando de uma pequena foram considerados uma patologia educação primária vinculada à preservação da do desenvolvimento, sendo vistos como inocência e espontaneidade infantil, influenciou retardo mental devido a pobreza de atividade sobremaneira o pensamento de alguns pioneiros psicológica, a falta do desenvolvimento do da Educação Infantil. intelecto, a produção de conceitos absurdos e deduções incoerentes. Áries aponta em seus estudos que a Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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49 Plaisance (2005) coloca que são históricas as representações da criança com deficiência pautada em uma assimilação com crianças de tenras idades ou com desenvolvimentos mais lentos, fator que acarreta a sobreposição da deficiência sobre a infância. As primeiras declarações dos direitos da criança giravam em torno do direito à cuidados e proteção. Apenas em 1989, as Nações Unidas iniciaram uma tentativa de mudança nesse olhar, ao defender, para além de direitos à proteção, os direitos-liberdade que diziam respeito à opinião, à expressão e à autonomia.

Se a criança conseguir, socialmente, meios de superação da realidade posta, assumindo outros “eus possíveis” diante de seu comprometimento, possivelmente, ela conseguirá ser considerada para além de sua deficiência, focando os olhares sociais para suas potencialidades. O caminho dos processos de compensação e dos processos de desenvolvimento em geral, dependem não só do caráter e da gravidade da deficiência, mas também da realidade social da deficiência, quer dizer, das dificuldades que conduzem a deficiência desde o ponto de vista da posição social da criança. Nas crianças com deficiência a compensação se apresenta em direções totalmente diferentes, dependendo de que situação se tem criada, do meio em que a criança se educa, e que dificuldades surgem para ela devido a esta deficiência (VYGOTSKY, 1989, p. 106, tradução nossa)

Porém, é importante registrar que, para uma criança em que a deficiência sobrepõe à infância, lhe permanece vinculada apenas o direito à proteção, visto que não a consideram capaz de responder por si.

Nos dias atuais, não podemos mais aceitar o discurso sobre a existência de apenas Não há como pensar a criança com nee uma infância, é necessário pensarmos em em meio à inclusão sem abordar Vygotsky, “infâncias”, pois as crianças ocupam diferentes talvez porque suas idéias sejam ainda muito lugares nos diferentes contextos em que vivem. atuais possibilitando uma reflexão em torno do O conceito de infância não é o mesmo para processo de desenvolvimento da criança com todas as crianças, enquanto umas crianças nee no contexto educacional inclusivo de hoje. são traduções da infância como um tempo de ludicidade e desenvolvimento, outras ocupam Vygotsky (1989) aponta que as funções lugares que refletem uma não-infância, repleta psicológicas superiores vão sendo constituídas de obrigações e de dificuldades. por intermédio do meio social o que nos leva a designar a história de desenvolvimento cultural Não é possível tratarmos da infância de da criança como a sociogêneses das formas forma abstrata, sem levar em consideração superiores da conduta. as condições de vida de cada criança, agindo dessa forma, acabamos por dissimular a Ao pensarmos a infância da criança com significação social da infância. Devemos levar deficiência é importante ressaltarmos uma em consideração o caráter heterogêneo das questão que não podemos perder de vista que relações entre adultos e crianças e os valores é o desenvolvimento sócio-cultural da mesma. diversificados fornecidos às crianças. Nesse processo em que o organismo vai sendo penetrado pelo cultural, vemos que o meio social está organizado para agir em sujeitos que possuem o organismo sem comprometimentos, ocasionando muitas vezes a essas crianças comprometimentos na transformação cultural de suas ações, necessitando muitas vezes, de vias indiretas, que a levem do desenvolvimento natural ao desenvolvimento cultural.

Para podermos entender o sentido de infância na atualidade é necessário um olhar mais sensível para o contexto que envolve a criança, no que se refere a fatores como: as formas e as reduções de natalidade, formulação de políticas, situação social, dentre outros. Sendo necessário ainda, desconstruirmos as visões estereotipadas que, muitas vezes, envolvem as crianças.

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50 É importante ressaltar que a criança não é um ser passivo, apenas sendo constituído pela cultura vivida, ela também transforma o meio social no momento em que sofre as influências sociais, em uma via de mão dupla.

Entramos em contato com as famílias dos alunos participantes da pesquisa, com a intenção de que ficassem cientes do processo de investigação que seria efetivado, para que fossem autorizadas as participações dos mesmos, bem como quaisquer imagens realizadas das crianças.

Durante a presença na escola, foram realizadas observações dos momentos O estudo teve como base a abordagem vivenciados pelos alunos nos diversos espaços da pesquisa-ação colaborativa, tendo como do cotidiano escolar buscando analisar as participantes da pesquisa crianças com nee de mediações efetivadas nesse espaço/tempo, tal um Centro de Educação Infantil do município como os sinais exteriorizados pelos alunos que da Serra-ES, seus colegas e professores, tendo forneceram indícios da constituição de suas em vista o interesse em investigar o processo subjetividades. de constituição em alunos com nee que estão Acreditamos que as observações iniciando seus processos de escolarização. realizadas nos diferentes contextos da escola, Inicialmente, realizamos contato com por meio de vídeo-gravação e registro a escola escolhida como campo de pesquisa contínuo em diário de campo, nos forneceram para, por meio de uma conversa informal com importantes indícios sobre o objeto de estudo, o grupo da escola, explanar sobre o objetivo as mediações e os sinais aparentes de suas ações da pesquisa e verificar junto aos professores, a sobre a constituição da subjetividade da criança possibilidade de envolvimento dos mesmos no no interior da escola que serviram de bases processo de investigação, no referido Centro de importantes de reflexão junto aos professores. Educação Infantil. A realização de um diário de campo Diante do interesse do grupo de específico, com questões detalhadas tendo em profissionais da escola em participar da vista nosso objeto de estudo e as questões que pesquisa, entramos em contato com a Secretaria o envolvem, oportunizou registros de todas as de Educação, especificamente, com o setor de informações obtidas nas observações, descrição Educação Infantil para solicitar junto a sua dos acontecimentos, dos espaços e dos sujeitos. chefia a autorização para realizar a pesquisa na Nesse sentido uma preocupação escola. pertinente seria com as práticas docentes, fator Com a autorização da Secretaria de no qual a pesquisa-ação auxiliaria a partir das Educação do município, iniciamos o processo intervenções com o intuito de potencializar o de pesquisa na escola ao final do mês de julho trabalho dos professores. de 2008, tendo como foco uma aluna de 6 anos Um processo interessante para que a com Síndrome de Down e um aluno de 5 anos com suspeita de Autismo. Os referidos alunos análise sobre as práticas se desencadeasse foram se apresentavam para a escola como crianças os ciclos de reflexão com os quais trabalhamos, impossíveis de serem trabalhadas, e suas na busca de que os professores pudessem sentirprofessoras se intitulavam inexperientes para se parte do processo investigativo, não como um trabalharem com alunos que apresentassem objeto de estudo, mas como co-pesquisadores, como aponta Ibiapina (2008, p. 12) necessidades educativas especiais. A PESQUISA NA ESCOLA

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51 A pesquisa-ação nos forneceu aparato para um trabalho colaborativo com o professor, buscando negociar conflitos, pensar novas propostas, tomadas de decisão e ação em comum entre pesquisador e professor, pois só por meio de uma pesquisa-ação com Os indícios observados nos forneceram caráter colaborativo que alcançaremos uma base de dados sobre a qual, semanalmente, investigação emancipatória. trabalhávamos na busca de sintetizá-los, a partir Colocávamo-nos durante o processo de de recortes inter-relacionados, com o intuito pesquisa junto às professoras nas salas de aula, de auxiliar na adequação metodológica para à procura de pensar e fazer juntos outros/novos o trabalho com as crianças e oportunizar aos percursos a partir da prática pedagógica que se professores uma observação e reflexão sobre presentificava nos diferentes espaços da escola. suas práticas em Ciclos de Reflexão. Sendo assim, um movimento diferenciado Buscamos por meio dos Ciclos de e interessante de planejar e refletir as mediações Reflexão inferir discussões e reflexões, acerca realizadas, junto aos professores e pedagoga, da inclusão, da mediação e dos processos de na busca de um olhar sensível aos alunos subjetivação vividos na escola, com a intenção com necessidades educativas especiais e de que os profissionais pudessem expressar seus suas interrelações tornou-se um caminho de pensamentos a respeito do processo de inclusão descobertas de potencialidades. vivido naquele contexto, em torno da criança com deficiência em meio a esse movimento e suas representações sobre os alunos com nee. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O Esses espaços de reflexão nos faziam MOVIMENTO DA PESQUISA repensar as nossas práticas e ampliar os nossos Ao chegarmos à escola, deparamo-nos conhecimentos. Os ciclos de reflexão se estruturaram em espaços onde se era possível com um cenário em que se apresentavam, como colocar em prática, como nos fala Meirieu (2005, foco principal, as duas crianças com nee, com p. 149), a “Doutrina Pedagógica, conjunto as quais os profissionais não sabiam como lidar. de reflexões e proposições que constituem O aluno com características de autismo um corpo e permitem o enfrentamento de um assustava a escola com as suas peculiaridades desafio educativo”. de ser, desestruturando, principalmente, a É de extrema importância ressaltar que professora que considerava como dificuldades a pesquisa-ação tem como princípio investigar principais: a não interação dele com os demais a própria ação educativa, nela intervindo. alunos e a agressividade, incluindo a autoPesquisar na ação supõe aprofundar a agressão. Ciclos de reflexão que proporcionem condições para desestabilizar as práticas de ensino convencionais e valorizar o professor como parceiro da investigação, como partícipe do processo de pesquisa, a medida que ele coopera com o pesquisador no desenvolvimento de práticas investigativas.

No começo do ano eu observei que ele era especial, ele não atendia nada que eu falava, ficava longe, eu tinha que pegá-lo sempre pela mão para que ele acompanhasse a turma. Não larga o bichinho dele o Tuchi e fica rodando pela sala. No parquinho fica apenas no giragira não se envolve com as outras crianças. Ele me bate muito, puxa meu cabelo e leva até o chão, é assim bem difícil, eu não sei como

compreensão e a interpretação da prática docente com o intuito de fortalecer os profissionais em sua prática, auxiliando sua emancipação, na busca de diminuir o pensamento que distancia a prática profissional da pesquisa, por meio de um trabalho colaborativo.

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52 trabalhar com esse aluno. Eu dou atividade e ele rasga, amassa, joga fora... Se deixar ele toma a cola colorida, coloca a massinha na boca. Dá gritos intensos na sala, sempre que é repreendido ele bate a cabeça na parede, já está machucada. [...] Não se alimenta tem que dar na boca dele (Professora de Rebeca)

O fazer junto com os professores proporcionou uma abertura de possibilidades que eram refletidas e posteriormente assumidas pelos mesmos como o caminho para o desenvolvimento de seus alunos.

O referido estudo nos fez compreender a importância da mediação na transformação do modo de ser e estar de alunos com nee, visto que os referidos alunos iniciaram seus percursos no CMEI como alunos estigmatizados e a partir de reflexões sobre as práticas e mudanças nas mediações para com eles e seus pares, os mesmos A aluna com Síndrome de Down se chegam a dezembro com avanços pedagógicos configurava como uma preocupação isolada da e superações de limites co-relacionados com sua professora, pois era uma criança invisível seus comprometimentos. aos olhos da escola por não apresentar atitudes Ao final da pesquisa, foi possível que levassem a uma desestruturação do CMEI. observar, a partir das falas e ações, o quanto Uma menina que não se comunicava, entrava havia sido transformador o processo vivido, e saia da escola sem interações com seus pares visto que o aluno passou a arriscar uma fala, e professora, e que por esse motivo não se participar com outras crianças de momentos na configurava como uma preocupação maior para escola e família, realizar as ações socialmente a escola, que estava focada no menino. estipuladas, realizar atividades pedagógicas, Ela só olhava para baixo, ela ficava quieta entre outras ações que sinalizaram uma nova ou então olhava para mim e ficava muda, constituição do aluno. ela olhava fixo no meu olho, mas ela não Em conversa com a família, foi possível observar a angústia da mãe, no que se referia ao desenvolvimento do filho, já que ela apontava igualmente à professora, ser ele um menino sem muitas potencialidades, que não conseguia interagir e era extremamente agressivo.

O que eu percebo agora... Assim... Que ele é capaz... Avançou na atividade da cola colorida... A massinha... Ele já consegue sentar e brincar com a massinha... Parece que ele descobriu depois da intervenção que brincar com os colegas é muito mais divertido do que brincar sozinho, isso eu achei fantástico... Ele avançou na fala, até meu nome ele já fala... Ele já conta as coisas... Chegou falando que andou de ônibus... Já canta música... Ele faz fila, já consegue pegar a comida e levar até a boca. Quando quer ir ao banheiro ele chega e pede. Ele tem brincado mais com as crianças e nunca mais me bateu (Professora Rebeca)

reagia, tinha hora que eu ficava agoniada, sem paciência. Porque ‘Fala o seu nome, fala alguma coisa, vamos brincar! ’ E nada. E era assim todos os dias e a escola estava toda focada no Heklys, então eu falei ‘Gente eu to com uma criança com síndrome de Down’ Mas o caso do Heklys chamou mais atenção porque ele tava derrubando a sala, porque ele tava derrubando a mesa né? E a Jennifer quietinha não incomodava ninguém... (Professora da Rita)

Por acreditar na importância da mediação no processo de constituição do sujeito iniciamos um movimento no CMEI com o propósito de A menina, por sua vez conseguiu se refletirmos as mediações, pelas quais os referidos fazer enxergar, passou a interagir com os seus alunos estavam envoltos, em uma busca de pares e professora, soltou a fala, avançou novas práticas que os potencializassem. em seu processo de alfabetização e fez com A pesquisa nos possibilitou mediações que os profissionais reconhecessem nela significativas junto aos alunos e seus pares o que potencialidades que antes não eram observadas. ocasionou mudanças gradativas de postura dos mesmos nos diferentes espaço/tempo do CMEI.

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Nossa... ela ta maravilhosa. Gente... olha... na fala, ela não falava, agora fala, não ria ...está sorrindo, a questão de interação de se interar

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53 ali com a turma ela já faz isso.... Teve um crescimento maravilhoso, entendeu?! em tudo. Ela pode crescer, ela pode conhecer, ela pode aprender (Pedagoga)

A pessoa é múltipla porque são múltiplas as vozes que compõem o mundo social e os espaços e as posições que vai ocupando nas práticas discursivas. Essa multiplicidade de vozes e posições que dialogam entre si submetem a pessoa, mas, ao mesmo tempo, preservam a abertura para a inovação e para a construção de novos posicionamentos e processos de significação acerca do mundo, do outro e de si mesma (ROSSETI-FERREIRA, 2004, p. 25).

Os alunos constituídos a partir das mediações potencializadoras apresentaram desenvolvimentos que ultrapassaram os muros da escola, oportunizando-lhes novas vivências no âmbito social e proporcionando a continuidade de um processo dinâmico de subjetivação.

Não poderia deixar de compartilhar o processo subjetivo vivido por mim enquanto Não somente a constituição dos novos pesquisadora nesse contexto mediativo da modos de ser dos alunos com nee deve ser pesquisa, que adentro o ambiente do CMEI apontada, mas também dos profissionais da Mediar com concepções, perspectivas e escola, em especial das duas professoras dos pensamentos que me constituíam no âmbito pessoal e profissional e a partir, como apontado referidos alunos, que foram se constituindo, por Vygotsky, das relações intersubjetivas no decorrer da pesquisa, como professoras de vividas, constituo-me de forma diferenciada, alunos com nee, apresentando reflexões mais após a realização da pesquisa. aprofundadas sobre o processo de Inclusão e práticas pedagógicas diferenciadas. Constituo-me, a partir dos diversos Com certeza foi muito importante para mim, “outros”, uma pesquisadora fortalecida na eu não tinha muito conhecimento da síndrome minha prática, com visões mais amplas em torno de Down, nem sabia como trabalhar, através do processo de constituição da subjetividade e da formação e da prática com a pesquisadora sensível aos diferentes processos constitutivos esse quadro mudou, melhorei os meus conhecimentos e repensei as minhas práticas... dos sujeitos. No começo foi muito difícil mesmo, mas agora, já me sinto capaz de trabalhar com ela e com todos os outros do futuro que vierem (Professora Rita)

Ressalto, ainda, que a pesquisa me levou a refletir em torno das diversas instâncias que me constituem, por meio de mediações distintas, Dessa forma, chegamos ao final da enquanto aluna, pedagoga, professora de pesquisa, certos de que o processo interativo Educação Especial, esposa, filha, dentre outras infinitas e dinâmicas instâncias, afirmando professor/aluno com nee possui uma influência uma constituição singular, mas não una, uma significativa na constituição do ser professor. constituição multifacetada. Destacando ainda que as práticas/novas práticas auxiliam sobremaneira, não só na constituição Infelizmente essas poucas linhas não da criança com necessidade, como também de nos permitiram relatar as dificuldades do fazer novos profissionais, a partir principalmente, da dessa pesquisa e muito menos as inúmeras reflexão sobre os contextos vividos. conquistas e transformações alcançadas no contexto da escola, e ousamos dizer, para além Vale ressaltar ainda, que o processo foi dos muros da escola. Mas acreditamos que transformador para todos os demais alunos da apontará caminhos reflexivos para repensarmos escola que se envolveram na pesquisa, já que as as nossas mediações, em meio às nossas mudanças levaram as crianças a se constituírem práticas educativas, certos de que são elas, mais inclusivas. grandes responsáveis pela constituição de subjetividades. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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54 REFERÊNCIAS ARAÚJO, Vânia Carvalho de. Criança: do QUINTEIRO, Jucirema. Infância e educação reino da necessidade ao reino da liberdade. no Brasil: um campo de estudos em Edufes: Vitória, 1996. construção. In: FARIA, A.L.G. DEMARTINI, Z.B.F. PRADO, P.D.(orgs). Por uma cultura ARIÈS, P. A descoberta da Infância. In: da infância: metodologias de pesquisa com ______. História social da criança e da família. crianças. Campinas, SP: Autores Associados, 2. ed. Ed. LTC: Rio de Janeiro, 1978. 2002. BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da ROSSETI-FERREIRA, Maria Clotildeet, linguagem. 7. ed. São Paulo: HUCITEC, 1995. et al. Rede de significações e o estudo do desenvolvimento humano. Porto Alegre: IBIAPINA, Ivana Maria Lopes de Melo. Artmed, 2004. Pesquisa colaborativa: investigação, formação e produção de conhecimento. Brasília: Líber VAZ, Solange. A “criança problema” e a Livro Editora, 2008. normatização do cotidiano da educação infantil. Revista Urutágua – revista GONÇALVES, Agda Felipe Silva. Inclusão acadêmica multidisciplinar – www.uem.br/ escolar, mediação, aprendizagem e urutagua/007/07vaz.htm. Quadrimestral - n°07 desenvolvimento na perspectiva histórico– Ago/Set/Out/Nov – ISSN: 1519.6178. Paraná, cultural. Vitória, ES: GM Gráfica e Editora, Maringá: 2005. 2008. VYGOTSKY, L. S. A formação Social da MEIRIEU, Philippe. O cotidiano da escola e Mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000. da sala de aula: o fazer e o compreender. Porto Alegre: Artmed, 2005. ______. Obras completas. Fundamentos da Defectologia, tomo 5. La Habana: Editorial PINTO, Manuel & SARMENTO, Manuel J. Pueblo y Educación, 1989. (coord). Crianças: contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho, Centro de ______. Obras completas. Obras Escogidas Estudos da Criança. 1997. III. (1983). PEDROSA, Maria Maria Isabel. Rede de significações: um debate conceitual e empírico. In: ROSSETI-FERREIRA, Maria Clotildeet, et al. Rede de significações e o estudo do desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed, 2004. PLAISANCE, Eric. Denominações da Infância: do anormal ao deficiente. Educ. Soc., www.cedes.unicamp.br, vol 26, n°91, p.405417, Campinas: Maio/ Ago. 2005.

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55 REFLEXÕES SOBRE DIVERSIDADE: TATEANDO PISTAS PARA SE PENSAR A EDUCAÇÃO AMBIENTAL17 POUBEL, Idelvon da Silva18 RESUMO A formação de sociedades justas, com uma ecologia equilibrada e que mantenham em seu seio inter-relações que denotam respeito às diferenças e às diversidades, caracterizam-se como pressupostos que nutrem a Educação Ambiental. Faz-se necessário considerar novas racionalidades como formas de se compreender o cenário atual da crise paradigmática, sabendo que este exercício não é uma tarefa fácil. Assim, as reflexões aqui tecidas podem ser tomadas como provocações para se pensar a vida e a Educação Ambiental a partir do que ela nos oferece com maior riqueza, a diversidade. PALAVRAS-CHAVE Diversidade. Educação Ambiental. Complexidade.

pistas e indícios: diversidade– educação ambiental– diversidade...

Estudiosos e estudiosas afirmam que estamos vivendo um momento de transição paradigmática, onde a “[...] lógica da racionalidade instrumental exclui do caminho Os desafios que se abrem no contexto os sentimentos mais humanos do sentir, da contemporâneo relacionados à educação intuição e da emoção, valores fundamentais são inúmeros. Neste cenário afloram para estreitar os laços entre os seres humanos questionamentos e mais questionamentos e a natureza, de se viver uma solidariedade” acerca das relações que se processam no seio da (TRISTÃO, 2002, p. 180). sociedade atual: Por que tanto individualismo? Como sobreviver em mundo marcado pela O fato é que temos percebido um clamor. competição? Quais valores imperam na atual Em silêncio e nos interstícios das suas relações sociedade marcada pelo consumismo?... as sociedades, os ecossistemas, as diversidades de vidas clamam. Clamam por respeito, por dignidade, por sobrevivência. As formas de se pensar a vida nas mais variadas dimensões – cultural, social, biológica, ambiental – suscitam o debate sobre qual tem sido o papel da educação nesse emaranhado de circunstâncias que tratam 17 Artigo escrito sob orientação da Professora Drª. Martha da formação de valores e nas práticas das ações Tristão (PPGE/NIPEEA/UFES), componente da dissertação de Mestrado Paisagens do entorno e do cotidiano escolar: sociais. um desafio para as práticas docente em Educação Ambiental (Poubel, 2009). 18 Licenciado e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo; Mestrando em Educação PPGE/ UFES, linha de pesquisa Cultura, Currículo e Formação de Educadores; Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em Educação Ambiental – NIPEEA. E-mail: idelvonpoubel@yahoo.com.br.

Buscando pistas para se pensar essas questões, Tristão (2002, p. 177), a partir da Educação Ambiental, apresenta elementos que nos convidam “[...] rever os pressupostos epistemológicos da pedagogia moderna

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56 sustentada em uma razão instrumental, acrescentando a essa pedagogia a compreensão de uma sociedade diferente, múltipla, heterogênea, diversa e cheia de contradições”.

outras formas de se conceber o pensamento como à heterogeneidade, à multiplicidade e à complexidade, emergem19 como possibilidades de se entender o cenário epistemológico em que atravessamos, gerando entrecruzamentos de Por esse fato entendemos que Educação conhecimentos. Ambiental se constitui em “[...] um processo Os múltiplos olhares direcionados a um de aprendizagem permanente, baseado no respeito a todas as formas de vida”, conforme mesmo foco trazem contribuições diferenciadas, destaca Guimarães (1998, p. 28) ao se reportar levando-se em consideração a diversidade dos ao “Tratado de Educação Ambiental para olhares, até “porque estamos numa fase de sociedades sustentáveis e responsabilidade revisão radical do paradigma epistemológico da ciência moderna [...]”, como enfatiza global”. Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 144) ao Não há como dissociar a Educação afirmar que nos dias de hoje têm-se buscado Ambiental da diversidade, e nem a diversidade novas racionalidades, ampliando assim os pode ser pensada sem que se leve em repertórios interpretativos20 e, por conseguinte, consideração as dimensões da Educação os saberes. Ambiental, pois, “tal educação afirma valores Tristão (2004, p. 86) nos apresenta o e ações que contribuem para a transformação humana e social e para a preservação ecológica” cenário epistemológico atual como “[...] uma imbricada rede de conhecimentos que se cruzam, (UNCED apud GUIMARÃES, 1998, p. 28). entrecruzam, extrapolando fronteiras, antes Pensar “[...] a formação de sociedades rigorosíssimas [...]” e que nos fazem repensar socialmente justas e ecologicamente a nossa forma de ser, de estar, de se relacionar equilibradas, que conservam entre si na sociedade e com a natureza. É neste contexto relação de interdependência e diversidade” que a diversidade há muito presente e há (UNCED apud GUIMARÃES, 1998, p. 28), pouco considerada, pelo seu caráter complexo, se constitui em exercícios cotidianos que emerge como um desses vieses que geram os devem permear a Educação Ambiental; “isto entrecruzamentos de saberes e conhecimentos. requer responsabilidade individual e coletiva É nesse sentido que o entrecruzamento a nível local, nacional e planetário”, completa Guimarães (1998, p. 28), citando o “Tratado das diversidades das formas de visões dos mais de Educação Ambiental para sociedades variados sujeitos possibilitam as conexões sustentáveis e responsabilidade global”.

À PROCURA DE NOVaS racionalidades... Com freqüência temos ouvido e lido sobre diversidade. O tema é recorrente nos debates e discussões em círculos acadêmicos, na política, enfim, na vida cotidiana. Não que se tenha virado moda. Ao que tudo parece, as considerações feitas à diversidade e às

19 Morin (1997) argumenta que as emergências são “[...] qualidades que nascem das associações e das combinações [...]” (p.104) entre o todo e as partes e que as imposições correspondem ao “[...] determinismo complexo, as regras, as regularidades, a subordinação dos componentes ao todo, o ajustamento das complementaridades, as especializações, a retroação do todo, a estabilidade do todo, e, nos sistemas vivos, os dispositivos de regulação e de controlo [...]”[sic] (p. 109). 20 Spink e Medrado (1999, p. 47) argumentam que “[...] no cotidiano, o sentido decorre do uso que fazemos dos repertórios interpretativos que dispomos”. Seguindo os passos dos autores, inferimos que os repertórios interpretativos demarcam possibilidades interpretativas num dado contexto, assim como a capacidade de agir sobre ele a partir do sentido que damos ao mundo em que vivemos.

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57 entre as culturas, balizando os fundamentos binária23 que promove a dissolução do sujeito da Educação Ambiental, como aponta Tristão pelos determinismos físicos, biológicos, (2002). sociológicos e/ou culturais. Essa lógica binária aparece nas oposições homemXnatureza; Interessante é refletirmos que, sujeitoXobjeto; e também se manifestam semanticamente, diversidade não se quer quando ao examinarmos as pessoas e a contrária à igualdade como muitas vezes somos nós mesmos; quando não reconhecemos a tentados a pensar, muito menos ela é um simples alteridade nos sujeitos, ou quando tentamos sinônimo para diferença, como nos induz as valorar, quantificar comportamentos e o caráter; classificações21 genéricas dos dicionários. quando nos utilizamos do ponto de vista do A noção de diversidade aqui é contrária a determinismo. Morin convida a pensar nas desigualdade social e a padronização cultural. subjetividades presentes nas dimensões da vida cotidiana, explicitando que ao sentirmoMorin (1997, p. 112), ao tecer seu nos sujeitos vemos aos outros também como pensamento acerca da complexidade, esclarece sujeitos. Nessa subjetividade o sujeito aparece, que “[...] a diversidade organiza a unidade já que nela se fixam o juízo, a liberdade e a que organiza a diversidade”. Nesse caso, vontade moral, entre outros. se analogamente pensarmos nas relações sociedade/natureza22, chegaremos à conclusão Dessa forma, pensamos ser interessante de que nessas relações de retro-alimentação tecer, mesmo que brevemente, reflexões acerca existe toda uma dinâmica que possibilita a do olhar direcionado ao sujeito na modernidade riqueza de trocas de experiências, de fluídos, para, posteriormente, elencarmos considerações de energias, de informações, de saberes, de sobre a diversidade. sentimentos, de reações químicas, de contatos, entre outros, que nos remete a considerar e a entender a diversidade como possibilidade de produção de conhecimentos. SUJEITO DA MODERNIDADE OU SUJEITOS SEM DIVERSIDADE?... Em uma sociedade marcada por uma ciência que rejeitou o diverso, a disjunção As discussões e as reflexões aqui tecidas esquizofrênica do paradigma atual, conforme se traduzem no ponto de partida para se pensar ensina Morin (1996b), nos remete à lógica como a ciência moderna tentou anular a diversidade em prol de uma homogeneização da racionalidade e de discursos totalizantes e excludentes ao mesmo tempo, que rejeitam as diferenças, as subjetividades e o caos como possibilidades “[...] de uma interpretação 21 A idéia de “classificação” nos remete ao pensamento dialógica [das realidades] e também para a presente na modernidade, marcado pelo paradigma dominante que apresenta a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência produção de sentidos para novas aberturas moderna, pautada num saber pronto, fechado em si mesmo, conceituais” (TRISTÃO, 2004, p. 94). num produto organizado e estruturado seqüencialmente que deva ser transmitido em tópicos menores, regido pela lógica de reprodução do conhecimento, como afirma Souza Santos (2000). 22 A barra está entre as palavras não no sentido de separar, de desconectar, mas, sim, no de mostrar que mesmo sendo uma relação intrínseca, existem especificidade e peculiaridades apresentadas em ambas às categorias de análise semântica, mesmo reconhecendo que a sociedade é parte da natureza, e, que a natureza é algo inerente a uma sociedade.

23 Baseado em Morin (1996) entendo a lógica binária como a lógica da separação arbitrária dos componentes de um conjunto fenomenológico secular; a lógica que dicotomiza e, que, ao tomar “partido” em determinado assunto ou evento, elimina a outra possibilidade.

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58 Podemos perceber que essa tentativa de homogeneização da racionalidade, como afirma o geógrafo Milton Santos (2001, p. 115), deixa “[...] coexistirem outras racionalidades, isto é, contra-racionalidades, a que equivocadamente e do ponto de vista da racionalidade dominante, se chamam “irracionalidades””, porém, continua o autor, “[...] a conformidade com a Razão Hegemônica é limitada, enquanto a produção plural de “irracionalidades” é ilimitada [...]”, sendo que “é somente a partir de tais irracionalidades que é possível a ampliação da consciência” na busca de “[...] outras formas de ser racional” (SANTOS, 2001, p. 126). De acordo com Milton Santos as

designado por solidariedade, que considera nas diversidades e no senso comum, fontes imanentes de conhecimentos. Boaventura Santos (2000, p. 74-75), alerta ainda que [...] só a partir da modernidade é possível transcender a modernidade. Se é verdade que a modernidade não pode fornecer a solução para excessos e déficits por que é responsável, não é menos verdade que só ela permite desejá-la. De fato, podemos encontrar na modernidade tudo o que é necessário para formular uma solução, tudo menos essa solução.

Pensando nas conseqüências geradas no seio dessa discussão, torna-se possível elencar [...] contra-racionalidades, se localizam de dimensões variadas – política, educacional, um ponto de vista social, ente os pobres, os econômica, etc. – que se estabelecem na migrantes, os excluídos, as minorias; de um sociedade atual alcançada e atravessada a partir ponto de vista econômico, entre as atividades marginais, tradicional ou recentemente da dinamicidade com que os eventos vão se marginalizadas, e, de um ponto de vista processando no mundo globalizado. geográfico, nas áreas menos modernas e mais “opacas”, tornadas irracionais para o uso hegemônico (2004, p. 309).

O mundo está doente, afirmam os estudiosos, e o sujeito concebido pela ciência moderna não tem conseguido responder aos questionamentos e demandas acarretados pela humanidade como o aquecimento global, o surgimento de novas doenças, a fome, as intolerâncias, as guerras e a violência. Dessa forma, esse sujeito tem estado refém do conhecimento racional que ele mesmo concebeu na modernidade. Tentando apontar pistas para se romper com o enclausuramento provocado pela racionalidade hegemônica, Boaventura Santos (2000) nos mostra que o modelo de conhecimento gerado na modernidade comporta duas faces: o conhecimento-regulação e o conhecimento-emancipação. Segundo o autor, o conhecimento-regulação parte de um estado de ignorância tido como caos, para a um estado de saber designado por ordem. Já o conhecimentoemancipação se manifesta como uma trajetória entre um estado de ignorância designado pelo autor por colonialismo, a um estado de saber,

Bauman (2001; 2003), utiliza o termo “modernidade líquida24, trazendo à idéia “fluidez” e/ou “liquidez”, como metáfora para se referir ao momento atual da história da modernidade. Sua discussão parte da análise da sociedade atual e os problemas que dela demandam: o embate entre o indivíduo25 e o cidadão tendo a crescente individualidade e a conseqüente perda do sentimento de

24 Para Bauman (2001) fluidez, maleabilidade, flexibilidade e a capacidade de moldar-se em relação a infinitas estruturas, são algumas das características que o estado liquefeito confere às tantas esferas dos relacionamentos humanos por ele citados. O autor afirma que vivemos um tempo de transformações sociais aceleradas, nas quais as dissoluções dos laços afetivos e sociais são o centro da questão. A liquefação dos sólidos explicita um tempo de desapego e provisoriedade, uma suposta sensação de liberdade que traz em seu avesso a evidência do desamparo social em que se encontram os indivíduos moderno-líquidos. 25 Embora no decorrer do texto aproprio-me e faço uso do termo “sujeito”, por entender que este afina com as idéias de receber e praticar ações, de promover e de ser promovido os/ nos espaçostempos, utilizo também os termos “indivíduo”/ “indivíduos”, não como incoerência conceitual. Esses são recorrentes em autores como Bauman e Elias, entre outros que compõem o arcabouço teórico desta reflexão, e, dessa forma, para não alterar as idéias desses autores, me utilizo de seus repertórios conceituais.

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59 coletividade e comunidade; o consumismo e as conseqüências dele advindos; a busca pela liberdade, segurança e a emancipação; e o trabalho. Todos esses eventos descritos por Bauman se manifestam em uma temporalidade espacial, imbuída de paisagens26 onde se transcorrem os fenômenos sociais. A partir desse referencial, que tem como tema uma nova visão sobre a modernidade, voltada à fluidez das relações, do individualismo e do dinamismo, se faz necessário pensar num retrato da atual e imediatista sociedade fazendo uma analogia entre os “fluídos” propostos por Bauman (2001, p. 08) e os indivíduos: “[...] assim, para eles [indivíduos/fluídos], o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas por um momento [...]”. Elias (1994) ensina que a sociedade é uma rede de funções e alerta que as mudanças nas formas de vida em sociedade independem do planejamento individual, sendo que ele existe só porque existe um grande número de pessoas e que ele só funciona porque muitas pessoas – individualmente – querem e fazem certas coisas. O pensador coloca que a questão capital que permeia nossa sociedade é o fato de como tornar possível criar uma ordem social que possibilite a harmonização entre o desenvolvimento pessoal do indivíduo e, por outro lado, pelas exigências feitas pelo trabalho coletivo de muitos no tocante à manutenção do social como um todo. Por mais que tentemos separar o indivíduo da sociedade, percebemos que o desenvolvimento de um está intimamente ligado ao do outro.

26 Tomo aqui emprestado da geografia os conceitos referentes à paisagem e ao espaço presentes no pensamento de Milton Santos quando discute “A Natureza do Espaço” (2004a), e “Pensando o Espaço do Homem” (2004b), indicando que a paisagem é construída por uma acumulação desigual de tempos. De posse dessa idéia de sobreposição dos tempos e a partir desse pressuposto, podemos pensar nas “paisagens” do ambiente escolar onde se acumulam diversidades de espaçostempos de vivências dos sujeitos que compõe uma comunidade escolar, traduzidos na heterogeneidade, nos conflitos e nas possibilidades em que essa comunidade pode se traduzir.

Como alerta Morin (1996, p. 112), ao tratar das relações unos/diversos, “um dos traços mais fundamentais da organização é a aptidão para transformar diversidade em unidade, sem anular a diversidade [...], e também para criar a diversidade na e pela unidade”. Dessa forma, implicitamente, pode-se perceber que as ações geradas pelos indivíduos, a partir do trabalho, como o instrumento em que os espaços são apropriados e suas paisagens são transformadas, vão determinar, de certa forma, a conduta e a socialização desses indivíduos, imbuídos de funções27 no seio de seu convívio social, podendo acarretar conseqüências em diversos níveis. Há de se pensar ainda, a partir de Elias (1994), que as desigualdades em que se processam as relações entre os indivíduos, acabam gerando conflitos de ordem social, que se manifestam em dimensões perpassando a vida cotidiana dos sujeitos como a perda da consciência ético-ecológica, a falta de políticas públicas (ou a falta de vontade e de engajamento políticos?!) que atendam satisfatoriamente as necessidade e carências dos despossuídos componentes dessa sociedade formada por indivíduos. Refletindo a partir do pensamento de Milton Santos (2004a) acerca das imposições geradas pela globalização e pegando carona nas reflexões que Bauman (2001) tece sobre o atual estágio da sociedade, é possível constatar que um dos mais evidente e nocivo comportamento da sociedade é protagonizado e aflorado: o consumo. Nos últimos decênios, propagou-se um comportamento geral de comprar não apenas 27 Norbert Elias (1994) diz que essa rede de funções existente nas associações humanas não surgiu à soma de vontades, isto é, da decisão comum das pessoas individuais. E, no entanto, esse contexto funcional é algo que existe fora dos indivíduos. Cada função é exercida de uma pessoa para outras. E cada uma destas funções está relacionada com terceiros: cada uma depende das outras. Portanto, é essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação às outras, a ela e nada mais, chamamos sociedade.

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60 promove o desprendimento no sentido afetivo entre os sujeitos e enaltece os sentimentos de posse eterna dos bens lucrativos, buscando-se sempre o “ter”, o retorno financeiro; tendo em vista a noção de que os bens que são adquiridos são altamente perecíveis, descartáveis, voláteis e, decorrente a isto, são rapidamente rotacionados por aqueles que possuem condições de se incluir no circuito globalizante do consumo. Essa situação traz como conseqüências o consumismo, a maior demanda por fontes energéticas, a crescente extração de matérias-primas e o aumento na produção de rejeitos químicos/ industriais/residenciais sem uma destinação Na busca da satisfação pessoal, os adequada. Somados a esses fatores está a divisão indivíduos não têm levado em consideração as que se impõe entre os que podem consumir e os diversidades, a consciência ético-ecológica que não podem consumir, degradando ainda mais as privilegia a coletividade. Os reflexos dessas relações sociais entre os indivíduos, como ensina ações trazem à tona problemas em dimensões Giddens (1997, p. 233) sócio-econômico-ambiental, que mantém interAssim, um grupo pobre pode viver juntamente relações intrínsecas independentes do grau de com outro muito mais rico em, digamos, dois intensidade e da ordem em que esses eventos se bairros vizinhos da mesma cidade; as privações processam. de um podem ser causalmente relacionadas à produtos e serviços, mas, também a aquisição de status junto às pessoas com quem os indivíduos se relacionam seja o empregado, o empregador ou até mesmo, o par amoroso. Assim, esta sociedade é vista e se porta como consumidora, e não mais como produtora, não existindo um limite para a busca da ostentação momentânea. Desde que se fuja à regra da padronização visual e comportamental os itens que simbolizam a ostentação agora, em pouco, tempo, se tornam itens de necessidade às próprias pessoas que, cada vez mais, deixam de adquirir bens para se entregar e viver para eles.

As relações interpessoais, segundo Bauman (2003), suspiram um saudosismo descaracterizado do pré-conceito do termo que não se dá pelas interações entre os indivíduos, mas, por uma busca da eficácia de mútua vigilância, de saber quem é você no limitado universo homogêneo de sua vizinhança. Nessa sociedade individualizada cria-se uma situação dúbia, pois, ao mesmo tempo em que se investe em proteção, se fecha em “guetos”, provocando o enclausuramento. Os mesmos indivíduos “presos” buscam formas de expurgar os novos vilões da realidade-cela, a fim de gozar da liberdade com uma segurança almejada, trazendo à discussão o que Elias, citado por Bauman (2001, p. 39), nos apresenta no embate entre liberdade e dominação: “[...] a sociedade dando forma à individualidade de seus membros, e os indivíduos formando a sociedade a partir de suas ações na vida, enquanto seguem estratégias plausíveis e factíveis na rede socialmente tecidas de suas dependências”. A mutabilidade de relações também

riqueza do outro, mas não como uma conexão direta, nem mesmo talvez mediada pela sociedade nacional.

De posse das considerações feitas, podemos inferir que as implicações da crise paradigmática que vivemos podem ser visualizadas na forma de como os espaços são apropriados e afetados pelos indivíduos/ sujeitos, sendo transformados em lugares/ espaços e espaços/lugares. Essas transformações metamorfoseiam-se e se exprimem de maneira contundente nas paisagens cotidianas, que são as partes visíveis desses espaços. Dessa forma, a fim de se tentar entender a crise paradigmática em suas múltiplas manifestações, podemos pensar, seguindo os passos de Milton Santos (2004a, p. 107), que quando “[...] reconstruímos a história pretérita da paisagem, [...] a função da paisagem atual nos será dada por sua confrontação com a sociedade atual”, seu modo de produção vigente e as relações e funções tecidas pelos indivíduos dessa/nessa sociedade.

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61 Vemos aqui que a forma de conhecimento concebido pela modernidade não dá conta de responder às questões e aos anseios demandados pelas sociedades atuais imersas em diversidades, em ambigüidades, contradições e redes complexas de relações, havendo a necessidade de se buscar novas racionalidades para se pensar a construção do conhecimento.

BUSCANDO, ENCONTRANDO Complexidade, diferenças e diversidades dos/nos sujeitos...

Não considerar a diversidade é desprezar que o conhecimento se constrói com a presença do outro. Para combater o pensamento único devemos saber acolher as diversidades, as diferenças (LINHARES, 2000), e, então, É preciso levar em consideração a combatermos a “[...] crise do desconhecimento complexidade das relações que são tecidas do conhecimento do mundo que tem buscado cotidianamente, valorizando as dimensões dos a unidade, a uniformidade e a homogeneidade” saberes outrora multifacetadas, excluídos e (TRISTÃO, 2004, p. 89). tidos como não válidos pela ciência moderna. Morin (1997, p. 113) ensina que a unidade Por certo, esse caminhar perpassa pela se manifesta na diversidade, sendo que, a partir complexa rede que se constitui na sociedade da diversidade se possibilita a riqueza de trocas e que dela engloba todas as dimensões, desde “[...] que estabelecem relações complementares a política, a educação, as relações familiares, entre as partes diferentes e diversas, bem como etc., para, enfim desembocar na formação e entre as partes e o todo”. Para exemplificar constituição do “sujeito encarnado28”, outrora esse pensamento podemos pensar, entre outros, percebido apenas como indivíduo, como nos mais diferentes ecossistemas recheados de engrenagem na então “máquina mundo” da elementos bióticos e abióticos, cada um com sua função na cadeia trófica. Cada um, uno, modernidade. porém, diverso e não menos importante na Bauman nos dá esperanças de como este complexidade da produção da vida. sujeito pode emergir da situação atual que a Entendemos, então, reportando-nos à sociedade o coloca, a fim de se desvencilhar das Trocmé-Fabre (2003, p. 133), que a complexidade amarras dessa modernidade outrora sólida: O indivíduo de jure [falso] não pode se “[...] é a conseqüência daquilo que caracteriza a tornar indivíduo de facto sem antes tornar- vida: a diversidade [...]” e que “sem o sentido se cidadão. Não há indivíduos autônomos do complexo, é impossível compreender aquilo sem uma sociedade autônoma, e a autonomia que nos cerca, os outros e... a nós mesmo” da sociedade requer uma auto-constituição (TROCMÉ-FABRE, 2003, p. 135). deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros (BAUMAN, 2001, p. 50).

No momento atual em que vivemos os sujeitos estão se fechando cada vez mais em nichos sociais restritos, chamados por Bauman (2003) de “guetos”, como anteriormente mencionado, criando formas de relacionamento onde São estranhos à vida o verbo ter e o verbo ser que, com a ajuda dos nossos filtros culturais, imobilizam a vida numa rede de relações onde a posse, o pertencer, os rótulos, são agentes de exclusão, que não traduzem em nada a dinâmica do processo de devir que é, no entanto, o único que pode nos definir (TROCMÉ-FABRE, 2003, p.135).

28 Sobre esse conceito, com a palavra, Denise Najmanovich (2001, p. 28): “[...] o sujeito encarnado é o nome de uma categoria heterogênea, facetada e de limites difusos. Uma categoria não clássica, já que os elementos que a formam não compartilham de uma propriedade comum, mas têm entre si um “traço de família”. “O sujeito encarnado desfruta do poder da criatividade e da escolha, mas deve assumir o mundo que cocriou” (NAJMANOVICH, 2001, p. 29). Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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62 assim como as comunidades escolares, como sistemas, sendo que “o sistema [sociedade, comunidade escolar] é uma unidade que vem da diversidade, que liga a diversidade, que comporta a diversidade, que organiza a diversidade, que produz a diversidade”, sendo que suas múltiplas formas de (auto)organização e relações “[...] cria, produz, mantém, desenvolve diversidade o paradigma que dominou nossa cultura por interior ao mesmo tempo em que cria, mantém séculos parece estar aceitando a falência de e desenvolve unidade” (MORIN, 1997, p. 139).

A diversidade das formas de pensar, dos ambientes naturais, das culturas, das variedades animais e vegetais, segundo Tristão (2004, p. 94), se constitui em um dos mecanismos que nos auxiliam na “[...] interpretação dialógica da realidade [... e na...] produção de sentidos para novas aberturas conceituais”, tendo em vista que seus pressupostos. O pensamento pelo qual o mundo é mecânico, tudo é determinado por leis naturais, o corpo humano funciona como uma máquina, a sociedade é competitiva pelo progresso material ilimitado, o homem é superior à mulher são premissas que estão sendo reavaliadas e mesmo desafiadas por vários campos científicos da contemporaneidade (TRISTÃO, 2004, p. 93).

A Educação Ambiental, como dimensão da educação, tem nos mostrado, a partir das reflexões até aqui tecidas, principalmente em Morin (1997) e Tristão (2004), que devemos considerar a idéia da unidade da espécie humana, sem encobrir sua diversidade. Há uma unidade humana, que não é dada somente Nos ambientes escolares é preciso pelos traços biológicos do ser, assim como reconhecer a diversidade das identidades há a diversidade marcada por outros traços (TROCMÉ-FABRE, 2003, p.137), haja vista que não os psicológicos, culturais e sociais. que ela considera as redes de vivência, pois Compreender o ser humano é entendê-lo dentro “[...] frente à diversificação dos lugares de de sua unidade e de sua diversidade. aprendizagem, é necessária, urgente mesmo, Tristão (2002, 2004) tem nos levado a a produção de novas metodologias e novos pensar a necessidade de se conservar a unidade referenciais teóricos que possibilitem analisar a produção, a estrutura e a troca de conhecimento” do múltiplo e a multiplicidade do único, (TRISTÃO, 2004, p. 89). A educação, “[...] mostrando que a Educação Ambiental, e esse implica aprendizagens individuais e coletivas é o desafio que se coloca para professores e nas quais esteja embutida uma relação com as professoras, deve ilustrar o princípio de unidade expectativas tanto individuais quanto coletivas” e de diversidade em todos os seus domínios. (TRISTÃO, 2002, p. 172). Este poder de conexão social atribuído à diversidade por Tristão (2004, p. 92), a partir dos estudos de Deleuze Referências e Guatarri (1996), confere à heterogeneidade e à multiplicidade o caráter multidimensional BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca do sujeito e das relações sociais estabelecidas, por segurança no mundo atual. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, presentes no conhecimento rizomático. 2003. Devemos, então, considerar que a diversidade nos conduz à compreensão do que ______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Morin (1997, p. 139) chama de unitas multplex, Jorge Zahar Editor, 2001. ou seja, conceber a unidade de/na diversidade; associar o uno ao diverso “[...] como duas DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil noções não só antagônicas ou concernentes, platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2. ed. v. 1. mas, também complementares”. Podemos, Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. então, em Morin, compreender as sociedades, Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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63 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Milton Santos. 4ª edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004a. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 73-134.

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GUIMARÃES, Mauro. A Dimensão ambiental SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de na educação. 2. ed. Campinas: Papirus, 1998. Alice: O social e o político na pós-modernidade. LINHARES, Célia Frazão Soares. Saberes 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997. docentes: da fragmentação e da imposição à poesia e à ética. Revista da Faculdade de ______. A crítica da razão indolente: contra o Educação da Universidade Federal Fluminense desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, – UFF: Profissão Docente: teoria e prática. nº 2000. 2. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. ______. Um discurso sobre as ciências. 9. ed. MORIN, Edgar. O método I: a natureza da Porto: Edições Afrontamento, 1997. natureza. 3. ed. Portugal: Publicações EuropaAmérica, 1997.

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64 TROCMÉ-FABRE, Hélenè. Reaprender a Complexidade. In: CARVALHO, Edgard de Assis; MENDONÇA, Terezinha. (Orgs.). Ensaios de complexidade. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2003.

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65 EDUCAÇÃO AMBIENTAL E FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS E EDUCADORES/ AS AMBIENTAIS A PARTIR DAS VERTENTES: TRADICIONAL, CRÍTICA E PÓSCRÍTICA RIBEIRO, Flávia Nascimento29 RESUMO O presente texto tem como objetivo analisar algumas questões sobre a formação de professores/ as e educadores/as, articulando as principais tendências/concepções do campo de atuação profissional, com as principais vertentes filosóficas, inseridas nas discussões contemporâneas da modernidade e pós-modernidade. Assim, são apresentadas quatro vertentes em relação à formação de professores/as e as tendências da Educação Ambiental. Para isso, uma incursão na trajetória da Educação Ambiental é apresentada, a fim de entender essa trama entre as concepções filosóficas e as tendências com as quais nos deparamos diariamente nos espaços formativos e informativos. Dessa forma, no sentido de situar a Educação Ambiental, bem como a inserção dos educadores/as ambientais como sujeitos militantes e engajados, é que apresento algumas das bases conceituais, que orientam suas escolhas teórico-metodológicas e práticas. PALAVRAS-CHAVE Educação Ambiental. Formação. Tendências filosóficas.

INTRODUÇÃO Neste artigo abordarei a concepção (ou concepções) de Educação Ambiental, tomando como ponto de partida as bases do pensamento filosófico presentes nas vertentes das teorias: Tradicional, Crítica e Póscrítica. A intenção é articular essas vertentes às tendências que influenciam a formação de professores/as, a Educação Ambiental e a formação dos educadores/as ambientais. Para isso, fundamentei-me em Carvalho (2002), que aborda o processo formativo dos docentes, engendrado nas perspectivas do pensamento sócio-histórico e filosófico.

Segundo a autora, no processo de transição paradigmática em que vivemos (da Modernidade à Pós-Modernidade), não há um hiato na formação dos profissionais da educação; ao contrário, coexistem alguns desafios, que são inseridos em sua formação, como aqueles presentes nos princípios do paradigma dominante, como a “[...] racionalidade cognitivo-instrumental, que se apresenta atrelada ao princípio do conhecimento regulação/dominação do Estado e do mercado” (CARVALHO, 2002, p. 16), mas, também, nesse momento transitório, há a instauração de outro paradigma, que Santos (2000) chama de emergente, contrário ao paradigma dominante.

29 Educadora Ambiental; Graduada em Pedagogia e Especialista em Educação pela UFES; Mestre em Educação e Doutoranda em Educação na linha de pesquisa Cultura, Currículo e Formação de educadores/as. Atua no Núcleo interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em Educação (NIPEEA), da UFES. E-mail: fnrflu@ yahoo.com.br

O autor nos diz que o paradigma emergente pressupõe um conhecimento científico (paradigma de um conhecimento prudente), mas é concebido em comunhão com o paradigma social (para uma vida decente), promovendo uma interlocução entre o conhecimento científico e o social.

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66 Então, a crise do paradigma dominante tem, como atravessamento, a turbulência profunda no modelo da racionalidade cognitivoinstrumental. Segundo Santos (1988), tal racionalidade científica passa por um período de instabilidade irreversível, de forma que é a partir da Modernidade que se irá transcender a própria Modernidade. Nesse sentido, os paradigmas moderno e pós-moderno (dominante e emergente respectivamente), segundo Carvalho (2002, p. 21), “[...] influenciam na atualidade as tendências/concepções sobre o professor como profissional”. A autora apresenta quatro tendências e propostas, dentro dessa perspectiva transitória: 1) o professor/a como profissional competente; 2) como profissional reflexivo; 3) como profissional orgânico-crítico; e 4) como profissional pós-crítico. Tristão (2007) faz uma articulação dessas tendências com a Educação Ambiental.

efervescência nos anos 90. Sua proposta está inserida em uma “[...] nova epistemologia da prática voltada ao conhecimento profissional” (CARVALHO, 2002, p. 24), em que sua linha de pensamento está direcionada à reflexão na ação, num movimento recursivo (ação-reflexãoação), em que se valoriza muito mais o pensar na ação, a fim de repensar as estratégias. Assim, Essa tendência que considera a prática pedagógica fundamental para a formação do/a professor/a reflexivo/a e pesquisador/a não a articula com outros contextos formativos, como a formação inicial ou mesmo o contexto político (TRISTÃO, 2007b, p. 4).

Já o profissional crítico é aquele inserido no engajamento das decisões políticas, de forma a intervir nas práticas pedagógicas e desencadear a construção de uma nova realidade. Essa tendência vê esse professor/a como um intelectual orgânico, que é uma idéia defendida por Antônio Gramsci, e a pedagogia crítica se faz presente nessa vertente.

A quarta e última tendência apresenta o/a A formação do professor/a, como profissional competente, tem como princípio o professor/a a partir da perspectiva pós-crítica, domínio de técnicas, de forma a atingir metas inserindo-o/a no debate pós-moderno. De conforme condições estabelecidas, nas quais acordo com Carvalho (2002, p. 26), essa formação, segundo Carvalho (2002, p. 23), [...] a tradução do professor como um “[...] é referida a uma noção de competência profissional pós-crítico, por sua abertura e incompletude, traz em si a forma do concebido como alternativa à qualificação, sendo recriada e vivido pós-estrutural, pós-moderno, que, não e atualizada pelas equipes de recursos humanos se opondo ao crítico, busca ampliar e repensar das grandes corporações capitalistas como os campos de possibilidade do saber, fazer e critério para avaliação de acesso e permanência poder do professor como profissional. no emprego”. Articulando essas quatro vertentes Essa idéia de profissional competente em relação à formação de professores/as às acaba sendo incorporada à dinâmica da tendências da Educação Ambiental, farei uma instituição escolar, em que se consideram pequena incursão na trajetória da Educação as competências, as “[...] habilidades Ambiental, a fim de entender essa trama entre desvinculadas das dimensões de lugar, de uma as concepções filosóficas e as tendências com as inserção no meio ambiente, de tempo e espaço quais nos deparamos diariamente nos espaços [...]” (TRISTÃO, 2007b, p. 3), numa concepção formativos e informativos. de eficiência, proativa e utilitarista. É notável que a dimensão socioambiental A segunda tendência traz a idéia de um esteja inserida no cotidiano de muitos professor como um profissional reflexivo, que professores/as e educadores/as e que, com aparece na década de 80, mas emerge com maior o passar dos anos, em especial das últimas duas décadas, ela venha se disseminando no Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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67 ambiente escolar e não escolar brasileiro. Essa inserção tem como campo de possibilidades as recomendações emergentes de conferências, dos fóruns e demais espaços de deliberação, articulação e produção de saberes que se propõem a discutir as questões ambientais e a proposição de políticas públicas. Se fizermos uma análise da trajetória da Educação Ambiental no Brasil, observando as crescentes discussões em torno da inserção da dimensão ambiental na educação, perceberemos que, como na pesquisa realizada por Samyra Crespo, do Instituto de Estudos da Religião (ISER).30 Essa temática já está, de alguma forma, presente no cotidiano do brasileiro, mas é claro que existem fragilidades em relação à forma como está sendo realizada nos diversos contextos formativos e espaços/tempos – na associação de moradores, na escola, na cooperativa de agricultores, pescadores, etc. Tais fragilidades estão, conforme Guimarães (2004) nos fala, intrinsecamente relacionadas com o atual modelo civilizatório, e os contextos formativos não são, de forma alguma, neutros. Ao contrário, estão de alguma maneira contribuindo para essa hegemonia (de racionalidade-instrumental), objetivando-a com fins conteudistas e informativos e não numa educação emancipatória e crítica. Dessa forma, no sentido de situar a Educação Ambiental brasileira, bem como a inserção dos educadores/as ambientais como sujeitos militantes e engajados, apresento algumas das bases conceituais, que orientam suas práticas teórico-metodológicas.

Educação Ambiental Complexa, Educação Ambiental Para a Sustentabilidade, dentre tantas outras que tenho presenciado e que são apresentadas e defendidas por diversos autores. Segundo Layrargues (2004), essa diversidade de nomes retrata um momento da sociedade em que há necessidade de ressignificar os sentidos identitários e fundamentais dos diferentes posicionamentos político-pedagógicos. Todas essas nomenclaturas também evidenciam que a Educação Ambiental está em construção e se auto-organizando historicamente, sendo seu enfoque nas práticas educativas relacionadas com a questão ambiental. Todo esse processo de ressignificação faz parte da construção desse campo epistemológico que, sendo uma dimensão da educação, também apresenta muitas de suas tendências. Assim, Tristão (2004), ao abordar a sustentabilidade, faz um resgate sócio-histórico da construção do campo epistemológico da Educação Ambiental, mencionando Sorrentino (1995), no que diz respeito às diversas classificações das “[...] educações ambientais como a: conservacionista, educação ao ar livre, gestão ambiental e economia ecológica” (SORRENTINO, 1995, apud TRISTÃO, 2004, p. 57). A autora acrescenta que essas denominações se apresentam a partir de duas grandes bases em que a Educação Ambiental foi construída: o ambientalismo e a militância. Logo, as mais diversas tendências de Educação Ambiental têm como base ora a militância ora o ambientalismo ou os dois conjuntamente.

Carvalho (2004) afirma que os que convivem com a Educação Ambiental podem A Educação Ambiental tem sido o centro constatar a surpreendente diversidade sob de muitas discussões, a começar por suas o guarda-chuva dessa denominação. Sendo diversas nomenclaturas como: Ecopedagogia, assim, a leitura de alguns autores/as sobre Alfabetização ecológica, Educação Ambiental as tendências da Educação Ambiental e da Crítica, Emancipatória, Transformadora, profissionalização da formação do professor fizeram com que eu as dividisse, para fins didáticos, em três grandes “guarda-chuvas”: 30 Pesquisa realizada por Crespo, intitulada “O que o brasileiro tradicional, crítica e pós-crítica. Esclareço pensa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável”.

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68 que meu intuito não é delimitar uma fronteira entre tais tendências, até porque essa “linha” é tênue e ora estamos/somos inspirados por uma tendência, ora estamos/somos por outra, porque somos praticantes e encarnados nesse processo dinâmico e permanente que é a construção do conhecimento e de nossa identidade. Além disso, , neste trabalho, usei três grandes vertentes, conforme mencionado, para situar a Educação Ambiental a partir delas.

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SEUS ENDEREÇAMENTOS Há diversas práticas agrupadas sob o conceito de Educação Ambiental, que têm sido categorizadas como popular, crítica, socioambiental, desenvolvimento sustentável, formal, não-formal, dentre tantas outras. Sob esse grande leque de denominações, é interessante pensar que essas práticas educativas estão voltadas a um tipo de sujeito e que Carvalho (2004) usa o conceito de endereçamento31 para compreendê-las. Assim, seguindo essa idéia abordada pela autora, nota-se que nessa idéia de destino (endereço), [...] estão compreendidas a produção de cada uma destas educações ambientais como artefatos que são construídos dentro de uma dinâmica de forças sociais e culturais, poderes e contra-poderes, num círculo de interlocução, onde o destinatário também constitui o artefato que a ele é endereçado (CARVALHO, 2004, p. 16).

Educação Ambiental? Quem é esse público? Que fundamentos teórico/práticos estão falando para esse receptor? Conforme Ellsworth (2001), há uma relação entre o que está do lado de “fora” (nos cursos de formação, os materiais didáticos, os filmes socioambiental-educativos, os encontros, os eventos, etc. e o que está na “psique humana” (p. 12), o que está dentro de cada sujeito, numa relação em que “[...] há uma necessidade de endereçar uma comunicação para alguém” (p. 24). Nesse sentido, trarei as tendências da Educação Ambiental tecidas durante esta pesquisa.

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E ALGUMAS TENDÊNCIAS A noção de Educação Ambiental Tradicional conserva os interesses dominantes da lógica do capitalismo e tem como pressuposto teórico o cientificismo cartesiano, a racionalidade, o individualismo e está pautada na base filosófica positivista. É muito comum, nessa tendência, a tomada de medidas pontuais e paliativas na crença de que a realidade será mudada, e a ênfase recairá nas pequenas ações (partes) pode mudar todo o conjunto. Logo, as fragmentações do saber e das ações estão na base dessa vertente, fazendo com que a visão que o educador/a ambiental tem do mundo seja traduzida por uma lente reduzida, fragmentada, enfocando mais a parte do que a totalidade, “[...] como na máquina fotográfica que, ao focarmos em uma parte, desfocamos a paisagem” (GUIMARÃES, 2004, p. 27).

Os modos de endereçamento a que me refiro relacionam-se com as tendências da Educação Ambiental, com a formação e profissionalização dos professores/as e No campo prático e metodológico, essa educadores/as ambientais e devem ser pensados de forma a questionar: a quem é destinada a tendência faz com que a prática educativa tenha enfoque no sujeito e na sua mudança de comportamento. Isso se dá pela transformação 31 Segundo a autora, o conceito de endereçamento provém dos do sujeito, mas ele não é levado a sair do estudos de cinema e já foi aplicado à educação por Ellsworth estado que Paulo Freire se referia como o de (2001). “Esse conceito é útil para destacar como se constitui, consciência ingênua para a tomada de uma a quem se dirige, se endereça cada uma destas educações” consciência crítica. (CARVALHO, 2004, p. 16). Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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69 O importante para essa vertente não é pensar processos educativos que associem a mudança pessoal à mudança societária como pólos indissociáveis na requalificação de nossa inserção na natureza e na dialetização entre subjetividade e objetividade; mas sim pensar na transcendência integradora, a transformação da pessoa pela ampliação da consciência que rebate nas condições objetivas, como caminho Uma Educação Ambiental único para se obter a união com a natureza e conservacionista resulta dessa perspectiva, para reencontrar uma essência pura que ficou na qual a ênfase na conservação da natureza, perdida em nossa objetivação na história. com medidas desde alarmantes a pontuais, faz Esses aspectos levantados por Loureiro com que as questões ambientais sejam vistas resultam na ênfase na dimensão individual e tratadas como um problema ecológico, não considerando, de certa forma, as dimensões (as vivências práticas de sensibilização são bastante recorrentes), fazendo com que o sujeito social, econômica, ética, política e cultural. O não compreenda a sua relação com o meio sujeito praticante dessa tendência se aproxima ambiente, com os outros sujeitos e consigo dos técnicos e educadores/as dedicados aos mesmo. Além disso, como podemos observar, aspectos ecológicos preservacionistas e a Educação Ambiental é entendida como um conservacionistas. ato comportamental e pouco relacionado com Loureiro (2004), ao abordar a questão o coletivo. Dessa forma, fica comprometida da Educação Ambiental no Brasil, faz uma a “[...] problematização e transformação da reflexão muito pertinente sobre como a realidade da vida, despolitizando a práxis educativa” (LOUREIRO, 2004, p. 80). tendência tradicional influenciou, de certa forma, o movimento ambientalista, em que Em suma, essa vertente de Educação os sujeitos militantes não tinham percepção Ambiental da Educação Ambiental como um processo [...] não contempla a perspectiva da educação educativo, resultante de um movimento se realizar no movimento de transformação histórico. Isso contribuiu para uma prática do indivíduo inserido num processo coletivo de transformação da realidade descontextualizada e voltada para a resolução socioambiental como uma totalidade dialética de problemas ambientais, mas apenas de ordem em sua complexidade. Não compreende que física e biológica. a educação é relação e se dá no processo Essa perspectiva é simplista, pois não leva em consideração a complexidade da sociedade, mas, dá importância à soma das ações individuais, lembrando o famoso jargão: Cada um fazendo a sua parte! Nessa linha de pensamento, a relação sociedade/natureza, de acordo com Tristão (2007), é abordada de forma comportamentalista, dualista e reducionista.

Assim, os aspectos social, econômico, cultural e político, em geral, não fazem parte da agenda de ações nessa perspectiva, e o seu ponto de equilíbrio está no indivíduo, a fim de que alcance sua condição como ser humano harmônico e integral. Cabe ao ato educativo ser o eixo para a mudança de comportamento compatível com um determinado padrão idealizado de relações coerentes entre sociedade e natureza. Segundo Loureiro (2004, p. 80),

e não, simplesmente, no sucesso da mudança comportamental de um indivíduo (GUIMARÃES, 2004, p. 27).

Outra perspectiva, que contribui para a superação dessa visão dicotômica e simplista das questões ambientais, é a que recebe as denominações de Educação Ambiental Crítica, Emancipatória e Transformadora. Eu as denomino como transgressoras da lógica dominante e coloco sob o guarda-chuva que

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70 tem como eixo a Teoria Crítica,32 cuja dimensão de sua história, agindo e refletindo sobre a sua educativa carrega como premissa uma crítica realidade e transformando-a. Loureiro (2004, p. à sociedade de consumo e à racionalidade 81) acredita que essa tendência: instrumental. Baseia-se no princípio de que as certezas Em relação à teoria e prática, há um são relativas; na crítica e autocrítica constante e movimento dialético, que considera as ciências na ação política como forma de se estabelecer e os valores culturas interligados. No tocante à movimentos emancipatórios e de transformação crítica à ciência, é revolucionária, porque visa social que possibilitem o estabelecimento de à superação da idéia dicotômica entre sujeito novos patamares de relações na natureza. e objeto. Essa tendência tem como objetivo o Dessa forma, ela é vista como uma desvelamento da realidade, inserindo o processo educação transformadora da realidade, por educativo nela. Além disso, contribui para a meio de ações individuais e coletivas. Portanto, transformação da sociedade contemporânea, de busca redefinir o modo como nos relacionamos forma questionadora, no âmbito sociopolítico. conosco, com o meio ambiente e com os Para Loureiro (2004, p. 66-67), o contexto outros sujeitos, num movimento de diálogo formativo dessa vertente no Brasil se dá a partir e compreensão dessas dimensões, de forma de uma matriz em que a educação é vista como um interconectada. elemento de transformação social, ocorrendo de forma integrada e desencadeando mudanças de valores e atitudes com ação política. Para isso, o sentimento de indignação, quanto às formas de dominação do capital, tem que estar presente, a fim de que os sujeitos compreendam a dinâmica organizacional complexa da sociedade, por meio, também, do exercício da cidadania.

Outro aspecto relevante dentro dessa perspectiva é quanto aos procedimentos metodológicos, que têm na “[...] participação e no exercício da cidadania princípios para a definição democrática” (LOUREIRO, 2004, p. 82), em relação às práticas sustentáveis, à nossa sobrevivência e à do planeta, historicamente situado.

Nesse sentido, pensar a Educação Ambiental nessa tendência é tratá-la como sendo originária das Pedagogias críticas e emancipatórias. Muitos autores/as e educadores/ as ambientais trabalham dentro dessa perspectiva. Assim, a Educação Ambiental crítica (transformadora, emancipatória e libertadora) tem pontos de destaque na educação, como processo permanente, coletivo e inserido no cotidiano, sendo os sujeitos construtores

Pensar a educação como transformadora é admiti-la como práxis social, desenvolvendo uma abordagem multidimensional e integradora dos problemas sociambientais, entendendo esse processo educativo como um processo libertador (sair do processo que Paulo Freire denominou de Pedagogia bancária, para a Pedagogia questionadora e reflexiva).

32 A Teoria crítica está vinculada às reflexões e formulações produzidas pela conhecida Escola de Frankfurt “[...] ela foi criada por um grupo de intelectuais, com o objetivo de contribuir com pesquisas que permitissem a compreensão crítica e global da sociedade contemporânea. Para isso, se utilizou da teoria e do método dialético formulado por Karl Marx em diálogo com outros pensadores, dentre eles Weber, Hegel e Freud, em busca da construção de uma visão integradora de ciência e filosofia e de uma atuação transformadora das relações sociais” (LOUREIRO, 2005, p. 325).

A construção de um projeto político fundamentado nessa concepção de Educação Ambiental, segundo Carvalho (2004, p. 18), “[...] seria o de contribuir para uma mudança de valores e atitudes, contribuindo para a formação do sujeito ecológico”, em que a prática educativa esteja fundamentada na formação desse sujeito praticante individualmente e socialmente e situado historicamente. Por fim, Lima (2004, p. 104) traz contribuições relevantes em relação a essa tendência.

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71 A educação ambiental emancipatória pretende, como diz o próprio nome, ampliar os espaços de liberdade de indivíduos e grupos que dela participam, transformando as situações de dominação e sujeição a que estão submetidos através da tomada de consciência de seu lugar comum, de seus direitos e de seu potencial para recriar as relações que estabelece consigo próprio, com os outros em sociedade e com o ambiente circundante. A outra vertente denominada como Educação Ambiental Pós-Crítica e que não se contrapõe à crítica, no âmbito filosófico, pode ser entendida como uma ampliação da Teoria Crítica, envolvendo as noções de identidade, subjetividade, cultura, etnia, sexualidade, gênero, raça, ecologia. As relações de saberpoder, representação e multiculturalismo também estão no bojo dessa noção. Compartilhando das idéias de Tristão (2004), vejo a Educação Ambiental nessa concepção complexa como pertencente a um paradigma para a sustentabilidade, em que a construção de sociedades sustentáveis é seu objetivo. Esse tipo de sociedade abre o leque para que sua constituição seja realizada por meio da tessitura, em que a economia seja viável, envolvendo e respeitando as diferenças culturais. O aspecto político nessa sociedade é equitativo, desencadeando numa justiça social e ética. Tristão (2004, p. 49) nos diz ainda que esse paradigma amplia a noção de desenvolvimento, pois “[...] implica defesa do meio ambiente para que as próximas gerações possam sobreviver e inclusive incrementar sua qualidade de vida”. Tal modelo tem como objetivo, quando fala de eqüidade social, a eliminação da pobreza, das lutas de classes e de toda forma de desigualdade. Para uma melhora na qualidade de vida, a sustentabilidade supõe mudanças de padrões de consumo, de relações sociais, implicando mudanças também “[...] institucionais, de poder

e governabilidade mundial que respeitem as diferenças éticas, culturais e civilizacionais” (TRISTÃO, 2004, p. 49). Dessa forma, Tristão (2004, p. 55) nos propõe três princípios fundamentais para a Educação Ambiental nessa tendência: a sustentabilidade, a complexidade e a interdisciplinaridade. Atualmente, a autora, como coordenadora do Grupo de Pesquisa e Educação Ambiental, do qual participo, está estudando e trabalhando na inclusão da transdisciplinaridade como princípio. Para Tristão (2004, p. 55), nesses princípios, há uma reciprocidade e complementaridade em que “[...] o pensamento complexo é o veio encontrado para o conhecimento da educação ambiental; a sustentabilidade, a grande necessidade; e a interdisciplinaridade [a transdisciplinaridade], o caminho epistemológico e metodológico [...]”. Nessa perspectiva, a idéia de complexidade, pelas suas representações multifacetadas, aceita as contradições inerentes aos sujeitos. A transdisciplinaridade, como instrumento do pensamento complexo, tem um “[...] enfoque mais ousado do conhecimento. Aproximase da idéia de transversalidade de conceitos [que] ficam mais soltos para estabelecerem articulações, sem territórios, nem fronteiras”. (TRISTÃO, 2004, p. 111). Por último, a sustentabilidade que, conforme a autora, deve estar articulada a diferentes dimensões humanas e, “[...] que depende de criação de situações, de táticas e práticas sustentáveis pelas diferentes sociedades” (p. 53). Como se vê, a sustentabilidade envolve vários aspectos humanos e deve ser pensada de forma interconectada, relacionada com as dimensões econômicas, espiritual, ética, cultural, social, etc., para o desenvolvimento de práticas sustentáveis e mudanças de valores, atitudes e comportamentos dos sujeitos praticantes.

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72 sentimento de pertencimento é fundamental [...] emerge como subversão à ordem na construção dessa cultural ambiental nessa econômica dominante e como fruto da sociedade, pois:

Nesse sentido, a sustentabilidade

insatisfação humana contra um modelo falido de desenvolvimento cunhado na racionalidade cognitivo-instrumental. Inscreve-se numa racionalidade mais aberta à imprevisibilidade e se estabelece a compreensão de uma realidade complexa, de uma interdependência entre os processos [...] (TRISTÃO, 2005, p. 255).

Dentro da lógica que Santos (2000) postula, na qual as formas de conhecimento são: a regulação e a emancipação, a Educação Ambiental, com base nesse autor e dentro da tendência, se aproxima do conhecimentoemancipação,pois parte de um estado de colonização (o autor denomina estado de ignorância) para a busca de uma solidariedade (denominada saber). Portanto, pensar em práticas e sociedades sustentáveis é pensar numa outra lógica que se opõe à racionalidadeinstrumental. É ver, na complexidade em que os sujeitos sejam/estejam envolvidos, a participação, o empoderamento e tudo que esteja em conformidade para assumir a capacidade de exercer o poder sobre o que os afeta ou os pode afetar futuramente. Um dos possíveis caminhos para que a sustentabilidade seja a linha mestra dos sujeitos e das sociedades se dá por meio da cultura ambiental, que, segundo Cartea (2005, p. 270), ainda está sob um terreno tênue pois, “La ‘cultura ambiental’ de la immensa mayoria de la población es aún muy superficial, y ello a pesar de que la información científica disponible y que circula sobre el malestar ecológico se incrementa exponencialmente”. Dessa forma, a concepção de Educação Ambiental no paradigma da sustentabilidade pressupõe um equilíbrio entre os aspectos sociais, econômicos e do meio ambiente pautado num conhecimento-emancipação, em que o sujeito praticante esteja empoderado e apropriado de sua cultura e de sua realidade social para intervir, quando necessário, para a mudança desse cenário. Vale ressaltar que o

[...] é preciso reconstruir nosso sentimento de pertencer à natureza, a esse fluxo de vida de que participamos. A educação ambiental levanos também a explorar os estreitos vínculos existentes entre identidade, cultura e natureza, e a tomar consciência de que, por meio da natureza, reencontramos parte de nossa própria identidade humana, de nossa identidade de ser vivo entre os demais seres vivos (SAUVÉ, 2005, p. 317). Por fim, percebo que, em geral, as práticas de Educação Ambiental têm acontecido, nos últimos anos, de forma enredada, e não se resumem somente a uma tendência, mas ora se apresentam mais tradicionais, ora mais críticas e, em outros momentos, caminham para uma perspectiva pós-crítica.

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73 Tadeu da (Org.). Nunca fomos humanos: nos ______. Tecendo os fios da educação ambiental: rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, o subjetivo e o coletivo, o pensado e o vivido. 2001. (Coleção Estudos Culturais, v. 7). Revista Educação e pesquisa. São Paulo: FEUSP, v. 31, n. 2. p. 251-264, 2005. GUIMARÃES, Mauro. A formação de educadores ambientais. Campinas: Papirus, TRISTÃO, M; FASSARELLA, R. C. Contextos 2004. (Coleção Papirus Educação). de aprendizagem. In: FERRARO JÚNIOR, Luiz Antônio (Org.). Encontros e caminhos: LOUREIRO, C. Frederico B. Teoria crítica. formação de educadoras(es) ambientais In: FERRARO JÚNIOR, Luiz Antônio e coletivos educadores. Brasília: MMA, (Org.). Encontros e caminhos: formação Departamento de Educação Ambiental, 2007. v. de educadoras(es) ambientais e coletivos 2, p. 87-96. educadores. Brasília: MMA, Diretoria de Educação Ambiental, 2005. p. 325-332. ______. A educação ambiental e os contextos formativos na transição de paradigmas. In. ______. Educação ambiental transformadora. Reunião Anual da Associação Nacional de PósIn: LAYRARGUES, Philippe P. (Coord.). Graduação e Pesquisa em Educação, 30, 2007, Identidades da educação ambiental Caxambu. Anais... Caxambu: ANPED, 2007. 1 brasileira. Brasília: Ministério do Meio CD, GT22. Trabalho.Tristao.doc. Ambiente, 2004. p. 62-84. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. ______. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1988. SAUVÉ, Lucie. Educação ambiental: possibilidades e limitações. Revista Educação pesquisa, São Paulo: FEUSP, v. 31, n. 2., p. 317-322, 2005. ______. Uma cartografia das correntes em educação ambiental. In: SATO, Michele; CARVALHO, Isabel (Org.). Educação ambiental: pesquisa e desafios. Porto Alegre: Artmed, 2005. TRISTÃO, Martha. A educação ambiental na formação de professores: redes de saberes. São Paulo: Annablume; Vitória: Facitec, 2004. ______. Saberes e fazeres da educação ambiental no cotidiano escolar. Revista Brasileira de Educação Ambiental. Brasília: Rede Brasileira de Educação Ambiental, n. 0, nov. 2004.

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74 EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SOLIDARIEDADE: CARTOGRAFANDO FUTUROS POSSÍVEIS RODRIGUES, Ana Raquel de Souza33 RESUMO Em tempos de transição paradigmática, somos convidados a produzir novas práticas e conhecimentos a favor da emancipação social e da solidariedade. A investigação das potencialidades nas redes tecidas pelos jovens em Educação Ambiental deu visibilidade à solidariedade e à utopia ecológica como dimensões fundamentais às práticas educativas emancipatórias, principalmente num contexto de Educação Profissional, em que valores, tais como individualismo e competitividade, são enaltecidos por serem condições de empregabilidade. Os alunos jovens, inconformados com as atuais condições de vida, investem em táticas locais de superação da opressão e da exclusão instituídas no seio da globalização hegemônica e se colocam como agentes no processo de transição paradigmática e societal, cartografando, assim, futuros possíveis. PALAVRAS-CHAVE Educação Ambiental. Solidariedade. Juventude.

INTRODUÇÃO O paradigma dominante da ciência moderna, pretensiosamente neutro, foi construído a partir do pressuposto de uma exterioridade e independência do objeto representado e do sujeito cognitivo. O conhecimento tornar-se tanto mais científico e racional quanto mais são diferenciadas as identidades dos sujeitos e dos objetos. A partir dessa lógica dual, outros polos emergem como fundamentais para a interpretação do mundo: natureza e cultura, homem e mundo, local e global, teoria e prática, objetivo e subjetivo, ciências naturais e ciências sociais, entre outros. Essa cisão na forma de pensar, que leva a um modo de saberexistir fragmentado, tem dificultado a percepção da complexidade do mundo e de tudo quanto não se pauta pelos princípios epistemológicos do paradigma dominante.

33 Mestre em Educação na linha Cultura, Currículo e Formação de Educadores. Pedagoga do Centro Federal de Educação Tecnológica do Espírito Santo (atualmente, Ifes).

No entanto, todo o avanço científico e tecnológico não tem garantido a todos as promessas de bem-estar social e econômico, mas aumentado os processos de desigualdade e exclusão social; por isso a racionalidade cognitivo instrumental, base da ciência moderna, tem sido questionada por novas formas de pensar/estar no mundo (SANTOS, 2005, 2006). Devido às inúmeras crises socioambientais que nos assolam, decorrentes da crença exacerbada no homem como senhor da natureza, há de pensar novas formas de relação entre o homem e a natureza, mais solidárias e éticas, que sejam potencializadoras de tessituras sustentáveis entre a natureza e a sociedade. Pela complexidade e abrangência, a Educação Ambiental faz interface com várias áreas de saber e demanda movimentos de religação e associação do que está disjunto, colocando-se, nesse contexto, como um saberfazer potencializador da religação do homem e mundo, da natureza e cultura,

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75 do sujeito e objeto. Por ser uma temática transversal, a Educação Ambiental desponta no cotidiano escolar como possibilidade de “reencantamento da educação” (ASSMAN, 1998) pela introdução de novas racionalidades e outras formas de ser/estar/sentir/fazer/pensar o mundo. Portadora de novas sensibilidades e postura ética e sintonizada com o projeto de uma cidadania ampliada (TRISTÃO, 2004), a Educação Ambiental apresenta uma gama de possibilidades para o desenvolvimento de práticas pedagógicas mais emancipatórias. Em tempos de transição paradigmática, somos convidados a produzir novas práticas, atitudes e conhecimentos a favor da emancipação social e da solidariedade: a visão hegemônica e dicotômica da ciência é questionada pelo reconhecimento de que as “grandes narrativas” são expressões da vontade e do domínio e controle dos modernos e, portanto, não são naturais, mas discursos construídos. A natureza como objeto passivo de conhecimento e dominação pelo sujeito da razão é uma das produções discursivas dessas grandes narrativas.

tecnológicas, mas compreendê-lo criticamente, possibilitando o diálogo com outras racionalidades, entre as quais o senso comum: “a ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento se deve traduzir em sabedoria de vida” (SANTOS, 2006, p. 91). Ainda de acordo com Santos, novas formas de pensar começam a se configurar a partir de outras concepções: Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da irreversibilidade, a reversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (SANTOS, 2006, p. 48).

Diante das crises vividas na contemporaneidade, emerge um novo olhar sobre o conhecimento. Aquele conhecimento concebido como verdade absoluta e de caráter imutável já não dá conta de responder às necessidades do nosso tempo. Há uma busca desenfreada por restituir a unidade perdida do saber. A globalização, as revoluções tecnológicas, as mudanças no mercado de trabalho e a crise ambiental são movimentos que implicam noções de invasão, contato e transferência. Por isso, é necessário desenvolvermos uma atitude de inquietação epistemológica que promova a reflexão e a religação dos fragmentos despedaçados pelo discurso dominante da ciência moderna no intuito de visualizarmos e/ou introduzirmos racionalidades mais éticas e estéticas no campo educativo.

Carvalho (2006), Guimarães (2004) e Tristão (2004) consideram a temática ambiental como uma das sínteses possíveis da crise dos paradigmas da ciência e da organização social, pois o modo de pensar da racionalidade moderna não dá conta de responder aos problemas ambientais. Esses problemas não podem ser compreendidos apenas pela racionalidade técnica, porque é produto das contradições e das crises da razão e do progresso, e isso exige pensamento e sensibilidade complexos, bem como a rejeição de todas as formas de reducionismo. Nesse sentido, a crise ambiental expõe a insuficiência dos fragmentos Este texto é parte da pesquisa de despedaçados pela ciência moderna e reivindica 34 desenvolvida no Cefetes – mestrado novas aproximações para que se compreenda a complexidade das interações entre sociedade e Centro Federal de Educação Tecnológica natureza. Não se trata de negar o valor do conhecimento científico e de suas aplicações

34 Dissertação intitulada “Ger(ação) inconformista: as potencialidades emancipatórias nas artes juvenis em Educação Ambiental”, defendida em maio de 2009.

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76 do Espírito Santo (atualmente, Ifes) – junto aos/às estudantes jovens e objetivou investigar as potencialidades epistemológicas emancipatórias inscritas nas redes tecidas pelos/as jovens em Educação Ambiental, a fim de pensar práticas educativas mais solidárias com o próximo e com a natureza. A trajetória de pesquisa em que partilhei a metodologia para os estudos com o cotidiano escolar sinalizou oito dimensões de potencialidades epistemológicas inscritas nas artes ou práticas dos/das alunos/ as jovens: cidadania, solidariedade e ética, criação e estética, prazer e autoconhecimento, sensocomunização do conhecimento científico, entrelaçamento de saberes, pedagogia dialógica e utopia ecológica. Essas dimensões não estão dissociadas, mas se apresentam enredadas nas práticas em Educação Ambiental. Contudo, para fins didáticos, foram organizadas em oito dimensões, duas das quais, neste texto, farei menção: solidariedade e ética e utopia ecológica.

outras formas de pensar, sentir, estar no mundo diferentes da lógica imposta pela racionalidade moderna, as quais, num contexto de educação profissional, trazem outros valores questionadores do individualismo e da competitividade instituídos no seio da globalização excludente. A ordem imperialista de mercado, que se apropria da natureza como fonte inesgotável de recursos e privilegia uma leitura instrumental das questões socioambientais, é problematizada pelas práticas juvenis em Educação Ambiental.

A EDUCAÇÃO AMBIENTAL PELAS REDES DO CONHECIMENTO EMANCIPAÇÃO Estamos vivendo uma época de transição paradigmática em que os pilares do discurso hegemônico da ciência moderna estão sendo questionados por novas formas de pensar/estar no mundo. Como as promessas anunciadas pela modernidade não foram cumpridas e os problemas sociais são de difícil solução pelo paradigma moderno, Santos (2005) defende a ideia de que os nossos problemas sociais são epistemológicos. Ele aposta na reinvenção de um “novo senso comum” para recuperarmos uma tradição epistemológica marginalizada e desacreditada da modernidade, o conhecimento emancipação.

Para a produção dos dados, fiz uso de observações das artes juvenis, acompanhadas de conversas e entrevistas semiestruturas, e também de narrativas e de produções imagéticas dos/das jovens que teceram as redes do cotidiano vivido. Partilho o entendimento de Certeau (1994) de que o cotidiano é espaçotempo de descobertas e de criação, em que seus praticantes ordinários têm suas ações realizadas na tensão permanente entre a regulação e a emancipação35. As práticas desenvolvidas no cotidiano escolar que pude O paradigma emergente explicitado apreender durante o percurso da pesquisa foram: 36 por Santos (2005) associa a produção de projeto “Com Ciência Ambiental” , projeto “Vivenciartes”, Miniempresa e Educação para a conhecimento (conhecimento prudente) à qualidade de vida social (para uma vida decente). gestão ambiental. Nesse movimento de transição paradigmática, a As potencialidades epistemológicas Educação Ambiental tem muito que contribuir emergentes das práticas juvenis introduzem pelas dimensões política, ética e estética que lhe são intrínsecas e pelo caráter emancipatório de seu conhecimento. Como nos afirma Tristão 35 A fim de superar a dicotomia entre regulação e emancipação, (2005, p. 251), a “Educação Ambiental é o esforço reside na compreensão da tensão que se dá na relação carregada de sentidos e de significados de um entre elas. 36 Esse projeto foi desenvolvido durante o semestre letivo paradigma emergente, de novos modos de 2008/1 e envolveu, ao todo, sessenta projetos relacionados à sensibilidades entre utopistas e utopias”. temática socioambiental.

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77 Santos (2005) distingue duas formas de conhecimento no projeto da modernidade: o conhecimento regulação e o conhecimento emancipação. Como toda ação de conhecer constitui-se numa trajetória que vai de um ponto de ignorância para um ponto de conhecimento, no conhecimento regulação o caminho se faz do caos (ignorância) para a ordem (saber); no conhecimento emancipação, parte-se do colonialismo para a solidariedade. No projeto da modernidade, não há equilíbrio entre essas duas formas de conhecimento: o conhecimento regulação conquistou a primazia sobre o conhecimento emancipação pela hegemonia da racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia sobre as demais racionalidades. A ordem transformou-se na forma hegemônica de saber e o caos na forma hegemônica de ignorância. É esse saber concebido como “ordem” que traz a visão antropocêntrica e dicotomizada do meio ambiente, com a sociedade de um lado e a natureza de outro, bastando à Educação Ambiental informar conhecimentos, atitudes e valores “ecologicamente corretos” para o alcance de uma sociedade sustentável. No entanto, se pretendemos ampliar os repertórios compartilhados pelos sujeitos ambientais para a prática de uma Educação Ambiental emancipatória, temos de resgatar a solidariedade como forma de saber. Para Santos (2005), a solidariedade é uma prática de conhecimento que se desdobra numa prática política. A solidariedade reconhece o outro como sujeito, considera a reciprocidade entre sujeitos e entre ações, o que implica pensar as ações locais em sincronia com o global, alcançando uma consciência e cidadania planetárias. O saber, como solidariedade, converte assim “[...] a comunidade no campo privilegiado do conhecimento emancipatório” (SANTOS, 2005, p. 81). Visto que o discurso argumentativo emerge das comunidades interpretativas, o conhecimento emancipação, que se assume incompleto e local, deve ser disseminado pelas

redes de comunidades – escolas, universidades, eventos, encontros, entre outras – que trazem a possibilidade do diálogo, da abertura ao outro, do encontro/confronto entre diversas formas de interpretar a realidade. Nessa acepção, comunidade não se limita à territorialidade do espaço contíguo, ao local e à temporalidade do tempo imediato, trata-se de [...] territorialidades locais-globais e temporalidades imediatas-diferidas que englobam o conhecimento e a vida, a interacção e o trabalho, o consenso e o conflito, a intersubjectividade e a dominação, e cujo desabrochar emancipatório consiste numa interminável trajectória do colonialismo para a solidariedade própria do conhecimentoemancipação (SANTOS, 2005, p. 95).

É importante reconhecer, porém, que os vários saberes que circulam nas redes das comunidades interpretativas são todos eles incompletos, carecendo da articulação em rede, como esclarece Santos (2005, p. 31): O conhecimento emancipação não aspira a uma grande teoria, aspira sim a uma teoria da tradução que sirva de suporte epistemológico às práticas emancipatórias, todas elas finitas e incompletas e, por isso, apenas sustentáveis quando ligadas em rede.

Na configuração das comunidades interpretativas, rompem-se fronteiras tão rígidas da modernidade – público e privado, individual e coletivo, ciência e senso comum, local e global, ordem e caos – e instalam-se outros caminhos possíveis ao caminhar; não a via única do linearismo mecanicista, mas caminhos plurais e solidários em relação ao meio ambiente e ao ser humano.

SOLIDARIEDADE E ÉTICA: O CUIDADO COM O OUTRO Se pretendemos ampliar os repertórios compartilhados pelos sujeitos ambientais para a prática de uma Educação Ambiental emancipatória, temos de resgatar a

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78 solidariedade como forma de saber. A solidariedade reconhece o outro como sujeito, considera a reciprocidade entre sujeitos e ações, o que implica pensar as ações locais em sincronia com o global, alcançando uma consciência e cidadania planetárias. A ética, no conhecimento emancipação, seria o fundamento das sensibilidades ecológicas e dos valores emancipatórios que sustentam as práticas educativas ambientalmente sustentáveis.

as próximas gerações. A interação com outros atores/atrizes sociais foi fundamental para que os/as jovens percebessem a grande teia da vida, ou seja, o fato de estarmos todos enredados ao complexo socioambiental. Assim, ações e atitudes foram desenvolvidas para conscientizar a população acerca dos problemas que nos afligem e propostas foram levantadas para reduzir ao mínimo ou evitar esses problemas. Os/as jovens do Cefetes, especialmente aqueles/ as que desenvolveram suas práticas ambientais É no espaço da ética que se propõe pensar em outras escolas, afirmaram a preocupação o sujeito numa relação de alteridade e questionar com as gerações mais novas, conforme relato os valores relacionados ao comportamento do de conversa no dia da exposição dos projetos indivíduo e dos grupos nas sociedades. Nesse “Com Ciência Ambiental”: sentido, a Educação Ambiental deve resgatar os Esse trabalho foi importante porque valores oprimidos pelo racionalismo moderno conscientizou as crianças, formou a mente e evitar o desperdício de experiências para crítica pras questões sociais. Isso é importante porque quando se tornar adulto ela vai ter enriquecer a nossa relação com o mundo num uma consciência maior (Ramon – projeto exercício de religação do ser humano com os desenvolvido em um CMEI/Vitória). seus semelhantes e com o planeta. Outro grupo de jovens, cujo Assim, podemos inferir que as redes desenvolvimento do projeto se deu numa escola de solidariedade e a ética individual, na infantil no município de Cariacica, foi indagado busca de uma inteligibilidade recíproca entre por mim acerca da redação do projeto escrito: experiências, conhecimentos e seres humanos, “com tantos problemas ambientais, tratados podem tomar uma amplitude maior no trabalho com descaso pela maioria das pessoas, é das comunidades interpretativas e, assim, essencial criar as bases de uma sociedade nova, alcançar a sustentabilidade planetária. baseada em outros valores” (Projeto “Plantando Com esses projetos você acaba pensando um consciência / Geração ecológica”). Na pretensão pouco mais assim, não só em você, pensando de conhecer que outros valores seriam esses, no outro, porque “Ah, eu vou..., se eu to obtive as seguintes respostas: respeito ao contribuindo ou não, eu vou morrer mesmo. próximo, amor, solidariedade, cuidado com Não vou ficar aqui pra ver a destruição da Terra.” Mas, e quem vai continuar aqui o meio em que se vive e preocupação com as depois? Quem? Os filhos, os netos, gerações gerações infantil e futura. futuras ou, de repente, até a nossa própria geração. A gente não sabe. [...] Então eu acho que o principal é isso: na educação ambiental você pensar um pouco mais no outro, no seu futuro próximo, no seu futuro distante assim, também no meu futuro, né, no ser humano de modo geral. Não só pensar em mim, na minha família, mas pensar também no outro. (Sávio – jovem integrante do Grêmio Estudantil do Cefetes).

Você aprende a respeitar o seu colega, a sua mãe, o seu pai, você vai respeitar o meio ambiente também. Então, ensinando outros valores, elas [as crianças] conseguem ter assim a conscientização ambiental. O social se transforma no ambiental também (Dariane – projeto Plantando consciência / Geração ecológica).

A relação social e ambiental também As práticas dos/das jovens em Educação se fez notar nos vídeos produzidos pelos/as Ambiental revelaram preocupação em relação à jovens. Desigualdade social, consumismo e qualidade de vida e ao futuro do planeta para poluição foram alguns temas explorados pelos Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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79 alunos. A percepção crítica dos/das jovens se fez notar pela abordagem crítica das imagens, que trouxeram à tona problemas oriundos do sistema econômico vigente e o culto aos seus valores, em que vidas se tornam objetos de interesses econômicos e são exploradas em suas condições de existência. No sistema de produção capitalista, a tentativa de repensar a relação ser humano-natureza implica a busca do sentido ético de pensar e fazer ciência, uma vez que as condições sociais e as crises da contemporaneidade são decorrentes das contradições e das crises da razão e do progresso desordenado.

como ponto que deve ser superado, leva-nos a reconhecer o imprevisível e a desordem no movimento de aprendizagem. A ética, como potencialidade epistemológica, traduz-se na responsabilidade e no cuidado pelo futuro comum da Terra e da humanidade. A religação de todos os seres viventes a seu entorno emerge como possibilidade de “reencantamento da Educação” pela convergência de ações, práticas e projetos de vidas sintonizados com racionalidades e sensibilidades éticas que unem o aprender cognitivo aos processos interativos de vida.

Embora os/as jovens que participaram das atividades da Miniempresa não façam uma análise crítica da relação entre mercado e UTOPIA ECOLÓGICA: produtos “verdes”, não se pode desconsiderar a CARTOGRAFANDO FUTUROS preocupação com o meio ambiente que perpassa POSSÍVEIS o desenvolvimento de suas práticas: A espera e a luta por um futuro melhor – Porque nós mais jovens, nós não temos muita ecologicamente mais equilibrado e de relações coisa ainda, nós não temos esses vícios ainda de ficar utilizando os recursos naturais com tanta sustentáveis – é a utopia que move a humanidade ousadia. Então, assim, a gente tem que começar e dá sentido ao viver, ao “vir-a-ser” mais humano passar pras pessoas, não só pros jovens, pros e ético. A utopia é o exercício de pensamento outros também, pra tentar consertar isso. Mas, que cartografa futuros possíveis, que podem principalmente, a gente tem que começar a passar pros outros a ideia de que a gente tem ser buscados e alcançados, considerando as que saber usar os recursos naturais (Dayane – possibilidades do real de concretização desses jovem integrante da Miniempresa Anotação). futuros e ampliando-as por meio da visibilidade Pensar na relação ser humano-natureza de lógicas alternativas potenciais. Essas mais equilibrada e nas relações entre humanos alternativas consistem em experiências locais e mais igualitárias significa pensar o outro não na criatividade de ações que, em diálogo com os mais como objeto (como no colonialismo), mas limites e as possibilidades de um determinado “[...] visa substituir o objecto-para-o-sujeito pela contexto, possibilitam iniciativas e reforçam a reciprocidade entre sujeitos” (SANTOS, 2005, utopia por práticas sociais mais emancipatórias e sustentáveis. p. 83) por meio do saber como solidariedade. Como vivemos em uma sociedade em que os efeitos da intervenção humana nas mais diversas dimensões da vida têm resultados caóticos e, frequentemente, imprevisíveis, podemos afirmar que a incerteza quanto ao tempo presente e ao futuro reconhece o conflito (promovido pelo caos) e aceita a prudência de ações (promovida pela solidariedade). Assim, o caos, concebido como saber e não meramente Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

Santos (2005, p. 36) entende utopia como [...] o realismo desesperado de uma espera que permite lutar pelo conteúdo da espera, não no geral, mas no exato lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos Vitória

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80 os tempos e lugares exceto naqueles em que ocorrem efetivamente. É este o realismo utópico que preside às iniciativas dos grupos oprimidos que, num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vão construindo, um pouco por toda parte, alternativas locais que tornam possível uma vida digna e decente.

entendemos: De todos os problemas enfrentados pelo sistema mundial, a degradação ambiental é talvez o mais intrinsicamente transnacional e, portanto, aquele que, consoante o modo como for enfrentado, tanto pode redundar num conflito global entre o Norte e o Sul, como pode ser a plataforma para um exercício de solidariedade transnacional e intergeracional. O futuro está, por assim dizer, aberto a ambas as possibilidades, embora só seja nosso na medida em que a segunda prevalece sobre a primeira.

A criação cotidiana de alternativas ao modelo hegemônico concretiza-se por meio de táticas emancipatórias em que a competição e a colonização do outro perdem a tônica e são substituídas pela prudência de ações e pelo reconhecimento do outro como sujeito. E foi no cotidiano, na busca de usos Nesse sentido, a natureza não é dissociada do astuciosos, que refleti sobre a utopia ecológica ser humano tampouco objetualizada, mas é dos/das jovens a qual alimenta as redes em dimensão interativa e dialógica de todas as Educação Ambiental. Essa geração demonstra formas e processos de vida. inquietude sobre as condições reais de A Educação Ambiental, ao questionar sustentabilidade e preocupações com o futuro a hegemonia da racionalidade cognitivo- do planeta para as gerações mais novas e instrumental e os territórios demarcados pela vindouras. ciência moderna, favorece a legitimidade de modos alternativos de saberesfazeres inseridos nas práticas educativas e amplia as possibilidades de emancipação social. Como nos afirma Tristão (2005), a “Educação Ambiental é carregada de sentidos e de significados de um paradigma emergente, de novos modos de sensibilidades entre utopistas e utopias” (p.251). Assim, a crença fundamental de uma educação ambiental emancipatória é de uma utopia possível, um devir a ser de “uma vida decente” contra o “desperdício” das experiências desenvolvidas em nome de um conhecimento prudente.

Isso significa pensar a transformação global não só nos modos de produção e nas relações sociais, como também numa relação paradigmática com a natureza diferente daquela que o discurso dominante da ciência moderna estabeleceu.

Os/as jovens criticaram o consumo excessivo dos bens naturais, a exploração da natureza pelo ser humano, as relações de poder, as desigualdades sociais, as catástrofes ambientais e, por esse exercício reflexivo, trouxeram energia emancipatória para o cotidiano “pela inserção da novidade utópica A ênfase em uma utopia ecológica é no que nos está mais próximo” (Santos, 2003, explicada pela energia dessa crença – carrega p. 106). em si a transversalidade de saberes e a inclusão de valores fundamentados na solidariedade O desejo por uma condição de vida mais – na configuração de redes de ações, digna para todos amplia os horizontes das ações propostas e movimentos sociais nos diferentes dos/das jovens e sustenta as redes ambientais no espaçostempos estruturais em que estamos cotidiano escolar. A preocupação com o futuro inseridos. A utopia ecológica exige assim a não exime a juventude de suas responsabilidades utopia democrática, ou seja, a horizontalização no tempo presente, ao contrário, fomenta e das relações políticas, econômicas e culturais credibiliza as ações desse tempo. Uma jovem, planetárias. ao comentar a necessidade de colocar em É ainda com Santos (2003, p. 296) que

prática atitudes mais solidárias, faz a seguinte

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81 observação: [...] é muito mais proveitoso para o futuro, que às vezes a gente pensa assim: “Não, mas eu não vou tá aqui.” Mas os nossos netos, e os nossos filhos? E, às vezes, é um futuro bem mais próximo do que a gente pensa porque se todo mundo continuar pensando assim: “Ah não, eu não preciso economizar porque eu vou morrer antes disso acontecer”. Agora imagine mais de um milhão de pessoas pensando igual! Vê se realmente eles vão morrer antes disso acontecer! (Gabriela – projeto Consumo de água no Cefetes).

na recuperação dos infratores. Os princípios ético-políticos nos espaços das práticas sociais cotidianas também devem ser observados no trato com os excluídos socialmente. É o reconhecimento do outro como legítimo outro que faz essa jovem clamar por políticas em que o cuidado com o ser humano seja fundamentado por relações de respeito e solidariedade.

Nas práticas de Miniempresa37, há de credibilizar as ações dos/das jovens na produção de um produto em que foi possível pensar Relato de outra jovem: perspectivas outras, que não a de exploração Eu acho que a gente tem que começar por nós e uma consciência ecológica de que os bens e depois pelas pessoas que estão à nossa volta naturais são finitos. A novidade utópica dessas pra tentar mudar o mundo porque o mundo não práticas está na perspectiva da humanização da vai assim mudar de uma hora pra outra. Tem natureza a partir do questionamento da natureza que começar pela gente, a gente tem que pensar como bem de consumo e como objeto de nas nossas atitudes, tentar mudar as atitudes. Não mudar assim radicalmente as pessoas que exploração do ser humano. estão ao nosso lado, mas pelo menos, mostrar os que elas estão fazendo, o que elas podem melhorar pra fazer uma sociedade melhor, uma convivência melhor para que todos se beneficiem (Isadora – projeto O estudo da assepsia nas dependências do Cefetes).

Relações humanas mais igualitárias, fomento ao engajamento coletivo pelas causas socioambientais, respeito às necessidades locais e à diversidade biológica, ampliação da participação cidadã na gestão dos bens públicos Como a utopia ecológica tem uma são questões trazidas pelos/as jovens que dimensão política, cito outro relato de Isadora permearam as artes em Educação Ambiental. em que ela faz um questionamento sobre A inclusão de valores e crenças vinculados as condições socioambientais dos menores ao conhecimento emancipação favorece as infratores, valendo-se de casos vividos e conexões e as alianças necessárias para ampliar comentados por sua tia, que é juíza: as práticas educativas emancipatórias e para [...] aí quando ela [sua tia] prende os garotos lá alimentar a utopia ecológica. e vai pra prisão, ela vê que as condições deles lá é horrível, é pior que se eles estivessem fora. Como eles estão lá e não tem condição de nenhum ser humano ficar lá porque a prisão é pequena e fica 20, 30 meninos ali dentro. Como que um ser humano fica ali? Isso daí não é lugar pra ser humano. Aí entra a questão da política, o governo tem que fazer um lugar decente pra ela [a pessoa infratora] ficar lá, se recuperar. Porque quando a pessoa é presa ela volta pior [...].

Esse pequeno relato chama a atenção para as condições socioambientais a que estão submetidos os marginalizados socialmente, em especial os que sofrem privação ou restrição de liberdade, e a influência dessas condições

As artes de saberesfazeres dos/das jovens em Educação Ambiental são utópicas no

37 A experiência de mercado vivenciada pelos/as miniempresários/as é o objetivo principal desse programa que, inserido na conjuntura neoliberal, visa ao treinamento de jovens e ao desenvolvimento de capacidades e habilidades consoantes às exigências de um sistema econômico capitalista cada vez mais competitivo e excludente. Inseridas nesse contexto, as atividades de Miniempresa estão a serviço do capital, da competitividade, do lucro e do consumo. Contudo, como todo programa instituído possui “brechas”, por onde podemos vislumbrar potencialidades emancipatórias, a tentativa aqui é de superar entendimentos dualistas e buscar articulações de ações e de práticas que se realizam na tensão permanente entre regulação e emancipação.

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82 sentido político, porque consistem em táticas de superação da opressão, da descaracterização e da exclusão instituídas no seio da globalização hegemônica. No que se refere às práticas sociais da Educação formal, penso que a utopia possa ser desenvolvida na discussão dos saberes compartilhados e na validação desses saberes quanto ao potencial emancipatório. Como Oliveira (2006, p. 151-152), mantenho esta crença: No que se refere às aprendizagens situadas no campo do formal e do explícito, será preciso que a luta se desenvolva em termos da discussão dos fundamentos e do valor que pode ser atribuído a esses saberes na perspectiva da indissociabilidade entre seus aspectos formais e suas possibilidades emancipatórias.

mais encantadas e humanizantes, os/as jovens se colocam como agentes de transformação socioambiental para sociedades sustentáveis e como protagonistas no processo de transição paradigmática e societal. A Educação Ambiental, praticada pela juventude, é então uma educação comprometida com a formação de cidadãos ambientalmente orientados por todos saberesfazeres capazes de navegar, prudentemente, à vista das consequências.

REFERÊNCIAS

ASSMAN, Hugo. Reencantar a educação: Rumo à sociedade aprendente. 8. ed. Petrópolis, E como os/as jovens protagonistas desta RJ: Vozes, 1998. pesquisa, afirmo que a luta por uma sociedade e uma ciência baseadas em valores sustentáveis CARVALHO, Isabel Cristina Moura. Educação continuará sendo a nossa constante utopia. Estou ambiental: a formação do sujeito ecológico. ciente de que as reflexões e as decisões possíveis São Paulo: Cortez, 2006. aos sujeitos em cada circunstância envolvem desafios políticos, éticos e epistemológicos de CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, opção pela manutenção da vida. 1994.

POR PRÁTICAS EDUCATIVAS MAIS EMANCIPATÓRIAS... A solidariedade como virtude emancipatória é um processo, sempre inacabado, de nos tornarmos capazes de reciprocidade e de empatia. A Educação Ambiental como campo híbrido de saberesfazeres comprometidos com a equalização das relações sociais e com a sustentabilidade ambiental fomenta outras racionalidades que enriquecem a nossa relação com o mundo. O saber ambiental, por se identificar com projetos que visam a melhores condições de vida para o futuro, cartografa futuros possíveis em que a solidariedade e a prudência de ações são vetores para práticas educativas mais emancipatórias. Movidos pela crença de formas de vidas

GUIMARÃES, Mauro. A formação de educadores ambientais. Campinas/SP: Papirus, 2004. OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9 ed. São Paulo: Cortez, 2003. ______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2005. ______. Um discurso sobre as ciências. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2006. TRISTÃO, Martha. A educação ambiental na formação de professores: redes de saberes. Annablume: 2004.

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83 ______. Tecendo os fios da Educação Ambiental: o subjetivo e o coletivo, o pensado e o vivido. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 251-264, maio/ago. 2005.

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84 POR QUE TER MICHEL DE CERTEAU COMO REFERÊNCIA? SILVA, Sandra Kretli da38 RESUMO Este estudo busca cartografar como professores e alunos criam e inventam o currículo praticado a partir dos usos e consumos dos produtos culturais que circulam nas escolas, tendo Certeau como referência. Utiliza, como campo de produção dos dados, as conversações e a problematização de um espaçotempo singularizado e tecido com os fios da experiência individual e coletiva. Aponta que os produtos culturais usados por professores e alunos são constantemente significados e inventados por meio de múltiplas redes de saberes, valores, afetos, afecções e poderes que são tecidas no coletivo escolar. PALAVRAS-CHAVE Currículo. Produtos Culturais. Cotidiano Escolar. INTRODUÇÃO

Por utopia, entendo a caça de novas possibilidades de lutar por um mundo melhor ao Não foi à toa que Michel de Certeau qual a humanidade tem direito. Ainda é Santos encaminhou a Luce Giard a edição de sua obra. (2003), ao citar Fourier, quem nos ensina que os Foi ela quem me instigou e me seduziu a conhecer problemas fundamentais estão na raiz de nossas a obra desse autor sempre que o descrevia com instituições e das nossas práticas sociais e que, paixão, admiração, envolvimento: ao aprofundarmos e ampliarmos as nossas Certeau investigou com respeito e uma questões, encontraremos soluções cada vez espantosa delicadeza os caminhos obscuros, mais profundas e amplas. não para julgar uns ou outros, nem para apontar o domínio da verdade e do direito legítimo, mas para aprender com o passado como um grupo social supera o eclipse da sua crença e chega a obter benefício das condições impostas para inventar sua própria liberdade, criar para si um espaço de movimentação (GIARD, 1995, p. 7).

Acredito que se faz necessário dar foco às nossas perguntas e aumentar a visibilidade das múltiplas possibilidades encontradas na produção de uma escola mais significativa para todos, pois, como aponta Santos (2002), o pensamento utópico é produzido com economia Ao completar mais de duas décadas de pilares, transformando silêncios, sussurros e atuando no campo da educação, não me faltaram ressaltos insignificantes em preciosos sinais de caminhos obscuros a percorrer, porém sempre orientações. encontrava atalhos potentes que me encorajavam O termo possibilidades é aqui utilizado a retomar em busca de pensamentos utópicos (SANTOS, 2003) para continuar produzindo a com a conotação dada por Ferraço (2005, p. 17): [...] potencialidades do imprevisível, do escola que sonhei. não conhecido e controlado. Nesse sentido, não estamos nos valendo de projeções utópicas idealizadas ou da idéia de futuro como predestinação. As possibilidades aqui defendidas são as do presente, do vivido, não dadas, mas possíveis, nos aproximando da idéia de utopia positiva, de Edgar Morin.

38 Doutoranda em Educação do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPQ: Currículos, cotidianos, culturas e redes de conhecimentos. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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85 Portanto, nessas múltiplas experiências vivenciadas nos cotidianos escolares, diferentes acontecimentos vêm potencializando as nossas práticas para fabricarmos novos sentidos para a escola. Para Deleuze (2003, p. 152), os acontecimentos se efetuam em nós, “[...] nos dá sinal e nos espera”.

Propus-me, então, mergulhar nos cotidianos escolares, a fim de investigar os usos e consumos que professores e alunos fazem dos produtos culturais que circulam nas escolas, pois acredito que esses “usos” são as expressões dos currículos praticados nas escolas.

Como nos ensina Gallo (2007, p. 35), Comecei a conhecer os escritos de Certeau mergulhar nos acontecimentos a fim de ao produzir a minha monografia no Curso de potencializá-los criativamente é: “[...] agir de Pós-Graduação. Nessa ocasião, analisei os forma a alisar os fluxos, usar a sensação de cartazes produzidos pelos professores e alunos estranheza como motor do pensamento e da e os “usos” que faziam das imagens e narrativas criação, inventando coletivamente formas de viver na diferença, sem impor um consenso, um presentes nesses artefatos. controle regulador”. Logo que cheguei ao mestrado, fui Assim, dialogando com professores, apreciando mais intensamente a obra de Certeau alunos e, especialmente, com Michel de (1994, 1995, 1996). Porém, o que me incita nesse autor é quando sugere que analisemos, Certeau, venho cartografando os múltiplos além das imagens difundidas pelos artefatos espaçostempos escolares, a fim de conhecer culturais e dos tempos passados diante desses as artes de fazer de seus praticantes. Carvalho aparatos, o que o consumidor cultural “fabrica” (2008) aponta que o “uso” da cartografia no durante essas horas e com essas imagens, pois, cotidiano escolar contém uma potencialidade para ele, essa “fabricação” é uma produção, uma que não podemos desprezar. criação e invenção, já que supõe que os usuários Para essa autora, a pesquisa cartográfica desses artefatos fazem uma “bricolagem” com tem como pressuposto básico uma perspectiva e na economia cultural dominante, burlando processual, ou seja, “[...] deixar que as regras, seguindo seus próprios interesses. circunstâncias determinem a trajetória da Utilizo o enfoque oferecido por Certeau pesquisa” (p. 128). No entanto, indica-nos (1994), que entende por artefatos culturais atenção a algumas possíveis problematizações todos os produtos disponibilizados pelo poder que são comuns aos acompanhamentos proprietário, constituídos por ideologias ou dos processos de pesquisa nos/dos/com os políticas, variando de produtos tecnológicos cotidianos: a definição do problema (buscar o a simples materiais ordinários que são usados foco das questões); intervenção do pesquisador de modo participativo e dialógico; processo pelos praticantes em seus cotidianos. de produção de dados; autoria socializada Foi a partir daí que, em vez da suposta e, principalmente, ser vista como uma das passividade dos consumidores, venho buscando possíveis leituras e interpretações da realidade. a criatividade das pessoas ordinárias, conforme Percorrer pistas, indícios, evidências, a descreveu Giard (1996, p. 13), ao apresentar escutar as indicações dos protagonistas do a obra de Certeau: “Uma criatividade que se esconde num emaranhado de astúcias cotidiano tem sido o nosso principal desafio, silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um pois acredito, como Oliveira e Sgarbi (2008), inventa para si mesmo uma ‘maneira própria’ de que esses “conselhos e alertas” nos ajudam caminhar pela floresta dos produtos impostos”. a decifrar alguns enigmas dos cotidianos escolares e das práticas pedagógicas, bem como Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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86 a visibilizar os acontecimentos vivenciados e outro, estar aberto à surpresa de uma presença que tecidos pelos praticantes do cotidiano. se manifesta, ainda que escape às articulações possíveis de uma memória adquirida.”. Assim, como escutava a cada um que lhe cruzava o caminho com extrema atenção, sem se importar MAS, AFINAL, QUEM FOI MICHEL com a hierarquia que as pessoas ocupavam nos DE CERTEAU E QUAIS AS SUAS espaços, tinha ainda a necessidade de escrever e CONTRIBUIÇÕES PARA PENSARMOS tomar nota de tudo que lhe acontecera. AS ESCOLAS? Giard (1994, p. 18), enfatiza a sensibilidade Pensador francês. Nasceu em maio estética de Certeau e sua capacidade de se de 1925, em Chambérry, e morreu em Paris maravilhar: “Se Michel de Certeau vê por com apenas 61 anos de idade, em janeiro toda parte essas maravilhas, é por que se acha de 1986. Formou-se em Filosofia, Letras preparado para vê-las”. Esse olhar otimista do Clássicas, História e Teologia. Tornou-se pesquisador do cotidiano é essencial em nossas padre e permaneceu jesuíta até o final de sua escolas, pois percebemos que os professores e os vida. Foi pesquisador da história dos textos alunos estão sempre à procura de movimentos místicos da Renascença à Idade Clássica. que possam trazer mais credibilidade, alegria e Demonstrava interesse tanto pela História como reconhecimento às práticas pedagógicas. pela Antropologia, Linguística e Psicanálise. Ferraço (2009, p. 2), ao citar Giard, Foi membro da Ècole Freudianne de Jacques Lacan, desde sua fundação, em 1964, até sua também aponta uma importante atitude de dissolução em 1980. Trabalhou na Universidade Certeau: “Analisar ao vivo os acontecimentos de Paris VIII, Vincennes, nos Departamentos de da vida cotidiana procurando não cair na Psicanálise e História, depois na Universidade armadilha de propor explicações generalizantes de Paris VII, Jussieu, nos Departamentos de e finais”. O autor, ao citar Giard quando analisa Antropologia e Ciências das Religiões. Foi os escritos de Certeau sobre os acontecimentos ainda professor na Universidade da Califórnia, de Maio de 68 na França, destaca: em San Diego, Estados Unidos. Colaborou com Numa série de artigos brilhantes, e ainda atuais, [...] apresentou desse tempo de o governo francês em projetos de promoção do incerteza uma leitura inteligente e generosa, uso dos meios de comunicação. acolhedora da mudança, livre do medo que paralisava muitos de seus contemporâneos. Procurou não propor soluções, nem apresentar um diagnóstico definitivo que encerrasse o futuro, mas, sobretudo, compreender o que estava acontecendo [...]. Esta ebulição, esta desordem de palavras e barricadas, esta revolta e tantas greves, o que dizem a respeito de uma sociedade, do que ela esconde e espera? Na brecha entre o dizer e o fazer, que ele acredita perceber, Certeau não vê ameaças, mas uma possibilidade de futuro (GIARD apud FERRAÇO, 2009, p. 2).

Certeau foi um desses “[...] espíritos anticonformistas e perspicazes, que intriga e desconcerta” conforme descreve, Giard (1994, p. 9). E completa: “[...] ele não pára de se movimentar e nunca se identifica com um lugar determinado”. Talvez seja por isso que procurou, durante os seus estudos, diferentes influências teóricas: Joseph Surin, Hegel, Freud e Lacan, Wittgenstein, Foucault, MerleauPonty, Deleuze, Derrida, dentre muitos outros. Josgrilberg (2005) destaca uma das características marcante de Certeau que considero fundamental na atitude de um pesquisador: “[...] disponibilidade para ouvir o

Ainda é Ferraço (2009) quem nos ensina outra importante contribuição de Certeau aos nossos estudos:

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O essencial do trabalho de análise que deveria ser feito deverá inscrever-se na análise Vitória

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87 combinatória sutil, de tipos de operações e de registros, que coloca em cena e em ação um fazer-com, aqui e agora, que é um ato singular ligado a uma situação, circunstâncias e atores particulares [...]. (GIARD apud FERRAÇO, 2009, p. 5, grifo do autor).

o espaço social [...]”. Para ele, os múltiplos pontos de referências vão interferir em um determinado uso específico, ou seja, diferentes usos criam vários significados, que apontam para a antidisciplina enfatizada por Certeau.

A ideia do “fazer-com” é o que os “cotidianistas39” vêm procurando praticar nas suas pesquisas. Ao serem convidados a entrar nas escolas, eles se dedicam a estudar o cotidiano atravessados às múltiplas redes de afetos, afecções, saberes, poderes, fazeres (CARVALHO, 2009) dos seus praticantes. Nesse sentido, o pesquisador vivenciará os processos curriculares e as práticas pedagógicas produzindo e não coletando dados.

Para exemplificar, recordo-me do dia em que conversei com alguns alunos que usam o espaço que fica embaixo da escada em uma escola em que estamos fazendo a pesquisa40 como o lugar dos encontros. Provavelmente, o arquiteto que projetou esse espaço jamais pensaria em todos os “usos” que os alunos estão fazendo dele. Registramos abaixo alguns desses momentos:

AS MÚLTIPLAS TÁTICAS E ESTRATÉGIAS DOS PRATICANTES DO COTIDIANO... Os modos de proceder no cotidiano, segundo Certeau (1994), jogam com os mecanismos da disciplina e alteram o seu funcionamento pela utilização de uma multiplicidade de “táticas” e “estratégias” dos consumidores, compondo redes de comportamentos que delineiam uma antidisciplina. “A tática depende do tempo, vigiando para ‘captar no vôo’ possibilidades de ganho”, afirma Certeau (1994, p. 47). Essas são as maneiras que o homem ordinário encontra para transgredir as regras instituídas. O autor sugere, como necessário, o jogar com os acontecimentos, para transformá-los em ocasiões. Josgrilberg (2005, p. 23) esclarece, dizendo que “[...] as ‘táticas’ organizam um novo ‘espaço’, o qual é o ‘lugar praticado’; elas implicam em um movimento que foge às operações de poder que tentam controlar

39 Pesquisadores que trabalham na perspectiva do cotidiano escolar.

POSSO ENTRAR? “Posso entrar?” -- perguntei ao chegar para conversar com os alunos. Vejo que muitos alunos gostam desse buraco. “O que tem de bom aqui?”. Múltiplas vozes respondem ao mesmo tempo: “É o lugar da solidão [o aluno que disse abaixou a cabeça constrangido], da paixão, dos recadinhos [risos], dos lero-leros, das fofocas, das Anas Carolinas, dos beijos... Não escreve isso não, hein, tia“. É uma verdadeira cama. Tem gente que até dorme”. Nesse momento eram os alunos do Integral que estavam ocupando aquele espaço e daquela maneira. Eles fazem um intervalo das 11h às 12h40min. “Como faz para entrar no Integral?” - perguntei. “Tem que ter vaga” - respondeu Bianca. “Procurar vaga. Para alguns casos a escola indica” - respondeu outro aluno. “O que vocês fazem no Integral?” - perguntei. “Tem Francês e é muito chato”.

40 “O cotidiano escolar como comunidade de afetos/afecções em suas conversações e imagens: cultura, currículo e formação de professores”. Equipe responsável: Profª Drª Janete Magalhães Carvalho (coordenadora), Dulcimar Pereira (doutoranda), Larissa Rodrigues (mestranda), Sandra Kretli da Silva, (doutoranda), Sandra Machado (mestranda), Tânia Delboni (doutoranda). Instituição: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Agência de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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88 “Por quê?” - perguntei. “É chato, aula chata, professora chata...”. Outra menina continuou: “Aqui também é lugar para marcar o nome com corretivo”. Bruno continuou cantando e deitado no seu canto, ouvindo música em um MP3. Perguntei a Ana Carolina se ela gostava da escola. “Mais ou menos” - respondeu. Por quê? “Esta escola é pequena e muito fechada”. Perguntei onde gostaria de estudar. “Onde eu estudava. Lá era maior e melhor”. Bruno defende sua tese: “A escola é boa, sim. Os alunos é quem faz a escola ficar boa. São vocês que estão fazendo a escola ficar assim, vocês vivem reclamando...” [falando para as duas amigas]. Bruno aponta a importância de os praticantes do cotidiano estarem atentos às táticas e artimanhas que estão presentes no cotidiano, pois por meio de suas “táticas” os usuários, organizam um novo espaço, ou seja, um lugar praticado, criando e inventando os espaços tempos escolares. Ana Carolina continua conversando com a amiga: “Pedi para seu pai pagar”. Perguntei: “Pagar o quê?”. Bianca responde: “Passeio doidão”. “Onde?” “No palácio”. “É a exposição de Leonardo da Vinci”. A comunicação é fragmentada, um aluno completa a ideia do outro. Eles respondem com poucas palavras. Bruno parece o mais solto. Começou a falar da exposição. (As meninas debocham...) “Quem estuda corre atrás, eu vou de novo com a minha tia, para aprender as parada lá.” Voltei à conversa e indaguei por que não gostavam da escola. “Parece um presídio, é escura, fechada”. “E vocês gostariam de estudar onde?” “No JK (Escola Municipal Juscelino Kubitscheck), dizem que lá é cheio de gatinhos. O Mascarenhas (Escola Municipal Mascarenhas de Moraes) também é bom, dá até para tomar um solzinho”. “É mais não foi isso que você falou quando viu o Carreirinha aqui” - disse Bruno para a amiga. “Mas, ele já é da Jeniffer”. Precisaram sair para o almoço. Esse mesmo espaço, em outros momentos, era ocupado pelos meninos menores para jogar bafo, ler revistinhas, bater papos, enfim...

Foto 1: Ponto de encontro dos alunos

Voltando a Certeau, a estratégia seria o cálculo das relações de forças que se tornam possíveis a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ambiente. Exemplifica ele dizendo: “A nacionalidade política, econômica ou científica foi construída segundo esse modelo estratégico” (CERTEAU, 1994, p. 46). As estratégias escondem, sob o cálculo de objetivos, a sua relação com o poder que as sustenta, guardada pela instituição. Seriam ainda os espaços que são controlados por um conjunto de operações fundadas sobre um desejo e um conjunto desnivelado de relações de poder (JOLSGRINBERG, 2005). Por isso, considero fundamental que as narrativas dos praticantes do cotidiano, bem como suas táticas, artimanhas e todos os movimentos instituintes que revolucionam os espaços tempos escolares sejam visibilizados, pois acredito que são esses movimentos podem contribuir com as mudanças nas políticas públicas, na formação de professores, na prática pedagógica, no currículo e na invenção da escola. Acredito que se faz necessário elaborar “[...] uma política dessas astúcias e criações de consumidores e dar voz ao homem ordinário”� (CERTEAU, 1994). Durante o mestrado, e agora no doutorado estou analisando o que fazem os professores e alunos, como fazem, por que e

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89 para que fazem, o que usam, como usam, o que consomem, como consomem, o que fabricam com os usos que fazem dos artefatos culturais que circulam nas escolas, pois essas ações expressam o currículo e o cotidiano escolar. Assim como Pais (2003, p.173), penso que “[...] de nada valem as receitas pedagógicas se não existem condições para a performatização dos gostos e dos sabores.” Sabemos que os planejamentos prescritos são constantemente ressignificados por meio dos usos dos produtos culturais fazendo fruir a experiência estética e a sensibilidade das professoras, que procuram, pelo diálogo, favorecer o desenvolvimento lógico cognitivo, estético expressivo e éticomoral de seus alunos e alunas.

Foto 2: Menino lendo revistas no intervalo da explicação da professora

O mesmo ocorre com os professores no uso da xerox: burlam as regras instituídas quando a A cultura não pode ser concebida sem sua cota explode, fazem as cópias às escondidas a existência de práticas de significação e de ou usam as cotas de outros professores, para produção de sentidos. O sentido e o significado não se restringirem ao “cuspe e giz”, expressão não são produzidos de forma isolada. Eles se utilizada por eles para as atividades de cópia do organizam em relações que se apresentam quadro. como marcas linguísticas que geram redes de Segundo Certeau (1994), como assinalei, significados. Os produtos culturais recebidos são sempre submetidos a uma nova atividade esses modos de proceder de consumidores de significação, sofrendo, assim, um complexo constituem uma rede de antidisciplina, que incluem os professores no momento em que estão processo de transformação. consultando seus cadernos de planejamentos de Na escola, enquanto os professores estão anos anteriores, ouvindo relatos de atividades muito preocupados com o “dever”, olhando os feitas pelos colegas, fazendo leituras dos cadernos, fazendo os alunos copiarem o que lhes jornais, revistas ou livros. Aí se incluem foi pedido, os alunos estão fabricando outras também as emoções que sentem ao ler um livro, situações de aprendizagens significativas: lendo ao ver filmes, novelas, programas de TV, ao curiosidades, contando dinheiro, jogando, ouvirem as informações dos documentários, conversando sobre situações do cotidiano: das manchetes de jornais, das letras de músicas, dos conhecimentos que buscam em livros: estão criando seus itinerários, suas invenções. Uma professora mostrou-me uma pasta que ela organizava com recortes de matérias que tinha lido em jornais e revistas. Recortava as matérias e colava numa folha de papel chamex, fazendo um arquivo organizado por temas. Sempre que alguém lhe conta o que está trabalhando com sua turma, ela tem sugestões de textos, atividades, questionamentos dos seus Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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90 alunos para apresentar, propondo, assim, a troca, a parceria, o trabalho cooperativo, solidário e coletivo. Uma outra professora relata que usa muito jornais ao trabalhar leitura e escrita com os seus alunos. Solicita aos alunos que selecionem artigos que consideram importante para conversas em sala. Os alunos trazem a matéria e um resumo do texto. Logo, trouxe os cadernos dos alunos para apresentar com entusiasmo o seu trabalho. Esse movimento continuou durante a pesquisa, envolvendo também os alunos que sempre queriam me mostrar os cadernos e outras atividades que envolviam os usos de jornais.

Foto 3: Caderno de alunos

Como Azevedo (2004), acredito que seria ingenuidade pensar que bastam aos professores os seus saberes tecidos na prática. O que não podemos ignorar é que se faz necessário um diálogo permanente e articulado desses saberes com as teorias, com as políticas educacionais, com os artefatos culturais que circulam nas escolas, num processo interminável de hibridização, negociação. É Certeau (1995, p. 34) quem nos esclarece: “Uma linguagem uma vez falada, implica pontos de referência, fontes, uma história, ou seja, uma articulação de autoridade”. Por autoridade, ele entende tudo o que dá ou

pretende dar autoridade – representações ou pessoas – que se refere, portanto, de uma maneira ou de outra, àquilo que é aceito como crível (acreditável). Talvez seja pertinente situar aqui o exemplo dado por Certeau para essa questão: em uma escola na França, substituir Racine por Brecht significa modificar a relação do ensino com uma tradição autorizada, aceita entre eles, ligada aos ancestrais e aos valores considerados nobres. É também introduzir uma problemática política contrária ao modelo cultural estabelecido: É evidente que mudar o conteúdo, sair desse francês congelado nos livros é tocar em um aspecto fundamental da cultura, insinuar um outro comportamento cultural. É aceitar a explosão da língua em sistemas diversificados mais articulados; pensar o francês no plural, introduzir a relação com o outro como condição necessária da aprendizagem e do intercâmbio lingüísticos, substituir a multiplicidade das práticas atuais à preservação de uma origem legislativa na qual as gramáticas exerceriam a magistratura (CERTEAU, 1995, p. 125).

A questão que Certeau (1995) nos propõe refletir é a relação entre conteúdos ensinados na escola e a interação didático-pedagógica estabelecida: a relação didático-pedagógica tem sido produtora de linguagem dialógica ou é o canal pelo qual se aplica um saber estabelecido pelos professores? Tem havido comunicação, tem-se possibilitado a criação da cultura escolar promotora de conhecimentos significativos? Sabemos que, cada vez mais, a cultura está nas mãos do poder. Entretanto, aprendemos, com esse mesmo autor, que a cultura no singular é mortífera e ameaça a criação e a invenção. Sendo assim, defendo que seja desvelada toda a riqueza da pluralidade das culturas presentes nos currículos praticados por professores e alunos no/do cotidiano escolar, ou seja, que se deixem emergir os diversos sistemas de referências e significados que estão sendo silenciados e mortificados na escola.

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91 Acrescenta ele, ainda, que quanto mais a economia se unifica, mais a cultura deve diversificar-se, pois ela é uma prática significativa, que não consiste em receber pronto, mas em fabricar tudo o que nos é oferecido para viver, pensar e sonhar. Toda cultura requer, portanto, uma ação, um modo de apropriação, uma transformação pessoal.

acontecimentos cotidianos de uma escola de ensino fundamental da Prefeitura Municipal de Vitória, a fim de visibilizar a fabricação de conhecimentos, linguagens, afetos, afecções e do trabalho coletivo, ou seja, dos processos curriculares, percebo que os praticantes do cotidiano necessitam de mais espaçotempo para dialogarem, apresentarei, a seguir, alguns acontecimentos que foram vividos em nossas Para Certeau (1995, p. 10), mais do que um redes de possibilidades. conjunto de valores que devem ser preservados na sociedade, a cultura tem hoje a conotação de “[...] um trabalho que deve ser realizado em toda a extensão da vida social”. Por isso, faz- SOBRE AS ENTRADAS E SAÍDAS se necessário trabalhar visando a determinar, DE PROFESSORES E ALUNOS NAS no fluxo fecundo da cultura, um funcionamento ESCOLAS social, uma topografia de questões, um campo Os professores, ao serem questionados de possibilidades estratégicas/táticas e de sobre o que gostariam de buscar soluções para o implicações políticas. cotidiano da escola apontam: “Como podemos A cultura no plural, sugerida por Certeau, acabar com o disse me disse, as fofocas, o clima é o campo de luta entre o rígido e o flexível, é pesado, essa sensação de que estamos sendo aquela que se contrapõe à cultura no singular controlados? Tudo isso nos incomoda muito” (a que impõe sempre a lei de um poder), pois relatam algumas professoras. Logo na primeira acredita que, para haver cultura, é preciso que as reunião coletiva, um dos assuntos em pauta foi à práticas sociais tenham significado para aquele instalação do ponto digital. A diretora comenta que as realiza. que o diálogo com a Secretaria Municipal de Educação (SEME) “É muito difícil”. E começa a apresentar o que havia recebido como orientações sobre a carga horária dos NOS MEANDROS DE UM LABIRINTO professores. “Temos que cumprir o horário que SEM CENTRO E SEM PERIFERIA, SEM assinamos no contrato, nem mais nem menos. MARCAS. INFINITAMENTE ABERTO... Temos um problema: As Escolas Municipais de Ensino Fundamental (EMEFS) soltam os Somos diariamente interpelados pelas alunos 11h30min. E os Centros Municipais narrativas da mídia, dos jornais, do cinema de Educação Infantil (CMEIS) soltam às 12h. e demais produtos culturais que produzem Então as professoras dos CMEIs acham injusto múltiplos significados nas complexas redes de a diferença de horário, e já tem CMEIs soltando subjetividades dos praticantes dos cotidianos pelo menos duas vezes na semana alunos mais escolares. As fronteiras curriculares já foram cedo. Foi, então, sugerido ponto digital para rompidas e os inúmeros conhecimentos controlar os atrasos” - ressalta a diretora. “Mas, científicos, culturais, valores, linguagens, afetos quando irá começar a descontar os atrasos?” e afecções presentes nos artefatos culturais que - pergunta uma professora. “Nós seremos circulam nas escolas estão embaralhados nessas avisadas?” - indaga outra professora. “Diálogo redes de subjetividades. é fundamental” - falou a diretora. “Uma mão Assim, ao me envolver nos múltiplos lava a outra, exceção existe”. “Quando vão começar a fazer a folha de registro de atrasos?” Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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92 - pergunta o pedagogo. “Já estamos fazendo, disse a diretora e estas negociações existem. Nós temos uma tolerância de dez minutos de atraso, só que a tolerância está virando a regra. Alguns funcionários fazem da tolerância o horário de chegada. Todos começam a chegar 10min. Depois, como se este fosse o horário”. “E se eu chego mais cedo, posso sair mais cedo?” - questiona uma professora. “Não, a orientação é entrar e sair no horário. E os atrasos serão descontados no pagamento. Quando vocês tiverem problema, vamos negociar. Já teve casos que nós orientamos a professora a buscar atestado.” “Vai ter transparência nesse processo?” - perguntou uma professora? “Como o aparelho de ponto digital irá fazer tudo isso é que é estranho” - retrucou uma professora. “Nós estamos aqui para resolver problemas” - disse a diretora. A professora respondeu: “Oba!! Tô precisando de dinheiro!!“.

Na contracorrente da posição hegemônica, entendo que os professores e alunos precisam ser reconhecidos como sujeitos criativos, autores de saberes e fazeres contrários à repetição e à reprodução de uma ordem social injusta, de uma proposta curricular preestabelecida e descontextualizada da realidade sociocultural dos alunos: uma proposta curricular que tem demonstrado ser abstrata e sem sentido.

Assim, faz-se necessário continuar percorrendo as múltiplas e complexas redes de saberes, fazeres, poderes, afetos e acontecimentos que se entrecruzam nos cotidianos escolares, resultado das ações de seus praticantes, pois, como nos aponta Certeau (1994, p. 110) “[...] cada estudo particular é um espelho de cem faces (neste espaço os outros estão sempre aparecendo), mas um espelho partido e anamórfico (os outros aí se fragmentam e se alteram)”. As redes de possibilidades Sabemos que o movimento deste estudo se formam, portanto, nos intercâmbios, é, como nos ensinou Larrosa (2003, p. 31), nas múltiplas leituras, nos confrontos, nos um labirinto: “[...] aberto ao infinito. Às vezes movimentos constantes de táticas e estratégias. multívoco, prolífico e indefinido. Um espaço de Por isso, ter Certeau como referência abre pluralização, uma máquina de desestabilização e dispersão”. Mas, é nos meandros deste o campo de possibilidades para os estudos com labirinto sem centro e sem periferia, sem marcas o cotidiano, que buscam visibilizar as artes de e infinitamente aberto como nos propõe o autor, fazer e pensar dos professores e alunos, atores principais na criação e invenção das nossas que nos propomos a penetrar. escolas. POR UMA REDE DOS POSSÍVEIS... Percebo, então, que essa minha aposta de que, ao visibilizarmos o que fabricam os alunos e professores com os usos que fazem dos produtos culturais, estaremos potencializando as forças que ficam entre esses movimentos de criação e invenção da escola. Sabemos o quanto se faz necessário discutir e divulgar as táticas e artimanhas dos professores e alunos porque, por meio delas, podemos anunciar outro fazer pedagógico, diferente daqueles que costumam considerar o professor e alunos como (in)capazes, (im)potentes.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, J. G. de. De “abobrinhas” e “troca de figurinhas” In: AZEVEDO, J. G. de; ALVES, N. G. (Org.). Formação de professores: possibilidades do imprevisível. Rio de Janeiro: DP& A, 2004. CARVALHO, J. M. Cartografia e cotidiano escolar. In: FERRAÇO, C. E.; PEREZ, C. L. V.; OLIVEIRA, I. B. Aprendizagens cotidianas com a pesquisa: novas reflexões em pesquisas nos/dos/com os cotidianos das escolas.

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93 Petrópolis, RJ: DP&A, 2008.

M. C. A cultura no plural. Campinas, S.P.: Papirus, 1995.

CARVALHO, J. M. O cotidiano escolar como comunidades de afetos. Petrópolis, RJ: DP&A; JOLSGRILBERG, F. B. Cotidiano e invenção: Brasília, DF: CNPq, 2009. os espaços de Michel de Certeau. São Paulo: Escrituras, 2005. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano1: as artes de fazer, Petrópolis, R.J.: Vozes,1994. LARROSA, J. Estudar. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. ______. A invenção do cotidiano 2: morar e cozinhar, Petrópolis, R.J.: Vozes,1996. OLIVEIRA, I.B.; SGARBI, P. Estudos do cotidiano & educação. Belo Horizonte: ______. A cultura no plural, Campinas; Autêntica, 2008. Papirus, 1995. PAIS, M. J. Vida cotidiana: enigmas e DELEUZE, G. Lógica do sentido, 4.ed. São revelações. São Paulo: Cortez, 2003. Paulo: Editora Perspectiva, 2003. SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: FERRAÇO, C. E. Currículo, formação contra o desperdício da experiência. São Paulo: continuada de professores e cotidiano escolar: Cortez, 2002. fragmentos de complexidade das redes vividas. Cotidiano escolar, formação de ______. Pela mão de Alice: o social e o político professores(as) e currículo. São Paulo: Cortez, na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2003. 2005. ______. Fragmentos da história de vida e das idéias de Certeau para a problematização da presençaausência do Outro nas narrativas de professores e professoras. In: Seminário Internacional ss Redes de Conhecimento e as tecnologias: os outros como legítimo outro, 5., 2009, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2009. GALLO, S. Acontecimento e resistência: educação menor no cotidiano da escola. In: CAMARGO, A. M. F.; MARIGUELA, M. (Org.) Cotidiano escolar: emergência e invenção, Piracicaba: Jacintha Editores, 2007. GIARD, L. História de uma pesquisa. In: CERTEAU, M. C. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. ______. Momentos e lugares. In: CERTEAU, M. C. A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar. Petrópolis, 1996. ______. A invenção do possível. In: CERTEAU, Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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94 ESCOLA, CULTURA E SOCIEDADE: CONHECIMENTOS, SUBJETIVIDADES E SENTIDOS TECIDOS EM REDES DE COMUNICAÇÕES/CONEXÕES SOARES, Maria da Conceição Silva RESUMO A ambiência comunicacional modificou nosso cotidiano. Outras formas de sociabilidade (como audiências de televisão, MSN e Orkut) e de subjetividade41 (como telespectador e internauta) articulam-se às formas “tradicionais”. Os modos de subjetividade produzidos nas práticas culturais nem sempre potencializam a vida de seus atores/autores. Contudo, analisar a comunicação praticada em espaçostempos cotidianos nos permite perceber resistências e invenções que se produzem nos diferentes usos dessas tecnologias. A escola pode constituir-se em um desses espaçostempos de mediação em que se instituem outros modos de subjetivação para além da pretensão de uma midiatização hegemônica. PALAVRAS-CHAVE Comunicação. Redes cotidianas de saberesfazeres. Sentidos e subjetividades. CAMINHANDO E CONTANDO Foi à moda Caetano Veloso, “caminhando contra o vento, sem lenço sem documento”, mas com a máquina fotográfica na bolsa e o caderninho e a caneta nas mãos, que eu entrei, com o “peito cheio de amores vãos” e com o firme propósito de começar a rabiscar os rumos dessa pesquisa, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Álvaro de Castro Mattos, no bairro Jardim da Penha, Vitória, Espírito Santo, no dia 22 de fevereiro de 2005. Já era quase noite. A diretora me pediu para que eu explicasse a proposta da pesquisa que pretendia realizar na escola. Expliquei que me propunha a pesquisar os usos dos meios de comunicação, mas que ainda não tinha uma forma bem definida de como fazê-lo. Pretendia desenvolver esse projeto com a escola.

Para nós, o cotidiano não é apenas o locus privilegiado de uma investigação, mas um espaçotempo de inventar uma forma de fazer ciência (e talvez de fazer comunicação e educação) que não se dá a partir da clivagem entre sujeito e objeto, mas que se faz na relação com sujeitos, objetos, intensidades, fragmentos, imagens, sensibilidades, memórias, que se transformam mutuamente no decorrer da caminhada, incluindo-se aí, principalmente, o próprio pesquisador. Falar sobre os sujeitos das escolas a despeito de se falar com eles, resulta, quase sempre, em discursos vazios.

Antes de entrar na Álvaro de Castro Mattos, sabia, porque morava em frente a ela e, principalmente, por causa da placa no portão e dos uniformes, que era uma escola pública de ensino fundamental, que funcionava de manhã, à tarde e à noite (pelos movimentos de entrada e saída) e que era cercada por um alto muro Aprendi e compartilhei com Ferraço colorido com grafites, atrás do qual pouca coisa (2003, 2004, 2005) que bater o pé na pesquisa se via e se queria ver. com o cotidiano é uma questão política e epistemológica. Graças aos meus ouvidos, eu sabia também que as pessoas de lá cantavam o Hino Nacional 41 Subjetividade, entendida, conforme Barros (2000), refere-se quintas-feiras, dançavam quadrilhas aos modos existência fabricados e modelados no registro social. nas Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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95 em junho, jogavam bola na quadra todos os dias, demoravam a se organizar ou nunca se organizavam em fila - porque as professoras gritavam muito ao microfone, e cediam espaço para reuniões de grupos religiosos em alguns domingos. Pensei em levantar informações sobre a escola pesquisando nos arquivos da Prefeitura de Vitória, porém, achei mais interessante começar a tentar compreendê-la por meio de observações/impressões/sensações e das percepções de alunos e professores. Essas informações oficiais que eu poderia obter, quase todas quantitativas (número de alunos, funcionários e professores; data de fundação; horários; turnos; salas de aula; etc.) poderiam ficar para depois e pensei, então, em fazer isso na medida em que sentisse, e se sentisse, necessidade. Naquele momento, não queria que nada orientasse meu olhar, minha audição, meu olfato, meu paladar e meus primeiros passos. Acredito agora que, nesse início de caminhada, optei, como sugeriu Larrosa (2004), por me deixar levar pela experiência e perceber como e o quê, de imediato, a escola comunicava. Na primeira visita sozinha à escola pude perceber que a minha presença, como jornalista e pesquisadora, funcionava como uma forma de interpelação (intercessão?). Diretora, pedagoga e professores, sem que eu perguntasse nada, todos tinham alguma coisa que queriam dizer ou queriam saber sobre comunicação. Experiências, propostas e idéias que aos poucos iam se entrelaçando com as minhas experiências, propostas e idéias, completandoas, interrogando-as e transformando-as, na tessitura deste trabalho. - Meu sonho era ser jornalista, mas meu pai não me deixou sair da cidade onde a gente morava para eu estudar, então acabei fazendo pedagogia, mas minha filha é jornalista. - Para mim a escola é um meio de comunicação que não sabe usar seu poder. - Você veio aqui para ver se estamos usando corretamente os meios de comunicação? - Usamos muitas imagens na escola, a História,

por exemplo, é feita de imagens. - Podíamos fazer uma pesquisa para saber a imagem que os alunos têm dos professores. - Eu adoro as propagandas. Assisto a todas para depois analisar criticamente. - Gente, com licença, mas eu vou ler o jornal, estou tentando fazer isso desde cedo.

Logo nos meus primeiros dias de imersão no cotidiano da escola pude perceber também que meios, recursos e tecnologias da comunicação e das mídias estavam presentes no dia a dia, independente da minha pesquisa, das determinações oficiais e dos usos recomendados pelas autoridades educacionais, contudo, hibridizados com outros recursos, meios e tecnologias agora considerados “tradicionais” nas práticas educativas: cartazes impressos; cartazes desenhados a mão ou ainda misturando fotos recortadas de revistas com outros textos produzidos na escola que modificavam as mensagens originais; histórias em quadrinhos feitas pelas crianças; vídeos caseiros; bilhetinhos; boatos e fofocas; jornalzinho realizado por alunos; trabalhos de arte produzidos no computador; fotos tiradas por professores para registrar festas e excursões; idas ao cinema; quadro de giz; calendários e manuais do estudante e do professor; fotos e gravações dos colegas, das brincadeiras e até de aulas feitas a revelia por estudantes com máquinas digitais e até mesmo por meio de celulares; sinalizações dos espaços, como salas de arte, de vídeo, refeitório e banheiros feminino e masculino; conversas sobre o último capítulo da novela ou sobre um novo filme em cartaz; bate-papo no MSN e no Orkut (onde há uma comunidade criada para escola com participação de alunos e professores). Todos esses, além de muitos outros eventos e relações comunicativas, faziam parte do cotidiano de alunos e professores sem que fosse possível um controle total por parte do sistema e da escola, mas, obviamente, também constituíam e modificavam memórias, histórias, métodos, conhecimentos e currículos produzidos em redes cotidianas por aqueles sujeitos em comunicação.

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96 A cada dia outras redes iam se formando e se ampliando, porém, nesse início de caminhar eu ainda me sentia meio “fora de lugar”42, expressão que tomei emprestado de Said (2004) para dar conta desse sentimento de estranhamento que estava experimentando. Foram precisos mais dois anos convivendo com os cotidianos da escola para que pudesse começar a sentir, compreender e contar o que ali se criava e recriava todos os dias.

de objetividade, de ordem. Ainda assim, esse processo não é totalmente individual e objetivo como se supõe, uma vez que ele é atravessado por nossas experiências, relações, negociações, interações, condicionamentos e valores quase sempre cambiantes.

Além de permitir um jogo mais flexível com as palavras e os variados textos, a produção de discursos no computador, principalmente quando se está conectado à internet, facilita e incentiva o uso das imagens que circulam livremente na web para compor possíveis significações. Para além de uma subjetivação COMUNICAÇÃO E SENTIDO maquínica, encaro esse processo como a Ao tentar pensar como as práticas e constituição de um entre-lugar43 (BHABHA, relações comunicativas operam na produção de 1998) povoado por intervenções imprevisíveis conhecimentos e na constituição de currículos, de imagens, textos e diversos tipos de signos me deparei, inicialmente, com a necessidade de que, impossíveis de serem controlados, afetam considerar como esses recursos, especialmente e desviam o pensamento, arrancando-o de sua as novas tecnologias das telecomunicações e da verdade, de sua direção, de seu a priori. informação, alteram as condições de produção Essa lógica operacional não se remete, e as lógicas de operação do pensamento e da portanto, a uma escolha pessoal, objetiva, narrativa também nos documentos oficiais e nos subjetiva e voluntária de um sujeito que captura estudos acadêmicos. palavras e imagens a seu bel prazer. É que até No momento em que comecei a realizar a certo ponto palavras e imagens se impõem escritura desse trabalho me toquei que fazê-lo a nós, relacionam-se a nossas experiências em um computador deixava o pensamento fluir e representações, independente do que seu muito menos sujeito a um desenvolvimento autor pretendia significar. As operações e linear, do tipo início, meio e fim. Ia e voltava os modos de uso (CERTEAU, 1994) das várias vezes. Graças ao dispositivo recortar- imagens (fotografias, desenhos, ilustrações, colar, mudei vários fragmentos do texto de lugar, gravuras, pinturas, tabelas, palavras), sempre para tentar compor assim outras lógicas, outros sociais, também nos instigam a pensar como sentidos, acompanhando e reorganizando as elas funcionam nos processos de produção de interrupções, as desventuras, os enredamentos conhecimentos e sentidos. e as derivas na prática de pensar. Com Deleuze (2003) aprendemos que a É o que na fabricação de produtos na interpretação de um signo por uma pessoa é uma indústria da comunicação chamamos de edição. atitude de observação dos interpretantes (vários No caos semiótico da mídia, e acho que também possíveis) que o signo é capaz de produzir e da vida cotidiana, sem excluir a academia, é a que o interpretante que um signo é capaz de edição que cria uma aparência de linearidade, de coerência, de causa e efeito, de unidade,

42 Fora de lugar é um registro de um mundo essencialmente perdido ou esquecido (SAID, 2004).

43 Entre-lugar para Homi Bhabha (1998) é um espaço em que traduções, combinações, hibridizações, confusões e negociações (inclusive discursivas) produzem a diferenciação como condição e como processo.

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97 gerar é sempre outro signo. Se assim for, o deslocamento de um sentido que oprime, reduz e imobiliza e a produção de outros sentidos em favor da felicidade e da expansão da vida, pode acontecer com a ampliação de interpretantes (outros possíveis) que emergem com as redes de saberesfazeres (ações, relações, pensamentos, crenças, valores, etc.) tecidas pelos praticantes do cotidiano (FERRAÇO, 2005). Nesta trilha que fui traçando para pensar como se produzem conhecimentos e sentidos, precisei considerar ainda outros tipos de imagens, especialmente pela intensidade com que elas me afetam. Estou pensando nas imagens sonoras: vozes, gritos, músicas, ruídos, silêncios, bem como nos estados emocionais, cognitivos e corporais que elas induzem. Wisnik (1999) assinala que o ritmo está na base de todas as percepções humanas. A música funciona, então, como uma forma de “editar” os ruídos e os silêncios caóticos do mundo, produzindo um som constante e afinado que diminui o grau de incerteza do universo inseminando nele um princípio de ordem. Para ele, o ruído é o som do mundo, constituindose em freqüências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma ordenação. Talvez seja pensando a partir dessa perspectiva que Certeau (1994) nos recomenda escutar os sinais e nos aponta que gritos e ruídos escapam da ordem escrituraria, e nesse caso, também da fala e da música.

O nosso contato cotidiano com o mundo acontece na superfície das coisas e de suas imagens, no encontro de singularidades nômades e anônimas, impessoais e pré-individuais, dinâmicas e mutantes. A significação é então possível pelo acontecimento que a envolve, ela emerge no meio dele, em meio a ele. Se concordamos com esse posicionamento, o sentido da escola, do conhecimento e da vida só pode ser o não-sentido único e absoluto, não como ausência de sentido, mas como espaço da multiplicidade de sentidos possíveis, forjados, como em um rizoma, em meio a atritos entre corpos, incorporais, fragmentos, restos de textos e imagens, cacos de memórias, pulsações, choques e encontros. Escola pensada como a casa vazia, um lugar sem ocupantes habitado por ocupantes sem lugar, onde o movimento das redes cotidianas tecidas por sujeitos em relação, em comunicação, produz acontecimentos, produz sentidos. E como operam as redes cotidianas de saberesfazeres? Como elas são tecidas nas práticas cotidianas? Como com elas se tecem em e tecem os acontecimentos e sentidos? Talvez, possamos agora começar a pensar em comunicação e em educação, e principalmente nos modos como essas práticas engendram a tessitura de sentidos tornando-se, assim, necessárias e possíveis.

Quando escrevemos, falamos, contamos, narramos e montamos uma seqüência de imagens USOS E INVENÇÕES (incluindo-se aí as palavras, as memórias, as Pra começar fotos, os sons, os movimentos, os desenhos, Quem vai colar Os tais caquinhos etc., presentes e ausentes), nós procuramos Do velho mundo editar a vida caoticamente vivida, a experiência. Pátrias, Famílias, Religião Tentamos dar-lhe um sentido. Esse esforço nos é E preconceitos exigido porque experimentamos uma inaceitável, Quebrou não tem mais jeito embora frequentemente sentida, sensação de Como na canção de Marina Lima, muitas caos, de não-sentido (que não é ausência de vezes temos a sensação de que tudo a nossa volta sentido, mas talvez multiplicidades possíveis). está se esfacelando rapidamente. O que parecia fazer sentido agora não parece fazer mais. O Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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98 mundo ficou grande demais, aberto demais, fluído demais, imagético demais, ficcional demais, fragmentado demais, inseguro demais, incerto demais, efêmero demais, apressado demais, individualista demais, hedonista demais, intenso demais. Tudo ultimamente tem parecido excessivo. Tudo é muito over. Excesso de informação, excesso de possibilidades, excesso de promessas de felicidade, excesso de probabilidades, excesso de signos, excesso de mercadorias, excesso de necessidades, excesso de sedução. Consumo excessivo. Narcisismo excessivo. Competição excessiva. Ao mesmo tempo em que as coisas parecem sobrar em relação ao tempo, ao espaço, à nossa vontade e às nossas condições para desfrutá-las, sentimos sempre faltar alguma coisa. Falta de dinheiro, falta de solidariedade, falta de segurança, falta de confiança, falta de assistência, falta de responsabilidade, falta de ética, falta de compreensão, falta de liberdade, falta de criatividade, falta de sinceridade, falta de lealdade, falta de humildade, falta de tranqüilidade. Paradoxos desses tempos pósmodernos (embora nem tão pós-modernos assim!). Nesse cenário, e com o desenvolvimento das mídias e das tecnologias da informação, no contexto da globalização dos mercados e da transnacionalização do capital, uma exigência de comunicação total (veloz, informacional, em fluxos, à distância, objetiva, que torna tudo visível, mas de forma espetacular) iniciada com o surgimento dos meios de comunicação foi intensificando-se e invadindo quase todos os espaços e tempos de nossas vidas e, ao mesmo tempo, tendo o reconhecimento de sua eficácia reduzido à transmissão e à recepção, agora planetária, de dados e conteúdos, ou seja, de informações.

mais associada à divulgação de informações, parece ter se tornado a nova chave para diagnosticar e solucionar todos os problemas da humanidade. Outras expressões tornaramse, então, corriqueiras no nosso dia a dia: “o que falta é comunicação”, “tudo se resolve com comunicação”, “a comunicação é a alma do negócio”, “tudo comunica”, “comunicação organizacional”, “assessoria de comunicação”, “meios de comunicação”, “redes de comunicação”, “vasos comunicantes”, “ações comunicativas”, “políticas de comunicação”. Todo mundo acha que precisa e todo mundo quer se comunicar. É perceptível que a ambiência comunicacional instituída pela agenda das mensagens midiáticas e pelos modos de subjetivação que as tecnologias da comunicação e informação engendram, modificou nossa vida cotidiana em suas diversas dimensões, produzindo reordenamentos culturais. Outras formas de relações sociais (como as audiências compartilhadas de rádio e televisão e os grupos do “Orkut”, Chats e MSN) e de subjetividade (como o ouvinte, o telespectador e o internauta) articulam-se às formas agora ditas “tradicionais” (a escola, a família, o trabalho, o aluno, o pai, a mãe e o professor, por exemplo). Com Barros (2000), considero importante destacar que os modos de subjetivação que as práticas, educacionais ou culturais, vêm instituindo nem sempre ocorrem no sentido de potencializar seus autores/atores.

Contudo, uma imersão atenta à vida cotidiana, com disposição para se enxergar para além da sujeição das pessoas às lógicas e prescrições das indústrias culturais, nos permite perceber que os praticantes da cultura inventam, em suas operações de usuários desses produtos e tecnologias, outras lógicas e sentidos diante do que lhes é oferecido ou imposto, constituindo redes de saberesfazeres, solidariedades e indisciplina, que potencializam suas vidas nas Nas últimas décadas, a idéia de contingências que lhes são possíveis no presente “comunicação” (e seus derivativos), cada vez vivido. Como nos conta Certeau (1994, p. 97): Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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99 Produto-res desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas da racionalidade funcionalista, os consumidores produzem uma coisa que se assemelha às “linhas de erre” de que fala Deligny. Traçam “trajetórias indeterminadas”, aparentemente desprovidas de sentido por que não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os vocabulários das línguas recebidas (o vocabulário da TV, o do jornal, o do supermercado ou das disposições urbanísticas) embora fiquem enquadradas por sintaxes prescritas (modos temporais dos horários, organizações paradigmáticas dos lugares, etc.), essas “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes.

Com Bhabha (1998) e Certeau (1994) penso que, se há ressignificações, resistências, conflitos, cumplicidades e refuncionalizações na recepção e nos usos (não só dos conteúdos e formas midiáticas, como também dos conteúdos e formas escolares), as condições para isso estão na ambigüidade, na ambivalência e na contingência das práticas complexas e paradoxais dos que estão na posição de usuários-receptores e também na ambigüidade, na ambivalência e na contingência das práticas complexas e paradoxais dos que estão na posição de emissores (ambas as posições não são fixas, mas alternantes, superpostas e enredadas com relações muito mais amplas, para além de uma ação educativa-comunicativa específica), gerando entre-lugares em que emergem, das negociações, traduções e combinações, diferentes pontos de vista e posicionamentos entre os praticantes da cultura. Estes espaços possibilitam uma comunicação-educação que se realiza por meio do encontro e que não visa o consenso e sim a tradução, a negociação, a criação e a ampliação das possibilidades para o conhecimento e para a vida.

na Escola de Ensino Fundamental Álvaro de Castro Mattos durante a minha pesquisa.

COMPUTADOR, POSSÍVEIS E POSSIBILIDADES Os computadores, a Internet, o MSN e o Orkut fazem parte do cotidiano dos praticantes da escola Álvaro de Castro Mattos, eles estão presentes lá e também nas casas da maior parte dos alunos. Mas, que práticas e processos são engendrados com os usos desses recursos e tecnologias na escola? De acordo com Alves (2001), para se buscar entender as relações existentes entre redes de conhecimentos/valores e tecnologias (criadas em lugares que estão muito além do espaçotempo escolar, mas que com ele mantêm relações) é preciso tentar compreender esse uso nas lógicas que o sustentam. Ela explica que, para além do consumo dos produtos que lhes são fornecidos, os sujeitos do cotidiano fazem usos deles que desviam-se da racionalidade dominante fazendo surgir alternativas em trajetórias que não podem ser previamente determinadas por que serão sempre diferentes. Nessas operações de usuários criam-se outras maneiras de marcar socialmente o desvio operado em uma determinada prática. Entre uma multiplicidade de usos possíveis, os alunos da oitava série, por exemplo, pesquisam na Internet, durante uma aula de Artes, informações sobre artistas contemporâneos e imagens de suas obras. Além das pesquisas, eles copiam e colam imagens dessas obras no programa paint, onde interferem nelas, melhor dizendo, onde criam outras imagens a partir delas para tratar de suas experiências, suas percepções, suas necessidades e seus desejos.

Outras operações de usuários (CERTEAU, De uma forma abreviada e a título de 1994) das tecnologias da informática são exemplificação, me proponho então a narrar inventadas e/ou praticadas no laboratório algumas dessas operações de uso de captei Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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100 pedagógico, criado para dar apoio a alunos com “deficiências visuais”. A escola ACM tem três alunos como tipos diferentes de problemas de visão, e as alternativas encontradas pela professora que coordena o laboratório buscam se adequar a essas singularidades. Para Fernanda, que é totalmente cega, livros e textos são escaneados, jogados no computador, convertidos por meio de um programa específico para o sistema braille e depois impressos em uma impressora especial. Fernanda tem 13 anos, está na sétima série e estuda na escola desde a primeira. Fernanda me disse que não tem dificuldades, que está feliz e que se sente muito bem. Ela adora ler e já leu mais de 100 livros graças às adaptações feitas pela professora.

E O CELULAR, HEIN? AINDA DÁ PARA IMAGINAR A VIDA SEM ELE? Na tentativa de reorganizar, normatizar ou de produzir comportamentos desejáveis na escola, foi realizada uma campanha pela disciplina, que inclui a proibição do uso de celulares. Os cartazes da campanha foram feitos no computador e depois de impressos colados nas paredes. Mas o que me chamou atenção foi a necessidade de refazer as normas na escola. A resistência, como disse Foucault (1995), não é a negação, a recusa das normas, ela as antecede. É a possibilidade da liberdade, da invenção, de fazer de outros modos que leva à instituição de normas. Se o uso o celular foi proibido foi porque ele já estava lá, freqüentando as aulas com a garotada. Sem querer, neste momento, avaliar que comportamentos são mais adequados, o modo de funcionamento da normatividade está colocado. Celular, bola, chiclete e comida nas dependências da escola não pode mais! Pelo menos para os alunos. O que não quer dizer que eles aceitaram as restrições passivamente, sem problematizá-las, sem negociá-las. A pedagoga foi intimada pelas crianças a parar de mascar chicletes.

Natália é outra aluna usuária do laboratório. Ela tem, segundo a professora, uma visão bem limitada, ou seja, enxerga muito pouco. Natália está sendo alfabetizada em sala comum, mas conta com a ajuda do computador. Para isso, a coordenadora do laboratório inventou um teclado especial. Ela fez no computador, imprimiu e recortou letras e números bem grandes e colou os pedaços de papel em cada tecla, de modo que Natália pudesse enxergar. Na hora em que a menina vai escrever, o computador é configurado com uma Para além da constatação da vigência fonte grande. Natália está alfabetizada e o ACM do modelo disciplinar (FOUCAULT, 1987), tem um computador que ganhou uma estética posto em prática em instituições fechadas em diferente dos outros encontrados no mercado. plena pós-modernidade, me ocorreu que esse modelo se articula com o controle a céu aberto, Os usos das tecnologias na informação por modulação, via recursos e tecnologias da na escola pesquisada, não se limitam, portanto, comunicação e da informação, como advertiu aos usos prescritos, mas permitem invenções Deleuze (1992). Parece loucura, mas percebemos imprevisíveis e incontáveis que podem ampliar quase que imediatamente os mecanismos por as possibilidades de conhecimento, colaboração meio dos quais a vigilância é exercida na escola e comunicação. A mediadora da sala de com vistas à homogeneização e à ordem, pelo informática, por exemplo, negociou com a menos em suas dependências, como os horários, escola a assinatura do velox (eles ainda utilizam calendários, prazos, uniformes, normas, rotinas, o link da prefeitura para entrar na internet), que inspeções, lugares pré-determinados, etc. No deve começar a operarem breve. Ela me disse entanto, demoramos mais a nos dar conta dos que pretende discutir e experimentar com os alunos modos interessantes de usar o Orkut, o artefatos oferecidos pelo mercado e que usamos cotidianamente para, todo tempo, controlarmos MSN, blogs e fotologs. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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101 uns aos outros, como o celular, o Orktut, o MSN, o Twitter, o Facebook, o bip, o e-mail, as câmeras de segurança, a moda, a camiseta da oitava série, isso sem falar nos rastreadores de carros e pessoas, web-camêras e outras coisitas mais. O fato de constatar a presença desses mecanismos não significa aceitarmos que estamos sujeitados a eles, mas sim que é partir dessa condição que podemos pensar uma outra estética de existência. Ah! Só para terminar essa intervenção: a escola proíbe o celular, exige o cumprimento do uniforme e das tarefas solicitadas pelo professor, tanto em casa como na sala de aula num caderno com caligrafia bem caprichada, mas faz sua campanha no computador com ilustrações que destacam o que é proibido e ainda convoca o aluno a se manter “conectado”. Essas são as ambivalências dos discursos da autoridade (BHABHA, 1998) que acabam constituindo entre-lugares em que se forjam desejos, entendimentos e sentidos diversos. Paradoxos de uma sociedade complexa! CONHECIMENTOS E SENTIDOS CRIADOS POR SUJEITOS EM COMUNICAÇÃO Assim como a mídia, a escola não é unicamente lugar de docilização, disciplinarização e controle, mas é lugar também de liberdade, de criação, de resistência (como invenção de outros modos de existência) aos processos de formatização da vida e da subjetividade. Independente de suas necessidades ou vontades, as escolas vêm sendo pressionadas pelos administradores globais da política e do mercado a trabalharem com parafernálias tecnológicas que até bem pouco tempo lhes eram estranhas. Mas elas o fazem, contudo, sem abrir mão de formas a elas mais familiares de comunicar.

lápis e o papel, o giz e o quadro negro, as tintas e os pincéis, as camisetas das oitavas séries, os recados e os desenhos na porta dos banheiros, os cochichos, a cola, a pichação, os murais. Lá estão também a arquitetura e os rituais que comunicam como devem ser significados e ocupados os tempos e os espaços, apesar de que quase nunca são obedecidos: a arrumação das salas de aula, as atividades nas quadras e nos pátios, os calendários, os horários das aulas, os muros, os banheiros femininos e masculinos, as filas na entrada e na saída, o manual do aluno, as festas, os campeonatos esportivos. Lá estão presentes ainda outras formas de comunicar que não se materializam em objetos e espetáculos: as vozes, os corpos, os gritos, as gargalhadas, as lágrimas, os gestos, os sons, os silêncios, os olhares, as cores, os cheiros, os sabores. E assim, deslocando, combinando e recriando fragmentos e restos desses meios, mensagens e recursos, se engendram redes cotidianas de saberesfazeres, tecendo diversas redes de comunicação e conexão com lógicas operacionais múltiplas, contraditórias, dinâmicas, mutantes, escorregadias, desviantes, complexas, paradoxais, originais e singulares, com as marcas dos praticantes da escola em que são criados, modificados, reforçados e inventados conhecimentos, atitudes, sentidos e modos de estar no mundo. Ferraço (2005) nos sugere considerar a diversidade de possibilidades que se colocam no cotidiano para o conhecimento, para o currículo e para a formação continuada. Para isso, ensina, o foco deve estar nas relações que se estabelecem entre os sujeitos cotidianos e nas possibilidades de conhecimento que elas instituem. Quais as possibilidades de conhecimento que estão ou não colocadas, que não são fixas nem únicas, e que se encontram relacionadas às condições de sobrevivência, para cada um dos sujeitos cotidianos? Por conseqüência, quais

Lá estão o vídeo, a TV, o computador, a máquina de fotografar, a máquina de filmar. E lá continuam valendo também os bilhetinhos, os cartazes, o grafite, os torpedos, o auto-falante, o Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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102 subjetivação como modificação dos limites que nos sujeitam, para nos reconstruir com outras experiências, com outra delimitação. Pensar os processos de subjetivação em termos de dobra implica despojar o sujeito de toda identidade É nesse contexto que pensamos a e de toda interioridade e, ao mesmo tempo, potência dos usos diversos e criativos dos reconhecer a possibilidade de transformação e recursos, meios de tecnologias da comunicação de criação que elas deixam abertas. e da informação, bem como as diversas práticas Com Barros (1997) destaco o caráter comunicacionais que emergem cotidianamente heterogêneo da subjetividade contemporânea, na escola. Não de trata de supervalorizá-los apesar da homogeneização de que é objeto através e nem de ignorá-los, tomando-os como algo da massmediatização. Segundo ela, são infinitas exterior à escola e a prática educativa, mas sim as possibilidades de se produzir subjetividades de pensá-los como diferentes possibilidades em ruptura com as modelizações capitalísticas. de conhecimento e conexão para os alunos Precisamos então compreender subjetivação (e também para os professores) que já estão como processo, como ruptura de equilíbrios colocadas e que precisam ser consideradas e estabelecidos, como criação e reapropriação ampliadas ao analisarmos e realizarmos os dos componentes de subjetividade produzindo currículos escolares. singularidade em “zonas não garantidas” em as possibilidades de conhecimento que estão ou não colocadas, e que também não são fixas nem únicas e que se encontram relacionadas às condições de vida, para o coletivo dos sujeitos de uma determinada comunidade escolar? (FERRAÇO, 2005, p. 19).

Com Martín-Barbero (2004) admito que a massimidiatização é mais uma aposta teórica, além de um discurso que muito interessa aos administradores e operadores do mercado das telecomunicações (que assim se fortalecem), do que uma possibilidade concreta, embora pudesse vir a sê-lo se aderíssemos plenamente ao seus projetos. A homogeneização e o consenso sequer podem ser garantidos pela ação e vontade das mídias, que, como instituições também complexas e híbridas, abrigam uma variedade de posicionamentos e atitudes forjados nas negociações com outras instituições, outras manifestações, outras lógicas, outras rotinas, que são sua condição de credibilidade e, ao mesmo tempo, configuram sua ambigüidade.

que práticas sociais escapam da modelização e da serialização. Segundo a autora: Esse processo, portanto, não é do tipo recipiente, ou seja, em que depositariam coisas exteriores que seriam interiorizadas. A subjetividade é manufaturada como qualquer outro tipo de usina na sociedade industrial. Subjetividade, portanto, produção (BARROS, 1997, p. 64).

Assim, o sujeito está sempre em produção, com capacidade de afetar e ser afetado por estar enredado em uma cadeia de conexões entre humanos, artefatos técnicos, dispositivos de ação e pensamento. O dobrar, desdobrar e redobrar substitui o essencialismo.

França (2006) nos traz a noção de sujeito em comunicação, que significa algo mais De qualquer forma, a ambiência da específico do que sujeito da comunicação, que comunicação e da informação é incontestável e seria um enunciador de discursos e um leitor de é em meio a ela que nos movemos atualmente. textos, e nomeia um sujeito enredado numa teia E é também na relação com os meios, recursos, de relações. De acordo com a professora, são as lógicas e tecnologias da telemática que nos relações que constituem esse sujeito: a relação constituímos sujeitos. com o outro, a relação com o simbólico. Ela explica que o sujeito em comunicação não é um Santaella (2004) utiliza o conceito de sujeito no singular, mas no plural, em relações dobra de Deleuze para explicar os processos de mediadas discursivamente. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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103 Trata-se, portanto, de uma dupla injunção, de uma triangulação. Tal apreensão produz o enquadramento lógico para entender sua natureza, seja sua constituição. São sujeitos interlocutores – sujeitos que falam um com o outro, produzidos nos e pelos laços discursivos que os unem (FRANÇA, 2006, p. 77).

Os sujeitos em comunicação encontramse em uma situação de co-presença e mútua afetação. São sujeitos “constituídos na relação e pela presença do outro, a partir da capacidade de construção de gestos significantes e de projeção dos movimentos e expectativas recíprocas” (FRANÇA, 2006, p. 78). A ação que constitui os sujeitos em comunicação, segundo ela, é, portanto, “a ação de afetar e ser afetado pelo outro através de materiais significantes”.

REFERÊNCIAS ALVES, Nilda. Redes cotidianas de conhecimentos e valores nas relações com a tecnologia. In: Congresso As redes cotidianas de conhecimento e tecnologia, 2001, Rio de Janeiro. BARROS, Maria Elizabeth Barros de. Subjetividade e mídia. Revista Interface. Ano II, nº 3, pp. 63-68. CCJE – UFES: Vitória, 1997. ______. Procurando outros paradigmas para a educação. Educação & Sociedade. Ano XXI, nº 72, pp. 32-42. Agosto/2000. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

Esses sujeitos em comunicação, praticantes do cotidiano escolar, imprimem CERTEAU, Michel de. A invenção do diferentes sentidos sobre a, na e com a escola e, cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. por efeito, sobre o, no e com o currículo. Podemos pensar, então, que as relações que se constituem nas práticas comunicativas, esses “entres” que se forjam com as práticas dos sujeitos em comunicação, possibilitam a emergência de conhecimentos e sentidos, que instituem, ao mesmo tempo, sujeitos em constante processo de subjetivação, e, portanto, de invenção de si, e instituem mundo em permanente transformação e invenção. Acredito ser importante considerar e avaliar o que se produz nessas redes de relações comunicativas se buscamos efetivamente compreender e intervir para ampliar as possibilidades de conhecimento e de vida que se co-engendram nos cotidianos de nossas escolas.

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104 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. ______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubertz. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. RJ: Forense, 1995. FRANÇA, Vera. Sujeito da comunicação, sujeitos em comunicação. In: GUIMARÃES, César; FRANÇA, Vera (orgs.). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de cartógrafo: travessias latino-americas da comunicação na cultura. São Paulo: Loyola, 2004. SAID, Edward W. Fora do lugar: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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105 PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE NO TRABALHO DOCENTE SOUZA, Susane Petinelli RESUMO Coloca em discussão o trabalho no âmbito da educação pelo viés da produção de subjetividade. Para tal, busca apoio em práticas discursivas não discursivas que vão sendo engendradas no cotidiano educacional e que servem como orientadoras para as ações dos professores. Ao mesmo tempo evidencia-se que sempre podem ser construídas diferentes possibilidades de criação frente às verdades que modelam e tentam aprisionar os modos de fazer na docência. Além disso, acreditamos que todos os professores também são gestores em seu processo de trabalho, pois o trabalho aqui é compreendido com sendo gestão. PALAVRAS-CHAVE Produção de subjetividade. Trabalho docente. Gestão. INTRODUÇÃO Os profissionais da educação tendem a seguir certos modelos de ser professor, assim como, a própria área de conhecimento acaba por fortalecer a produção de certos tipos ideais, num processo histórico de produção e reprodução de modelos. Acreditando-se em uma história não contínua e linear e partindo-se da concepção de que outra história pode ser produzida para além de certos modelos e tendências, buscamos propor a realização de pesquisas em educação que estejam sensíveis para as descontinuidades no campo e que também possam mapear os processos que levam ao entendimento dos efeitos vivenciados. A educação secularmente vem produzindo modos de ser e pensar que vão modelando-se conforme as necessidades de cada momento. Esses modos de ser e pensar, e logo de agir, são produzidos e consumidos, propagando-se em discursos e práticas até o patamar de uma naturalização, ou ainda, podemos pensar em um processo de institucionalização.

(2007) e Foucault (1987), (1997), (2003), (2005), dentre outros. Mais do que um discurso científico sobre o trabalho em uma época, fazemos referência a práticas que podem ser discursivas, mas também a práticas que podem ser do tipo não discursivas e que vão sendo engendradas no cotidiano educacional, servindo como orientadoras para as ações dos docentes. Ao mesmo tempo, concordamos com Foucault (1987) quando este diz que o problema não é mais a tradição, o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que fundam e renovam os fundamentos. Sendo assim, algumas análises apontam para a possibilidade de repensarmos os modos de estar em sala de aula, de repensarmos a organização do trabalho docente e também apontam para algumas possibilidades de ação frente a situações que escapam das amarras daquilo que é considerado como instituído nesse campo.

Afinal, sabemos que em qualquer tempo, sempre existem verdades que são aceitas e que A fim de colocarmos em discussão o circulam em forma de discursos e práticas no trabalho no âmbito da educação pelo viés da âmbito educacional, e na sociedade de modo produção de subjetividade, buscou-se apoio geral. Da mesma forma, sempre podem ser nos estudos de Costa (2005), Deleuze (2005), construídas diferentes possibilidades de criação Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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106 frente a tais verdades que modelam e tentam PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE aprisionar os modos de fazer na docência. Explorar os processos de subjetivação, Numa perspectiva mais ampla é relevante assim como as condições nas quais estes lembrarmos que existem saberes que são ocorrem pode levar a uma análise das práticas produzidos e que adquirem um status de saberes discursivas imbricadas neste processo. Pois, científicos e, logo, de saberes verdadeiros. conforme Nietzsche (2004), o gosto geral vai Saberes que passam a ser reproduzidos nos se modificando devido a pessoas poderosas diferentes níveis educacionais por meio de e influentes, pronunciarem suas preferências (assim como o contrário) submetendo dessa práticas e de discursos. forma, muitas pessoas a uma obrigação que, Colocar em questão os modos de pouco a pouco, torna-se um hábito para cada funcionamento no trabalho e, em específico, vez mais pessoas, até transforma-se finalmente no trabalho docente, requer que estejamos em uma necessidade para todos. atentos para aquilo que escapa às prescrições e No caso dos trabalhadores docentes não que está possibilitando transformar o trabalho e o cotidiano de professores que, ao fazerem é diferente. Os discursos que são produzidos modulações em seu gênero profissional, criam na sociedade também habitam a vida dessas outros modos de ser professor e estar em sala de pessoas, o que pode levar a trabalharem mais aula. Para Clot (2006), existem modos de fazer e mais para suprirem as diversas necessidades que estão estabilizados em determinados meios, de consumo. Consumo de bens tangíveis, compondo uma espécie de prescrição coletiva, mas também de bens intangíveis, como conhecimentos e emoções. o chamado gênero profissional. Pensar a produção de subjetividade no trabalho docente requer investigações que perpassem diversas disciplinas do conhecimento. Entretanto, para além dessas disciplinas, é preciso que estejamos atentos para as esferas da vida que constituem os espaços nos quais esta produção subjetiva está ocorrendo incessantemente. Neste artigo, partese do pressuposto de que educação e trabalho são esferas imbricadas e que atuam como campos, nos quais, a subjetividade é produzida. Além disso, acredita-se que o tempo da maioria das pessoas está implicado em questões relacionadas tanto à esfera do trabalho quanto à esfera educacional. Levando-se em consideração os aspectos acima mencionados, pretende-se colocar em discussão as condições nas quais os processos de subjetivação vão sendo constituídos na educação, e em última instância, discutir e problematizar os próprios processos de subjetivação em curso.

Ao examinar as diferentes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel em uma estratégia, Foucault (2003) explica que o poder funciona e opera através do discurso, sendo este último, elemento das relações de poder. O que faz com que o discurso possa ser percebido como uma série de acontecimentos por meio dos quais o poder é vinculado e orientado. A partir desse pensamento, é possível perceber as três instâncias distinguidas por Foucault: saber, poder e subjetividade. E mais do que isso, percebe-se que “a verdade é inseparável do processo que a estabelece” (DELEUZE 2005, p.72). Ou seja, a instância do poder pode ser percebida operando por meio da instância do discurso vinculado à educação (instância do saber) que regra e tenta padronizar os comportamentos dos profissionais da área. E, operando em meio a esses acontecimentos que povoam o cotidiano educacional, percebemos a instância da produção de subjetividade. Instância na qual, há diversas tentativas de padronização,

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107 Nessa perspectiva, os próprios intelectuais ao mesmo tempo em que há diversas tentativas fazem parte do sistema de poder, na medida de escapar a esse processo. em que se posicionam como portadores de Dentre as características das práticas uma verdade, como agentes de um discurso. discursivas apontadas por Foucault (1997), No recorte desse trabalho, o interesse recai destaca-se a fixação de normas para a sobre aqueles intelectuais que, em sua maioria, elaboração de conceitos e teorias, na qual há um encontram-se no campo das ciências ditas jogo de prescrições que determinam exclusões humanas – mais especificamente, os professores e escolhas. Além disso, uma prática discursiva que produzem (e que também podem apenas reúne diversas disciplinas ou ciências. reproduzir) discursos em suas aulas por meio da Concorda-se com o autor quando defende que seleção dos conteúdos e também por meio da as práticas discursivas são mais do que modos produção de conhecimento científico. de fabricação de discursos, que ganham corpo Percebendo as ciências humanas como em conjuntos técnicos, instituições, esquemas comportamentais, tipos de transmissão e um conjunto de discursos, Foucault (2003) explica que estas estão relacionadas a outras difusão, mas também em formas pedagógicas. formas de saber e procedem conforme modelos Nas instituições de ensino alguns e conceitos oriundos da biologia, economia e estudos já estão sendo realizados nesse ciências da linguagem. sentido. Apontamos aqui a concepção sobre Nesse sentido, no âmbito da educação subjetividade para Prata (2005, p.113): [...] estamos supondo que a subjetividade também são propagados certos discursos que é sempre produzida, ou seja, ela não está na acabam incitando práticas em maior ou em origem nem é imanente à natureza humana. menor grau. Mesmo se considerarmos determinados modos de a subjetividade se organizar em relação ao psíquico, esses modos estão relacionados aos padrões identitários e normativos que se constituem em cada época. Esses padrões identitários estão ativamente presentes não só nas correlações, mas também circulam nas microrrelações entre os sujeitos.

A autora ainda afirma que para cada época diferentes regras que são transmitidas nas relações entre professores e alunos na escola também se modificam. Podemos pensar que mudam as regras, mudam as formas de sujeição, mudam as formas de transgressão, mudam os processos de subjetivação. Deleuze (2005, p.58) argumenta que para Foucault, os enunciados remetem a um meio institucional e exemplifica: a posição do escritor numa sociedade, ou então, a posição do médico no hospital, em uma determinada época: “Uma época não preexiste aos enunciados que a exprimem, nem às visibilidades que a preenchem”.

Ainda assim, talvez alguns trabalhadores docentes não acreditem, tampouco desejem investir nos ideais de qualificação e aprendizagem que estão sendo disseminados incessantemente em nosso tempo. Eles buscam experenciar outros modos de existir no trabalho. Talvez alguns deles tentem somente adaptar-se, moldando-se a um perfil solicitado para atender a certas exigências colocadas pelo mercado de trabalho – aquele que consegue aprender a aprender, mas também consegue aprender a desaprender – numa lógica quase absurda de aquisição e descarte de conhecimentos conforme as modulações econômicas, sociais e culturais. Ao tratar do discurso, Foucault (2005) expõe que existem condições para o seu funcionamento, assim como existe uma imposição de regras àqueles que o pronunciam. Dessa forma, não há uma permissão para que todos tenham acesso a um discurso. O

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108 autor também trata da questão da restrição. Uma restrição na forma de ritual, de modo a definir a qualificação necessária àqueles que falam. Mas, essa restrição extrapola o aspecto da fala, definindo também os gestos e os comportamentos que os trabalhadores precisam manifestar. Nas palavras de Foucault (2005, p.39): [...] a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção. Os discursos [...] não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos.

Nesse processo, o “parecer saber” e o “parecer ser” acabam sendo formas produzidas, nas quais o trabalhador docente deve e precisa saber demonstrar que possui certas características que o enquadram ou não no cabedal de características solicitadas pelas instituições de ensino. A quais discursos estaríamos enredados no trabalho docente? Quais práticas estaríamos reproduzindo para demonstrarmos que podemos pronunciar certos discursos e reproduzirmos certos saberes e práticas?

conduzidos, aquilo que consideramos como sendo familiar. No trabalho docente, podemos incluir os discursos aos quais estamos ligados, inclusive reproduzindo-os, muitas vezes sem os colocarmos em análise. A subjetividade aqui está tranqüila, num território seguro. Ao sermos incitados por outras questões em nosso trabalho como professores, somos arremessados novamente para fora desse território de paz e quietude. Tentamos rapidamente nos readaptarmos para que as sensações vinculadas à idéia de que tudo está em seu lugar, possam ser experenciadas novamente, trazendo alguns momentos e sensações de calmaria e segurança.

Os trabalhadores docentes, apesar de vivenciarem algumas sensações desestabilizadoras em seu cotidiano, também podem, eles mesmos, provocarem outras desestabilizações – como aquelas que promovem sensações de criatividade, desafio e movimento. Ou seja, a produção de subjetividade pode ser direcionada para a degradação das condições de trabalho e das condições de vida, mas também pode ser direcionada para a melhoria dessas instâncias. Depende dos movimentos Segundo Costa (2005), a educação na que articulamos em nossas vidas e em nosso atualidade pode ser confundida com Marketing trabalho. Depende de como essas experiências e prestação de serviços. Além disso, o autor são vividas. nos lembra que técnicas de Administração e de O trabalho de um professor pode Marketing, auto-ajuda, Psicologia e Educação, proporcionar sensações prazerosas, pode cada vez mais influenciam umas as outras, promovendo novas tecnologias de gestão das proporcionar a satisfação oriunda das aulas e dos contatos ali vivenciados, pode proporcionar subjetividades. um aprendizado permanente devido ao É com esses variados aspectos da produção planejamento das aulas, das leituras, da de subjetividade que os trabalhadores docentes produção de textos. Nem somente segurança, passaram a conviver de modo intensificado nos estabilidade, nem somente movimento e últimos tempos. invenção. Tampouco somente marasmo, tampouco somente novidades e desafios. Todos Nietzsche (2004) nos lembra sobre aquilo esses aspectos são possíveis, pois o trabalho que percebemos como nos sendo conhecido, docente não é algo pronto e acabado, ele se isto é, sobre aquilo a que nos habituamos, de faz e refaz a todo o momento, conforme o uma maneira tal que praticamente não mais vivenciamos. nos causa qualquer espécie de espanto, nossa vida cotidiana, as regras pelas quais somos Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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109 MOVIMENTOS QUE PRODUZEM MUDANÇA O recorte aqui realizado permite pensarmos a intersecção entre o campo do trabalho e o campo da educação tendo como finalidade, discutir sob outro olhar para podermos afirmar uma concepção que nos parece mais digna e profícua: a do trabalho compreendido como gestão. Os docentes precisam fazer microgestões em seu cotidiano de trabalho, de modo a conviver com as diversas prescrições e fazendo com que a atividade de trabalho tome vida para além dessas normas. O trabalho prescrito é um trabalho que foi em algum momento pensado e predeterminado. O trabalho prescrito pode ser compreendido como um conjunto de condições e exigências a partir das quais o trabalho deverá ser realizado. Este envolve, portanto, as condições de uma situação de trabalho (dispositivo técnico, ambiente físico, a matéria-prima etc.) e as prescrições (normas, procedimentos, ou seja, inclui-se aí as condições para a realização do mesmo e as ordens emitidas pela hierarquia (tanto pode ser oralmente como também ordens por escrito), os procedimentos definidos para a realização do trabalho, as normas técnicas, assim como os prazos e os objetivos em relação à atividade a ser realizada (ALVAREZ; TELLES, 2004).

Ao tratar da repetição na atividade de trabalho docente, Costa (2005) diz que sob o domínio do medo e da amargura e de uma certa acomodação, o professor, acostumado a repetir, seja por uma obrigação, por um dever moral, ou pelo efeito de sua própria submissão a alguns valores considerados superiores (tudo o que lhe disseram que era da ordem da sensatez, do correto e do bom), segue impregnado desses pensamentos moralistas e acaba seguindo o que uma certa maioria faz. De acordo com o autor, nesse caso, o trabalhador docente já não teria discernimento do que ele é capaz, dos possíveis que pode produzir e também do que pode inventar. Contudo, acreditamos que todos os professores também são gestores em seu processo de trabalho. Durante todo o tempo, fazem gestão de múltiplos aspectos levando em consideração as condições para a realização do mesmo. Importante lembrar que o trabalho real nunca ocorre mediante a mera aplicação daquilo que havia sido prescrito (SCHWARTZ, 1992). Inventar é preciso.

Sabemos que para a realização do trabalho é necessário que existam prescrições (procedimentos, regras). E que além dessas prescrições, conforme Schwartz e Durrive (2007), também existem costumes que foram criados e que acabam tornado-se estabelecidos. Esses costumes e regras de funcionamento proporcionam a transformação das experiências A prescrição é necessária, mas trabalho em uma espécie de patrimônio de saberes. algum pode se limitar a isso. A atividade Entretanto, na atividade docente, essas extrapola as prescrições e nesse processo, os trabalhadores precisam gerir diferentes normas são ressingularizadas, pois não existem situações totalmente padronizadas, tampouco aspectos. totalmente repetíveis. Então, podemos dizer Além disso, podemos pensar que muitas que o plano codificado do trabalho, durante a vezes as prescrições não são colocadas em atividade e durante as ressingularizações frente forma de manuais explícitos, mas sim, por meio às variabilidades, acaba sendo atualizado, da experiência oriunda dos anos de práticas. produzindo história, ajudando a compor e a Como professores, somos aprendizes de certos construir um patrimônio. E pensando nas aulas, modos de fazer e pensar que se propagam nas a riqueza desse trabalho e dessas gestões ficam instituições de ensino, ao mesmo tempo em que evidenciadas. podemos produzir outros movimentos. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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110 devir-minoritário, ensinar e aprender possam ser reinventados e afirmados, mesmo que provisoriamente.

Uma aula é algo que é muito preparado. Parece muito com outras atividades. Se você quer 5 minutos, 10 minutos de inspiração, tem de fazer uma longa preparação. Para ter esse momento de... Se não temos... Eu vi que, quanto mais fazia isso... Sempre fiz isso, eu gostava. Eu me preparava muito para ter esses momentos de inspiração (DELEUZE, 2007, p. 52).

O que o autor nos traz, possibilita enxergarmos que nas mais simples das atitudes em nosso cotidiano de trabalho podemos criar outros modos operatórios, podemos modificar As experiências proporcionadas pela alguns aspectos, sempre na busca por melhores vivacidade das aulas podem marcar a vida condições de trabalho, sempre na busca de mais de professores e alunos. São conteúdos, são prazer do que sofrimento. explicações, alguns exemplos, uma discussão Sofrimentos e alegrias que podem estar mais acalorada. Mudanças profissionais podem relacionados com o processo de aprendizagem ser disparadas a partir de algumas discussões dos alunos, o modo pelo qual eles podem ser travadas nas salas de aula. instigados a participar das discussões na aula, Quando professores são confrontados em sua atividade por questões inesperadas (perguntas colocadas por alunos, questões impostas pela direção da instituição de ensino, situações que escapam dos planejamentos, dificuldades no processo de aprendizagem de alguns alunos, condições adversas de trabalho, dentre outros), está colocada aí a capacidade de gerir que todo trabalhador possui e que coloca em ação para poder tornar seu cotidiano laborioso possível. Caso essas micro-gestões de eventualidades não ocorressem, seria impossível a realização das atividades pelos professores nas diversas instituições de ensino.

os modos de prender-lhes a atenção, muitas vezes tão anestesiada depois de um dia inteiro de trabalho (sim, muitos dos alunos também são trabalhadores). O que se busca está além da aprendizagem vinculada à simples recognição. O reconhecimento e a repetição por vezes ainda são necessários, contudo, se busca mais do que isso. Cada professor é portador de exigências diferentes, podendo, a cada instante, gerir mais ou menos intensamente e coletivamente diferentes configurações em suas atividades.

O que é mobilizado pelos professores nas situações de trabalho, envolve aspectos Ao tratar da produção da diferença, Costa como suas atitudes, suas decisões, que precisa (2005, p.1272) chama atenção para o fato de ser mediada pelas normas institucionais e da própria profissão. Na resolução de um problema que o trabalhador docente: específico, o professor convoca os saberes [...] teria de abrir-se ao inusitado, ao imponderável, às contingências, à aventura necessários àquela situação, sua experiência, mesmo de viver (e ensinar), o que só se torna sua disposição, procurando considerar a o possível por meio da experimentação, da criação grupo no qual está inserido, visto que uma ação e da invenção. Mas isso, entretanto, requereria individual também compõe uma ação coletiva. dele disponibilidade para abandonar velhos hábitos, valores atemporais e ditos superiores, comodismos e “chaves do tamanho” (aquelas que supostamente abrem todas as portas), bem como disponibilidade para a coragem de correr riscos, ou seja, acolher e afirmar o sofrimento e a alegria que eles implicam, com eles aprendendo a conviver. Que os professores se disponham a isso: eis o desafio! Talvez, então, a cada pequeno acontecimento, a cada vez, a cada situação, a cada encontro, a cada

Os professores realizam a gestão de múltiplas questões, por meio de micro-decisões e micro-escolhas referentes às eventualidades específicas da atividade, aos prazos, às relações entre alunos e instituição de ensino, mas também referentes às relações no próprio grupo de profissionais, ao ensino, e às prescrições que pré-determinam sua atividade.

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111 Portanto, os professores fazem gestão, mas nesse processo eles consideram os fatores do seu entorno. Numa situação específica, o trabalhador docente não somente realizará análises, mas também realizará planejamentos e controles, pensará sobre a própria condução da situação, assim como a gestão do tempo que tem para isso. Talvez, esses processos sejam tão rápidos que o profissional nem consiga perceber quantos aspectos precisam ser considerados na composição de sua atividade e nas tomadas de decisão necessárias para o seu desenrolar.

Contudo, sempre primando por uma investigação que não negue toda a contribuição dos professores ao desenvolvimento da própria investigação. Contribuição, considerada condição sine qua non para a compreensão das questões no campo do trabalho e das questões relacionadas à produção de subjetividade em nosso tempo.

Sendo o trabalho condição atual de existência, pelo menos para uma maioria, percebe-se este como uma atividade econômica que permite a manutenção da vida. Contudo, Considerar e colocar em análise essas nem sempre permite a afirmação de modos mais gestões realizadas no trabalho docente dignos de vida. possibilita perceber os movimentos produzidos No trabalho docente, conforme Costa por estes profissionais que não estão apenas corroborando prescrições e modos de ser (2005), de acordo com os modos que os profissionais se relacionam com a realidade, professor. com seus pares, com diferentes práticas e discursos (incluindo-se aí os psicopedagógicos), de acordo com os modos que se relacionam com o conhecimento, com os alunos, com as CONSIDERAÇÕES FINAIS lutas políticas, com o social, os trabalhadores As aulas são locais privilegiados de docentes podem devir (“tornar-se”) camelos. produção de sujeitos – tanto alunos como os Devir camelo é agenciar-se às questões da vida próprios professores – na medida em que, pelo viés da carência, posto que as motivações diversos aspectos sociais, econômicos e e as referências que levam ao agir se encontram culturais estão ali colocados. Esses aspectos fixados a valores considerados ideais ou a que também perpassam os momentos em sala modelos considerados perfeitos. de aula, convivem com os próprios efeitos no O autor já havia demonstrado ter sido trabalho oriundos da agenda educacional. Não há como separar as diversas instâncias quando a surpreendido quando pôde observar quanto os educadores em uma escola pareciam pessoas produção de subjetividade é pensada. cansadas, esgotadas, esvaziadas de suas Aqui fica a indicação para estudos potências, provavelmente pela produção da futuros que seriam necessários em todas as mesmice em seu dia-a-dia, assim como pelas dimensões da docência (ensino fundamental, condições de vida e pelas adversidades como os médio e superior). Analisar esses movimentos baixos salários, a falta de apoio que marcavam que produzem mudanças no trabalho, e que o exercício de sua profissão. Entretanto, ao demonstram toda a complexidade desse campo. mesmo tempo, percebeu que esses mesmos Também percebemos a necessidade, em estudos professores estavam envolvidos prática e futuros, de investigar minuciosamente as discursivamente, em uma cultura e um ativismo micro-gestões realizadas pelos professores em político – academicista que valorizava sua seu cotidiano – uma micro-gestão que procura importância social para o desenvolvimento da reduzir a distância entre as prescrições de toda a nação, numa atividade revestida de sensações ordem e o trabalho que efetivamente se realiza. de dignidade e honra. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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112 Mas, como os docentes se relacionam com a maneira “correta” de lecionar, de manter certa postura em sala de aula, de ser considerado um “bom” professor, de ser um pesquisador “ideal”?

CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes, 2006.

COSTA, S. de S. G. De fardos que podem acompanhar a atividade docente ou de como o mestre pode devir burro (ou camelo). Educação Acreditamos em uma visão não simplista e Sociedade. Campinas, v.26, n.93. Set./Nov., sobre o trabalho docente, visto que, conforme 2005. Schwartz (1996), o trabalho tem valor e isso se deve a ele ser produtor do laço social e não ser DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: considerado somente como mera mercadoria. Brasiliense, 2005. Mais do que isso, o trabalho docente é mais do ______. O abecedário de Gilles Deleuze. que prescrições, é mais do que modelos a serem Disponível em: <http://www.oestrangeiro.net/ seguidos, é mais do que discursos e práticas que index.php?option=com_content$task=view&id disseminam algumas verdades produzidas. O =67&Itemid=54>. Acesso em: 23 jul. 2007. trabalho docente também é invenção e produção de outros fazeres e saberes. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 3. Ainda assim, se formos, em parte, governados por certas verdades historicamente produzidas e que ganham vida no cotidiano de trabalho, é relevante colocar esses modelo em análise, investigando os movimentos de mudança que estão sendo produzidos e que por mais pontuais que sejam, podem ajudar na produção de outras subjetividades mais potentes e saudáveis. Pois, mais uma vez lembramos que a produção de subjetividade pode ser orientada para o pior, mas também pode ser orientada para o melhor, no que se refere às condições de vida e de trabalho. Depende dos movimentos e práticas que nós criamos em nosso cotidiano.

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114 RESENHA ujeito, este suposto, nascido na modernidade ELIA, Luciano da Fonseca. O Conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2004. p. 50. Psicanálise passo-a-passo. A leitura do texto de Luciano da F. Elia aponta para o conceito de sujeito como uma categoria moderna, e seu surgimento é contemporâneo à ciência.

sujeito é algo que existe por aí, é ele encontrável na realidade empírica? É uma positividade, um referente factual do conceito que leva seu nome? As respostas são negativas. Olhando pelo angulo existencial, ele está lá, é o outro Luciano da Fonseca Elia é pós-doutor com todas as suas implicações, imbricações, pela PUC-Rio e professor titular do Instituto circunstancias, mazelas e conflitos. de Psicologia da UERJ, defendendo em sua dissertação de mestre O inconsciente filosófico Como interrogá-lo? O acesso a esse saber da psicanálise. Elia tem outras obras escritas exige um trabalho (o trabalho analítico), que como “Corpo e sexualidade em Freud e Lacan” se realiza através de um determinado método (Rio de Janeiro, Uapê, 1995). É também co- (método da psicanálise), que estabelece um organizador do livro Psicanálise, clínica e dispositivo (o analítico) e requer uma função pesquisa, do Programa de Pós-Graduação operante (o psicanalista). Com isto afasta-se a em Psicanálise do IP/UERJ, além de autor de possibilidade do uso da via da intelectualidade inúmeros artigos na área de psicanálise. Esse para elaboração deste saber. Elia propõe que livro foi escrito por solicitação da publicação o saber sobre o sujeito não está ao alcance de Psicanálise Passo-a-Passo de Jorge Zahar todos, e não estará ao alcance de ninguém que Editor, com a proposta de permitir ao leitor não queira se dar ao trabalho psicanalítico. trilhar diferentes campos do saber de maneira Sendo a psicanálise a função operante, gradual numa linguagem acessível, onde Elia se destaca como um especialista capaz de oferecer Elia pergunta: o sujeito em psicanálise é um uma visão atualizada e abrangente do conceito conceito, no sentido cientifico ou filosófico do termo? Como categoria nocional elaborada de sujeito na psicanálise. teoricamente, designada por uma palavra que lhe Para Elia, sua obra não se inscreve sob dá unicidade, precisão e rigor, é um conceito: é a rubrica de um “sujeito ao alcance de todos”; isso que faz com essa categoria integre o corpus ou “tudo o que você sempre quis saber sobre o teórico da psicanálise, constituindo-se de forma sujeito” mas tinha medo de perguntar. O saber essencial. Elia lança mão do que é necessário, sobre o sujeito não está ao alcance de todos, dos campos científico e filosófico para poder e não estará ao alcance de ninguém que não responder à questão, colocada pela e para a queira se dar ao trabalho psicanalítico. Elia psicanálise. busca definir os critérios metodológicos para os O sujeito da ciência e o sujeito da modos de produção do saber na psicanálise e psicanálise são os mesmos; porém a ciência não seus intercâmbios com outros saberes. opera com este sujeito, mas a psicanálise criou Elia pergunta: o sujeito é ou não um condições de operar com ele. Ela é a o que Elia conceito? Que tipo de existente o termo sujeito chama de subversão. O modelo médico (ciência) designa? O que é isto que se chama sujeito? O não tem dado conta da pessoa, com deficiência, Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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115 por exemplo. É o sujeito da ciência, e a ciência não opera e não criou condições de operar com este sujeito. A pedagogia criaria condições de operar com este sujeito? Elia entende que mesmo na ciência ou na filosofia “sujeito” não é um conceito, nas acepções clássicas de conceito. Como localizar o sujeito? Como ele se faria presente? A experiência psicanalítica tem, assim, boas razões para estruturar seu dispositivo em certa modalidade da fala, metodologicamente sustentado para que essa fala se constitua como acesso ao sujeito. Este é assim estruturado (e não caótico ou biológico) como uma linguagem, ou seja, por elementos materiais simbólicos, os significantes engendradores do sentido, que portam em si o sentido constituído, mas que se definem como constituintes do sentido (daí o seu nome significante: aqueles que fazem significar). Para Elia é possível dizer que onde há resistência há sujeito. Foi na experiência psicanalítica que veio a tona a resistência do sujeito: se na origem do sintoma está o ato de defesa, no início do trabalho está a tomada da resistência em consideração. A resistência a resistência do sujeito não exatamente para ser rejeitada ou contraposta em uma atitude, digamos, hostil, crítica ou adversa, mas de acolhida como ocasião de trabalho. Assim, Elia afirma que “onde há resistência há sujeito”. Como se constitui o sujeito? A compreensão então é que o sujeito se constitui, não “nasce” e se “desenvolve”. Então cabe a pergunta: como o sujeito se constitui? É necessário considerar o campo da linguagem, campo que ele é afeito.

como significado, na constituição do signo lingüístico. Elia entende que a subversão dessa associação significante/significado, conferindo primazia ao primeiro (o significante) na produção do segundo e que tratando desta maneira tais conceitos, o significante prevalece sobre o significado, que lhe é secundário, e se produz somente a partir da articulação entre os significantes. Assim encontra-se o suporte metodológico necessário para uma teoria do inconsciente: dos dois elementos constitutivos deste campo de referência, só o significante é material (imagem sonora, unidade material da fala humana) e simbólico (sua articulação em cadeia produz uma ordem capaz de engendrar o significado, que não se encontra constituído desde o começo, antes da articulação significante). É o inconsciente freudiano senão um sistema de elementos materiais articulados como cadeias (Freud chega a falar de feixes) desprovidos, em si mesmos, de significação, estas passíveis de serem produzidas pelo sujeito uma vez constituído? (p. 38). Apliquemos agora essas condições estruturais ao pro­cesso de constituição do sujeito, para o que temos de recorrer à situação concreta através da qual o ser humano chega ao mundo e se insere na ordem humana que o espera, que não apenas precede sua chegada como também terá criado as condições de possibilidade de sua inserção nesta ordem. Entendemos que nesta ordem humana na qual a pessoa chega tem a possibilidade da deficiência física entre outras. É por esse viés que a teoria psicanalítica do sujeito e de sua constituição se articula interna e necessariamente com as categorias - estas sociológicas - de sociedade e de família: o ser humano entra em uma ordem que é social, e cuja unidade celular e básica, que se organiza como a porta de entrada nesta ordem, se chama família, pelo menos nas sociedades modernas.

Segundo Elia é Ferdinand de Saussure quem propõe um campo de referência que a um só tempo relaciona duas condições metodológicas: é o da linguagem, sobretudo A outras portas de entrada nesta ordem a partir de sua tomada como recorte de uma ciência moderna, a lingüística. Temos então se abrem posteriores à família que são a rua a categoria de significante - imagem material e a escola e se tornam também elementos na acústica, à qual se associa um conceito (idéia), constituição do sujeito, também da pessoa Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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116 com necessidades educacionais especiais, ele realiza quanto mais ele é excluído, abolido, também é um sujeito e como tal não lhe pode barrado. Porém, o que o exclui, elide e barra é precisamente o significante, que o funda e ser negado o que o faz sujeito. constitui. A psicanálise pensa o sujeito, portanto, E as perguntas? Continuam com respostas em sua raiz mesma, como social, como tendo sua constituição articulada ao plano social. negativas? Elia relaciona algumas respostas. Resta saber como ela o faz, e ela o faz de Não, o sujeito não é o nome de um referente modo positivo, ou seja, de modo a manter empírico que existe por aí, que se encontra na a positividade de sua concepção de sujeito realidade; é um operador que se encontra em do inconsciente, sem o quê deixaria de ser nós, desde que nos coloquemos em determinada psicanálise e se diluiria em meio à polifonia perspectiva, em determinado lugar a partir do da orquestra das concepções culturalistas de qual interrogamos a experiência humana; uma construção social do sujeito, que o destitui talvez o que a pedagogia possa fazer: busca a precisamente de sua positividade como sujeito perspectiva da pessoa, no lugar determinado e do inconsciente. Dizer, portanto, como é datado do aluno interrogar ouvindo sua fala, preciso, que a psicanálise não apenas considera buscando entender seus signos e símbolos. a dimensão social da constituição do sujeito como muitas vezes é acusada de fazer (e não O sujeito é sempre suposto, não é encontrado sem que os próprios psicanalistas, que em larga na realidade, mas o supomos. Ou melhor, somos medida desconhecem muitas das dimensões forçados a supô-lo a partir do momento em que essenciais de seu campo mereçam tal acusação) reconhecemos a incidência do significante na – mas também, pelo contrário, afirma a dimensão experiência humana. O sujeito é uma suposição social como essencial à constituição do sujeito do significante, que se impõe a nós. do inconsciente, não equivale a reduzi-la a uma sociologia culturalista do sujeito. O que é o significante na experiência humana? É átomo do simbólico que, no ser Já não é possível vivermos no interior vivo, quando ele é falante (eu diria quando se desta complexa edificação chamada cultura, expressa – Elia destaca quando é habitado pelo fazendo de conta que ela não existe. Sua forte realidade tem a ver com nossa forma de simbólico), a resposta que se chama de sujeito. instalação e de permanência no mundo. A cultura Somos forçados a supor o sujeito quando é a possibilidade de plenificação de um ser que, reconhecemos o significante porque na verdade apesar de já nascer potencialmente humano, é o significante (e não nós) quem supõe o sujeito. precisa desenvolver sua humanidade que é uma rede cada vez maior de interdependência, e a desenvolve na construção da linguagem e da própria cultura. O tecido cultural é sempre uma permanência de efemeridades, é sempre uma continuidade feita de rupturas e transformações, pelo qual o homem se plenifica, ou se constitui como sujeito.

Impor-se a nós – significa que não podemos não admiti-lo. Estamos diante de efeitos de estrutura, de imposições do real. Não podemos não admitir o sujeito. Os efeitos estão nos sintomas, sonhos, atos falhos, chistes, nas chamadas formações do inconsciente. Desde então, ele não cessou de ter um encontro marcado, diariamente com o sujeito: com os Confronto com algo enigmático: o sujeito neuróticos, os criminosos, os perversos, as é nome de algo cujo modo de existir é a elisão, pessoas comuns, as pessoas com deficiências, a barra, a abolição, operações pelas quais o os estudantes de educação... sujeito se constitui e se realiza na experiência, Para o pensador e o pesquisador do campo pois o tal sujeito do qual falamos é uma coisa muito estranha, que tanto mais existe e se da educação, das ciências sociais e da filosofia Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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117 é necessário a elaboração e ressignificação de teorias que contribuam no interrogar essas respostas e teorias. Pois bem, é o campo da experiência que se chama sujeito. O assassinato do Pai é condição essencial da estrutura do sujeito, sem a qual nenhuma realidade poderá existir como realidade de e para um sujeito. O sujeito é o compasso e assim ele é introduzido no campo de experiência social, cultural, psicológica. O material utilizado pelo autor está atualizado. Usa obras clássicas como as obras de Freud, revisita Freud a partir de uma leitura de Lacan e Saussure, passando também pela literatura como “O diabo enamorado do italiano Jacques Cazotte. Reserva uma parte para referências e fontes onde o leitor obtém detalhes de obras que Elia consultou e outra parte que chama de “Leituras recomendadas” com orientações em relação as obras que usou em seu texto e o grau de dificuldades de algumas delas. Portanto, a sua bibliografia indica erudição e mesmo sendo resumida, serve de guia a informações adicionais.

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118 ENTREVISTA PENSAR E INSTITUIR: UMA CONVERSA COM CÉLIA LINHARES PIONTKOVSKY, Danielle44 PEREIRA, Dulcimar SILVA, Sandra Kretli da Ao cursar a disciplina Pensamento da Educação Brasileira, no período 2009/01, no Curso de Doutorado da UFES, fomos convidadas pela professora Regina Helena Silva Simões a indicar um pesquisador que, através de seus trabalhos, colocasse em análise questões apresentadas pelas escolas e seus profissionais na constituição dos processos educativos e a partir de diferentes momentos históricos.

Como já era de se esperar, com rapidez e de forma delicada e muito carinhosa, a professora Célia respondeu confirmando o nosso pedido. Fomos recebidas em sua casa e, durante a conversa, tivemos que fazer algumas pausas, para que a professora pudesse despedirse do marido, recepcionar a visita inesperada dos netos, atender aos telefonemas profissionais... Cenas de um cotidiano vivido pelo homem ordinário, herói comum, caminhante inumerável A escolha pela professora Célia Frazão (CERTEAU, 1994) que não se deixa aprisionar Soares Linhares se deu pela admiração e pela impessoalidade das relações imobilizadas respeito incondicional ao seu trabalho. Logo e imobilizantes dos modelos da sociedade que iniciamos as nossas conversas, a fim de moderna. dialogarmos por meio dos textos com a autora, percebemos como suas idéias, crenças e valores Enfim, trazemos na transcrição dessa nos contagiavam. Resolvemos então fazer um conversa, as memórias da história de vida da convite à professora para estreitar as nossas professora Célia Linhares que comprovam a “conversas” na cidade do Rio de Janeiro, onde seriedade de seu trabalho e de sua luta por uma ela reside. educação que dê lugar as diferenças. O momento que juntas vivenciamos vai ao encontro da idéia Nosso desejo era o de reencontrá-la de que num momento em que pudéssemos, longe das formalidades da academia, conversar sobre as Diálogos acontecem em qualquer suas histórias e os atravessamentos vividos nos tempo e lugar. Diálogos implicam dimensões fazeres e saberes como professorapesquisadora; do tempo e re-significações que se dão em suas formas de pensar as escolas e os sujeitos diferentes espaços [...] É que diálogos espalham que nelas se encontram e sua habilidade própria palavras-semente que germinam em poucos de tomar a poesia como método de trabalho. ou muitos instantes, mas também, séculos e Uma forma de escrita encharcada de vida, milênios depois. E diálogos necessariamente se presente na sua “maneira de respeitar o outro reconfiguram [...] por que a nossa escuta deles e de compreender o significado da liberdade” é sempre uma outra recriação (ZACCUR, 2005, (GUEDES, 2008). p. 7).

44 Doutorandas do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo, na Linha de Pesquisa Cultura, Currículo e Formação de Educadores.

Deixamos, portanto, nosso convite e também nossa satisfação por um trabalho realizado na perspectiva de uma “conversadiálogo”, construído com a firme

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119 convicção de que o trabalho coletivo é possível de ser vivido e, mais ainda, de que precisa História de uma vida... fazer parte de nossas conquistas cotidianas a favor de uma escola que, como nas palavras de “A vida é combate, que aos fracos abate, Freire (1992), não quer o imobilismo, mas ao aos fortes, aos bravos, só pode exaltar [...]”. contrário, trabalha, cria, traduz a vida. (Gonçalves Dias) Aceite o convite e bom diálogo! Célia Linhares: Eu perdi meu pai aos nove anos. Tinha - Vamos começar falando do seu trabalho e da sua história de vida? Como prefere iniciar, acabado de completar nove anos. Portanto, saindo dos oito anos. Depois perdi meu irmão de professora? uma maneira trágica, desaparecido por conta da ditadura. São episódios que não se digerem, são cicatrizes que não se fecham, mas no fundo de cada cicatriz, parece que vem de mim, quase... Célia Linhares: mais do que um desejo, é um impulso, assim, Pelo que me move. Uma animação de pra continuar, pra continuar juntos. Eu sempre trabalhar, de reincidir, diversificar, mas ao digo que só encontro Ruy no meio das pessoas mesmo tempo, reencaminhar o que eu faço, que sonham como ele, que quanto mais eu falo para a universidade, para a escola. É como se o dele e é doloroso, mais ele está vivo, pulsando, meu trabalho fosse assim: um mar que dispersa, palpitando, acreditando... eu não posso descrer, mas no fundo tudo volta para o mar. Eu estou porque é um afeto tão grande e, de meu pai completando esse ano, cinquenta anos que eu também, que acreditou nas palavras. Eu tive, ensino na universidade. Então, é mais do que no meio de tantos sofrimentos, uma sorte, um uma vida, e é um grande privilégio ter tido privilégio, algo excepcional, de ter tido um pai uma vida longa, uma vida longa profissional, e uma mãe que me falavam com poesia, dois que significa para mim, em primeiro lugar, maranhenses. Meu pai, como eu disse, quando que o sonho não está acabando. Porque desse ele morreu, eu era muito pequena [...]. Eram duas sonhar, me vem muita animação e até, digamos flores nascidas talvez do mesmo arrebol, vivendo assim, numa ambivalência muito sofrida, muito no mesmo galho, bebendo a mesma gota de perigosa... me vem uma esperança, porque tem o orvalho, o mesmo raio de Sol, unidas... ai quem entrelace do meu trabalho com a minha própria me dera uma eterna primavera! Viver qual viva vida, que está no meu memorial45 e que está um essa flor... Como é que nunca desapareceu isso pouco nesse trabalho que Ogêda46 captou com de mim? Esse sonho de uma primavera que vai tanta delicadeza. vir, que ainda precisa que a gente trabalhe e que é uma primavera de muitas uniões. Minha mãe me dizia, não só para mim, mas para qualquer um dos sete irmãos que ela educou quando meu 45 Caminhos de Medo e Esperança (memorial escrito pai morreu... E ela ficou com 35 anos, com os pela professora Célia que se encontra no livro Trajetórias sete filhos, mas qualquer problema maior que de Magistério: memórias e lutas pela reinvenção da escola a gente tivesse que enfrentar, que parava sem pública). 46 Tese de Doutorado defendida na UFF por Adrianne Ogêda forças, ela dizia: “a vida é combate, que aos Guedes sobre a vida e a obra da professora Célia Linhares.

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120 fracos abate, aos fortes, aos bravos, só pode exaltar”. E, apesar de um sofrimento enorme, porque, de repente, ao perder nosso pai, nós morávamos no Rio e tivemos que voltar para o Maranhão, para a fábrica de doces, para uma situação constrangida financeiramente. Duas famílias ricas e bem estabelecidas. Os “Frasão” eram donos de indústrias, de comércios, os “Soares” eram todos homens... a única tia que eu tive dos Soares morreu muito cedo. Eram homens das letras: deputado federal, médico, tabelião, poetas, mas predominava um lado boêmio [...] E no meio daquilo estava a viúva com seus sete filhos, mas ela nos fazia crer que era possível sair das dificuldades, nós tivemos muitas solidariedades, nessa volta ao Maranhão. Mesmo assim era uma situação muito difícil... e ela sempre nos animou, eu sou muita grata a minha mãe, por ela ter sempre mostrado que tinha alguma coisa invisível, que a gente poderia conquistar. Que era preciso estarmos juntos e trabalhar, diuturnamente, que nada nos abatesse...

mesmo sonho fez meu pai sair do Maranhão, porque ele era advogado, advogava sempre a favor dos pobres, dos injustiçados, que por qualquer coisa estavam presos. Passava a noite inteira datilografando, ou então ditando para minha mãe que datilografava, enfim, mas ele foi também, inspetor de escola e viu que os donos da escola promoviam reprovações pra oferecer cursinhos nas férias. Eram colégios particulares, e meu pai não aceitou, denunciou, e a coisa ficou muito forte. Imagina, no Nordeste, no Norte... se falava até num complô pra matá-lo. E ele estava cercado por todos os lados, resolveu vir para o Rio. Era o tempo da Segunda Guerra Mundial, ele veio e minha mãe ficou grávida. Mas, o que eu quero é remarcar essa esperança da família, sempre uma família de muita tenacidade, sempre com muita esperança, essa insistência na luta, uma insistência que não se faz sem medo. Vocês veem que o título do meu memorial é: “Medo e Esperança”. Como é que esse medo enorme, porque vi tanta coisa acontecendo, senti, ela me tocou de perto... tantas desgraças, mas do fundo da desgraça veio uma coisa que eu não posso renegar: a luta [...] Como é que são as ciladas dentro de mim que me fazem sempre uma De onde vêm os sonhos de Célia pessoa trabalhando. Comecei trabalhando na Linhares? universidade, no último ano, em 1959. Eu tinha, naquela época, o que se chamava bacharelado e precisavam de professores, e eu estava cursando a licenciatura. Como eu fui a maior nota, mas não Célia Linhares: é grande coisa ser a maior nota, com essa minha Recomeçar, recomeçar, recomeçar... obsessão, com as dificuldades do Maranhão, me Então você vê, os sonhos vinham dessa poesia chamaram para ser professora, horista, diarista, heróica de Gonçalves Dias, vinham desse eu também precisava de dinheiro, mas naquele romantismo, de uma união múltipla, vinham de caso a gente quase não recebia, passava seis muitas fontes. Esse meu tio que foi deputado meses para receber. Mas, assim mesmo eu fui, federal, ele era médico, tisiologista, quer dizer, e assim, estreei na faculdade, estreei também quem trata dos pulmões, e ele tinha um sonho, a maternidade, porque eu fiquei logo grávida. de fazer do Maranhão... veja eu nasci em 37, Grávida e professora. Sentia um medo enorme quer dizer, tio Odilon se profissionalizava, já de ser professora, porque o curso que eu ensinava era médico nessa época, e sonhava em fazer o tinha pessoas... Tinha, por exemplo, uma Maranhão uma terra livre da tuberculose. Ele, diretora de Serviço Social da universidade, uma com o dinheiro dele, fundou a liga maranhense mulher alta que tinha feito o curso aqui na PUC, contra a tuberculose, olha o tamanho do sonho no Rio, e eu no Maranhão. Eu era professora dele... Esse mesmo sonho veio no Ruy... Esse dela e ela me fazia um medo enorme, mas assim mesmo eu me redobrava, me redobrava e ia... Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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121 e dava as aulas... Na ocasião eu estava grávida do meu primeiro filho [...] Eu tinha essa coisa sempre... o medo que me impulsiona, que não me acovarda, que eu contorno, mas que está sempre presente, tocado por uma esperança, um pouco isso.

Atualmente quais são os grandes temas que abrigam esses medos, essas preocupações, esses sonhos, esses projetos e esperanças?

Célia Linhares: Eu tenho estudado sempre, há muito tempo pelo menos, a questão da formação dos professores. Acho que é uma temática, onde cabe tudo, que essas divisões de campos, educação e trabalho, subjetivações e ciências, filosofias, eu já nem sei... os campos são vários, educação brasileira, todas essas temáticas só tem possibilidade de se potenciar numa transformação da educação e da escola se elas forem capazes de dialogar com o professorado e nesse diálogo ir transformando o professorado e a escola. Acho que muita coisa mudou na formação de professores e na própria concepção de professor. Se pensava muito, há vinte, trinta anos atrás, nas relações professoraluno, até hoje se escreve muito sobre isso, mas eu, cada vez mais vejo como é importante estudar essas relações não do tipo só relações individualizadoras, um professor e um aluno, e também eu não descarto, mas relações em que estão simbolizadas as grandes contradições da sociedade, as lutas de classe, os preconceitos, um imaginário que faz o pobre ser visto como ignorante. Os resquícios de um iluminismo que achou que os professores poderiam salvar com “saberes” as grandes mazelas da sociedade. Atualmente, eu acredito que essa relação professor-aluno e a formação de professores precisa ser não só ampliada, expandida, mas diversificada em suas temáticas. Uma coisa

que eu digo muito, apoiada no Norbert Elias, é que nós precisamos usar dois métodos que se articulam, que são os métodos centrífugos, nos espalhando na nossa visão e na nossa percepção e os métodos centrífucos, em que nós concentramos, fazemos voltar para o nosso mar tudo o que a gente viu, da realidade social, da realidade política, da realidade econômica, da realidade existencial, voltar para a formação dos professores. E o Benjamin diz o seguinte: de que adianta tanto requinte da cultura se ela deixa do lado de fora a experiência política? A mesma coisa em relação ao professor. De que adianta tanta teorização se os professores não são capazes de reelaborá-las? Porque a formação de professor toca num ponto muito importante que eu estava conversando com a Sandrinha, que já havia sido levantado pelo Lutero, e que contemporaneamente tem sido levantado com muita propriedade, pelo pensamento, sobretudo, da Hannah Arendt que trata da banalização da vida e que no fundo repousa numa grande crítica: a educação e a formação de professores. O espanto da Hannah Arendt, quando Eichmann foi visto como um monstro, aquele homem monstruoso, que matou tantos judeus, ela interroga: será que ele foi realmente um monstro ou será que ele teve atitudes monstruosas? O que o levou a tomar atitudes monstruosas com absoluta frieza? Havia hipóteses, porém ele se identificou tanto com o Füher, ele achava que o Hitler estava tão correto nas suas hipóteses, que ele aderiu tão profundamente aquilo, ele foi capaz de fazer todas as monstruosidades, não como algo... não como um monstro, mas como quem acreditou naquilo. Mas a Hannah Arendt suspende todas essas propostas e se coloca numa contraposição e diz algo que nos deve preocupar muito... É que o Eichmann não aprendeu a pensar nas suas permanentes responsabilidades como cidadão. Estava certo dentro daquele padrão, como muita gente estava certa no tempo da ditadura servindo os militares, por isso a importância de pessoas como Ruy que mostraram que a ética cobra posições e que é possível a gente ir contra, mesmo quando todas as portas estão fechadas.

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122 E é possível lutar, é possível se arriscar, no caso dele, o risco foi de certa maneira fatal. Se nós olharmos sua pessoa física, ele continua vivo, mas é isso que a Hannah Arendt diz: “quem é que pensa na sua própria responsabilidade?” “Como é que você pode virar o jogo?” Não precisa fazer isso em atos heróicos, como Ruy fez. Mas cada um de nós pode, no conjunto que a gente pertence, na escola que a gente se exercita, no grupo de pesquisa dizer: “não pode aquele outro caminho?” Eu acho que isso seja muito. Exercitar as pessoas a pensar: “e você o que pensa?” Eu vejo que, assim, o campo teórico da educação tem desenvolvido muito, muito e muito, ninguém pode deixar de reconhecer os grandes avanços, que é, por exemplo, uma Anped, onde se reúnem três mil pesquisadores e apresentam seus trabalhos [...]. Eu acho que o grande ponto agora a ser retomado, a ser potencializado, são esses processos de singularização, que não significam no meu entender, nem no entender do Deleuze, processos que retornem àquela história que se chamou diferenças individuais, mas processos singularizadores, que façam multidões, grupos, coletividades, assumirem a capacidade criadora, ou seja, instituinte. Resistir e criar, resistência como criação, não ir na onda cega. Isso só se faz quando há esse apelo por autonomia, que tem articulações políticas e existenciais: “como é que eu me faço?” “O que eu escolho?” “Como é que eu vou me dedicar nesses últimos anos da minha vida?” Isso me preocupa. Enfim, isso que a Hannah Arendt colocou, Eichmann não aprendeu a pensar em suas próprias responsabilidades, a se contrapor a uma massificação, a se adestrar aquilo, a se omitir. Isso que é preciso, muito trabalho e precisa muito da gente inteira, pensar como uma ação criadora, instituinte, incessante, quanto mais a gente pensa, mais desdobramentos vem, mais labirintos.

Esse seria o homem que a sociedade precisa?

Célia Linhares: O homem e a mulher, as crianças e os velhos. Acho que é muito bom que a gente conjugue a humanidade, com todas essas diferenças, que a gente procure sempre falar de uma maneira plural, múltipla, para não nos acomodarmos, porque esse abstracionismo que todas nós temos, porque são heranças muito velhas, milenares, que nos fazem onipotentes. Ah... eu tenho saber, eu sou doutor, eu sou pós-doutor... E aí que nos impeçam de ouvir, por exemplo, as crianças, com uma sabedoria incrível [...] Como as crianças nos ensinam... Eu sei que o tempo é pouco, mas, vocês viram como é que, no meu pensamento, pensar e instituir, são confluências, são sinônimos. Pensar é uma ação, não é uma brincadeira. E é aí que estão as nossas grandes barreiras e aí que está a grande importância do doutorado e das pesquisas, é pensar com coragem. Eu nem gosto de falar com ousadia, ousadia para mim parece uma coisa meio rebelde. É pensar empiricamente, partindo das experiências, é isso que é a minha grande preocupação e talvez eu possa dizer também da minha caminhada, porque eu sempre tive as minhas duas pernas... Assim, uma na universidade a outra no trabalho social. Estou fazendo 50 anos que eu sou professora, universitária, porque antes eu já ensinava em outros lugares. Iniciei desde muito cedo, primeiro trabalhei na fábrica de doces de Buriti de minha mãe, eu trabalhava com a minha irmã [...] Andava com a mão toda cortada, porque o buriti é uma fruta cheia de escamas, escamosa... e ela corta, amarela e solta uma tinta, a tinta do buriti. Eu chegava na escola das freiras, escola da burguesia, todo mundo tinha as unhas lixadas, as filhas dos médicos... e eu filha da viúva. Enfim [...] um pé na universidade e um outro pé no trabalho social. Primeiro, tendo filhos, levando os filhos na porta da escola, olhando o que era a escola, ensinando no curso normal, ensinando na universidade. Meu marido foi diretor da rádio educadora e eu fazia

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123 um trabalho, um programa para professores e outro programa com a Dona Carochinha, que eu entrava sempre... que era para falar com as crianças. Sempre achei uma fonte extraordinária as crianças para educação. Sempre reclamei da pedagogia não escutar a educação familiar, de onde se ganha essa força, de onde se ganha o sentido do ensino, da aprendizagem, acho muito importante mexer nessas palavras.

Sobre aprendizagem e ensinagem...

Célia Linhares: Gosto de falar atualmente aprendizagem e ensinagem, porque é preciso haver ação no ensino e não uma reprodução fria, quer dizer, esse mecanicismo que se engendrou na deformação do Eichmann também está em processo em muitas escolas, em muitas universidades. Se aprende a falar bonito, mais muito desconectado do que se vive, muito sem dúvidas, eu acho que a dúvida, a preocupação, é uma coisa muita interessante. Então, para terminar além de eu misturar a minha vida acadêmica com o trabalho social, primeiro na Igreja, eu era muito da Igreja Católica, fui até escalada pra fazer sermão, quando começou aquela história do leigo e do feminino, o padre disse: “Ah eu vou convidar a professora Célia para falar”, eu era meio novinha, assim, os filhos nascendo... Enfim, tive minha quarta filha Andréia, quando eu fazia o meu mestrado em Educação, nos Estados Unidos. E assim, um pouco ensinando a eles e muito aprendendo com eles, a força deles, o primeiro dia na escola... Quando eu sentia medo, das coisas que vem, com o exercício acadêmico, eu me lembrava da mão dos meus filhos, quando ia pela primeira vez com eles pra sala de aula, que eu ia entregar... Enfim, eu também dizia: “Puxa, eu também tenho que aprender com eles a coragem, todos foram, todos fizeram”... Um pouco isso...

mas eu quero fechar recomendando um filme, que eu adoro, teria muitos filmes, mas um que ainda está no circuito: A dúvida. Quando Meryl Streep pergunta porque que as pessoas dormem tão bem, porque que elas não se preocupam, porque que elas tem dúvida,... pois eu acho que uma boa tese de doutorado começa com um problema, não com a quinta pata do gato, que muita gente quer descobrir. Um problema empírico, visceral, que lhe doa muito, que lhe doa muito,... diante do qual ela se sensibilize, ela sofra, ela queira fazer alguma coisa, ela queira compreender melhor, como uma ação desejante, eu acho melhor do que a ação comprometida [...] Eu ando um pouco assim cansada desses compromissos, que chega, bate continência, dá recado e, parece que a pessoa nem refletiu internamente sobre o que está dizendo, embora eu seja absolutamente convicta de que nós somos sempre seres coletivos, mesmo quando falamos individualmente. Mas eu tenho muito medo desses coletivos mal entendidos que estão aí, que faz de um bando de pessoa, carneiros... que se atiram em abismos e levam uma nação a se mediocrizar e quando eu digo, mesmo falando como Célia Linhares, eu represento infinitas vozes. Algumas que eu posso identificar, mas a grande, maior parte que eu nem identifico, eu também me apoio numa palavrinha da minha mãe. Vejam que mulher delicada, morreu aos 96 anos, porque levou uma queda, fraturou o fêmur e na cirurgia, nas complicações, foi aí que ela morreu. Mas antes, tendo mais de 90 anos, começou a escrever bilhetes para nós, para não, certamente, para não nos assustar com a morte dela e ela escreveu um dizendo assim: “Meus filhos, nós entramos nesse mundo sem nada, não porque entramos nus, mas porque entramos sem as palavras. Tudo o que nós temos, nos foi dado pelos outros, que nós não sabemos nem quem foram. Quando saímos deixamos tudo, tudo, tudo... também nossas palavras ressoando, tomara que seja pra maior liberdade”. Uma mulher de 96 anos, que fez até o quinto ano, que tinha muita tristeza, de na ‘hora H’, quando fez o exame de admissão, não ter passado. Enfim, era a época dela, imaginam,

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124 eu nasci em 37, minha mãe nasceu em 1911... a mãe ter dito: “olha, parou, tem que ajudar em casa”! Então essa vontade dela de estudar passou para todos nós, todos nós nos formamos. Ruy era uma pessoa, que uns dos maiores prazeres dele era ler, estudar, em qualquer lugar. Qualquer cidade que ele chegava, se tinha uma livraria, Ruy estava lá, descendo livros. Aquilo era uma paixão... Uma vez uma jornalista entrevistou minha mãe e perguntou se era um trabalhão botar sete pimpolhos, porque éramos todos pequenininhos, o mais velho tinha onze anos, eu sou a segunda, nove, e o menor, um ano, botar todo mundo para o colégio. Minha mãe dizia: “Eu? Botar algum filho meu pra levantar, pra ir para o colégio? Então, eles não sabiam a importância de estudar?” Viu como nasceu isso em mim? Porque também, é o seguinte, minha mãe era apaixonada pelo meu pai, a cena da morte do meu pai, ele com 37 anos, ia completar 38, foi uma coisa assim... Eu dormia no quarto, nós morávamos aqui no Rio, na Tijuca, numa Vila muita lindinha, tinha o andar de cima e o andar debaixo, meu pai e minha mãe dormiam num quarto, no outro quarto dormiam as meninas, quando eu ouvi minha mãe chamando: “Meu Deus, meu Deus... Mário, Mário...” Então, eu fui, fomos todos, papai ficava vermelho, ficava branco, até que ele clareou de vez nos braços dela, e ela disse: “Meu Deus, como tu podes fazer isso comigo?” Mas vejam, minha mãe, nessa hora, em vez de gritar, ela disse assim: “Meu Deus, já que tu fizeste isso, de agora em diante eu vou esperar que meus filhos encontrem uma mulher que os amem tanto quanto eu o amei Mário, e que minhas filhas encontrem homens que as amem tanto quanto Mário me amou sempre”. Vocês veem... dentro de uma dor que podia ter afundado, ela pensou em nós, ela fez Deus prometer que ia nos proteger... (momento de muita emoção na conversa).

Palavras finais...

Depois de tantas colocações comoventes, o que você gostaria de dizer, professora, para encerrar nossa conversa?

Célia Linhares: Primeiro agradece muito a Regina. Porque esse exercício, que através desse curso ela me provoca, também tem sido muito bom pra mim e, sobretudo, porque eu penso, que... Olha, vejam bem, esse esforço que vem de tão longe, continua se capilarizando em mil riachinhos que daqui a pouco se capilarizam... São vocês inteiras e que se sabe bem de onde vem. De onde vêm as boas fontes, de onde vem essa mistura de bom e de ruim que somos todos nós... Mas o certo é que, é nesse esforço de melhorar essa água, que todos nós nos animamos na vida, não é verdade? Então, como eu tinha dito antes, do que eu tenho me ocupado ultimamente, e como é que são essas ciladas de não parar o trabalho... Então, eu estava dizendo que eu continuo dando aula e formando mestres e doutores, e palestrando no Brasil inteiro. Mas vieram dois convites no ano passado: um para eu dar uma assessoria de formação de professores para os alfabetizadores que precisam, no Maranhão, alfabetizar um milhão de analfabetos. Vejam bem gente, o Maranhão é minha terra, eu não podia dizer não, viajei doze meses; doze meses pendurada no computador indo pra lá e pra cá. E a outra coisa, vocês sabem que eu trabalho com formação de professores, lecionando, os deveres, as tendências concretas que estão aí, carregadas de memória e os projetos, e os desejos. Então recebi um convite da UNESCO para trabalhar na organização de um centro de memórias da educação e da cultura brasileira. Então vejam: duas grandes tarefas, duas missões que se articularam com uma outra agenda e fora as questões familiares [...] Tenho duas irmãs...

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125 uma está em estado de coma, que era essa minha irmã que eu dividia a raspagem do buriti [...] E, a outra irmã, que mora em Minas Gerais e que também está muito doente... Agora, as coisas boas também acontecem. A minha filha Andréia, essa que nasceu quando eu fazia o mestrado, teve um bebê, um menino muito lindo que se chama Arthur. Talvez o melhor título que eu tenha seja esse: de ser vovó!

NOTAS SOBRE A PROFESSORA CÉLIA FRAZÃO SOARES LINHARES...

aprendizagem-ensinagem e extensão em formação dos profissionais da educação e mantém-se vinculada à Universidade Federal Fluminense como pesquisadora permanente da Pós-graduação em Educação (Doutorado e Mestrado). Coordenou a implantação e, agora, dirige o Centro de Referências em Experiências Instituintes na Educação Pública, no Programa de Pós-Graduação em Educação (stricto sensu) da Universidade Federal Fluminense. É pesquisadora do CNPq, tendo também prestado consultoria a sistemas públicos de educação, bem como ao Projeto 914 BRA 1123 (UNESCOREMEC).

É autora de livros e artigos em que (Informações fornecidas pela professora em nossa conversa e atualizadas em 08/09/2009 discute questões e tendências políticas da educação contemporânea e brasileira, com no Currículo do Sistema Lattes) especial aproximação das instituições escolares públicas, seus professores e seus movimentos Nasceu no Maranhão, em 1937. permanentes de institucionalização. Seus pais: Mário da Silva Soares e Alice Frazão Soares. Casou-se com José Linhares e teve quatro REFERÊNCIAS filhos: Paulo, Mário, Andréia e Ângela. CERTEAU, Michel de. A invenção do A família ampliou-se com os cinco netos: cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Danilo, Henrique, Gabriel, Carmem e Arthur. Vozes, 1994. Mora em Botafogo, no Rio de Janeiro.

FREIRE, PAULO. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Possui Graduação em Pedagogia Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. pela Universidade Federal do Maranhão, especialização em Planejamento Educacional GUEDES, Adrianne Ogêda. Uma mestra da pelo Ministério de Educação e Cultura, palavra: ética, memória, poética e (com)paixão Mestrado em Filosofia e Sociologia da na obra de Célia Linhares. Niterói, UFF, 2008. Educação pela Michigan State University, Tese. Doutorado em Ciências da Educação pela Universidad de Buenos Aires, Livre Docência LINHARES, Célia Frazão Soares. Caminhos de em Filosofia da Educação pela Universidade Medo e Esperança. In: LINHARES, Célia F. S.; Federal Fluminense, tendo realizado pesquisa NUNES, Clarice. Trajetórias de magistério: de Pós-doutorado na Universidad Complutense memórias e lutas pela reinvenção da escola de Madrid e na University of London. pública. Rio de Janeiro: Quartet, 2000. ­ tualmente é Professora emérita ZACCUR, Edwiges; GARCIA, Regina Leite; A da Universidade Federal Fluminense. GIAMBIAGI, Irene (orgs.). Cotidiano: diálogo Coordena o Aleph: programa de pesquisa, sobre diálogos. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. Pró-Discente: Caderno de Prod. Acad.-Cient. Progr. Pós-Grad. Educação

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