Foto: Arquivo pessoal/Nita Freire
Recife | Março de 2011
Paulo Freire e o alfabeto da transformação “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.” A frase do pedagogo Paulo Freire, que faria 90 anos em setembro de 2011, resume bem a sua concepção de educação e diálogo como meios de transformação social. Em Pernambuco, a ideia segue à margem de grande parte da rede de ensino, mas repercute em projetos pontuais e na vida de quem aprendeu, através dela, a ler, escrever e (re)pensar.
O BERRO
2 | Recife, junho de 2011
CRISTINA SOBREIRA
Ensinar e aprender eram a sua ocupação favorita. Traço característico, a tolerância. Sua ide ia de desgraça foi a opressão. Já sua máxima predileta: “Ama sem medo”. E foi por gostar demais do seu povo que Paulo Reglus Neves Freire se empenhou em politizá-lo. Sim, porque o “método Paulo Freire” de ensino não se resume a um conjunto de técnicas ligadas à aprendizagem da escrita e da leitura. O pedagogo do amor, do exemplo e da esperança, no dia 19 de setembro de 2011 completaria 90 anos, se vivo estivesse. Foi numa segunda-feira, às 9h da manhã, na cidade do Recife, que a mãe de Paulo Freire, a dona de casa Edeltrudes Neves Freire (Dona Tudinha), deu à luz ao menino “carrancudo, mas muito amável”, como ela mesma o define no livro do bebê. O pai,
Foto: Arquivo Pessoal/Nita Freire
O pedagogo da esperança LEGADO Freire estimulou conhecimento como forma de transformação
Joaquim Temístoles Freire, oficial da Polícia Militar de Pernambuco, faleceu quando ele tinha 13 anos de idade. “Paulo sentiu o sofrimento quando viu sua mãe, precocemente viúva, lutar para sustentar a si e aos quatro filhos. Ele conheceu a fome”, conta Ana Maria Araújo Freire, chamada carinhosamente pelo educador de Nita. Os dois se casaram em 1988, depois de ele ficar viúvo. Na casa de número 724,
na Estrada do Encanamento, no bairro de Casa Amarela, Paulo Freire foi alfabetizado. Seus pais ensinaram-no a ler e escrever com gravetos no chão de terra do quintal. Aos 22 anos, Paulo Freire ingressou na Faculdade de Direito do Recife. Antes de concluir o curso superior, ele se casou, em 1944, com a professora primária Elza Maia da Costa Oliveira, mãe dos seus cinco filhos: Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima,
homem a fazer a leitura do Joaquim e Lutgardes. O pai das “Marias”, nome mundo como sujeito histórico, preferido de Paulo Freire, logo de produção e de cultura.” Rosas lembra ganhou notocom carinho da riedade como pessoa do edueducador procador: “Era um gressista. Quando homem sensíocorreu o golpe vel e tolerante. militar de 1964, O Paulo Freire Paulo Freire foi, que conheci cuientão, obrigado a dava da gente deixar o país. De- Conheça um com uma doçupois de passar al- pouco mais ra muito grande”. guns dias na Bolí- sobre Paulo O dono de via, foi para o ChiFreire, mais de 40 tíle, onde viveu de 1964 a 1969. “No acessando o tulos de Doutor Chile, Paulo código acima Honoris Causa, premiado munFreire escreveu o com o seu dialmente, era livro Pedagogia celular um nordestino do Oprimido, apaixonado: não mas foi em 1970, trocava por nanos Estados Unidos, que o título foi publicado da uma galinha à cabidela pela primeira vez”, explica o com feijão. Paulo Freire presidente do Centro Cultural morreu na UTI do Hospital Paulo Freire, Agostinho Rosas. Albert Einstein, em São Paulo, Para ele, a obra de Freire às 6h30 do dia 2 de maio de é revolucionária. “Ensina o 1997, de enfarto.
Refletindo e conversando com os livros PAULA CAAL
É impossível falar em educação sem citar Paulo Freire. O método de alfabetização pensado por ele é atemporal e vai além de ler e escrever. Educa para a vida, insere pessoas na sociedade, excluídas por não se comunicarem com eficiência. É a educação gradual, que parte de estudos sociais, culturais e históricos do contexto. No Recife, com sede na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), uma semente de Freire foi plantada há 13 anos. Trata-se do Descobrindo Paulo Freire através da
sua Obra, grupo de estudos vinculado à ONG Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas, com reuniões todas as terçasfeiras, das 14h30 às 17h, na Biblioteca do Centro de Educação. Nos encontros, as concepções de Freire são refletidas, discutidas e reinventadas. Presidida por Agostinho Rosas, doutor em educação, a equipe vai de acordo com os preceitos de Paulo Freire, em uma ordem sem hierarquias, onde todos têm a mesma importância. São particularidades que resultam no coletivo difusor das ideias freireanas. O grupo é aberto e integra estudantes e profis-
sionais de diversas áreas e origens. “O ser humano está sempre em transformação, a ação é uma revisitação dela mesma, relativizando o novo, integrando pessoas por particularidades”, diz Rosas. Assim como Freire, o grupo caminha oposto ao sistema em que a educação está atualmente inserida, adaptando, segundo Agostinho Rosas, “modo de pensar com modo de agir e buscando coerência entre ambos”. Filho de Paulo e Argentina Rosas, amigos íntimos de Paulo e Elza Freire, o hoje presidente do centro cresceu vivenciando pensamentos e ações do mestre
da educação. Ele, como outros membros, encara a aprendizagem como principal objeto de transformação social. A pedagogia é refletida a partir da pergunta, não da resposta, como forma de emancipação do livre pensamento, sem opressão de ideias. TRANSFORMAÇÕES A sala de aula encontra-se deturpada da própria essência. O erro é motivo para repressão e julgamento. Segundo Rosas, um erro não precisa ser punido, mas superado com argumentação. Isso, diz, é o que leva à aprendizagem. Ele complementa afirmando que
“não se dão respostas antes das perguntas, e para a formulação delas é preciso refletir, ter embasamento”. Os pensamentos freireanos foram incorporados ao capitalismo. “Um aluno só sai da universidade com diploma se responder a uma demanda”, comenta Argentina. Uma revolução no sentido de transformar é pensada pelos estudiosos de Freire, não como tomada de poder, mas como maneira de pensar o sujeito coletivo com respeito, como pessoa dialética, ética, ativa e crítica. Unindo prática e teoria, o grupo de estudos realiza também colóquios internacionais.
EXPEDIENTE Coordenador do Curso de Jornalismo Alexandre Figueirôa O BERRO é uma publicação da Disciplina Jornal-Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Rua do Príncipe, 526 - Boa Vista - Recife-PE CEP 50.050-900 - CNPJ 10.847.721/0001-95 Fone: (81) 2119.4000 - Fax: (81) 2119.4222 www.unicap.br/oberro
Professora Orientadora Fabíola Mendonça Subeditores Maria Aline Moraes Marília Simas Tiago Cisneiros
Repórteres Alice de Souza Aline de Lira Paixão Annyela Rocha Beatriz Bandeira Cristina Sobreira Cinthia Ferreira Davi Barboza José Vito Araújo Lorena Tapavicsky Maria Aline Moraes Maria Eduarda Vaz Marília Simas
Paula Caal Renata de Sá Oliveira Rômulo Alcoforado Sarah Jéssica Lima Tiago Cisneiros Agradecimento Especial Ana Maria Freire Diagramação Flávio Santos Impressão FASA
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Recife, junho de 2011 | 3
O BERRO
Pedagogia libertária em centros do MST Pregador da liberdade e grande incentivador de manifestações sociais, o escritor, filósofo e pedagogo Paulo Freire sempre teve admiração e respeito pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Em uma de suas últimas entrevistas, concedida a TV PUC, ele comemora a oportunidade que teve de acompanhar o desenvolvimento do MST. “Eu morreria feliz se visse o Brasil cheio de marchas. [...] Eu acho que as marchas são andarilhagens históricas pelo mundo. E o MST representa, para mim, uma das expressões mais fortes da vida política e da vida cívica deste país”, revela. O movimento é uma organização política dos trabalhadores rurais sem terra, cuja ideia central é a refor ma agrária. Uma das principais iniciativas do grupo é a educação nos acampamentos e assentamentos, que tem como princípio a pedagogia da libertação de Paulo Freire.
EDUCAÇÃO Método de Freire foi adotado pelo MST
Foto: Arquivo Pessoal/Nita Freire
Um grande exemplo é o Centro de Formação Paulo Freire, que funciona na cidade de Caruaru, em Pernambuco, e é gerido pelo setor educacional do MST. O professor Claudemir Silva, colaborador da instituição, afirma que a infraestrutura é um ponto crucial no desenvolvimento saudável. “O centro oferece conforto aos estudantes, alojamento, sala de reunião, salão para eventos e um grande refeitório. Mas, por que isso é importante? Porque garante que os alunos se desenvolvam livremente”, explica. Segundo o professor, os integrantes da entidade estão sujeitos a vivências coletivas que exigem ações, escolhas, tomada de posições e superação. Situações além das já estabelecidas pela metodologia de ensino convencional. “O maior objetivo aqui é ensinar rompendo com o modelo socioeducacional linear dominante”, afirma. Vários profissionais, como a psicopedagoga, Rosana Freitas, vêm-se interessando
SARAH LIMA E DAVI BARBOZA
em estudar as influências de Freire em movimentos como esses. Atualmente, ela trabalha em uma pesquisa no assentamento localizado em Paudalho, Zona da Mata do Estado. “A metodologia baseia-se na visão de que cada pessoa que integra o MST é um ser humano em transformação permanente”, diz. MST NO BRASIL O MST surgiu há 26 anos com inspirações no marxismo e na Teologia da Liber-
tação. Hoje, mantém algumas escolas no Brasil, que promovem a partilha e o diálogo entre alunos e professores. “Os estudos de Paulo Freire são norteados pelo lema ‘não é possível compreender o outro se ele não fala’. O movimento mostra a realidade ao povo, o processo de empobrecimento e desumanização que vivenciaram no decorrer dos anos. Tudo isso, através de uma leitura do oprimido, do diálogo e da união”, diz o professor do
curso de pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Xavier Uytdenbroek, que foi, durante quatro anos, diretor do Centro Paulo Freire no Recife. Xavier nasceu na Bélgica e veio para o Brasil como padre. Através de suas experiências em comunidades de baixa renda, tornou-se um grande admirador dos métodos freireanos. “A faculdade do MST, por exemplo, em São Paulo, já formou milhares de alunos. Ali, há dois professores por sala e os estudantes aprendem e ensinam”. A escola à que Xavier se refere é a Nacional Florestan Fernandes, que foi construída entre os anos 2000 e 2005, graças ao trabalho voluntário de aproximadamente mil trabalhadores sem terra e simpatizantes. Ela oferece cursos de nível superior nas áreas de filosofia política, teoria do conhecimento, sociologia rural, economia política da agricultura, História social do Brasil, entre outros.
LORENA TAPAVICSKY
Educação para todos, sem distinção de raça ou cor era um dos ideais de Paulo Freire. Para pôr em prática esse objetivo, a Secretaria de Educação de Pernambuco, através do Programa Paulo Freire, e em parceria com o Comitê Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Cepir), vai alfabetizar um segmento da sociedade que, historicamente, teve boa parte de seus diretos negados: comunidades afrodescendentes que residem em terreiros de umbanda. Os espaços que oferecem oficinas de afoxé e maracatu poderão agora aprofundar os conhecimentos de seus frequentadores e oferecer novas oportunidades, através do estudo. Com previsão de início para agosto de 2011, as aulas serão oferecidas a jovens, a
Foto: Bobby Fabisak/ Cortesia
Cultura e educação nos terreiros de umbanda
DIREITOS Moradores de terreiros terão aulas sobre cultura afro
partir de 15 anos, adultos e idosos não alfabetizados, e serão ministradas nos próprios terreiros de umbanda. Segundo a coordenadora executiva do Programa Paulo Freire, Vera Capucho, os planos de aula serão elaborados de acordo com a proposta pedagógica do projeto, buscando a valorização e a promoção da cultura de matriz africana. “As capacitações
terão como foco os direitos humanos e a promoção da integração racial, bem como a Lei 11.645, que inclui, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática história e cultura afrobrasileira e indígena.” A expectativa é de que cerca de mil pessoas sejam alfabetizadas pelo programa. Para ministrar as aulas, professores que moram nos
terreiros ou em comunidades do entorno deles estão sendo convidados a participar de capacitações. No Centro Espírita São Gerônimo, em Jaboatão dos Guararapes, Pai Antônio de Xangô já identificou várias pessoas aptas para dividir o conhecimento com os demais. “Aqui temos advogados, professores e diretores de escolas aposentados e na ativa que podem dar as aulas. Estamos dispostos também a emprestar alguns desses profissionais para ajudar as pessoas de outros terreiros a ler e escrever”, afirma. Outra casa que já está cadastrada para receber as aulas é o Terreiro de Pai Adão, no bairro de Água Fria, Zona Norte do Recife, coordenado pelo pai de santo Manuel Papai. Em parceria com a União de Negros pela Igualdade, Fundação Palmares e
Unesco, ele realizou, em 2002, uma pesquisa para identificar o grau de instrução dos moradores dos terreiros. O resultado foi surpreendente. “Visitamos 528 terreiros no Grande Recife. De cada cem espaços, apenas cinco pessoas tinham cursado uma universidade.” Para se ter uma ideia, apenas no terreiro de Pai Adão moram 66 pessoas. Por causa do percentual incrivelmente baixo, o desejo de levar formação e aprendizado para os afrodescendentes começou a crescer. “Nosso povo sempre foi esquecido pelo poder público. Antes, a desculpa era de que não podiam ser realizadas ações do governo em espaços religiosos. Ainda bem que, agora, isso mudou e finalmente vamos receber um pouco mais de atenção”, comemora Manuel Papai.
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MARÍLIA SIMAS
Educar e capacitar para transformar. Este é o slogan da organização não-governamental (ONG) Comunidade dos Pequenos Profetas, situada em um casarão antigo, na avenida Sul, Centro do Recife. Com mais de 25 anos de trabalho, a ONG acolhe meninos e meninas de rua de 7 a 21 anos que estão em situação de vulnerabilidade social. Muitos com o laço familiar rompido, submetidos à exploração sexual e utilizando vários tipos de drogas. Atualmente, o órgão recebe 327 jovens e tem uma filial localizada em um sítio, no município de Igarassu, a fim de atender exclusivamente aos jovens dependentes químicos, que estejam dispostos a passar dez meses em tratamento, longe das drogas. Dentre os trabalhos desenvolvidos, estão atelier de artes, roda de leitura, escolinha de percussão, de esportes e alfabetização a partir do método de Paulo Freire. Todas essas atividades são desenvolvidas com o objetivo de geração de renda, capacitação, inserção dos jovens no mercado
de trabalho e resgate da cidadania. Segundo o fundador e idealizador do projeto, Demétrius Demétrio, a alfabetização dessas pessoas é muito importante para o exercício da cidadania. O método de Paulo Freire é utilizado para que se diminua a evasão dos jovens na ONG. Todos os adolescentes têm a oportunidade de pensar, socializar e tirar conclusões sobre os temas abordados em sala de aula, contrariando a ideia de que se deve apenas transmitir um saber já construído. As crianças e jovens participam, todas as quartas-feiras, de uma assembleia, na qual podem discutir e dar sugestões sobre as atividades que serão realizadas durante a semana. “São importantes o aprendizado e a alfabetização desses jovens, para que eles consigam ser cidadãos. Por isso, aqui utilizamos o método de Paulo Freire, onde todos são participantes. Nós damos as condições, as ferramentas para que essas pessoas saiam da vida que estão. Basta que cada um queira e aceite crescer”, diz Demétrio. O objetivo do método é que o aluno se coloque, tenha a oportunidade de
TRE-PE usa Freire em projeto educacional JOSÉ VITO ARAUJO
Intervalo no trabalho. Hora de almoçar, descansar um pouco e voltar às atividades entre as salas do prédio sede do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE). Essa era a rotina dos funcionários de serviços gerais, contratados de forma terceirizada pelo órgão. Rotina que foi alterada no início deste ano. Um grupo de servidores do TRE-PE, em parceria com o Programa Paulo Freire do governo do Estado, passou a movimentar as duas horas de repouso com livros, letras e números. Ao todo, dez pessoas de baixa escolaridade são atendidas no Projeto Educação Solidária (Edusol), uma turma de alunos que amplia seus conhecimentos longe da escola, com o auxílio da metodologia freireana. Quatro semanas de treinamentos foram necessárias para a preparação dos servidores voluntários do Edusol, até que estivessem prontos para lecionar. Todo o material didático foi fornecido pela administração estadual, além de refeição para os alunos que
participam do projeto. Em sala de aula, eles discutem acerca de situações cotidianas, desde o troco passado no ônibus, a coleta do lixo e as diferenças existentes em cada comunidade. Para cada um desses casos, são citados elementos da língua portuguesa, da matemática e de outras disciplinas, como história e geografia. Severino Tavares, de 45 anos, está feliz por participar da iniciativa. “Por várias vezes, tive que pedir às pessoas que me ajudassem a pegar um ônibus. Quando perguntavam como se escrevia meu nome, mostrava o crachá. Agora, como o senhor está vendo, eu sei escrever todinho”, vibra Tavares, mostrando o caderno com seus estudos. A vitória do aplicado aluno é o pagamento dos voluntários. “Nos sentimos mais humanos e úteis em poder ajudar na reconquista da autoconfiança deles. Em poder demostrar que eles não são ignorantes, que têm conhecimentos válidos e que podem aprender ainda mais”, afirma Claudia Toscano, servidora voluntária.
Foto: Marília Simas
Educação freireana utilizada em ONG
FUNDADOR Demétrius forma cidadãos na Comunidade dos Pequenos Profetas
argumentar e refletir acerca dos assuntos abordados na sala de aula. Para o morador de rua José Aparecido de Souza, 21, ir para a CPP é como voltar para casa. “Eu moro na r ua há 12 anos. Chego à ONG pontualmente às 8h e só saio quando terminam todas as atividades. Aqui, eu aprendi a ler e a escrever. Esse é um espaço de lazer que parece a minha casa. Eu gosto muito de participar de tudo”, relata o jovem.
PREMIAÇÃO Em 2008, a Comunidade dos Pequenos Profetas foi reconhecida como uma das 20 melhores práticas do Prêmio Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, concedido pelo governo brasileiro e pela Organização das Nações Unidas. Também foi eleita como uma das 50 melhores iniciativas para o desenvolvimento do país, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
O método que transforma vidas ALINE DE LIRA PAIXÃO
Frequentar a escola: para uns, uma simples rotina; para outros, a conquista da cidadania. Apenas aos 60 anos de idade, Maria Anunciada conseguiu assistir a uma aula pela primeira vez, graças ao Vivendo e Aprendendo, um projeto voltado à educação de adultos baseado no método do educador Paulo Freire. “Quem não estuda é cego”, garante ela, que hoje está no ensino médio. O projeto foi implantado há três anos pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), em parceria com Serviço Nacional da Indústria (Sesi), que ministra as aulas no horário do expediente, nas instalações da empresa. O programa é voltado para empregados com idade superior a 40 anos, que não concluíram a educação básica no período previsto. Paulo Freire criticava o sistema tradicional, por acreditar que uma educação eficiente insere os alunos nos contextos social e político, incentivando a reflexão. De acordo com a coordenadora do programa na Chesf, Maria
de Lurdes Feitosa, o projeto propõe situações concretas para o aprendiz, de for ma a prepará-lo para se posicionar na sociedade. “O ensinamento é capaz de transformar as pessoas; a vida desses homens passa a se travestir de significados”, explica Maria de Lurdes. Os professores do Sesi estabelecem uma relação imediata entre a matéria ministrada e situações vividas pelos alunos. Uma das docentes, Verônica Tavares, explica que o curso ensina para liberdade, baseando-se no que Paulo Freire defendia: não se trata de uma simples transferência de conhecimento, mas na geração de condições para produção do saber. “Muitos se sentiam envergonhados, mas a insegurança cede lugar ao encorajamento”, enfatiza Desde o início do curso, cerca de 150 empregados participam do programa. O aluno Sebastião Benício, 82 anos, é um deles. “Antes não conseguia, mas agora sei subtrair e multiplicar. A gente só deixa de aprender quando morre, essa é a maior lição que aprendi”, revela.
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Ressocialização através de Paulo Freire ALICE DE SOUZA
F.R.A.F tem 23 anos. Há um, teve a liberdade cerceada pelas grades de uma cela, no presídio de Igarassu, Região Metropolitana do Recife (RMR). Durante os primeiros dias de cárcere, passava o tempo sentado, remoendo as atitudes que o levaram ao local. Enquanto isso, no bairro de Rio Doce, Olinda, a mãe do rapaz, Janete Albuquerque, vivia a angústia de não ver perspectiva para o primogênito. Mas, há alguns meses, ela enxerga uma nova vida para o filho, que passou a integrar o quadro de funcionários de ser viços de manutenção e artes do presídio. For malizar essas atividades, tornando-as uma realidade para todos os reeducandos, através do conceito de formação de formadores de Paulo Freire, é a proposta do projeto Aprendendo a Ser Livre, desenvolvido pela Secretaria Executiva de Ressocialização do estado de Pernambuco (Seres).
de prisão piore a personalidade dele. Graças a Deus, por meio do trabalho, ele está desenvolvendo habilidades, o que pode garantir um emprego aqui fora”, diz a mãe. O projeto foi criado para atender às diretrizes da Lei de Execuções Penais e planejado a partir da realidade dos próprios reeducandos, de maneira que eles utilizem o conhecimento adquirido no período anterior à prisão e qualifiquem os colegas de unidade. “A história dessas pessoas está no meio onde elas foram criadas, no lugar em que desenvolveram a subjetividade. A cadeia é apenas uma passagem. Elas vão voltar para sociedade. Temos que dar o subsídio para isso”, explica o gerente. O resgate da identidade, que já vinha sendo feito isoladamente ou através de programas de artes e ofícios, passou a ter contornos definidos por certificados e instrumentos de comprovação. O conteúdo dos cursos foi definido a partir das habilidades já desenvolvidas dentro dos
Os números da educação no cárcere pernambucano 18 é o número de unidades prisionais do Estado 23,5 mil é o número de reeducandos do Sistema Prisional Pernambucano 4,9 mil têm ensino regular 50% ou mais voltam a cometer delitos 60% não sabem ler nem escrever ou têm apenas o esnino fundamental incompleto 4 anos é o tempo para erradicar o analfabetismo, segundo meta da Seres
O que pretende o Aprendendo a ser Livre: Qualificar profissionalmente os detentos por meio do conceito de Formação de Formadores de Freire.
O sistema carcerário do estado tem em torno de 23,5 mil reeducandos, divididos em 18 unidades prisionais. Desses, cerca de 60% não sabem escrever o nome ou têm apenas o ensino fundamental incompleto. Por isso, a angústia da mãe de F.R.A.F - e de muitas outras - é também a do governo, que teme os altos índices de reincidência e os baixos níveis de ressocialização. Segundo o gerente de educação e qualificação profissionalizante da Seres, Ednaldo Pereira, apenas 4,9 mil pre-
sidiários têm ensino regular e metade volta a cometer delitos. “Queremos resgatar a figura do educador e do professor dentro das unidades. É o conceito de formação de formadores que propõe, através do conhecimento empírico, construir alternativas para a vida deles”, afirma, referindo-se ao Aprendendo a Ser Livre. Foi assim com F.R.A.F, que transformou o saber adquirido antes da detenção em ofício no presídio. “Nosso maior medo é de que o tempo
presídios, com oficinas de confeitaria, embalador, cozinheiro, corte e costura, cabeleireiro, manicure, pintura, marcenaria, manchetaria, música e reciclagem, por exemplo. De acordo com o gerente, que buscou fontes para o conceito em Paulo Freire, na inserção das práticas cotidianas dos alunos na educação, o aprendizado acontece de maneira mais fácil do que no estudo regular, pois não vai de encontro à realidade dos detentos. “Essa forma não exige muito do ponto de vista da educação formal. Como muitos são analfabetos, retraem outros saberes. Se você aplica o conhecimento através da realidade deles, como propôs Freire, a aceitação é outra”, afirma Pereira. Com o Aprendendo a Ser Livre, os presos do regime semiaberto podem assimilar e repassar saberes, sendo multiplicadores desse conhecimento. A ideia é que, com a saída do reeducando, outro se coloque no seu lugar, para continuar o processo de ensino e aprendizagem.
MARIA EDUARDA VAZ
O sorriso voltou a visitar o rosto de Maria de Lourdes Constantino, 48 anos. Até pouco tempo atrás, a história era diferente. Tudo era confuso e parecia não fazer sentido. Ela não sabia ler. O pedreiro Getúlio dos Santos, 35, sentia o mesmo. O que eles têm em comum? O pensamento de Paulo Freire, que ajudou a mudar a vida e contribuiu com o progresso pelo qual passaram. Getúlio dos Santos começou a ir à escola há cinco meses. Lá é o lugar de onde poderá começar uma nova vida. “Nunca consegui um trabalho melhor, nem uma condição boa para os meus filhos. Sentia-me um ignorante.” A situação está mudando. As palavras já passaram a fazer sentido e
a autoestima cresceu. “Hoje, vejo que tenho mais chances de vencer na vida.” Para Maria de Lourdes, a transformação veio há oito meses. Foi quando ela se matriculou na Escola Municipal Arraial Novo do Bom Jesus, no Bairro do Cordeiro, Zona Norte do Recife. “No início das aulas, sentia dificuldade e, por isso, perdi o interesse pela escola. Com o tempo, tudo mudou”, lembra. O assunto tornou-se fácil para ela, que passou a se familiarizar com o conteúdo em aula, a partir do momento que a escola adotou o “método” freireano de alfabetização. O cotidiano da doméstica foi um grande aliado dos professores. Isso porque os objetos que ela usava no trabalho foram levados à sala de aula e auxiliaram no processo de aprendizagem.
De acordo com a pedagoga Letícia Rameh, é nisto que consiste o pensamento do estudioso pernambucano: investigação, tematização e problematização. Ex-diretora da Brigada Paulo Freire – Por uma Olinda Alfabetizada, ela acredita que a concretização da filosofia freireana é fundamental para o sucesso nas salas de aula. “Se todos os professores aderissem ao método dele, o Brasil teria menos analfabetos”, afirma. OLINDA E RECIFE A Brigada Paulo Freire não leva esse nome por acaso. O brasileiro é referência para educadores de todo o mundo. O programa, lançado em 2006, é baseado no método de Freire. Idealizado pela Secretaria de Educação da Prefeitura de Olinda, a Bri-
Foto: Maria Eduarda Vaz
Adultos reencontram a alegria de viver
EXEMPLO Escola no Cordeiro promove alfabetização de adultos
gada tem como objetivo principal alfabetizar adultos no período de um ano. A Escola Municipal Criança Feliz, nos Bultrins, recebe, por dia, 25 alunos da Brigada. Na sala de aula, é possível enxergar a luta daqueles que querem aprender. Gente como a dona de casa Maria Helena da Silva, 58
anos. “Minha maior tristeza é não poder ajudar meus filhos nas tarefas da escola, mas vou conseguir”, afirma. A Prefeitura do Recife também entrou na luta contra o analfabetismo. Desde 2009, o Programa Lição de Vida trabalha em conjunto com o Brasil Alfabetizado, do Ministério da Educação.
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ANNYELA ROCHA
Educar de forma integral, pensando na individualidade dos cidadãos. Mais de uma década após a morte de Paulo Freire, a sua filosofia de ensino continua como um sonho distante no Brasil. No Recife, apenas algumas escolas seguem a tendência proposta por ele, principalmente no ensino infantil. São exceções. Criado pelo pedagogo e por Raquel Correia de Castro, o Instituto Capibaribe, no bairro das Graças, Zona Norte do Recife, é uma das escolas que mais investem na educação freireana. Lá, os professores respeitam o aluno como pessoa. “Trabalhamos com o espírito de colaboração e neutralizamos excessos”, conta a diretora, Mônica Antunes Melo, sobre o tratamento dado aos estudantes.
Foto: Maria Aline Moraes
Método freireano é raridade no Recife
INSTITUTO CAPIBARIBE Destaque pelo amplo uso do método
Saindo das Graças e indo para não muito longe, no Derby, chega-se à Escola Municipal Padre Antônio Henrique. Ela tem tamanho físico parecido com o do Capibaribe, mas as diferenças falam mais alto. Voltada para o ensino infantil, a escola tem salas improvisadas nos corredores. Mesmo sem aplicar a pedagogia de
Paulo Freire, existe a vontade de tratar os alunos de forma diferenciada. A quantidade de estudantes com necessidades especiais matriculados, por exemplo, é de 72. No total, são 300. Um deles é Herivelton. Com 17 anos de idade, surdo, ele está na primeira série do fundamental. Além de disciplinas básicas, Herivelton faz
curso de criação de vídeos. O aluno acompanha as aulas, mas enfrenta algumas dificuldades com as Libras e não sabe escrever. Ele, assim como os outros estudantes da escola, não sabe quem é Paulo Freire. Para a professora de geografia Maria Elisabete Vieira, o caso não é isolado. Ela diz que nenhuma escola pública de Pernambuco trabalha a partir do pensamento de Paulo Freire na educação infantil. “Eu faço minha parte, usando um pouco das ideias e da metodologia dele nos meus projetos”, diz a educadora. Depois, completa: “É necessário partir do conhecimento do aluno para lecionar. Todo mundo sabe de alguma coisa”. Já para a pedagoga Élia Maçaira, Paulo Freire está mais presente do que parece.
“Geralmente, as escolas que trabalham explicitamente com Paulo Freire são as públicas ou especializadas em educação de jovens e adultos. As escolas com uma linha de ensino mais progressista também têm grande influência dos métodos dele”, afirma. A diretora do Instituto Capibaribe discorda da ideia de ampla presença do método. Para ela, o problema da educação pública está na formação e valorização dos professores. “Eles tentam segurar a revolta de um grupo desvalorizado e, ainda assim, são os profissionais menos ouvidos”, desabafa Mônica Antunes Melo. Ela ressalta que o amplo uso da pedagogia freireana teria um potencial revolucionário neste contexto, mas diz que não se pode culpar o professor público pela ausência do método.
Ideias de Freire sem lugar na Internet para rede de ensino estadual democratizar CINTHIA FERREIRA
Quem já ouviu a expressão “casa de ferreiro, espeto de pau” já deve fazer uma breve associação quando as palavras “Paulo Freire” e “escolas estaduais” são ditas em uma mesma frase. O sociólogo, que completaria 90 anos em setembro, morreu sem ter a oportunidade de ver, na educação de Pernambuco, a implantação de seu método de alfabetização para adultos. De acordo com levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Pesquisas (IBGE), existem, hoje, 1,2 milhão de pessoas analfabetas em Pernambuco. Número que corresponde a cerca de 18% da população do estado. A maioria é de mulheres não brancas, com mais de 40 anos e moradoras de áreas rurais. O dado é preocupante, quando comparado ao número de escolas do estado: quase 10,5 mil – incluindo, instituições estaduais, municipais, federais e particulares.
O problema é que o sistema de ensino de todas elas é considerado tradicional. Para a coordenadora do programa Paulo Freire do governo estadual, Verônica Caputo, a dificuldade de uma pessoa adulta recomeçar ou iniciar os estudos é grande, já que existe uma série de preceitos a serem quebrados. É o caso da doméstica Severina Ramos da Silva, de 69 anos. Há dez, ela resolveu aprender a ler e a escrever, mas desistiu do curso em algumas semanas. “Cheguei lá, me espantei (risos). Era a mais nova da sala.” Severina frequentava as aulas no período noturno. “Queria aprender, sabe? Mas foi me dando uma agonia na cabeça tão grande, que preferi parar.” Mesmo sem saber, dona Neném, como é conhecida, fala de metodologia. Ela estava sendo alfabetizada como se fosse uma criança. No Grande Recife, por exemplo, dentre as quase 550 escolas estaduais, apenas duas são consideradas de refe-
rência: a Santos Dumont, em Boa Viagem, e o Ginásio Pernambucano, de ensino integral. Ainda assim, não estão nos moldes do método do educador Paulo Freire. Segundo o autor da Pedagogia do Oprimido, a educação sozinha não transforma a sociedade. Sem ela, tampouco a sociedade muda. Um exemplo de como essa parceria dá certo está em São Paulo: o Centro Educacional Unificado (CEU). Trata-se de um complexo educacional, esportivo e cultural, caracterizado como espaço público múltiplo, aberto à comunidade, inclusive nos fins de semana. Em 2007, o superintendente do Centro de Integração Empresa-Escola (Ciee), Germano Coelho, apresentou, ao governador Eduardo Campos, um projeto de implantação de modelo similar em Pernambuco. A proposta ficou de ser analisada, mas, até agora, está no mesmo lugar que os livros de muitos estudantes: na estante.
TIAGO CISNEIROS
Ela costumava dizer que ficar na frente de um computador é perder tempo. Durante dois meses, no entanto, precisou da máquina para fazer um curso essencial para sua carreira. Mais de um ano depois, admite que gostou, em grande parte, porque pôde trocar ideias e experiências, através de um fórum virtual, com pessoas de muitos outros cantos do país. “Toda semana, o professor enviava um texto e colocava uma questão, para que debatêssemos no portal. Alguns relatos serviram de inspiração”, conta a juíza do Trabalho Ana Catarina Araújo, 44. Não parece, mas a história dela tem muito a ver com os pensamentos do pedagogo pernambucano Paulo Freire. Isso porque tal experiência ilustra a possibilidade de adaptar as teses do educador às novas tecnologias, tornando o computador um instrumento de ensino e comu-
nicação. Justamente, o que defende o coordenador da Universidade Paulo Freire (Unifreire) - um braço do instituto que leva o mesmo nome -, Anderson Alencar. Para ele, o mundo virtual não impede o diálogo e a construção do saber. Pelo contrário: pode estimulá-los. Para tanto, diz, as instituições que oferecem cursos a distância devem abrir espaços de conversação, como chats, videoconferências e fóruns, que permitam a transposição do sistema dialógico de Freire, do presencial para o virtual. A partir daí, para que se construa conhecimento, bastaria que os envolvidos (alunos e professores) se dispusessem a trocar saberes. Coisa que nem sempre acontece. “Em vários casos, o centro da relação é o conteúdo, e não as pessoas”, afirma. No processo dialógico, aponta Alencar, o papel do educador é incentivar a reflexão e o intercâmbio de ideias e informações.
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O BERRO
RÔMULO ALCOFORADO
Paulo Freire foi o maior pedagogo brasileiro da história - isso todo mundo já leu ou ouviu em algum lugar. O que nem todos sabem é que a contribuição dele não se restringiu apenas às salas de aula. Pelo contrário, flutuou por diversas áreas e tornou-se referência em outras tantas. Por isso, é importante, até para jornalistas, ter pelo menos um livro de Freire na estante. E revisitá-lo com certa frequência. Para seguir adiante com a reportagem, faz-se necessária uma rápida explicação do pensamento de Paulo Freire. De acordo com ele, comunicação exige diálogo e tem de ser compreendida como um processo comprometido com justiça e transfor mação social. Não se pode esquecer sua dimensão política e seu papel importante na formação de uma massa consciente e crítica. É com algum pesar que os especialistas brasileiros em comunicação, 14 anos depois da morte de Paulo Freire, reconhecem que a função exercida pela mídia ainda está muito distante daquela preconizada pelo pernambucano. O pós-doutor em comunicação Venício Lima é um dos
que lamentam que os ensinamentos freireanos não sejam colocados em prática. “Talvez nem mesmo Paulo Freire imaginasse que continuássemos de tal forma atrasados em relação a um direito tão fundamental para a pessoa humana como o direito à comunicação”, afirma, em artigo ao site Carta Maior. O professor de comunicação Renato Beltrão endossa a opinião do colega. “Democratização? Isso não existe no Brasil. Mesmo com o avanço da internet, o domínio de quase toda informação está restrito a um número muito pequeno de famílias e empresários”, alerta. Os dados dão sustentação à opinião do pesquisador. Estimativas apontam que sete grupos dominam cerca de 80% de tudo o que é veiculado em TVs, rádios e jornais tupiniquins. “Um absurdo”, assusta-se Beltrão. PÚBLICO É ingênuo pensar que todo o público percebe isso no dia a dia. Boa parte dele está completamente alheia a reflexões sobre o papel da mídia. Gente como a empregada doméstica Josefa França. “Não perco uma novela. A televisão da minha casa fica sempre
Foto: Arquivo SINDSEP-PE
A mídia perdeu o trem do progresso
“A lógica na qual opera a mídia comercial coloca seus interesses empresariais acima de tudo” - Venício Lima, pesquisador
ligada no 13”, diz, referindo-se ao canal em que a TV Globo é veiculada. Nem todos aceitam, contudo, a imposição tão pacificamente. É o caso da arquiteta Marina Magalhães. “As grandes empresas de comunicação cuidam apenas dos seus interesses. Oferecem produtos de baixíssima qualidade.” A resposta que ela dá é simples. “Não consigo ver TV. Quando tento, desligo em cinco minutos.” Não há dúvidas: quanto maior o público, mais atrativa é uma emissora para os anunciantes. Isso explica, por exemplo, o fato de a TV Globo abocanhar 74% das verbas publicitárias de todo o país. O efeito é absolutamente negativo. “A lógica na qual opera a mídia comercial coloca seus interesses empresariais acima de literalmente tudo, ignorando os valores fundamentais da convivência humana em busca de suas metas de lucro”, diz Venício Lima. A reação da arquiteta, que poderia parecer completamente inócua, portanto, ganha sentido. Se boa parte do dinheiro das empresas de comunicação vem de publicidade, mexer no controle remoto é mexer – mesmo milimetricamente - no órgão mais sensível de qualquer conglomerado de mídia: o bolso.
Rádio Diálogos transforma vida de jovens BEATRIZ BANDEIRA
Em uma era em que o monopólio da comunicação aguça apenas a participação da sociedade com microfones e linhas telefônicas abertas aos ouvintes, o projeto da Rádio Diálogos utiliza a metodologia freireana, estimulando a inclusão da maioria de jovens e adultos iletrados. Dentro das temáticas mais recorrentes, o projeto realiza constantemente um processo de escuta entre a população e busca os assuntos mais importantes para abordar na rádio. Fundada há 17 anos, a Diálogos começou um trabalho de atuar nas comunidades e bairros periféricos de Olinda com o objetivo de contribuir para a transformação social por meio da educação, do meio ambiente, da comunicação comunitária, do esporte e da cultura. Com as ações sempre focadas em comunidades de baixa renda, hoje, os integrantes do projeto acreditam, mais do que nunca, em incentivar perspectivas de futuro, que abrem novos
horizontes para jovens e pessoas da em reciclagem, artes florestais, conterceira idade. Seja pela execução de fecção de instrumentos pernamoficinas ou de eventos de cunho bucanos, rádio comunitária, produção cultural, a rádio envolve a inter- de vídeo, produção cultural e fotodisciplinaridade em seus trabalhos, grafia. Uma vez que os recursos da comunicação incitam a criatividade, a trazendo temas da realidade local. “Nós começamos uma trajetória liberdade de expressão, o interesse pela com um projeto de grande destaque e música e outras expressões culturais, que atingiu certa perenidade. Nosso o público-alvo tem obtido desempenho satisfatório e programa corresponde acredita na à linha esimportância “O programa crê na sencial do da comu- importância da programa. nicação para comunicação para a “Esse proa transformatransformação social”, jeto só fez ção social. Por acrescentar. isso, trabalha- Viviane Alves, Conheci nomos com a fundadora da Diálogos vas pessoas, metodologia me dediquei do mestre Paulo Freire, utilizando o mesmo uni- aos estudos e aprendi muito com ações verso vocabular em que esses jovens e comunitárias. Agora, com uma nova adultos vivem.”, explica uma das visão, tenho um projeto de vida e boas perspectivas pela frente”, diz um dos fundadoras, Viviane Alves. Além de promover festivais mu- alunos, Rafael Angelino, 17 anos. Com um vasto “currículo”, a Diásicais e intercâmbios entre grupos culturais, o programa oferece oficinas logos vem conquistando a vitória em para jovens e adultos de capacitação editais e prêmios públicos. “Já con-
seguimos importantes prêmios de órgãos como Ministério da Educação, Ministério da Cultura, Petrobrás, Programa Cultura Viva e já realizamos convênios com o Ministério do Turismo, Governo de Pernambuco e Prefeitura de Olinda”, relata Viviane. Sempre buscando a inclusão, a entidade tem também como pretensão atender às necessidades dos ouvintes, já que eles fazem parte do conceito de comunicação comunitária uma mídia feita pelo povo e para o povo. Trata-se de uma troca de ideias e de informações entre pessoas, que visa ao crescimento educacional e ao aumento da qualidade de vida. Segundo o sociólogo Paulo Andrade, as rádios comunitárias abrem um espaço para o povo como instrumento de conscientização e mobilização social. “Nos programas difundidos para as comunidades, as pessoas se reconhecem como cidadãos e entendem que os problemas que poderiam ser vistos como isolados são de interesse coletivo”, explica.
O BERRO
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dança no cotidiano de exclusão e de desigualdades sociais. O antigo matadouro de Peixinhos, mesmo equipado de forma precária, tornou-se palco de shows de bandas de rock. Não demorou muito para o recinto configurar-se como um dos mais importantes espaços para a comunidade, com atividades culturais, sociais e educativas relacionadas com música, teatro, dança e literatura. Em 1999, o ambiente passou a ser chamado pela própria periferia - e também pelo MCBL - de Nascedouro da Cultura Popular. O lema era superar a morte e comemorar a vida através da arte, ou seja, pôr em evidência os movimentos culturais com fins de transformação.
RENATA DE SÁ OLIVEIRA
Foi recorrendo ao método de Paulo Freire que o Movimento Cultural Boca do Lixo (MCBL), surgido na década de 1990, mudou a realidade violenta do bairro de Peixinhos, em Olinda. A ideia surgiu a partir de um grupo de jovens integrantes de bandas de punk-rock e adeptos da agitação undergroud. Nas ruínas abandonadas do antigo matadouro de Peixinhos, já com as portas fechadas e relacionadas à morte e ao perigo, foi criado um espaço de referência cultural, educativa e social, pautado nos ensinamentos do educador pernambucano. Como o bairro sempre foi vinculado ao alto grau de marginalização e violência, o objetivo era transformar a comunidade através da expressão da arte e possibilitar uma mu-
LEITURA VITAL Em 1998, o MCBL difun-
diu a necessidade de transformação social na comunidade através do estímulo à leitura. A motivação partiu do poeta Caetano Alves, que passava para os jovens do movimento a importância de ler e de se informar para conquistar conhecimento e autonomia pessoal. A disciplina na leitura possibilitaria mais educação e escrita, com acesso aos bens culturais e formaria os cidadãos leitores, críticos e autores de seus projetos de vida. Assim, nasceu a Biblioteca Multicultural Nascedouro. Para concretizar o desejo da biblioteca, houve um mutirão de arrecadação de livros e um processo paralelo de capacitação para o tratamento do acervo, ocupação e limpeza do espaço, no Antigo Matadouro de Peixinhos. A missão era recriar metodologias inovadoras, longe do conceito
Foto: André Vinícius/Galeria MCBL
Cultura de periferia revive Paulo Freire
RODA DE DIÁLOGOS Conversa sobre o processo criativo
tradicional, em que a leitura e a escrita vão além dos sinais gráficos da gramática, com a sabedoria de revistar o velho e libertar-se da manipulação. O educador André Vinicius estimulou os jovens a desenvolverem uma prática críticoreflexiva, utilizando linguagens múltiplas, produzindo o conhecimento, ampliando o funcionamento da instituição
e também da própria cidadania democrática, metodologia que se aproxima dos preceitos freireanos. “A intenção é difundir a ideia de que o aprendizado se realiza em outros lugares além da escola, trabalhar em favor do alfabetismo conceitual e político, visando a relações dialéticas, como defendia o próprio Paulo Freire”, ressalta.
MARIA ALINE MORAES
“O Movimento de Cultura Popular (MCP) nasceu da miséria do povo do Recife... Da lama dos morros e alagados, onde crescem o analfabetismo, o desemprego, a doença e a fome. Suas raízes mergulham nas feridas da cidade degradada. Fincam-se nas terras áridas. Refletem o seu drama como síntese dramatizada da estrutura social inteira.” As palavras do professor e um dos fundadores do Movimento Cultural de Pernambuco (MCP), Germano Coelho, descrevem o espírito de indignação social que, há 50 anos, ganhou forma através de ilustres pensadores, entre eles Paulo Freire. No embrião da história, que articulou a arte e a educação em prol da população oprimida, estiveram Abelardo da Hora, Geraldo Menucci e Luiz Mendonça, que, já na década de 1950, movimentavam o Ateliê Coletivo. Após uma exposição realizada na Escola de Engenharia, Miguel Arraes, então secretário estadual da Fazenda, tomou
Foto: Maria Aline Moraes
A saudosa era dos movimentos populares
EM CASA Educadora recebe crianças do assentamento
conhecimento da efervescência cultural que aquilo estava provocando. Lá mesmo, disse a Abelardo da Hora, sendo ele eleito prefeito da cidade do Recife, aquele movimento, associado a um setor de educação, estaria definitivamente no seu programa de governo. Dito e feito. Em maio de 1960, Arraes fundou o Movimento de Cultura Popular do Recife. Nesse momento, Paulo Freire daria os primeiros passos do seu sistema de alfabetização de adultos. Encarregado de assumir a diretoria de divisão de pesquisa,
o educador encabeçava, junto a Norma Coelho e Josina Godoy, as quais elaboraram o livro de Leitura de Adultos, a parte de educação do MCP. O fato é que, por mais que aquela cartilha fosse uma revolução para a época, de vocabulário ideológico e político, seu modelo ainda era, para Freire, convencional. Ele, então, incluiu à instituição o Centro Cultural, onde as turmas eram “círculos de cultura” e, em conjunto, professor e aluno faziam a escolha das palavras que dariam forma ao ensino da leitura e escrita.
a necessidade de lutarmos e LEGADO FREIREANO Da sagacidade de Paulo de nos percebermos como Freire, surgiram transforma- atores da nossa história”. Aos 20 anos, Luiza seguiu ções sociais e mentes brilhantes. A agricultora agroeco- para Abreu e Lima, onde lógica e educadora social, começou um trabalho com os nascida no centro de Casa pequenos agricultores em uma Amarela, Luiza Cavalcante - escola comunitária. Já inteque, junto ao MCP, celebra grante da Comissão Pastoral da Terra, seus 50 anos acampou por de existência nove anos - conta como Há 50 anos, nas terras do sempre este- Freire foi uma Engenho ve engajada das referências Prado, situaao movimendo MCP do em Tracuto social, innhaém. Ali, ter mediado participou da pela educação, tão exclamado por Freire. criação do Centro de For“Lembro muito de papai, com mação e Informação Popular o candeeiro aceso, recebendo Paulo Freire. “Com base na os vizinhos que iam procurá- pedagogia freireana, o ensino lo para aprender a ler, e das era todo contextualizado com idas dele ao Sítio da Trindade nossa realidade. Freire nos fez (onde funcionava a sede do aprender a sair da sala de aula MCP). Cedo, despertei para o com as ferramentas de traestudo e movimentos popu- balho e resistência. Alfalares. Mas foi durante a betização, para ele, não era das ditadura que finquei minha letras, mas da consciência formação pessoal. Paulo política.” Hoje, Luiza tem a Freire, mesmo condenado ao posse da terra e é professora exílio, foi a uma reunião do no Programa Saberes da Conselho dos Moradores e, Terra. Em casa, ensina a com entusiasmo, falou sobre quem quer aprender.