"O Trágico e o Dramático" - Anais do V Colóquio de Arte e Pesquisa do PPGA-UFES

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CONSELHO CIENTÍFICO Aissa Afonso Guimaraes Alexandre Emerick Neves Almerinda da Silva Lopes Angela Maria Grando Bezerra Aparecido Jose Cirilo David Ruiz Torres Erly Milton Vieira Junior Fabio Luiz Malini De Lima Gaspar Leal Paz Gisele Barbosa Ribeiro Ricardo Luiz Silveira da Costa Ricardo Mauricio Gonzaga

COMISSÃO ORGANIZADORA Prof.ª Dr.ª Angela Maria Grando Bezerra Prof. Dr. Aparecido José Cirillo Prof. Dr. Ricardo da Costa Rodrigo Hipólito dos Santos Fabiana Pedroni Favoreto Jessica da Silva Gasparini Katler Dettmann Wandekoken Natalie Supeleto Gomes Tatiana Campagnaro Martins Sandro de Souza Novaes Dimitrio Joviano Pinel Bruna Wandekoken Radael Rezende Rodrigues Junior Elton Ribeiro Pinheiro Maria Angélica Pedroni Andreia Falqueto Lemos Marcela Belo Felipe Mattar Fabiane Vasconcelos Salume Zimerer Daniellen Welsing Nogueira


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Grando, Angela et al (Org). V Colóquio de Artes e Pesquisa dos Alunos do Programa de Pós-graduação em Artes – O Trágico e o Dramático/Organização: Ângela Maria Grando Bezerra et al. – Vitória: UFES, 2015. 1 V, 410p. ISSN 2316-963X 1. Arte – Colóquio. 2. Programa de Pós-graduação em Artes – UFES CDD - 730


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SUMÁRIO Filmes roubados: estratégia e contribuição do found footage para a arte. Sabrina Littig (PPGA-UFES)

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Pré-continuidade e pós-continuidade: o espetáculo do cinema na modernidade e na pós-modernidade. Radael Rodrigues Junior (PPGA-UFES)

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Estética Punk no Cinema. Raphael Genuíno de Araújo (PPGA-UFES)

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As descontinuidades do Pólo Cinematográfico de Paulínia (SP): um drama recorrente na produção de cinema brasileiro. Cleber Fernando Gomes (PPGHA-UNIFESP)

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Palco ilusório de um delirante teatro mágico: espaço imaginário de autorreflexão. Ubiratan Machado Pinto (PPGCL-UFRJ)

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Espacio y Espectáculo: El encuentro con Romeu e Julieta (Grupo Galpão). Marina Simone Dias (PPGAU-UFES)

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Orfeu da Conceição: tragédia ou melodrama? A dramaturgia rapsoda de Vinícius de Moraes. Glauco Cunha Cazé (PPGL-UFPE)

81

Nietzsche e o espírito trágico. Lucyane de Moraes (PPGF-UFMG)

97

Sobre o “trágico” na previsão da própria morte de Ismael Nery. Rosana de Morais (PPGA-UNESP)

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Efemeridade e fabulação em penélope de Tatiana Blass. Petruska Toniato Valladares (PPGA-UFES)

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L.H.O.O.Q. e o valor estético: Como a obra de Duchamp criou um novo conceito de readymade. Pólen Pereira Sartório (PPGA-UFES)

137

A rainha do Frango Assado - o Kitsch na instalação de Alex Vallaur. Katler Dettmann Wandekoken (PPGA-UFES)

146

Impresión de estados alterados. Monica Elisa Contreras, Dario Ivan Ramirez (PPGA-UFES)

160

Entre Crescer e Cair - Processos iniciais. Rodrigo Hipólito, Fabiana Pedroni, Maria Angélica Pedroni (PPGAUFES/CAR-UFES/PPGHIS-USP)

173

Formas Flutuantes. Wanessa Cordeiro (PPGA-UFES)

180

A linguagem corporal como narrativa em Blow Job (1964). Samir Torres Scardini (PPGA-UFES)

184

A mulher gorda na arte: Transgressões e possibilidade. Júlia Almeida de Mello (PPGA-UFES)

195

O encontro entre Édipo e a esfinge em pinturas. Antônio Leandro Barros (PPGH-UNICAMP)

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A tragédia da Abstração Informal e o drama da Pintura nos anos 1980. Claudia Botelho (PPGA-UFES)

221

“Instalação’ e/ou ‘instalação’”: A obra de Regina Rodrigues e sua relação com o espaço na arte contemporânea. Tatiana Campagnaro Martins (PPGA-UFES)

230

A arte como possibilidade de um novo habitar. Vinicius Gonzalez (PPGA-UFES)

246

O tempo histórico como tempo contemporâneo: ponderações sobre a história da arte. Tainah Moreira Neves (PPGA-UFES)

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Clara Sampaio Cunha (PPGA-UFES), Curadoria como prática artística: a experiência da exposição Formas de voltar para casa.


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Curadoria como prática artística: a experiência da exposição Formas de voltar para casa. Clara Sampaio Cunha (PPGA-UFES)

266

A web participativa não dialógica nos espaços da arte contemporânea no Brasil. David Ruiz Torres (PGHA-UGR)

276

O filósofo, o palhaço e o fim Artigo dramático. José Ailton Arnaud, Wladelene Lima (PPGA-UFPA)

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Paradoxos entre arte e política nos Provos: a reinvenção da estética no cotidiano holandês. Flavio Lima (PPGD-UFPE)

305

Aproximações entre livro-poema e site-specific. Priscilla Guimarães Martins (PPGA-UFES)

314

Tragédia na arte: uma proposta de arte postal. Adriana Tiago Lopes (PPGA-UFES)

329

Litografia com nanquim: novas possibilidades sobre a pedra calcária litográfica. Thiago Arruda (PPGA-UFES)

340

Tomie Ohtake: simplesmente pintura. Ricardo José de Campos (PPGA-UFES)

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Sintonia Concretista em O Vampiro da Cinemateca, de Jairo Ferreira. Jonathan Estevam Marinho (PPGIS-UFSCar)

365

A realidade fotográfica ou a fotografia do real? Sandro de Souza Novaes (PPGA-UFES)

375

As fotografias de Moyra Davey como objeto teórico e ato de reinvenção do meio. Marianna Pedrini Bernabé (PPGA-UFES) Nossa paisagem sonora: Sons de todos os lados. Hendy Anna Oliveira (DTAM-UFES)

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Filmes roubados: estratégia e contribuição do found footage para a arte. Sabrina Littig (PPGA-UFES)

Resumo: Este artigo discute algumas questões relativas aos filmes experimentais produzidos a partir da apropriação de fragmentos de outros filmes. Utilizaremos como primeiro exemplo A Sociedade do Espetáculo produzido em 1973 pelo escritor francês Guy Debord e baseado no seu livro homônimo, lançado em 1967. Analisaremos também o filme Rose Hobart de 1936 do artista americano Joseph Cornell que se configura como uma contribuição fundamental para a produção de filmes experimentais, e um dos primeiros realizados sem a necessidade de uma câmera. Palavras-chave: filmes experimentais, apropriação, détournement. Abstract: This article discusses some issues relating to experimental films produced from appropriating snippets of other films. First example we will use as The Society of the Spectacle a film produced in 1973 by the Situationist and writer Guy Debord and based on his book with the eponymous title released in 1967. We will also analyze the film "Rose Hobart" 1936, made Joseph Cornell, another key contribution to the production of experimental films, and one of the first made without a camera. Keywords: experimental films, appropriation, détournement. Em um texto1 de Guy Debord escrito em 1999 ele fala dos seus “filmes roubados”. Debord refere-se a uma prática hoje bastante comum no meio áudio visual que é a apropriação de trechos de vários tipos de mídias, músicas e filmes para compor trabalhos distintos. Esta prática constitui-se através da busca a repositórios de novas metáforas para o resto da cultura de hoje. Manovich2 identifica diferenças específicas entre as modernas práticas de apropriação de imagem e o que ele chama de “mixagem” ou “remix”. Estas estratégias de produção prevêem a utilização de partes de fontes audiovisuais na elaboração de outros contextos. Para Manovich as manifestações de apropriação retroagem até antes da década de 1980 e nunca deixaram o seu contexto artístico original onde eram aplicadas por artistas pósmodernos, exemplificadas nos trabalhos com base na refotografia de imagens fotográficas, como em After Walker Evans de Sherrie Levine3.

DEBORD, Guy. “The use of Stolen Films”. In EVANS, Davis (Org.). Appropriation. London: Whitechapel Gallery, 2009. p. 66. 2 MANOVICH, Lev. “Quem é o autor. Sampleamento/ mixagem / código aberto”. In: BRASIL, André et al (org).Cultura em Fluxo: Novas mediações em rede. Belo Horizonte: Editora PUC-MG, 2004. Disponível em: http://manovich.net/DOCS/models_of_authorship.doc. Acessado 12/12/2013. 3 Disponível em: http://www.aftersherrielevine.com/. Acesso em: 15/12/2013. 1


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Levine em seu trabalho emblemático empreende uma crítica fotográfica à originalidade. Em 1979 se apropria das fotografias documentais que Walker Evans fez de uma família de meeiros pobres do estado americano do Alabama, produzidas no ano de 1936. Refotografando-as provocou outro trabalho cujo fundamento principal está no questionável sistema de autoria e criação. Esta série e outras em que a artista executa projetos se apropriando de trabalhos de Edward Weston, Andreas Feininger e Eliot Porter, são características da atividade apropriativa pós modernista. Segundo Owens suas imagens sentimentais roubadas, invariavelmente emblemáticas e alegóricas, não são focadas nestes indivíduos em si, mas na sua representação cultural traduzindo-se em uma impessoalidade da imagem4.

O artifício da cópia na arte da apropriação, para Hal Foster, utiliza a

reprodutibilidade fotográfica com fito ao questionamento da “unicidade pictórica”, como nas obras de Levine5. O conceito de apropriação como um ato de deslocamento motivado e aquisição de sentido, passou a ser visto como fundamental para iluminar alguns dos processos por trás da evolução do significado cultural e político da arte. Neste contexto, é uma linguagem diversificada e abrangente que se insinua na arte engajada em um tomar indevidamente com propósitos de reificação alegórico, de maneira tal, que a cultura dominante passa a operar por meio da apropriação para estimular a produção de seus mitos contemporâneos6. É um processo cognitivo poderoso que se engendra pelos diversos agentes da cultura e do mercado e produz um público consumidor até certo ponto alienado, incapaz de ver nestes “produtos” um sistema semiológico previamente estruturado. Noutra perspectiva a cópia desse material gera um problema de autoria em áreas culturais diversas, onde é vista como uma violação dos direitos de autor. Na prática, cineastas, artistas plásticos, fotógrafos, arquitetos e designers da web rotineiramente “apropriam-se” de obras já existentes, promovendo uma espécie de plágio residual, e não existem termos próprios equivalentes aceitos como a mixagem da música para descrever estas práticas. Manovich acredita que a maior aceitação do termo remixar é por ele sugerir um retrabalho sistemático em cima de fontes pré-existentes gerando algo novo enquanto significado, o que a apropriação não faz, já que a lógica apropriacionista é justamente questionar a autoria e deixar claro de qual fonte este material foi apropriado. É fundamental que se deixe conhecer esta origem. Apesar da proximidade prática entre os dois termos a diferença objetiva entre remix e apropriação está no contexto de seu uso e significação. OWENS, Craig. “Sherrie Levine at A&M artworks”. In: Beyond recognition: representation, Power, and culture. EUA: University of California Press, 1992. p. 114-116. 5 FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda do século XX. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 140. 6 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. p.222-223. 4


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Bernini diz que a condição pós-autoral da apropriação de trechos de filmes, pode interferir na leitura das imagens. Ao trabalhar com imagens feitas por outros, pressupõe-se a ideia moderna de autor como criador daquilo que vemos, impondo sua marca, sua vontade ou seu gesto, em imagens produzidas industrialmente. Por isso se pensa no found footage como cinema de apropriação, conceito que responde a um procedimento inscrito em toda a imagem cinematográfica pelo estatuto de reprodutibilidade técnica. Para Bernini, em todo o found footage existe uma espécie de crítica e rebelião iconoclasta7. As imagens de consumo são perseguidas, por seu caráter ambíguo, entre o denunciar e o distrair as massas. Guy Debord fez seis filmes experimentais entre 1952 e 1978, inteiramente utilizando os recursos de found footage apropriando-se de trechos de outros filmes. La Société du Spectacle8 de 1973 é um filme que rechaça em sua configuração a produção de imagens novas, admitindo através da manipulação das imagens um domínio da produção da alienação humana. Sua finalidade mais urgente é demonstrar que toda a sociedade do espetáculo é manipulável assim como suas imagens. Com um narrador que anuncia as teses do seu livro, Debord consegue exemplificar os sentidos e assinalar os modos em que se situa a perspectiva do observador, neutralizando o poder coisificante das imagens espetaculares, pois também promove uma ruptura de toda possibilidade de unir de maneira lógica os planos. É um exemplo da utilização da sua teoria do détournement.

Figura 01: Guy Debord - Cenas de A Sociedade do Espetáculo. 1973. Disponível em: http://www.ubu.com/film/debord_spectacle.html. Acesso em 15/12/2013

Geralmente traduzido como “desvio” à teoria do detournement foi desenvolvida por Debord e Gil J. Wolman, e explicada em publicação de 1965 chamada Directions for the use of BERNINI,Emilio. “Found Footage: lo experimental y lo documental”. In: TRETOROLA, Diego.(org.) Cine encontrado. Qué es y adónde va el found footage?. Buenos Aires: Editora Adriana Hildalgo, 2009. P.30-31 8 A Sociedade do Espetáculo. Filme disponível em: http://www.ubu.com/film/debord_spectacle.html. Acesso em 15/12/2013. 7


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Détournement. O desvio é na verdade uma forma de apropriação, onde ocorre uma variação em um trabalho já conhecido que produz um significado antagônico ao original. O filme A Sociedade do Espetáculo baseado no livro de Debord de 1967 com o mesmo título foi seu primeiro longa-metragem com 88 minutos de duração e cenas incorporadas de filmes épicos, noticiários, anúncios, fotografias e filmes industriais. As sequências eram pontuadas por legendas em abundancia, além da narração dele próprio recitando textos do livro e de outros pensadores como Maquiavel, Sorbonne e Karl Marx, em uma narrativa problemática, indecifrável, misturada às legendas e às próprias falas dos personagens dos filmes. Debord usa o found footage na lógica da teoria do détournement numa crítica radical do marketing de massa e seu papel na alienação da sociedade moderna, posição ideológica que ele assume e mantêm junto ao movimento situacionista que defendeu e que se revelou na severa crítica social, cultural e política, reunindo poetas, arquitetos, cineastas, artistas plásticos e outros profissionais9. Ele afirma que sua intenção não era utilizar os filmes de ficção como ilustração crítica de uma arte da sociedade do espetáculo, mas que seus filmes roubados, pelo contrário, possuem uma independência a despeito dos significados originais. São apropriados para serem ressignificados, para representar a retificação da "inversão artística da vida". O espetáculo foi deportado da vida real para a tela, numa tentativa de expropriar os expropriadores. Cada trecho de filme evoca alguma reação, sensação ou ação, que não se relaciona com o enredo original. O western Johnny Guitar evoca memórias reais de amor. Shanghai Gesture remete a outros ambientes de aventura em atmosfera noir. Por Quem os Sinos Dobram simboliza a revolução derrotada. Embora obras de ficção, Debord trata os trechos destes filmes como se retirados da “vida real”, daí as relações com o gênero found footage, que no cinema contemporâneo ganhou uma atitude de documentário realista ficcional com uma filmadora doméstica.10 Debord elabora as duas leis fundamentais da prática do détournement: a perda de importância de cada elemento detourned (desviado ou “detunado”, numa tradução literal), que pode ir tão longe a ponto de perder completamente seu sentido original, e, ao mesmo tempo, “a reorganização em outro conjunto de significados” que confere a cada elemento um novo alcance e efeito. No guia para o détournement são apresentados dois tipos principais: “os menores”, onde é feito um desvio de um elemento que não tem importância própria, e 9

Enciclopédia Itaú Cultural. Situacionismo. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3654 10 Found Footage, ou filmes perdidos no Brasil, gênero de filmes surgido nos anos 1980, e que simula ser gravado como um documentário, com uma filmadora doméstica. Foi popularizado pelo filme The Blair Witch Project (A Bruxa de Blair), filme estadunidense de1999.


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que, portanto, toma todo seu significado do novo contexto onde foi colocado; e os “enganadores”, onde é feito o desvio de um elemento intrinsecamente significativo o qual toma uma dimensão diferente a partir do novo contexto. O détournement então pode, com a devida licença, ser traduzido como “desvio”, “apropriação” ou “citação”. Frases, recortes de jornais, romances inteiros, fotografias sobre qualquer assunto e filmes, praticamente tudo pode ser desviado, distorcido e ressignificado. Guy Debord em “Directions for the Use of Détournement11 diz que um dos usos mais eficazes do desvio, é o cinema, que gera uma ampla possibilidade de ressignificação. Ao serem apropriadas, películas de qualidade discutível podem representar um potencial no domínio secundário, que transcendem sua intenção inicial. Na fala de Debord, a maioria dos filmes “merece” ser cortados para compor outros trabalhos. A reconversão de sequências préexistentes, adicionadas à outra trilha sonora, acompanhadas de trechos sem sentido, elementos musicais ou pictóricos, assumem o caráter de uma experiência nova. Como afirma Debord “Such dètournement – a very moderate one – is in the final analysis nothing more than the moral equivalence of the restoration of old paintings in museums (...)” 12. Ele ilustra esta ideia sugerindo que o filme “Nascimento de uma Nação”

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de 1915 e dirigido por D. W. Griffith,

considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema porém marginalizado devido a sua forte carga racista, mereceria um tratamento através do desvio, onde poderia ganhar um enredo diferente. Sugere-o que sequer seria preciso alterar a montagem, adicionando uma trilha sonora que possibilitasse a denúncia aos horrores da guerra imperialista ou as atividades atrozes da Ku klux klan. Não é condicionante que este tipo de filme se configure por denunciar ou provocar um mal estar cultural. Joseph Cornell se destaca como um dos primeiros a pensar uma forma de aproveitamento e transformação de filmes perdidos. Este artista americano da assemblage ficou conhecido quando apresentou intrigantes colagens a um galerista de Nova York, chamado Julien Levy, ainda nos anos 1930. Trabalhando na vertente surrealista dessa época, produziu apropriações e assemblagens envolvendo objetos resgatados de lojas e antiquários, utilizados na montagem de conjuntos com pequenos objetos e afins dispostos em caixas. Conforme diz Deborah Solomon14, essas pequenas coleções quase surreais de objetos díspares justapostos possuem uma poesia silenciosa sobre eles. Embora nem todos os críticos DEBORD, Guy. “Directions for the use of Détournement/1956”. In: EVANS, David (Org.). Appropriation. London: Whitechapel Gallery, 2009: p.35. 12“Tal detournement – de uma forma muito moderada – é em ultima análise nada mais do que o equivalente moral da restauração de pinturas antigas em museus. (...)” DEBORD, Guy. Idem. . p.37. 13The Birth of a Nation, filme mudo estadunidense feito em 1915. 14 SOLOMON, Deborah. Utopia Parkway. The Life and work of Joseph Cornell. Londres: Pimlico, 1997 11


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descrevam seu trabalho como surrealista, ele estava familiarizado com vários artistas do movimento, como Marx Ernst, Marcel Duchamp, Francis Picabia e Salvador Dali, participando de exposições com eles. Em 1936 produziu um curta-metragem intitulado Rose Hobart, sua primeira colagem fílmica. Michael Pigot15 diz que frequentemente este filme é considerado o primeiro com técnica found footage, enganosamente, dando como exemplo trabalho pregresso da cineasta Russa Ester Shub (ou Esfir Shub16), que inaugura a montagem ou colagem recuperando frames de filmes históricos. Mesmo assim Rose Hobart foi um marco no cinema experimental, totalmente feito sem uma câmera. Era essencialmente uma versão drasticamente reeditada de um filme chamado East of Borneo produzido em 1931 com 77 minutos de duração, dirigido por George Melford, e estrelado por Rose Hobart uma atriz de teatro, cinema e televisão estadunidense que começou a fazer filmes em 1930. Cornell é conhecido pela admiração quase idólatra às estrelas de cinema, dançarinas e damas vitorianas, o que inspirava seus trabalhos de assemblagem e colagem. Estas mulheres idealizadas eram suas personagens de sonho e constantemente enaltecidas. Rose Hobart tinha as características apreciadas pelo artista, para merecer um local de destaque no universo de suas composições. Cornell combinou dois elementos díspares para criar algo novo, incomum, em seus filmes, um processo não muito diferente daquele usado em suas caixas. Para conseguir isso, ele foi a um armazém onde poderia comprar filmes que foram danificados ou vendidos por peso para a sucata e adquiriu uma cópia do filme East of Borneo, e editou o filme até 20 minutos de cenas selecionadas, a maioria deles com Hobart. Comprou um registro de samba barato e substituiu a trilha sonora original por "Holiday in Brazil", com auxílio de um gramofone, criando uma mistura quase surreal da música sul-americana com as configurações fílmicas de Hollywood. Certamente ele sabia das discordâncias deste procedimento de apropriação de elementos sincréticos. No filme original, conforme diz Ingrid Schaffner17 a heroína, interpretada por Rose Hobart, sai em uma missão para resgatar seu marido na Indonésia, que está preso no palácio do príncipe Marudu. O príncipe exótico se apaixona por Rose, que o mantém à distância, juntamente com um elenco de leões, cobras, macacos e crocodilos, até que um vulcão entra em erupção no topo do palácio, o que lhe permite escapar com o marido. A versão destilada de Cornell mostra a heroína respondendo às criaturas listadas em uma atmosfera carregada 15

PIGOTT, Michael. Found Footage. In.: Joseph Cornell Versus Cinema. Bloomsburry Academic. A&C Black. 2013. P.915. 16 Biografia disponível em: http://www.imdb.com/name/nm0795528/, acessada em 15/12/2013. 17 SCHAFFNER, Ingrid. The Essential: Joseph Cornell. New York: The Wonderland Press. 2003. p.64-65


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com conotações eróticas, perceptível em alguns detalhes das cenas escolhidas, como no silêncio das locações, no peito arfante, olhares sedutores e sobrancelhas franzidas.

Figura 02: Joseph Cornell - Cena de Rose Hobart. 1936.

Cornell exibiu o filme através de um filtro colorido, projetando-o com uma luz azul, (Imagens 2) e diminuiu a velocidade do projetor. Sem o enredo reconhecidamente bobo do filme original, não se sabe realmente se as aparições de Rose são tão exageradas como a versão editada por Cornell. Este filme reflete algumas características do simbolismo implícitas nas obras do artista. Cornell trata estes filmes como suas assemblagens e colagens, enfatizando o sonho/ imaginário sobre narrativa/script.Típica da obra de Cornell, o filme é sobre abstrair e prolongar um estado emocional intenso e inexplicável. Seu uso de filmes encontrados desafia a autoria, assim como Debord o fez anos depois, em A Sociedade do Espetáculo, que inspirou uma geração de filmes e cineastas, incluindo Stan Brakhage, Rudy Burkhardt, Ken Jacobs, Larry Jordan, Jonas Mekas, e Jack Smith. Leandro Listorti e Diego Trerotola articulam a ideia de que os filmes realizados através do found footage se apresentam como uma revolução na representação tecnológica se baseando nas experiências audiovisuais em toda a história. Há uma adoção de uma falsa teoria em torno da autoria e da exclusividade que estes filmes comprometem com a profanação de sua integridade aurática e que pode explicar sua marginalização. Desde o começo dos anos noventa que os artistas interpretam, reproduzem e expõem trabalhos realizados por outros estimulados por estratégias de reapropriação dos bens culturais de todas as gerações. É perceptível que nos tempos atuais as estratégias apropriativas da videoarte popularizam este


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gênero, estimulada pelos avanços na tecnologia da imagem. Para Bourrioud podemos dizer que tais artistas que inserem em seus próprios trabalhos o de outros, não estão prejudicando a sacralizada ideia de autoria e exclusividade, mas contribuem para abolir a distinção tradicional entre produção e consumo, criação e copia18.

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BOURRIOUD, Nicolas. Pós Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p 7-8.


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Pré-continuidade e pós-continuidade: o espetáculo modernidade e na pós-modernidade. Radael Rodrigues Junior (PPGA-UFES)

do cinema

na

O cinema nem sempre foi pautado em sua habilidade de contar uma história. Apesar da predominância de filmes narrativos, houve momentos em que os filmes se preocupavam muito mais em impactar seu público de forma direta, quase física, gerando reações como espanto, riso, medo, etc. Pretende-se traçar aqui um paralelo entre dois momentos distintos na história, mas que apresentam em comum esse caráter espetacular: O Cinema de Atrações do final do século XIX e início do século XX e o cinema de pós-continuidade dos anos 2000. A intenção é mostrar características comuns aos dois períodos, analisando a relação dessas produções cinematográficas e o ambiente em que elas surgiram. Esses filmes teriam relação direta com cada cenário em que se desenvolveram, se inserindo e, ao mesmo tempo, exibindo elementos próprios da modernidade e da contemporaneidade. Palavras chave: pós-continuidade, Cinema de Atrações.

The cinema has not always been about its ability to tell a story. Despite the predominance of narrative films, there were moments when they used to largely focus on making a direct and almost physical impact on its public, thus triggering astonishment, laughter, fear, etc. The aim of this paper is to draw a parallel between two distinct moments in history, but that also have in common this spectacular character: the late 19th century and early 20th century Cinema of Attractions, as well as the cinema of post-continuity of the 2000s. Our intention is to show the common characteristics of the mentioned periods, analyzing the relationship of these cinematographic productions with the environment in which they have arisen. These films would have a direct relationship with each scenario in which they were developed, simultaneously showing particular elements of each one. Key words: post-continuity, Cinema of Attractions.

O cinema Hollywoodiano tornou-se predominantemente uma forma de se contar histórias audiovisuais por meio da continuidade de fatos, da relação de contiguidade lógica do espaço e tempo em um filme. O amplo alcance de suas produções, por sua vez, fez com que esse caráter narrativo se tornasse quase que um modelo fundamental de cinema. André Gaudreault (2009) reforça esse caráter narrativo ao afirmar que o cinema fez com que o indivíduo do século XX se tornasse ávido consumidor de suas narrativas projetadas nas incontáveis salas de exibição pelo mundo. Contudo nos últimos 15 anos tem surgido uma nova forma de cinema hollywoodiano ou, ao menos, uma dissidência daquele que é considerado modelo clássico de narrativa cinematográfica. Nesse novo modelo a preocupação com a continuidade narrativa não é nem de longe o foco de suas produções. Diretores como Michael Bay, Tony Scott, Paul Greengrass, Mark Neveldine e Brian Taylor têm investido em filmes que parecem ter um interesse quase obsessivo pelo choque sensorial e pela excitação constante do público. E esse encanto pelo espetáculo acontece muitas vezes em detrimento da sua própria continuidade narrativa.


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Por outro lado filmes pautados na habilidade de provocar reações por meio do espetáculo sensorial não são de forma alguma exclusividade do modelo de pós-continuidade surgido nos anos 2000. O próprio cinema na verdade nasceu como espetáculo. Ao contrário dos filmes essencialmente narrativos que viriam a ser dominantes posteriormente, as produções cinematográficas do final do século XIX e início do século XX aproximavam-se muito mais do universo circense do que da literatura. Seus espectadores esperavam ser surpreendidos e maravilhados com as imagens que se moviam à sua frente, sem esperar necessariamente por uma sucessão de fatos coerentes, por algum tipo de drama ou personagens aprofundados. Pretende-se então atrelar o conceito de Cinema de Atrações de Tom Gunnning (2000) ao conceito de Regime de Mostração (2009) de André Gaudreault, ambos referentes às primeiras produções cinematográficas da história. A partir dessa relação será traçado um paralelo entre essas produções e o conceito de pós-continuidade desenvolvido por Steven Shaviro (2012) em referência a determinados filmes de ação das últimas duas décadas. Para melhor entender o termo serão analisados também outros dois conceitos que se relacionam diretamente com a chamada pós-continuidade: o conceito de continuidade expandida de David Bordwell (2002) e o conceito de Chaos Cinema de Mathias Stork (2012). O objetivo em relacionar os dois modelos de cinema citados como foco desse trabalho é definir elementos comuns a ambos, especialmente no que tange seu caráter espetacular e não narrativo. Dessa forma podem ser traçados paralelos entre dois períodos tão distantes historicamente, mas que aparentam ter várias características em comum. Se filmes de diretores como Michael Bay, por exemplo, são definidos como sendo de pós-continuidade, não seria passível de interpretação que diretores como George Méliès1 seriam de uma possível pré-continuidade? Por fim propõe-se também um novo ponto de vista quanto ao cinema high concept de pós-continuidade. Por meio da comparação com o Cinema de Atrações pretende-se propor um deslocamento na percepção que se tem da póscontinuidade, passando a encará-la sob a ótica do espetáculo sensorial. Assim, como nos filmes de Méliès, o objetivo desse cinema não seria contar uma história, mas causar uma reação no público, impactá-lo fisicamente, gerando espanto, riso, medo, aflição, etc.

2. O Regime de Mostração e o Cinema de Atrações

Talvez devido ao caráter não narrativo das primeiras produções cinematográficas, os filmes produzidos no período entre o fim do século XIX e início do século XX foram por muito tempo quase 11

Para mais sobre George Méliès: COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. Ou ainda: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2006.


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que totalmente desconsiderados pelos pesquisadores. Relegados ao quase esquecimento histórico, essas produções eram percebidas como uma aparente tentativa desajeitada para se chegar a uma linguagem fundamental (e narrativa) do que viria a ser realmente o cinema. Esse cenário de quase esquecimento só começou a mudar décadas depois, já nos anos de 1970. Nessa época uma nova geração de estudiosos se incumbiu da tarefa de reexaminar do início ao fim o período de nascimento do cinema. Destacam-se aqui dois deles: Tom Gunning e André Gaudreault. Segundo eles esse cinema desenvolveu sua própria linguagem essencialmente não narrativa, espetacular e com forte caráter de atração sensacionalista, bem diversa do cinema narrativo posterior. Esse primeiro cinema, portanto, não poderia ser então considerado “primitivo”, como se acreditava até então, mas original e diverso do que se estabeleceu historicamente como predominante.

2.1 A modernidade e o Cinema de Atrações

Ao se referir aos filmes produzidos na virada do século XIX e princípio do século XX, Tom Gunning cunhou o termo Cinema de Atrações. Tomou emprestado do cineasta Sergey Einsenstein a expressão atração, utilizada pelo russo em uma tentativa de se criar um novo modelo de teatro da época. Além disso a expressão “atração” era algo que já acompanhava a sociedade como um todo por mais de trinta anos. Essas atrações se constituíam de momentos em que espectador era submetido a impactos sensoriais e psicológicos intensos. Esse pensamento de atração era então perfeitamente alinhado com o cenário conturbado em que se constituía a modernidade. As cidades nesse período tornavam-se grandes centros urbanos, onde as pessoas eram submetidas a uma quantidade de informação até então impensável e a uma velocidade vertiginosa. Nesse sentido, Ben Singer afirma que a modernidade “foi concebida como um bombardeio de estímulos” (SINGER, 2004). Era portanto um ambiente em que o indivíduo se via sob constante hiperestímulo2 sensorial. Dessa forma o início do século XX trouxe consigo uma crise de atenção do indivíduo, onde sua percepção estaria em constante estado de crise ou em constante transformação. Essa crise tem relação direta com o fortalecimento das atrações sensoriais na virada do século, especialmente atrações de cunho sensacionalista. Essas, por sua vez, não produziam somente o sentimento de medo, mas uma moderna forma de entretenimento: a excitação, a emoção eletrizante. Tudo isso era alinhado com a cultura massificada que surgia e se desenvolvia rapidamente na época. Foi nesse cenário conturbado que o denominado Cinema de Atrações surgiu. Os filmes da época geralmente não ultrapassavam 5 minutos de duração, correspondendo dessa forma à necessidade por

2

Expressão utilizada por Bryan Singer. Para mais ver: SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V.R. (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 115-148.


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estímulos sensoriais curtos e intensos. Eram produzidos a partir de um ponto de vista único, similar ao teatro ou às vaudevilles da época. Essa unipontualidade3 acabava por gerar um ponto de vista soberano: o ponto de vista do espectador. Esse assumia um papel participativo nos filmes, estimulado diretamente pelo que assistia. Segundo Flávia Cesarino Costa (2006) o cinema apresentava uma “estratégia apresentativa, de interpelação direta com o espectador, com o objetivo de surpreender”. As atrações correspondiam então ao momento de “pico do espetáculo”, ou seja, os momentos agressivos que o pontuam. O simples movimento simulado nos primeiros filmes dos Irmãos Lumière, por exemplo, já compunham uma atração pelo próprio ineditismo da cena. Por outro lado, nos filmes de Méliès, as atrações correspondiam aos truques que ele executava, as maravilhosas impossibilidades que o diretor produzia por meio de seus incríveis efeitos especiais. Os filmes do Cinema de Atrações desenvolveram portanto uma linguagem muito diferente do cinema narrativo posterior. Esse tipo de cinema, segundo Tom Gunning, se mostrou como “um cinema que se baseia na (...) sua habilidade de mostrar algo. Contrastando com o aspecto voyeurístico do cinema narrativo(...) esse cinema é exibicionista.” (GUNNING, 2000). Além disso, diversas projeções cinematográficas eram exibidas sem que houvesse necessariamente alguma ordem ou ligação entre elas, reforçando ainda mais o seu caráter fragmentário e não narrativo. Esse tipo de cinema não pertencia portanto a técnicas de representação de ilusão dramática. Ele pertencia verdadeiramente a formas mais agressivas de performance artística (circos, music hall, etc.). Sendo assim, antes de qualquer envolvimento pela narrativa ou empatia por algum personagem, o Cinema de Atrações solicitava a atenção do público direta e agressivamente através da sua própria curiosidade. E esse público não se perdia em momento algum em um universo ficcional e nem em alguma trama, mas se mantinha consciente do ato de olhar pela curiosidade e excitação constante. O ato de mostrar diretamente a ação permitia uma ênfase à excitação em si, o que acabava provocando uma imediata reação dos espectadores.

2.2 A narrativa cinematográfica e o regime de mostração de André Gaudreault

Diferente da narrativa psicológica que surgiria alguns anos depois com o cinema narrativo, o Cinema de Atrações não permitia o desenvolvimento elaborado de histórias; somente um limitado conjunto de atrasos, de esperas e posterior concretização. O cinema consistia então de uma série de atrações, um encadeamento de pequenos filmes onde todos ofereciam ao público um momento de revelação. A

3

Jargão comum ao cinema. A unipontualidade, nesse caso, representava a preferência do primeiro cinema pelo ponto de vista único. Para saber mais: JULLIER, Lurent; MARRIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora SENAC, 2009.


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sucessão de excitações é potencialmente limitada somente pela exaustão do espectador. Era portanto um cinema de instantes antes de um cinema de situações desenvolvidas. É justamente em relação à narrativa (ou a falta dela) nos primeiros filmes da história que André Gaudreault focou seu trabalho. Desenvolveu então o termo “regime de mostração”, referindo-se ao modo como esses filmes se apresentavam ao público. Por conta desse estudo, acabou por questionar toda a pretensa linguagem “naturalmente narrativa” dos filmes. Em qualquer narrativa há a necessidade de um narrador para que ela possa acontecer. E isso inclui o caso do cinema, apesar de nesse caso o narrador não ser tão evidente quanto em uma narrativa textual, por exemplo. No caso do cinema, para que haja uma narrativa, Gaudreault afirma ser fundamental a existência do que ele chama de narrador subliminar4, responsável por ordenar os fatos de forma lógica e sequencial para o público. Esse agente seria responsável por direcionar o olhar do espectador e funcionando como um filtro do olhar do espectador, permitindo que esse só entre em contato com o que é relevante para a história. Esse narrador subliminar controla então, de certa forma, toda a relação do público com a projeção cinematográfica. Por outro lado o cinema também é uma arte interpretativa. Nele a ação é, além de narrada, mostrada ao público. Pensando nisso Gaudreault propõe um outro tipo de agente: o mostrador. Esse seria equivalente ao narrador subliminar, sendo como ele responsável por modular a história para que ela seja apreendida pelo público. Contudo, nesse caso, o que é modulado são as diversas manifestações da linguagem encenada. Se configuraria então uma situação de “mostração”, onde os personagens atuam simplesmente, ao invés de dizer as vicissitudes a que estão sujeitas. Com isso o cinema conseguiu criar um modo de narrativa completamente exclusivo, combinando mostração e narração através de recursos próprios do universo cinematográfico. E essa possibilidade só acontece através de um recurso próprio do meio: a edição cinematográfica. Isso se explica por duas razões: em primeiro lugar, essa edição permitiu a manipulação espaço-temporal do filme, fator primordial para a narratividade. Outro fator importante é a questão da temporalidade em relação ao cinema, romance e teatro. A montagem de um filme acaba construindo um momento diegético5 diferente da captação da cena. E isso não está somente ligado a uma falta de simultaneidade entre o olhar do espectador e a cena acontecendo (como acontece no caso do teatro). Tem a ver, na verdade, com a não coincidência exata entre o que acontece 4

Gaudreault cunhou originalmente o termo Narrateur Fondamental, traduzida posteriormente para underlyng narrator por Danielle Cadelon. Optou-se então pela livre tradução Narrador Subliminar por ser a expressão utilizada pelo próprio Gaudreault na bibliografia pesquisada. Para mais: GAUDREAULT, André. From Plato to Lumière: narration and mostration in literature and cinema. Toronto: University of Toronto Press, 2009. Diegese diz respeito ao ambiente autônomo que se estabelece em uma obra de ficção. Segundo Costa (2005) “diegese é o processo pelo qual o trabalho de narração constrói um enredo que deslancha de forma aparentemente automática, como se fosse real, mas numa dimensão especo-temporal que não inclui o espectador” (COSTA, 2005. p. 32). Gaudreault, por sua vez, encara o termo a partir das obras de Platão e Aristóteles, e desenvolve uma relação entre diegese (narração) e mimese (representação). Segundo o autor mimese pode ser uma forma de diegese, sendo a diegese portando mimética, onde o narrador toma a voz dos personagens e a narrativa acontece por encenação, ou não-mimética , onde há apenas a diegese simples, narrativa sem imitação ou personificação. Há ainda uma terceira forma de diegese, que combina as duas formas anteriores e chamada por Gaudreault, a partir de termos platônicos, de diêgêsis di’amphoteróm. 5


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na tela, dentro de um determinado espaço-tempo fragmentado e remontado pela edição, e a percepção de espaço-tempo do espectador. Conclui-se que o narrador subliminar encontra-se na composição do próprio filme, na montagem de planos6 e na manipulação da sua estrutura espaço-temporal. Contudo, já existia cinema mesmo antes de haver essa montagem. Cineastas como o próprio George Méliès não tinham conhecimento dessa técnica e nem muito menos sentiam necessidade de utilizá-la. Os filmes produzidos nessa época pertenciam a uma estética onde um único momento ainda era dominante. As cenas eram únicas, independentes e autossuficientes. A história era dessa forma simplesmente mostrada. Não haviam portanto intervalos, nem temporais, nem espaciais, muito menos corte e montagem: toda a ação era realizada ao mesmo tempo e no mesmo espaço nessa época. Na maior parte das vezes o operador de câmera apenas posicionava o aparelho de forma fixa, exatamente de frente para toda a ação. E essa câmera, por sua vez, funcionava ininterruptamente, enquanto ela acontecia. A cena era um palco autônomo, como em um teatro. Não há dúvida de que outras mídias populares da época (shows de lanternas mágicas, vaudevilles, etc.) tiveram forte influência nisso. Não faz sentido então falar de narrativa no cinema nessa época, pelo menos não da forma que veio a se tornar o cinema narrativo posterior. A história não era “narrada”, era simplesmente mostrada ao público.

3. O cinema de pós-continuidade

3.1 Os conceitos de high concept, continuidade intensificada e o Chaos Cinema.

O termo high concept refere-se, segundo Justin Wyatt (2006), a determinados filmes produzidos principalmente a partir do final da década de 1970 pela indústria hollywoodiana. Mascarelo (2006) cita três produções como sendo marco inicial desse cinema: Star Wars (LUCAS, 1977), Jaws (SPIELBERG, 1975) e Saturday Night Fever (BADHAN, 1977). Segundo Whatt, esses três filmes high concept, somados a Grease (KLEISER, 1978), teriam tido muito mais relevância histórica para o cinema do que outras produções consideradas low concept da época, tais como All That Jazz (FOSSE, 1979), por exemplo.

6

Montagem e planos, expressões próprias do meio cinematográfico e que estão diretamente interligadas. Nesse sentido o plano apresenta-se como unidade fílmica básica. É a parte do filme que existe entre dois cortes, correspondendo à continuidade espaço-temporal da tomada. Esse plano funciona como núcleo do filme, representando um bloco de tempo e espaço, necessariamente unitário, homogêneo e indivisível. Esse plano se constitui de um fechamento (o quadro) e de uma exterioridade (o espaço off). Possui uma profundidade (o campo) estruturada por uma medida antropomórfica e institui um ponto de vista. A montagem corresponde ao agenciamento dos planos pelo qual o filme inteiro é estruturado. No cinema narrativo clássico é a montagem desses planos que produz a continuidade do filme. Para mais: DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. 2ed. São Paulo: CosacNaify, 2011. Ou ainda: BONITZER, Pascal. Que és un plano? In: El campo ciego: ensayos sobre el realismo en el cine. Buenos Aires: Santiago Arcos Editor, 2007.


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Wyatt destaca como algumas das características próprias desse cinema o forte apelo comercial de seus filmes e produções altamente vendáveis, ambos evidenciados por meio de diversos aspectos, tais como: ideias já pré-vendidas (filme Grease realizado a partir de uma peça musical homônima ou filmes de personagens de quadrinhos de sucesso, por exemplo), uso frequente de estrelas conhecidas pelo público, personagens arquetipados, narrativas muito simples e de fácil acesso, diversos “ganchos” para ações de marketing, publicidade massificada, etc. Contudo, apesar do imenso impacto na indústria cinematográfica norte-americana e mundial proporcionado pelo surgimento do modelo de cinema high concept, muitos autores afirmam não ter havido uma mudança significativa na forma de se contar uma história em seus filmes quando comparado aos filmes da era clássica hollywoodiana. Dentre eles destaca-se aqui David Bordwell (2002), que considera que os filmes produzidos nesse modelo não trouxeram nenhum tipo de inovação significativa consigo, especialmente no que diz respeito às suas narrativas. Esse estilo manteria essencialmente, segundo ele, as mesmas técnicas para se contar uma história já utilizadas no cinema clássico norte americano. O cinema high concept torna-se então apenas uma questão de intensificação de procedimentos já estabelecidos. Bordwell concluiu que a continuidade já existente e estabelecida como tradicional em Hollywood era apenas submetida a um novo ritmo e grau de intensidade, sem contudo sofrer nenhum tipo de modificação significativa em sua estrutura. Cunhou então o termo continuidade7 intensificada ao referir-se a esse tipo de cinema. Por outro lado Mathias Stork (2011) afirma que o cinema high concept sofreu nas últimas duas décadas, se não uma mudança radical, ao menos uma derivação dessa continuidade intensificada proposta por Bordwell. Segundo ele as produções das últimas duas décadas, em especial os filmes de ação, violariam princípios clássicos de encenação, trabalho de câmera e edição em favor de um espetáculo sensorial sem sentido, que procura impressionar, dominar e hipnotizar seu público. Não haveria portanto qualquer preocupação no desenvolvimento de uma lógica espaço-temporal ou coerência narrativa. Esses filmes tornam-se então, segundo ele, cada vez mais rápidos, exagerados e hiperativos. Stork afirma que esse tipo de cinema não seria apenas uma questão de intensidade das técnicas clássicas do cinema hollywoodiano, como diria Bordwell, mas de perversão. O problema é que o autor define esse estilo como algo irremediavelmente negativo, colocando esse modelo de cinema como sendo essencialmente uma degradação do cinema hollywoodiano das décadas anteriores. Stork chaga a criar o termo Chaos Cinema, referindo-se a esse cinema de forma um tanto pejorativa.

3.2 O conceito de pós-continuidade

7

Bordwell defende continuidade como sendo a relação entre espaço tempo que permite a compreensão da narrativa em um filme. Nesse sentido o cinema high concept o mesmo tipo de relação entre esses dois elementos desde a era clássica hollywoodiana, apresentando apenas uma intensificação de técnicas já estabelecidas.


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Steven Shaviro (2011) também observou o que seria uma mudança ou pelo menos uma ramificação do que Bordwell chamou de continuidade intensificada. Esses filmes surgidos nos anos 2000 por nomes como Michael Bay, Tony Scott e Christopher Nolan seriam para ele um modelo de cinema ao qual denominou de pós-continuidade. Contudo, ao contrário de Stork, Shaviro procurou considerar as virtudes desses filmes ao invés dos seus defeitos. O autor os observou como reflexos (ou resultados, dependendo do ponto de vista) de mudanças profundas de ordem tecnológica (o surgimento do universo digital e da Internet, por exemplo) e de condições socioeconômicas e políticas mais gerais (globalização, capitalismo neoliberal, etc.). Essas produções cinematográficas são então inseridas em um cenário extremamente conturbado. Assim como o indivíduo na modernidade, o indivíduo atual encontra-se em crise. E essa crise, além de perceptiva como na época do nascimento do cinema, parece se estender à sua própria identidade. Segundo Stuart Hall (2006) a identidade unificada, constante e estável tornou-se apenas uma ilusão em uma pós-modernidade de instabilidade e constantes mudanças. Essa instabilidade é reflexo de um capitalismo financeiro global, com seu implacável processo de acumulação, sua fragmentação de antigas formas de subjetividade e sua multiplicação de tecnologia de controle de percepção e sentimentos no nível mais íntimo do indivíduo contemporâneo. Por outro lado a globalização levou a uma interpolação das identidades nacionais, desintegrando-as gradativamente. A consequência disso, dentre outras coisas, é a hibridização dessas identidades. Tudo isso leva a um cenário propício ao desenvolvimento de novas expressões culturais, pautadas muitas vezes em uma linguagem fragmentada e, no caso do cinema, também ancorada no espetáculo sensorial de alguns filmes. A questão narrativa nesses nesse caso não seria então uma questão de quantidade, de intensificação, como aponta Bordwell. Seria na verdade relativa à característica, à forma como se formula essa narrativa. Nesse sentido Shaviro propõe então o termo pós-continuidade para designar esse tipo de cinema. Nesse cenário regras de continuidade não são quebradas ou mesmo utilizadas sistematicamente. Elas são, antes de mais nada, ignoradas em favor do estímulo sensorial constante e intenso. Nessa pós-continuidade cenas de ação, por exemplo, são construídas então por meio de câmeras trêmulas e em ângulos extremos ou mesmo impossíveis, tudo unido por cortes vertiginosamente rápidos. Configura-se então uma situação onde a própria continuidade do filme é quase quebrada e certamente desvalorizada, ou fragmentada e reduzida à incoerência. Existe uma entrega de choques contínuos à plateia, o que acaba por superar qualquer preocupação com a narrativa. É importante ressaltar que produções como Transformers (BAY, 2007) ou Gamer (NEVELDINE; TAYLOR, 2009) não dispensariam a continuidade clássica completamente. Elas apenas não a veriam como algo importante, como algo fundamental no decorrer do filme. Stork procura ridicularizar essa despreocupação, esse abandono de regras que para ele são fundamentais ao bom cinema. Shaviro, por sua vez, afirma que essa continuidade simplesmente não importa mais para diretores como Michael Bay. Em seus filmes e em outros similares a história serve apenas como sutura


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entre os vários e breves momentos de espetáculo sensorial intenso. As regras de continuidade continuam existindo, mas perderam sua sistematização e sua importância. Bordwell afirma que a estabilização de relações entre espaço e tempo é crucial para o entendimento e articulação da narrativa de um filme. Shaviro, por sua vez, defende que em filmes de pós-continuidade acontece uma situação reversa, onde essa relação deixa de ser fundamental para o entendimento da narrativa. O espaço, segundo ele, é fixo e rígido em filmes de continuidade clássica, permanecendo sempre o mesmo, não importa o que aconteça na narrativa. Da mesma forma o tempo flui de forma contínua e linearmente, mesmo em momentos onde a cronologia é bagunçada por flashbacks, por exemplo. Contudo, em filmes de pós-continuidade a situação é outra. Segundo ele, em produções como essas o público é exposto ao “espaço-tempo da física moderna e ao tempo de microintervalos e transformações que acontecem na velocidade da luz” (SHAVIRO, 2012). Essas características refletem aspectos próprios de uma sociedade capitalista globalizada e high tech atual.

4. Conclusão

Retornando ao Cinema de Atrações e seu regime de mostração, como proposto por Tom Gunning e André Gaudreault respectivamente, percebe-se um caráter não narrativo fundamental em seus filmes, além de uma forte espetacularização. Flávia Cesarino Costa afirma que uma das características mais marcantes do primeiro cinema era a “descontinuidade gritante entre planos e cenas na montagem dos filmes” (2005). Não havia portanto preocupação alguma com essa montagem. Antes de preocupar-se com uma história a ser contada, os diretores da época preocupavam-se muito mais em causar espanto e outras reações extremas em seu público por meio de choques sensoriais intensos. É nessa relação com a narrativa e nesse desejo de provocar reações no público por meio do espetáculo sensorial que se percebe um forte paralelo entre esse modelo de cinema da virada do século XIX para o século XX e o cinema high concept de pós-continuidade contemporâneo. Assim como no primeiro cinema a continuidade e a narrativa não são o foco de diretores como Michael Bay, por exemplo. Antes disso, o interesse dele é chocar as pessoas que assistem a seus filmes por meio de explosões constantes e cada vez mais intensas, cores extremamente saturadas, efeitos especiais espalhafatosos, uma sonorização exageradamente alta ou qualquer outro meio de estímulo que possa provocar seu público. As histórias em seus filmes mostram-se quase sempre simples e previsíveis, servindo apenas como pano de fundo para “atrações” pontuais. Essa simplicidade narrativa permite ao público desfrutar da miríade de estímulos aos quais ele é submetido no decorrer da projeção cinematográfica. Temos então um novo modelo de se fazer cinema classificado por Shaviro de pós-continuidade. Por outro lado, antes mesmo da continuidade tornar-se dominante nas produções cinematográficas, o cinema já produzia uma quantidade imensa de filmes. Esse cinema, classificado por Tom Gunning


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como Cinema de Atrações, poderia então ser pensado como um cinema de pré-continuidade, paralelo ao cinema de ação surgido após os anos 2000. É interessante notar, por fim, a forma como ambos os períodos do cinema apresentados nesse texto, o Cinema de Atrações e o cinema de pós-continuidade, parecem se inserir em uma cenário próprio de cada um e que, ao mesmo tempo, apresentam características semelhantes. Mudanças sociais, econômicas, políticas e tecnológicas marcantes, novas concepções de sujeito e um cenário de estímulos sensoriais intensos parecem gerar, em ambos os casos, um cenário propício para um cinema pautado muito mais no espetáculo sensorial do que na narrativa. O próprio ritmo na vida das pessoas ao final do século XIX e início do século XX parece ter se acelerado vertiginosamente, causando uma certa instabilidade na própria percepção do indivíduo moderno. Resumidamente, o capitalismo acaba por gerar informações em excesso, que acabam exaurindo a atenção dos indivíduos, gerando então uma necessidade de novos estímulos, e cada vez mais intensos8. Essa crise de atenção do indivíduo moderno relaciona-se então diretamente com o crescimento, tanto na quantidade quanto na variedade, de estímulos sensoriais na virada do século. O cinema, por sua vez, trouxe esse ritmo acelerado da vida na sociedade capitalista em expansão aos filmes produzidos na época, que se inserem nesse contexto e, ao mesmo tempo, refletem diversas de suas características.

Paralelo a isso, tem-se

atualmente um cenário também conturbado e instável, de mudanças constantes e intensas no qual o cinema de pós-continuidade tem se desenvolvido. Assim como o Cinema de Atrações na modernidade, os filmes de pós-continuidade parecem hoje refletir e, ao mesmo tempo, se inserir em um contexto de pós-modernidade. Seus filmes de caráter espetacular e minimamente narrativos funcionam como atrações de cunho essencialmente sensoriais, parecendo transpor também para o cinema a fragmentação e instabilidade próprios de sua época. Pode-se então traçar um paralelo entre esses dois tipos de espetáculos, o Cinema de Atrações e o cinema de pós-continuidade, que se manifesta especialmente na forma como os dois modelos de cinema se relacionam com cada ambiente que os cerca. Esses ambientes de características análogas acabam, aparentemente, gerando tipos de cinema essencialmente espetaculares. Filmes que se assemelham muito mais ao circo e outras atrações sensacionalistas do que ao teatro tradicional ou a literatura, por exemplo, baseados em um caráter fundamental de atração, que são de certa forma frutos de sua época e, ao mesmo, projetam seus principais elementos e atributos.

3. REFERÊNCIAS

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A crise de atenção do indivíduo moderno foi tema de estudo de Johnatan Crary, que analisou o crescimento do sensacionalismo em decorrência disso, incluindo o surgimento do cinema como um meio de entretenimento voltado para a massa urbana que se avolumava. Para saber mais: CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.


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Estética Punk no Cinema. Raphael Genuíno de Araújo (PPGA-UFES)

Resumo: O punk foi um movimento social, musical e artístico surgido na década de 1970, manifestando-se primeiramente nos Estados Unidos, em Nova Iorque e pouco tempo depois se desenvolvendo na Inglaterra, mais fortemente em Londres onde ganhou amplitude mundial. Partindo do punk e da investigação de suas principais demandas pretende-se uma analise das principais características de um Cinema Punk, surgido análogo sua cena musical. Para isso será analisado o filme The Foreigner (1978, Amoes Poe), considerado uma das primeiras produções ficcionais do Cinema Punk. Palavras chave: Punk, Cinema Punk, Cinema Underground Abstract: The punk was a social, musical and artistic movement emerged in the 1970s, manifesting itself primarily in the United States in New York and shortly after developing in England, most strongly in London where he gained world-wide. Starting from the punk and research of their main demands is intended to an analysis of the main features of a Punk Cinema, emerged analog his musical scene. For it will be analyzed the film The Foreigner (1978 Amoes Poe), considered one of the first fictional productions Punk Cinema. Keywords: Punk, Punk Cinema, Underground Cinema


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EM BUSCA DE UMA “ESTÉTICA PUNK”

Antes de entrarmos em questões do que seria o Cinema Punk e de como o punk é transportado para o cinema, é necessário e conveniente fazer algumas consideração acerca do movimento e sua trajetória. Pois, muito além de aspectos estéticos é importante termos a compreensão de que o punk é um conjunto de práticas construídas a partir de um desejo de mudar o mundo, e por isso uma forte resistência ao capitalismo e a comodidade. No punk as questões estéticas e econômicas são entrelaçadas e inseparáveis. Esta ideia é lançada por Stacy Thompson, em seu livro Punk Productions (2004) “(...) interesses econômicos necessariamente irão levar a e encontrar expressão nas formas estéticas, e as formas estéticas também irão refletir e ser refletido na economia”1 (THOMPSON, 2004, p.3, tradução nossa). A ética do faça você mesmo (Do it Yourself – DIY) figura como um dos elementos principais do punk e serve como base desta dialética entre estética e a economia punk. Estas considerações são importantes, pois fornece um “modo operante”, que vai além de um estilo punk consumível destoante do seu sentido original. Uma definição de uma “estética punk” e do que seria o movimento, de maneira definitiva e unificada se mostra uma tarefa difícil, o punk mudou e têm mudado desde seu surgimento, além disso, se manifestou através de diferentes formas que incluem música (selos e apresentações), estilo (moda), impressos (principalmente fanzines) e cinema. A melhor tentativa de descrever o punk em termos estéticos tem sido focado não no punk como inteiro, mas em uma análise de cenas isoladas como: Londres e Nova York, cidades ligadas à origem do movimento. O punk não se restringiu apenas a esses dois polos e se espalhou como um fenômeno mundial encontrando adeptos em diversas partes do globo. O punk não nasce como um movimento isolado, faz parte dos desdobramentos de outras “cenas juvenis” 2, como os beatniks, os teddy boys e os hippies, que vão emergir a partir do período do pós-segunda guerra (1950-1970). O aparecimento dessas manifestações está diretamente ligado às novas condições da juventude, onde há uma ampliação ao tempo livre, e ao lazer, um ciclo de desenvolvimento da indústria cultural e aos meios de comunicação.

No original: “(...) economic concerns will necessarily lead to and find expression in aesthetic forms, and aesthetic forms will both reflect and inflect economics.” 2 Referência ao livro de mesmo nome. ABRAMO, Helena. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Editora Página Aberta Ltda. 1994. 1


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“É a época do desenvolvimento da televisão, que se moderniza e se integra em circuito nacional e que multiplica, na década de 70, o seu púbico espectador. As demais áreas da indústria cultural e de diversão conheceram um notável crescimento no período; isso ocorreu com a publicação de livros e revistas, com o cinema e com a indústria fonográfica. [...] Os artigos da indústria cultural, como discos, fitas, revistas de entretenimento, filmes, têm seu maior público entre os jovens, para quem passam a ser preferencialmente dirigidos.”3

Cada uma dessas manifestações juvenis, que aparecem a partir de 1950, apesar das diferenças de motivação, caráter e amplitude, carregam contestações semelhantes de uma crítica ao sistema capitalista e suas bases de sustentação, a começar pela recusa aos valores burgueses da família, da disciplina do trabalho e da moral sexual, passando à reivindicação do direito à liberdade e do direito a fazer as próprias escolhas. Cada um desses grupos tem a música como elemento importante de representação de suas identidades individuais e coletivas, onde podem aspirar e projetar outro modo de vida. Na década de 70, o rock progressivo, ganha o status de música pop tornando-se um grande negócio para a indústria cultural. O punk, ao invés de apresentar-se como continuidade com um suposto movimento de jovens anterior, se reporta a ele essencialmente como ruptura, mesmo reconhecendo tributo a certas matrizes consolidadas na geração anterior, em música, em literatura e comportamento. Os punks são principalmente garotos da classe trabalhadora dos subúrbios, vivendo um momento de desesperança: crise econômica, altos índices de desemprego e forte instabilidade social. A música industrial corporativa, a música pop, para a maioria dos punks, deve ser combatida, pois representa um conjunto de relações com a dinâmica e os interesses capitalistas. A música punk, o punk rock, surge como reação àquilo que hoje chamamos de classic rock (e que inclui, entre outros, o hard rock, o country rock e o rock progressivo), caracterizado por um grande aparato empresarial e material; de técnica apurada (virtuosismo); dos shows em grandes arenas; dos astros milionários; da seriedade; da representação da masculinidade4. Todas essas características criavam um distanciamento entre os músicos e seu público, sendo artificial, distante da realidade desses jovens, em geral de subúrbios, desempregados ou em subempregos. Ao contrário, o punk rock amparado pelo Do it yourself era igualitário e encorajador, buscando uma música simples, rudimentar, com poucos recursos onde qualquer

3 4

ABRAMO. 1994. P.61 Por exemplo, as bandas Led Zeppelin e The Eagles.


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garoto com vontade de expressar-se e divertir-se poderia fazer. As bandas tocavam em pequenos clubes e palcos onde o público tinha a oportunidade de participar ativamente das apresentações. Uma música faz sentindo de novo para os jovens no cotidiano das ruas, em suas experiências reais. “O que permanece irredutível sobre esta música é o seu desejo de mudar o mundo. O desejo é patente e simples, mas que inscreve uma história que é infinitamente complexo - tão complexo como a interação dos gestos cotidianos que descrevem a forma como o mundo já funciona. O desejo começa com a procura de viver e não como um objeto, mas como sujeito da história - a viver como se algo realmente dependesse de suas ações - e que a demanda se abre para uma rua livre.”5 (MARCUS, 1990, p.5. Tradução nossa)

2

CINEMA PUNK

O cinema punk surge análogo ao movimento musical, e as mesmas demandas que incidem sobre a música punk, o punk rock, irão incidir sobre o cinema realizado pelo movimento. Se alguém que nunca tivesse tocado nenhum tipo de instrumento poderia começar uma banda, porque alguém que nunca tivesse usado uma câmera não poderia fazer um filme? “Havia vários músicos que apenas pegavam suas guitarras e tocavam, e nós tínhamos a mesma atitude.”6 (MASTERS, 2007, p. 139) Afirma Beth B, uma importante cineasta que fez parte de um grupo de diretores punks, conhecidos como No Wave Cinema, sediados em Nova Iorque, por volta dos 1975-1985. Dentre os principais cineastas da No Wave estão: Vivienne Dick, Amoes Poe, Eric Mitchell, James Nares e Beth B e Scott B. O No Wave se caracterizou por seu desenvolvimento simultâneo ao movimento musical (de mesmo nome) criando-se uma relação simbiótica, muitas vezes não existindo separação entre as duas comunidades. Figuras importantes como James Chance, Lydia Lunch, Debbie Harry, Pat Place transitavam entre esses dois meios. O termo “No Wave” surgiu a partir de uma coletânea musical organizada e produzida pelo músico inglês Brian Eno7, logo serviu para

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No original: "What remains irreducible about this music is its desire to change the world. The desire is patent and simple, but it inscribes a story that is infinitely complex – as complex as the interplay of the everyday gestures that describe the way the world already works. The desire begins with the demand to live not as an object but as a subject of history – to live as if something actually depend on one’s actions – and that demand opens onto a free street.” 6 No original: “There were a lot of musicians who were just picking up guitars and doing it, and we had same attitude.” 7 A compilação foi lançada em 1978 e tinha o nome de No New York e trazia quatro músicas, de quatro bandas de Nova Iorque: The Contortions, Teenage Jesus and the Jerks, Mars e DNA


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designar um grupo de cineastas, músicos e artistas, ambientados no punk. Isso ajudou na afirmação de uma identidade perante Nouvelle Vague (movimento do cinema francês) e o rock New Wave. Em termos gerais, os filmes da No Wave estão inseridos dentro de um conjunto amplo e heterogêneo de produções audiovisuais, são os primeiros filmes do Cinema Punk. Seria lógico então supor que aspectos estéticos no cinema punk, usando esse paralelo com a música seriam de “[...] uma cadencia rápida, elipticamente editado e calculado para ofender noções burguesas de gosto e moralidade.” 8 (ROMBES, 2005, p.25, tradução nossa). Mas na verdade, a estética do cinema punk é a antítese do que esperamos. Ao invés de narrativas rápidas, numerosos cortes, inúmeras cenas e repentinas transições de uma cena para outra, os cineastas punk fazem justamente o oposto. Seus filmes geralmente possuem ritmo narrativo lento, onde a câmera praticamente não se move, fazem poucos cortes e geralmente renunciam diversas técnicas que colocariam seus filmes dentro do padrão comercial. Isso se deve ao fato de que os filmes punks resistem a fácil adesão do público em geral e a sua comercialização. Stacy Thompson destaca o modo produtivo do punk, mais precisamente a “crítica materialista” do qual ele se propõe, como uma característica do Cinema Punk. “Qualquer música punk, zine ou produção de qualquer tipo que obtém apoio de empresas não é, por definição, punk.“9 (ROMBES, 2005, p.22, tradução nossa) Para ele, há uma questão ética do punk em jogo que se perde com o financiamento de uma grande gravadora ou como no caso dos filmes de grandes estúdios cinematográficos. Outras características, levantadas por Chris Barber em No Focus: Punk On Film (2006), aponta algumas características essenciais do Cinema Punk. “Efetivamente, a subcultura punk como um todo, e como expressão no cinema, são vistos como catalisadores que inspiram cineastas em particular a determinado modo de produção, incorporando temas relevantes em alguns dos seus filmes. [...] E a atitude permanece silenciosa, mas beligerante; se não se opõe, ao menos expõe cada expressão de hipocrisia, corrupção, injustiça e mentiras e propagandas por arrogantes que ditam as regras.”10 (BARBER; SARGEANT, 2006, p. 13)

(Tradução nossa) No original: “[…] to be fast paced, elliptically edited and calculated to offend bourgeois notions of taste and morality.” 9 No original: “Any music, zine or punk production of any kind that obtains corporate backing is no longer, by definition, punk.” 10 No original: “Effectively, punk subculture as a whole and its expression in cinema are viewed as catalyst which inspire particular filmmakers towards a related mode of production, or incorporate relevant themes in some of their movies. […] And 8


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Em seu livro Subversion: The Definitive History of Underground Cinema (2007), Duncan Reekie faz uma concisa genealogia do Cinema Underground focado na história e tradição deste cinema na Inglaterra e nos EUA, colocando o Cinema Punk como seu descendente direto. O punk seria uma ligação entre uma subcultura vinda do rock e o filme experimental. “O advento do punk rock no final de 1970 abriu-se tanto uma alternativa fundamental para estruturalistas da vanguarda estética e uma aliança renovada entre subcultura do rock e do cinema experimental.”

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(REEKIE, 2007, p.188, tradução nossa). Dessa maneira podemos

supor que muitas das características referentes ao Cinema Underground que Reekie especifica durante o livro despontam também como elementos do Cinema Punk. Dentre os principais características que marcam os filmes punks e os filmes Underground são seu aspecto amador, incompetência técnica e aparência pobre, que podem ser exaltados como sendo uma prática espontânea, franca e democrática em contraposição ao cinema comercial e sua produção. Distorções do tempo e espaço narrativos são percebidas nesses filmes como gestos libertadores que vislumbram realidades alternativas. Nota-se também o uso recorrente de imagens e temas tabu na sociedade como sexo, violência e morte. Outra característica dessas produções é seu caráter heterogêneo que incluem trabalhos de cineastas solitários, produções coletivas, curtas experimentais, filmes caseiros, documentários, todos característizados pelo baixo orçamento. O Cinema Underground pode ser dividido entre dois campos, segundo Marc Masters “[…] as narrativas semi-improvisadas de Andy Warhol, Ken Jacobs e Jack Smith, e as imagens abstratas de Stan Brakhage, Michael Snow, e Jonas Meka.”12 (MASTERS, 2007, p. 140, tradução nossa). O Cinema Punk foi influenciado principalmente pelo primeiro grupo como James Nares, um cineasta punk diz no documentário Blank City sobre a preferência em se fazer filmes narrativos: “Nos alienamos do cinema de vanguarda de propósito. Queríamos fazer filmes narrativos ao invés de filmes artísticos. Assim você alcança todo tipo de pessoas.”

13

(Blank City, 2012, Cap.1). Podemos incluir outros diretores, além desses citados

por Masters, como antecedentes e influencia direta para o Cinema Punk como os irmãos George e Mike Kuchar e John Waters.

attitude remains, silent but belligerent; if not opposing then at least exposing every expression of hypocrisy, corruption, injustice and the lies and propaganda spewed out by arrogant, self-inflated rulers.” 11 No original: “The advent of punk rock in the late 1970s opened up both a critical alternative to structuralist avant-garde aesthetic and a renewed allegiance between rock subculture and experimental film” 12 No original “[...] the semi-improvised narratives of Andy Warhol, Ken Jacobs and Jack Smith, and the abstract imagery of Stan Brakhage, Michael Snow, and Jonas Mekas.” 13 No original: We had alienated ourselves from avant-garde cinema on purpose. We wanted to make narrative movies rather than art movies. Thus you reach all kinds of people


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Os filmes desses diretores que mais influenciaram os cineastas punks foram Blonde Cobra (Ken Jacobs, 1959); Flaming Creatures (Jack Smith, 1963); os primeiro filmes de Andy Warhol Kiss (1963), Sleep (1963), Blow Job (1963), Mario Banana (1964); os primeiros filmes de George e Mike Kuchar The Thief And The Stripper (1959), I Was A Teenage Rumpot (1960), A Tub Named Desire (1960) e depois em suas carreiras solos o mais importante foi Hold me While I’m Naked (George Kuchar, 1964); e a triologia de filmes de Jhon Waters Pink Flamingos (1972), Female Truble (1974) e Desperate Living (1977). Outro ponto que nos ajuda a entender a preferencia por esses filmes narrativos é uma postura anti-arte adotada pelo Punk. Na metade dos anos 1960, nos Estado Unidos, houve uma consolidação de instituições culturais a partir do financiamento estatal. Centros e museus de arte, juntamente com pesquisadores de cinema começam a assumir uma autoridade de gosto sobre o cinema experimental e institucionalizar um cânone artistico sobre o movimento. Os filmes que seguiam a tendência vanguardista de exploração visual rumo abstração dentro do Cinema Underground começaram a se tornar uma parcela independente e a se institucionalizar dentro da arte como um novo modernismo de estética formalista - os filmes estruturais (Structural Film14). Esse processo foi legitimado por críticos de Cinema de Vanguarda como P. Adams Sitney e Annette Michelson, juntamente com outros cineastas chaves como Jonas Mekas, Stan Brakhage, Peter Kubelka e outros. Assim como Reekie, Chris Barber em No Focus: Punk On Film afirma que o Cinema Punk possui suas raízes muito antes do Punk que remetem aos filmes mudos. Barber faz uma breve introdução das raízes do Cinema Punk que antecedem o punk rock e que atravessam os filmes de vanguarda dos Dada e Surrealistas e nos remetem aos filmes mudos. As temáticas usuais desses filmes punks representam parcialmente uma volta de temas tratados pelo Cinema Underground americano dos anos 1960 como os filmes dos diretores Jack Smith, Ron Rice, Ken Jacobs, os irmãos Kutchar e os primeiros filmes de Warhol. Filmes punk lançados em 1978, como Kidnapped, de Eric Mitchell, Black Box, de Beth e Scott B, Rome ‘78 de James Nares e She Had Her Gun All Ready de Vivienne Dick são marcados por práticas eróticas, parodias de filmes de Hollywood, exaltação de um estilo de vida marginal e exibem um grau de consciência social. Segundo P. Adam Sitney.“O filme estrutural insiste em sua forma, e qual o conteúdo que tem é mínima e subsidiária ao resto. Quatro características do filme estrutural são a sua posição de câmera fixa (quadro fixo do ponto de vista do espectador), o efeito de cintilação, impressão loop, e refotografia fora da tela. Raramente irá se encontrar todas as quatro características em um único filme, e há filmes estruturais que modificam esses elementos usuais.” (2002, p.365, tradução nossa) 14


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3

THE FOREIGNER (1978)

Amoes Poe, em 1978, escreveu, produziu e dirigiu The Foreigner considerado um dos primeiro filmes punks. Poe inclui, ao fim do longa-metragem, na parte dos créditos, que o filme foi realizado com o orçamento de $ 5.000 dólares, dinheiro obtido por um empréstimo junto ao banco Merchants Bank Of New York.15 Um orçamento bem abaixo para qualquer produção feita por Hollywood, ainda mais se tratando de um longa-metragem de 95 minutos. Essa informação lançada pelo diretor é uma prática bem incomum e destaca a maneira pela qual o filme foi produzido. Jim Jarmusch, um dos mais conhecidos cineastas relacionados ao cinema punk, viu The Foreigner antes de realizar seu primeiro filme Permanent Vacation (1980) e comenta: “The Foreigner, para mim foi um filme muito importante porque quando o vi pela primeira vez e vi que ele [Poe] fez um filme com seis mil, eu sabia que eu poderia fazer um filme também.”

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(ROMBES. 2005. P.26. Tradução nossa). Dessa maneira, Amoes

Poe explicita os meios que tornaram possível a produção do filme, sem a necessidade de um grande orçamento ou apoio empresarial encorajando dessa maneira, o público e outros possíveis cineastas a realizarem filmes. Outro aspecto, que aponta para as condições de realização são os poucos nomes que aparecem, compondo a equipe, nos créditos finais, onde muitos ocupam mais de uma função. O filme inicia com Eric Mitchell17, que interpreta Max Menance, “o estrangeiro”, chegando ao aeroporto internacional John F. Kennedy. O espectador primeiro o vê caminhando através de corredores vazios, mas isto não é imediatamente claro, que ele está somente chegando ao aeroporto. Não apenas no inicio do filme, mas durante toda a história, não somos informados sobre quem seria Max Menance, nem mesmo sobre o porquê chegou a Manhattan e o que esta tentando fazer. Ele embarca em um táxi, dirigido por um punk, que o deixa em um hotel (Chelsea Hotel), onde assiste em seu quarto parte de um documentário sobre os punks na TV. Durante o desenvolvimento da história Max encontra algumas pessoas de quem, sem sucesso, tenta pedir ajuda, não sabemos especificamente que tipo de ajuda ele quer. Max é morto por tiros em um parque (Battery Park), por dois homens vestidos com ternos que o esperavam.

Aparece ao fim do filme: “This film was made possible by a $5.000 personal loan from the Merchants Bank of New York.” No original: “The Foreigner, which to me was really important film because when I first saw it and when I saw that he [Poe] made a feature film for, like, six thousand, I knew that I could make a film too.” 17 Além de atuar foi diretor também dos filmes: Kidnapped (1978), Underground U.S.A (1980) e The Way It Is (1985) 15 16


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Após ser alvejado e morrer ele é cercado por um grupo de punks que o acham morto, eles se aglomeram em torno de seu corpo e depois se dispersam.

(Fig.1) Frame do filme The Foreigners (1978), Amoe Poe

A inclusão dos punks no filme é particularmente estranha, eles aparecem em algumas passagens da história. O primeiro punk a aparecer dirigiu o táxi para Max do aeroporto até Manhattan, ele faz uma misteriosa ligação, onde fala com um homem (outro punk) mencionando-o como chefe, revelando a chegada de Max. Ocasionalmente, um punk passa por Max na rua, encarando-o e o segue por um tempo. Um grupo de quatro punks, tocando em uma banda no CBGBs ataca Max no bar, a briga chega ao banheiro onde Max é espancando e tem seu tórax cortado por uma faca. Ao fim do filme, os punks aparecem novamente, juntando-se para observar o corpo morto de Max. Não há informação sobre de onde vieram, ou como sabiam que Max estava naquele local. Um trecho que se destaca das demais é a de um grupo de punks, em uma sala, sentados um ao lado do outro, num sofá, conversando sobre assuntos aleatórios, sem sentido evidente. Próximo ao fim da cena, cortes diretos conectam duas sequencias: uma em que são mostrados seis punks sentados no sofá e a outra de um close-up de uma boneca sendo eletrocutada em uma cadeira elétrica de brinquedo. Outro corte direto, observamos dois dos punks sentados no


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sofá atrás da boneca na cadeira elétrica. Novamente não é nos dado a informação de onde os outros teriam ido ou de quanto tempo se passou. Existe ainda outro corte direto onde a câmera mostra em close-up uma “bombinha” (fogos de artificio) no cinto de um punk. A “bombinha” explode e a cena termina. É difícil conceber uma razão lógica para inclusão disso no enredo do filme, partindo do fato que não existe uma justificativa. A recusa de um sentido na cena, em termos corporativos, abre a possibilidade de que o filme pretende algo mais do que o lucro. Se Amoes Poe “desperdiça” tempo de filme – todo segundo de gravação de um longametragem significa também algum montante de dinheiro gasto – em cenas que não desenvolvem personagens e não podem ser associadas dentro da narrativa do filme, isto indica que o diretor não pretende fazer dinheiro com o filme. Em outras palavras, se a lógica do filme comercial é um retorno financeiro lucrativo, as estranhas cenas dos punks sugerem uma suplementar razão para fazer filmes, uma razão não governada pelo dinheiro. Mesmo que essas cenas não tenham explicações, pelo enredo ou por parte do diretor, não é difícil imaginar possibilidades para elas, do ponto de vista politico, artístico e do simples prazer em fazê-las, os excessos do filme invocam possibilidades criativas que vão além do retorno financeiro do filme. De maneira consciente ou não Amoes Poe evoca estratégias cinematográficas já utilizadas anteriormente por diretores de filmes de vanguarda como, por exemplo, filmes Surrealistas que combinam imagens, que a principio são desconexos, sem lógica ou ligações racionais à sequência seguinte. Talvez o mais icônico exemplo de obra cinematográfica surrealista tenha sido o Un Chien Andalou (1928), de Luis Buñuel, com colaboração de Salvador Dali onde podemos observar essa estratégia de compilação de diferentes perspectivas de filmagem e cenários. Para os cineastas surrealistas a força da identificação do espectador, nos contextos exibidos em repentinas deslocações e descontinuidades, proporciona uma viva metáfora da experiência do sonho. Não podemos afirmar que Poe tenha tido essa intenção como Buñuel e Dali, mas as descontinuidades do enredo sugeridas em momentos do filme proporcionam uma liberdade sobre a demanda narrativa de causa e efeito. Comparado o enredo de The Foreigners com de outros filmes de mesmo ano como: Star Wars (1977, George Lucas), Annie Hall (1977, Woody Allen) , Saturday Night Fever (1977, John Badham), Smokey and Bandit (1977,Hal Needham), Close Encounters of the Third Kind (1977, Steven Spielberg); Poe recusa seguir a mesma estrutura de personagens e enredo seguidos pelo cinema de Hollywood. Estas escolhas estéticas sozinhas situam The Foreigner em oposição ao modelo corporativo-comercial de filmes. Outros elementos estéticos como a


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falta de fechamento para história, garantem que o filme não seja confundido com um produto comercial. Mesmo filmes produzidos corporativamente, que pretendem renunciar uma conclusão fácil de ser percebida, tendem a anunciar suas lacunas e situá-las cuidadosamente. As técnicas fílmicas de The Foreigner, ou a falta delas, colocam o filme definitivamente dentro de uma cinematografia punk. Comentando sobre a cena entre uma dominatrix personagem Doll (Anya Philips) e Fili Harlow (Patty Astor) onde a colocação da câmera muda aleatoriamente entre as tomadas de cena, Poe observa “Nós não tínhamos ideia sobre a regra de 180 graus ou qualquer regra neste momento.”18 (ROMBES. 2005. P.30, tradução nossa). Esta afirmação de Poe sublinha a estética punk do seu filme. Sua desatenção, e ignorância da continuidade completa de edição, assim como o baixo orçamento, servem para demonstrar que para uma pessoa fazer um filme não é necessariamente preciso ser um especialista na técnica cinematográfica. Outro elemento que reforça esta ideia é o som do filme. Amoes Poe não usa múltiplas faixas, na hora da edição do som, opta pelo jeito mais barato de gravação em uma faixa. Consequentemente a música só aparece simultaneamente ao diálogo quando ela é tocada ao vivo dentro da cena, por exemplo, as cenas rodadas durante um show de uma banda punk no CBGBs. Em todo o filme, quando há uma música de trilha, não existem diálogos. A simplicidade e disponibilidade desta técnica tornam-se evidente logo nas primeiras cenas, quando Max encontra um homem, um “contato”, em um terreno de alguma construção. Nós vemos o encontro de uma longa distancia, mas ouvimos o diálogo entre os dois claramente. É evidente que Poe não tentou sincronizar a conversa com o áudio que ouvimos, temos a impressão que a conversa foi gravada separadamente e simplesmente sobreposta às imagens, o que de fato acontece.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise, aqui colocada, do filme de Amoes Poe, The Foreigner (1978) serve para reforçar aspectos importantes sobre o punk e de como as demandas do movimento são transportadas para o meio cinematográfico. O punk não é somente uma estética, sua essência parte de uma atitude crítica perante o sistema capitalista, que pode ser sintetizada pela ética do faça você mesmo. Desse modo, o punk rock e o Cinema Punk, possuem uma posição definida, que se 18

No original: “We had no idea about the 180 degree rule or any rule at this point.”


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distancia da moda, da música e do cinema controlados por empresas corporativas. Eles intencionam e encorajam seus espectadores, dentro de um conjunto particular de produção e significado estético a realizarem seus próprios trabalhos, como música ou filme. Diretores visionários e talentosos como: Vivienne Dick, Beth B, Scott B, Eric Mitchell, Michael Oblowitz James Nares, Richard Kern, Nick Zedd, Don Letts, Derek Jarman, Penelope Spheeris, David Mingay e Jack Hazan, para citar alguns, criaram obras desafiadoras. Empregando uma infinidade de técnicas relativamente baratas para a produção de seus filmes: utilização de locações simples, geralmente de seus repertórios cotidianos; utilização de atores amadores, geralmente amigos próximos; e edição rudimentar. Seus trabalhos possuem uma estrutura claramente contra a estrutura cinematográfica vigente no filme de Hollywood. Suas narrativas e estilos visuais são marcados pelo desejo de uma liberdade politica, social e cultural sem as restrições, que o cinema dominante e seus financiadores demandam. The Foreigner, não deixa tão evidente em sua estrutura, os elos, e a dívida, com diretores e filmes que o antecedem. Essa informação é dada pelo diretor Amoes Poe durante os comentários do filme, em sua versão em DVD19. Ele assiste ao filme como um espectador e reflete sobre suas influências: Alphaville (1965), de Jean Luc Godard, Shadows (1965), de John Cassavetes e os filmes em geral produzidos por Andy Warhol. Os livros Deathtripping (2008) e MidNight Movies (1991) evidenciam esta herança deixada pelos diretores do cinema Underground Americano dos anos 1960, como: Ken Jacobs, Jack Smith, Andy Warhol, John Waters, os irmãos George e Mike Kuchars e Ron Rice. Uma boa parte de filmes lançados por cineastas punks vão atuar sobre temas tabus da sociedade, reconsiderando noções conservadoras de “obscenidade” e “bom gosto”. Como os filmes que o antecederam, o Cinema Punk de hoje engloba filmes independentes produzidos que atacam os modelos econômicos e estéticos dominantes para a produção de filmes, reivindicando a socialização dos meios de produção. Finalmente, punk nos oferece um método para a crítica de cinema a partir de uma perspectiva materialista, porque, no final, os punks preocupam-se com a forma em que seus filmes atuam.

19

ROMBES. 2005. P.30


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REFERÊNCIAS

1. ABRAMO, Helena. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Editora Página Aberta Ltda. 1994. 2. BARBER, Chris; SARGEANT, Jack. No Focus: Punk On Film. Londres: A Headpress Book. 2006. 3. ESSINGER, Silvio. Punk: Anarquia planetária e a cena brasileira. São Paulo: ED. 34, 1999. 4. GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contra cultura através do tempos: do mito do Prometeu à cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 5. HOBERMAN, J.; ROSENBAUM Jonhatan. 2. Ed. Midnight Movies. Nova York: Da Capo Press. 1991. 6. KUENZLI, Rudolf E. (Edit.). Dada and Surrealism Film. Nova York: MIT Press, 1996. 7. MARCUS, Greil. Lipstick Traces: A Secret History of Twentieth Century. Massachusetts: Harvard University Press. 1990 8. MASTERS, Marc. No Wave. Londres: Black Dog Publishing. 2007 9. REEKIE, Duncan. Subversion: The definitive history of underground cinema. Londre/Nova York: Wallflower Press, 2007 10. RICHARDSON, Michael. Surrealism and cinema. Nova York: Oxford International Publishers, 2006. 11. ROMBES, Nicholas (Org.). New Cinema Punk. Edinburgh: Edinburgh Univesity

Press.

2005. 12. THE FOREIGNER. Direção: Amoes Poe. Produção: Visions. 1978. 1 DVD 13. THOMPSON, Stacy. Punk Productions. Albany: State University of New York Press, 2004.


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As descontinuidades do Pólo Cinematográfico de Paulínia (SP): um drama recorrente na produção de cinema brasileiro. Cleber Fernando Gomes (PPGHA-UNIFESP)

Resumo O Pólo Cinematográfico de Paulínia, está localizado no interior do Estado de São Paulo. Nesse caso, constitui-se objeto de pesquisa interessante porque possui uma estrutura de grande porte em produção de audiovisuais que poderá contribuir para fomentar os bens culturais no Brasil através do cinema. Sabemos que o cinema tem o poder de romper fronteiras locais, regionais, nacionais e internacionais, tornando-se um fenômeno de comunicação entre os diversos setores da sociedade e, sobretudo, despertando a reflexão crítica, sendo um objeto cultural importante para o país. O Pólo também é uma fonte importante para pesquisar aspectos históricos, sociais, culturais, artísticos, econômicos e políticos. Porém, as descontinuidades de suas produções fílmicas retomam os dramáticos fenômenos observados na história do cinema brasileiro. Palavras-chave: Cinema, Pólo Cinematográfico, História da Arte, Brasil, Paulínia (SP).

Abstract The Pole Film Paulinia, is located in the State of São Paulo. In this case, constitutes interesting research object because it has a large structure in audiovisual production that could help to foster cultural property in Brazil through film. We know that the film has the power to break local boundaries, regional, national and international, becoming a communication phenomenon among various sectors of society and, above all, awakening critical reflection, and an important cultural object for the country. The Pole is also an important source for researching historical, social, cultural, artistic, economic and political. However, discontinuities of their filmic productions incorporating the dramatic phenomena observed in the history of Brazilian cinema. Keywords: Cinema, Film Pole, Art History, Brazil, Paulinia (SP).


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Introdução A cidade de Paulínia inaugurou o Pólo Cinematográfico no ano de 2008, se consolidando como um dos principais espaços para produções audiovisuais no país. A estrutura do Pólo Cinematográfico é composta por quatro estúdios, escritórios temporários, motor home (casa motorizada), e uma escola para formação técnica na área de cinema. Essa estrutura cinematográfica já serviu de base para produção de vários filmes com projeção nacional e internacional. Porém, o Pólo não se resume somente ao campo da estrutura física construída, mas o que também se destaca e torna-se relevante são alguns dados estatísticos que mostram que já foram investidos milhões de reais no complexo cinematográfico. Em um país, como o Brasil, no qual os investimentos em cultura são poucos e intermitentes, trata-se de uma experiência diferenciada cujos resultados precisam ser melhor compreendidos. De acordo com Magenta (2012), observamos que o Pólo Cinematográfico de Paulínia/SP foi idealizado pela Secretaria Municipal de Cultura com investimentos aproximados em mais de R$ 400 milhões de reais. Dentro desse contexto, por meio de editais de fomento de produção audiovisual, já foram disponibilizadas cifras milionárias para produção de diversos filmes nacionais no Pólo Cinematográfico de Paulínia. No período de 2007 a 2010, foram distribuídos R$ 38,8 milhões para realização de 42 filmes no Pólo de Paulínia, alguns destes com sucessos de bilheteria. No Informe Anual da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), apresentado no início do ano de 2015, podemos observar que o público total que foi ao cinema em 2014 assistir a filmes nacionais atingiu um total de 19 milhões de espectadores, um decréscimo em referência ao ano anterior que atingiu um público de 27,8 milhões. (BRASIL, 2015). Nesse caso, o Pólo produtor de cinema torna-se significativo pois, além de mostrar que os incentivos ao cinema nacional precisam se intensificar para fazer face ao cinema estrangeiro, o produto cultural brasileiro pode contribuir para a construção e o diálogo sobre muitas temáticas históricas e contemporâneas, através de filmes de ficção e dos filmes documentários. Essa realidade, de uma histórica recente, se defronta com algumas questões políticas que trazem as atividades do Pólo, contratempos e descontinuidades muito prejudiciais a produção de bens culturais para o Brasil. O duelo político existente na cidade de Paulínia transformou a cena local em uma peça dramática de idas e vindas das atividades culturais ligadas ao complexo cinematográfico.


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A produção fílmica no Pólo de Paulínia (SP) A partir desse contexto preliminar sobre o Pólo, observamos que também é importante destacar que já foram produzidos um número considerável de filmes no Polo Cinematográfico de Paulínia/SP (ver tabela 1). Do ano de 2009 a 2014, mesmo funcionando parcialmente, houve uma produção variada de filmes no Polo, dos quais um conseguiu projeção internacional1, oferecendo aos espectadores uma experiência cinematográfica no campo cultural e histórico.

Ano

1

Filme

Diretor

2009

Cabeça a Prêmio

Marco Ricca, F.Braga

2009

Jean Charles

Henrique Goldman

2009

Salve Geral

Sergio Rezende

2009

O Menino da Porteira

Jeremias Moreira Filho

2009

Hotel Atlântico

Suzana Amaral

2010

Chico Xavier

Daniel Filho

2010

De Pernas Pro Ar

Roberto Santucci

2010

Eu e Meu Guarda Chuva

Toni Vanzolini

2010

Topografia Desnudo

Teresa Aguiar

2011

Corações Sujos

Vicente Amorim

2011

Bruna Surfistinha

Marcus Baldini

2011

Estamos Juntos

Toni Venturi

2011

Meu País

André Ristum

2011

O Palhaço

Selton Mello

2011

Onde Está a Felicidade?

Carlos Alberto Ricelli

2011

O Homem do Futuro

Cláudio Torres

2011

Trabalhar Cansa

Juliana Rojas e Marco Dutra

2012

Acorda Brasil

Sergio Machado

2012

As Doze Estrelas

Luiz Alberto Pereira

de

um

M.Aquino,

Caso específico do filme “O Palhaço”, direção de Selton Mello (2013), que foi o escolhido entre os 15 longas-metragens brasileiro para concorrer à indicação ao 85º prêmio Oscar (EUA) de melhor filme estrangeiro – acabou não sendo indicado.


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de filmes Paulínia/SP.

2012

A Última Estação

Márcio Curi

Tabela 1: Relação

2012

O Vendedor de Passados

Lula Buarque de Hollanda

produzidos em

2012

O Tempo e o Vento

Jayme Monjardim

2012

Totalmente Inocentes

Rodrigo Bittencourt

2012

Transeunte

Eryk Rocha

2012

Trinta

Paulo Machine

2013

Vai que dá Certo

Maurício Farias

2013

Somos Tão Jovens

Antonio Carlos da Fontoura

2013

Colegas

Marcelo Galvão

2013

A Busca

Luciano Moura

2014

Confia em Mim

Michel Tikhomiroff

Fonte:cinemapaulinia.com.br

Esse breve levantamento de dados sobre os filmes produzidos no Polo Cinematográfico de Paulínia/SP já sugere a importância desse complexo para a História da Arte, porque temos um objeto que gerou e ainda pretende continuar gerando bens culturais para o país. No entanto, por motivos políticos, o Pólo, na sua breve história no cenário cultural brasileiro, acaba sendo afetado por disputas de poder que interferem no seu desenvolvimento como uma importante área industrial de produção de bens culturais para o Brasil. As descontinuidades acabam atrapalhando a construção de um sistema produtivo que necessita de uma frequência, visionando uma industrialização desse produto audiovisual, essencial para difusão e valorização dessa expressão artística, ainda marginalizada no Brasil. De acordo com Genestreti (2015), e ilustrando a questão da interferência política no Pólo, em 27 de fevereiro de 2015 foi anunciada, mais uma vez, a suspensão do Festival de Cinema da cidade de Paulínia e, consequentemente a suspensão e revisão do edital que previa a produção de oito obras cinematográficas, totalizando um valor de R$ 8 milhões de reais. Mais uma vez observamos o drama da descontinuidade, que se faz presente.

A crise nas artes Ao analisarmos o Pólo Cinematográfico, é importante registrar o debate contemporâneo recorrente sobre a “crise da arte”. Para alguns estudiosos “fala-se de uma crise da arte, ou seja, de uma separação das atividades artísticas do contexto das atividades que, nesta condição da sociedade, produzem cultura” (ARGAN, 2005, p.85). Essa crise da arte


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remete ao desenvolvimento cada vez mais rápido das novas tecnologias de industrialização, informação e comunicação. A problematização de Giulio C. Argan, talvez esteja centralizada nas artes plásticas – mas as preocupações sobre uma possível crise nesse campo também são observadas no contexto cinematográfico, como destacou o próprio Argan (2005), sobre os produtos das artes: “Enfim, pode-se dizer que os produtos da arte, ou, mais precisamente, das artes, se inserem no contexto cultural contemporâneo dominado pela ciência, na medida em que são sustentados por uma ciência da arte (que, no fundo, é história da arte)” (p.86). Nos estudos de Jacques Aumont (2008, p.71), notamos uma atenção especial em analisar uma “crise do cinema”, forma de manifestação artística que corre o risco de desaparecer ou modificar-se radicalmente, principalmente com o avanço da era digital. Esse fenômeno acaba por contribuir para o surgimento dos ciclos de descontinuidades na área cinematográfica, principalmente no caso de pequenos e novos complexos produtores de cinema, no Brasil e no mundo. O autor ainda destaca as pesquisas de Pierre Bourdieu sobre a fotografia e conclui que os estudos mais prolíficos se deram no campo de uma “história social da arte”, que abandona um caráter mais tradicional de análise, com bases nas formas, e concentram-se em estudos históricos sobre a produção e a recepção das obras de artes (AUMONT, 1993, p.185-186). Já em Teorias da Arte, Anne Cauquelin (2005, p.110-111) buscou enfatizar a importância de uma história localista que legitima o método histórico como um recurso essencial para o pesquisador das artes, disponibilizando diversos materiais (documentos, arquivos) para a construção de argumentos dentro de uma regra estruturada. Dessa forma, ao contextualizar o Pólo Cinematográfico de Paulínia/SP, observamos que o objeto de estudo figura-se como um fenômeno artístico que está inserido dentro de uma sociedade capitalista complexa e dinâmica, local e ao mesmo tempo global, porque seus produtos fílmicos tem uma capacidade de difusão mundial. Além disso, o Pólo como produtor de filmes, e a escola de cinema, tem em sua estrutura o poder de gerar bens culturais para o Brasil, além de valorizar o fazer cinematográfico, podendo aderir ao conceito “soft power” (MARTEL, 2012, p.12).


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Arte, cultura e capitalismo No livro Mainstrem – a guerra global das mídias e das culturas, de Frédéric Martel, observamos que, com o fenômeno da globalização as influências não se materializam apenas pela força militar, econômica e industrial. Segundo Joseph Nye, vice-ministro da Defesa no Governo de Bill Clinton (EUA), a cultura passa a ser um recurso indispensável para se sobressair em um mundo de “interdependência complexa” das interações sociais. Nesse caso, Nye destaca que “o soft power é a atração, e não a coerção”, ou seja, o objetivo dos EUA deve estar centrado também na obtenção e garantia do poder através da difusão dos bens culturais produzidos em seu país, principalmente a produção vinda de Hollywood. (MARTEL, 2012, p. 12). No Brasil, o conceito de soft power já foi defendido politicamente por Marta Suplicy quando estava no Ministério da Cultura (SUPLICY, 2013). A importância de criar estratégia para fortalecer o país em diversos setores, seja econômico, político, cultural, é imprescindível em um mundo cada vez mais globalizado. A produção cinematográfica brasileira poderá exercer um papel fundamental, assim como podemos notar na história de Hollywood. Interessante observar que no caso do cinema hollywoodiano as descontinuidades e os dramas políticos não se fazem presente na realidade de produção dos grandes estúdios norteamericano, o que facilita os elos produtivos e a difusão dos seus produtos fílmicos. Contudo, o conceito de soft power defendido pelo cientista político de Harvard, exfuncionário do Governo dos EUA, pode levar a uma reflexão sobre o fenômeno da reprodutibilidade técnica exposta por Walter Benjamin (1985), no seu ensaio “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. Nesse caso, o cinema como arte política contribui para um pensamento materialista da vida social, tornando uma esperança extraordinária de mudanças e revoluções. A natureza de reprodutibilidade técnica do cinema obriga a uma distribuição em massa do filme, já que a sua produção técnica tem um custo tão elevado que restringir o acesso a uma classe social mais abastada limitaria em grande medida os lucros. Sendo assim, com a reprodutibilidade técnica do cinema, é essencial fazer uma difusão ampla e rápida para que os custos desse produto cinematográfico compensem a sua produção. Nesse caso, a grande massa passa a se beneficiar dessas obras de arte, sejam clássicas, cult, ou populares, tendo acesso a conteúdos e temas, inclusive, ideológicos, políticos e culturais. O fenômeno da


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continuidade produtiva passa ser fundamental para evitar os dramas das interrupções dos projetos cinematográficos. Ao mesmo tempo em que o cinema se expande positivamente na cultura de massa, oferecendo acesso a arte cinematográfica a diversas pessoas, ele também pode ser objeto de reflexão crítica por estar inserido na indústria cultural capitalista. E o cinema realizado no Pólo Cinematográfico de Paulínia/SP é um produto da indústria cultural e “está sujeito à formação da consciência de seus consumidores” (ADORNO, 1978, p. 291). Nesse caso, observamos em Adorno uma ênfase em não subestimar as influências da indústria cultural porque ela exerce um papel social e merece ser contestada em sua adesão à racionalidade técnica e ao capitalismo. Para Theodor Adorno, a arte como fenômeno social tem consequências sociais e merece ser objeto de reflexão na medida em que dentro do contexto da indústria cultual ela desenvolve e influência a “economia psíquica das massas” colaborando assim para um estado de alienação. A crítica de Adorno à indústria cultural é um interessante objeto de discussão, porém, não podemos condenar os produtos culturais com base somente no fenômeno técnico e mercadológico. Existe nesses produtos uma memória histórica de uma sociedade complexa e em constante transformação. Para Ismail Xavier (2001, p.14-15), mesmo o cinema sendo um objeto da indústria cultural, incluindo o cinema moderno brasileiro, essa arte é composta por uma “pluralidade de tendências”. Para o autor a prática do cinema cria “instância de reflexão e crítica” em diversas partes do mundo vitalizando a cultura. Desse modo, entende-se que em um Pólo Cinematográfico há produções diversificadas de filmes que vão se inserir no âmbito social influenciando de maneiras diversas as consciências coletivas, dependendo diretamente das continuidades produtivas, e distanciando-se dos dramas políticos.

Cinema como patrimônio cultural Embora o cinema, enquanto mercadoria, deva ser objeto de reflexão crítica, considerase também que o cinema é um objeto importante do patrimônio cultural do Brasil. Para tanto, Funari & Pelegrini (2006, p.29) vão salientar que a preservação do patrimônio cultural na América Latina pode ser uma forma de desenvolvimento sustentável para as cidades que possuem centros culturais. Dentro desse contexto, é possível entender que um Pólo Cinematográfico é considerado um centro cultural porque produz bens culturais, materiais e imateriais que podem abrir um diálogo sobre a vida de uma coletividade. De acordo com os


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autores “a definição de patrimônio passou a ser pautada pelos referenciais culturais dos povos, pela percepção dos bens culturais nas dimensões testemunhais do cotidiano e das realizações intangíveis” (FUNARI & PELEGRINI, 2006, p.32). Consequentemente esses bens culturais também estão ligados aos dados econômicos dos países, uma vez que as atividades culturais geram direta e indiretamente diversos recursos financeiros, além de postos de trabalho e mão de obra especializada. Esse fenômeno inerente à cultura fílmica também traz reflexões sobre a indústria cinematográfica – um setor econômico e cultural que tem gerado números extraordinários – principalmente quando colocamos em questão os dados estatísticos da história dos grandes estúdios de Hollywood. Nesse caso, o Brasil também faz parte dessa história, porque contribui diretamente com as bilheterias dos filmes estrangeiros, principalmente os norte-americano. Segundo relatório apresentado pela ANCINE (BRASIL, 2015) através da Superintendência de Análise de Mercado (SAM), no ano de 2014 o cinema estrangeiro foi responsável por 87,8% do público total das salas de cinema no Brasil, em contraposição aos 12,2% do próprio cinema brasileiro. É interessante observar que esse fenômeno da difusão e ocupação dos filmes hollywoodianos em salas de cinema do Brasil já era notado desde a década de 1920, conforme destaca Arthur Autran (2004, p.02) em sua tese de doutorado em Multimeios na Unicamp: “na indústria do filme, o Brasil ainda dorme envolto em faixas sem saber balbuciar uma palavra, e no comércio de exibições é um dos grandes importadores a enriquecer fábricas estrangeiras”. Mesmo antes do decênio de 20, Autran (2004, p.01-10) destaca matérias jornalísticas que salientavam o poder de Hollywood sobre a cultura cinematográfica brasileira. O autor ressalta que de 1909 a 1920, houve publicações no jornal carioca Gazeta de Notícias, e no jornal paulista O Estado de São Paulo que expressavam um pensamento industrial cinematográfico e que condenavam a concorrência das produções estrangeiras (EUA) sobre as produções brasileiras. Notamos que esse fenômeno poderia ser combatido com estratégias de continuidades produtivas, uma vez que os ciclos de descontinuidades na produção cinematográfica brasileira é um fenômeno recorrente na história. Essa realidade nada confortável tanto em termos culturais quanto financeiros para o Brasil nos sugere um cenário crítico para o cinema nacional, pois mostra que o povo brasileiro está contribuindo muito mais para o cinema norte-americano do que para o brasileiro, e consequentemente consumindo muito mais produtos daquela cultura. Embora essa seja a


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realidade de muitos outros países na América e demais continentes, o cinema brasileiro tem como melhorar essa situação, alavancando os índices estatísticos sobre o público de seus próprios filmes, nas salas do país. Mais uma vez questões políticas estão envolvidas nesse cenário cinematográfico, e o drama se estende ao mercado exibidor e aos processos de difusão.

Industrialização, descontinuidades e fator histórico No Brasil, os incentivos governamentais seriam essenciais para ajudar a desenvolver o setor cinematográfico, assim como notamos na história dominante do cinema norteamericano. Para tanto, podemos destacar as Parcerias Público-Privadas (PPP, Lei nº11.079/04) no setor do audiovisual, que no caso do cinema, tem como finalidade a construção e manutenção de salas de cinema, estúdios de gravação de filmes, escola de cinema, museus da imagem, etc; além de outras estratégias, que podem contribuir significativamente para produzir mais filmes no Brasil, consequentemente garantir o bom desempenho dos filmes brasileiros nas salas de cinema. Na história do cinema brasileiro podemos observar que houve períodos em que se defendia um desenvolvimento autônomo nas diversas atividades, sejam elas culturais, industriais, comerciais, etc. A socióloga Marina Soler Jorge em suas pesquisas sobre cinema na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP), destacou que o cinema estrangeiro, principalmente o norte-americano, “era considerado o pior inimigo ao lado de seu promotor, o capital estrangeiro” (JORGE, 2002, p.19). Esses fenômenos encontrados na história do cinema brasileiro se contradiziam principalmente em um período que o país estava se industrializando com capital estrangeiro, porém os defensores do Cinema Novo, por motivos ideológicos, não desejam fazer uso desses mesmos investimentos (JORGE, 2002, p.20). É interessante observar que na década de 1970 o cinema no Brasil aprecia um notável crescimento com o advento da Embrafilme que passa a ter uma maior participação nas produções nacionais. Em Jorge (2003, p.168) notamos que o cineasta Roberto Farias apresentou-se como um importante mediador entre o núcleo dos cineastas do movimento Cinema Novo e Embrafilme, exclusivamente com a missão de fomentar as políticas e estratégias de financiamento da empresa estatal. Contudo, as estratégias de produção e participação do cinema nacional, nos moldes da indústria hollywoodiana, já tinham sido testadas e colocadas em prática desde o final da


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década de 1940, quando surge no cenário brasileiro a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Em Galvão (1981, p.133) observamos que a Vera Cruz conseguiu atingir a técnica necessária: “sob o ponto de vista técnico, a Vera Cruz começou a fazer exatamente o cinema que na época se reclamava para o Brasil: o filme de boa qualidade, certinho. O salto que se deu em relação ao cinema anterior foi realmente extraordinário”. Dentro desse contexto, apontando o lado positivo da tentativa de industrialização do cinema brasileiro pela Companhia Vera Cruz, Carlos Augusto Calil (1987, p.23) destacou outro ponto importante: “ela provou que o cinema brasileiro poderia conquistar o público interno, de alto a baixo, sem segmentações (...) seus filmes foram bem lançados e o mercado correspondeu aos investimentos de publicidade”. Por um curto período de tempo o fantasma da descontinuidade produtiva estava afastado do cinema brasileiro. A partir da experiência cinematográfica da Vera Cruz, e anteriormente, de outras ações realizadas por entusiastas do cinema brasileiro – como no caso da Atlântida Cinematográfica, fundada em 1941, voltada para filmes mais populares – a produção de filmes no Brasil em alguns casos e determinados períodos históricos (estúdios da Vera Cruz e da Atlântida) esteve direcionada para tentar atingir um nível industrial. Os processos de continuidade produtiva estavam gerando bons frutos, e o drama das paralisações parecia ter sido superado. Diante desses fatos históricos, o Pólo Cinematográfico de Paulínia também surge com objetivos parecidos, porém talvez ainda mais ambiciosos. Destacamos que o complexo de entretenimento projetado para Paulínia/SP está localizado em uma área total de 2,5 milhões de m², tendo um orçamento total de R$ 2 bilhões previstos para sua conclusão até o ano de 2023 (o prazo pode ser reduzido se houver investimentos privado); sua estrutura foi projetada para concentrar 18 km de monotrilho (sendo três dentro do próprio complexo), 2 parques temáticos, 1 parque aquático, além de 5 hotéis (com mil apartamentos no total). Esses dados mostram a importância e relevância de um complexo como o Pólo Cinematográfico de Paulínia/SP, uma vez que já possui uma produção de filmes considerável (ver tabela 1) contribuindo para legitimar bens culturais para o Brasil, inclusive constando obras cinematográficas reconhecida nacionalmente e internacionalmente. Além de tentar quebrar as descontinuidades de produção, sofrido por diversos projetos que não conseguem colocar em prática seus planos. No Brasil não temos uma indústria cinematográfica consolidada. Segundo Autran (2009, p.02) “o cinema brasileiro é algo descontínuo (...) nunca conseguiu se industrializar


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efetivamente, limitando-se a alguns surtos de produção”. Essa tendência de relativos fracassos à industrialização do setor cinematográfico no Brasil é resultado de fatores complexos que não temos tempo de discutir. Se por um lado os surtos interrompidos de industrialização sempre prejudicaram a expansão da produção fílmica, em contraponto pode ter criado espaço fecundo para “o desenvolvimento das ideias sobre cinema independente” (GALVÃO, 1980, p.13).

As pesquisas em cinema Os estudos sobre o Polo Cinematográfico de Paulínia trazem em questão algumas interrogações sobre a própria história do cinema nacional e mundial. E essa história pode estar vinculada ao caso específico da indústria de Hollywood, uma vez que a mesma é dominante nesse setor. Em Mascarello (2006, p.335) observamos que “cabe à universidade manter-se em sintonia com os avanços da pesquisa em padrões globais” – o autor defende um estudo longe do viés ideológico priorizando análises mais pragmáticas para tentar compreender o processo e a estrutura do sistema industrial norte-americano na produção de blockbuster – fato que culminou em um imperialismo cultural difundido no mundo todo. Esses estudos pragmáticos em padrões globais envolve uma discussão interessante sobre a produção fílmica ao redor do mundo, uma vez que traz para o debate novas perspectivas e aspectos comparativos importantes para entendermos o nosso próprio modo de produção de filmes e difusão dos nossos bens culturais. Para tanto, é preciso contextualizar a história de outros cinemas, além de colocar em debate as diferenças de linguagem, poéticas e estéticas cinematográficas dentro do nosso próprio país. No Brasil, temos uma diversidade cinematográfica que compõe um conjunto de obras de arte que formam o nosso conteúdo cultural na área do cinema. Em comparação ao estilo hollywoodiano, é possível sugerir que o Brasil está procurando construir após a retomada do cinema nacional na década de 1990, um star system e um studio system, mesmo que estes estejam vinculados ao monopólio de uma única empresa de entretenimento e comunicação, no caso, a Rede Globo de televisão e sua extensão, a Globo Filmes. Assim, nos acostumamos a ver nas telas figuras recorrentes que estrelam boa parte das produções e também frequentam as novelas televisivas.


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Segundo Bernardet (2004, p.134) “isolar o cinema brasileiro das outras cinematografias tem consequências metodológicas não necessariamente benéficas”. Nesse sentido, é válido comparar as produções realizadas pela Globo Filmes com o modelo Hollywoodiano e entender sua capacidade de fazer frente ao produto estadunidense, uma vez que a empresa possui um complexo de comunicação e difusão que consegue atingir milhões de espectadores no Brasil e no mundo. Porém, vale ressaltar que novas políticas de incentivos fazem-se necessárias para que novas produções cinematográficas possam ter condições de entrar no circuito de distribuição e exibição, contribuindo para a difusão cultural, além da diversidade de obras – “leis de incentivo, quotas, estratégias de marketing, produção de gêneros populares nacionais, assim como a promoção internacional de produtos culturais” (MELEIRO, 2007, p.15). Toda essa diversidade de produções fílmica podemos encontrar no histórico do Pólo Cinematográfico de Paulínia (ver tabela 1), que conseguiu atrair diferentes produções, inclusive parte do star system da própria Globo Filmes. As estratégias de negócio da Globo Filmes podem ser comparadas as estratégias da indústria hollywoodiana que conseguiu se firmar como um complexo poderoso de produção e distribuição dos seus filmes. Sabemos que a indústria de Hollywood domina o mercado de filmes no seu próprio país e no restante do mundo. De acordo com Arthur Autran, se Hollywood conseguiu criar uma estratégia de dominação no mercado cinematográfico, muito se deve ao apoio de políticas governamentais, principalmente após a I Guerra Mundial, afastando os concorrentes europeus, deixando evidente que existe uma diferença essencial nas estruturas industriais existentes nos países com cinematografias desenvolvidas, realidade muito diferente do que encontramos no Brasil (AUTRAN, 2004, p.04-05).

Considerações finais O cinema no Brasil ainda tem muito para se desenvolver e tornar-se uma indústria forte como um segmento cultural que movimente a economia, sendo reconhecido e valorizado por seus produtos audiovisuais. No entanto, podemos destacar que paralelamente as dificuldades encontradas nesse setor cultural, há um estímulo ao turismo cinematográfico, conjunturado com o Ministério do Turismo, que lançou uma cartilha do “Turismo Cinematográfico Brasileiro”. Essa realidade já existe em países como a Escócia, Nova Zelândia, Romênia, e evidentemente, nos EUA.


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O Brasil também possui potencial turístico na área do cinema em diversas cidades, como podemos verificar no Rio de Janeiro/RJ, com o Pólo Cine&Rio, localizado na Barra da Tijuca, instalado numa área de 55.000m², sendo composto por oito estúdios, e oferecendo cursos de audiovisual, operação de câmera e direção de fotografia. No Distrito Federal, há o Pólo de Cinema e Vídeo Grande Otelo, localizado na região de Sobradinho à 22km da cidade de Brasília/DF. No município de Cabaceiras (PB), podemos encontrar uma região apelidada de Roliúde Nordestina, pelo fato de já ter recebido filmagens de diversos filmes. Nessa mesma direção, a cidade de Palmas no Estado do Tocantins criou um circuito turístico, “Nas Trilhas do Cinema”, para levar turistas a conhecer locações de filmes realizados naquela região. Assim sendo, as atividades cinematográficas do Pólo de Paulínia/SP, também podem se tornar um meio de movimentar o setor turístico da cidade, promovendo o cinema nacional produzido no local. Em suma, os Pólos produtores de cinema no Brasil são importantes por serem estruturas produtoras de bens culturais que contribuem com parte da história cinematográfica do país, que produziu e continuará produzindo esses bens culturais. O Pólo Cinematográfico de Paulínia (SP), também torna-se essencial na história do cinema brasileiro, porque, apesar dos seus ciclos de descontinuidades, e dos dramas políticos existentes na cidade, conseguiu contribuir com um número considerável de obras cinematográficas gravadas em seus estúdios, além de fomentar o ensino da arte do cinema, através da escola de animação, e dos diversos cursos e oficinas culturais.

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Palco ilusório de um delirante teatro mágico: espaço imaginário de autorreflexão. Ubiratan Machado Pinto (PPGCL-UFRJ)

Resumo: O artigo analisa o romance O lobo da estepe, de Hermann Hesse, segundo a relação intertextual entre literatura e mitologia grega. Marcante para o texto é a autorreflexão do narrador, a sua tentativa de lançar um olhar para dentro de si, cuja tensão entre lucidez e devaneio é representada de maneira performática em um lugar imaginário de sua mente, como quem busca ver além da própria imagem refletida diante do espelho. Com referência ao mito de Narciso e à teoria psicanalítica de Freud, tal possibilidade expõe todo o seu dilema existencial. Palavras-chave: sonho – memória – autorreflexão Abstract: The article analyzes the novel Steppenwolf, by Hermann Hesse, according to the intertextual relation between literature and Greek mythology. Remarkable for the text is the self-reflection of the narrator, his attempt to take a look inside, whose the tension between lucidity and dreaminess is performatively represented in an imaginary place in his mind, as anyone who want to see beyond his own reflected image before the mirror. Regarding the myth of Narcissus and the Freud's Psychoanalytic Theory, this possibility exposes all his existential dilemma. Keywords: dream – memory – self-reflection Em 1927, Hermann Hesse publica a perturbadora obra O lobo da estepe. Esse romance foi lançado após a Primeira Guerra Mundial, fato histórico seguramente fomentador de uma tendência literária que pudesse mostrar a representação do ser humano moral e socialmente esfacelado perante atrocidades belicistas e crises econômicas. Livro que marcou a geração de leitores dessa época, a referida prosa apresenta uma história que aguça a nossa imaginação de tal maneira a tornar propensa a construção de imagens mentais que se replicam ao infinito devido à densidade alegórica da significação desse texto literário, sendo essa espécie de experiência fascinante um possível efeito resultante oriundo de uma leitura pormenorizada dessa narrativa. Nesse romance, observam-se transposições imagéticas e personagens relacionadas entre si através de simbólicos reflexos especulares, uma vez que se verifica no texto um espelhamento onírico e dialógico que os mantêm sempre enleados. Harry Haller, a personagem principal dessa história, carrega um dilema que é oniricamente retratado e reforça a transposição imaginária para a dimensão dramática e extraordinária apresentada na narrativa, a que o insere dentro de um teatro mágico, colocando-o em contato com seus


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desejos e diante de suas referências, uma vez que, segundo o crítico literário Michael Sprinker (1991, p. 126), “los sueños presentan un modelo de intertextualidad en el que la interpretación depende de la habilidad de articular la estructura inscrita compuesta por la yuxtaposición de textos que difieren entre sí”. Tais observações correspondem com as reflexões feitas pelo protagonista, cuja identidade torna-se o alvo de sua crítica:

Com a destruição do que havia chamado antes “minha personalidade”, comecei a compreender por que, apesar de todo desespero, eu temera tão horrivelmente a morte, e comecei a notar que também esse temor atroz e ignominioso pela morte era um resquício de minha antiga existência, burguesa e enganadora. O Sr. Haller de até então, escritor de talento, conhecedor de Mozart e de Goethe, autor de observações dignas de ler-se sobre a metafísica da arte, sobre o gênio e o trágico, sobre a Humanidade — o solitário melancólico em sua clausura de livros, tinha de fazer sua autocrítica ponto por ponto, sem nada omitir. (HESSE, 1995, p. 133)

Para Harry Haller, a autocrítica nada mais salienta a sua tentativa de lançar um olhar para dentro de si para chegar ao esgotamento de todas as observações a seu respeito, como quem se vê diante do espelho à procura de um eu que é, porém, sempre intangível, ideal que se configura como algo não plenamente realizável, remetendo-se ao mito de Narciso, como nos conta a mitologia grega:

Ficou olhando com admiração para os olhos brilhantes, para os cabelos anelados como os de Baco ou de Apolo, o rosto oval, o pescoço de marfim, os lábios entreabertos e o aspecto saudável e animado do conjunto. Apaixonou-se por si mesmo. Baixou os lábios, para dar um beijo e mergulhou os braços na água para abraçar a bela imagem. Esta fugiu com o contato, mas voltou um momento depois, renovando a fascinação. Narciso não pôde mais conter-se. Esqueceu-se de todo da idéia de alimento ou repouso, enquanto se debruçava sobre a fonte, para contemplar a própria imagem. (BULFINCH, 2001, p. 124-125)

Para a mitologia greco-romana, Narciso permaneceu debruçado sobre as águas de um rio até seu corpo tornar-se metamorfoseado em uma flor. Convertido em elemento da natureza, ele passa a representar o mundo subterrâneo, simbolizando a instabilidade da juventude, o sono e o renascimento, cuja alusão mítica à beleza conserva-se indelevelmente: “Although open to dispute, the derivation of this word from Greek narkē (numbness) would help to explain the connection of this flower with the cults of the Underworld and with the initiation ceremonies associated with the worship of Demeter at Eleusis” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1996, p. 695). De acordo ainda com o corrente significado mitológico, Narciso é simulacro da introspecção, da vaidade e do amor por si mesmo:


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A flower of spring, but also a symbol of youthful death, sleep and rebirth. The range of plants belonging to this genus (which include daffodils and jonquils) may account for its wide variety of symbolism. The Narcissus of Greek mythology was a beautiful youth who fell in love with his own reflection in a pool and pined away gazing at it. The story is usually taken to be an allegory of vanity, self-love or, psychological terms, morbid introspection, but its original symbolism may have been more straightforward. (TRESIDDER, 1998, p. 143)

A imaginação pela qual a construção do romance engendra-se como algo fora do eixo da realidade faz de O lobo da estepe uma história dominada pelo fascínio narcisístico de reminiscências e desejos do protagonista Harry Haller, previamente revelados a nós por intermédio do prefácio do editor, outra personagem, a que se responsabilizou de expor as anotações de Haller à disposição da leitura de qualquer leitor. O que se lê vai ao encontro daquilo que encontramos ao lermos uma história fictícia não muito breve, ou seja, dentre inúmeras características de um texto literário, é notória sua façanha de comportar ilimitadamente ou até mesmo de estreitar o tempo por intermédio de palavras arranjadas em um plano ficcional extraordinário. Conforme a ambivalência que instaura a oscilação entre a fronteira da lucidez e do devaneio nessa obra literária, cabe-nos observar o que diz Paul Ricouer (2007, p. 64):

Enquanto a imaginação pode jogar com entidades fictícias, quando ela não representa o real, mas se exila dele, a lembrança coloca as coisas do passado; enquanto o representado tem ainda um pé na apresentação enquanto apresentação indireta, a ficção e o fingido situam-se radicalmente fora de apresentação.

Através da memória, quaisquer pensamentos recordativos e/ou imaginativos de um sujeito são extravasados pelo fio da linguagem que, mediante essa faculdade de interação dialógica e inteligível, tece o sentido global de um relato intimista, tal como se esse fosse dito ao pé de nosso ouvido. Walter Benjamin (1995, p. 213) destaca algo que pode servir aqui para ampliar o argumento:

Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. Mais solitário que qualquer outro leitor (pois mesmo quem lê um poema está disposto a declamá-lo em voz alta para um ouvinte ocasional). Nessa solidão, o leitor do romance se apodera ciosamente da matéria de sua leitura. Quer transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama.

O lobo da estepe reúne divagações abstratas e comporta lembranças de diferentes vivências do protagonista ao longo de sua existência, o que justamente nos é comunicado


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conforme a impressão psicológica que podemos sustentar a partir da própria narrativa colocada em ênfase por meio de nossas observações. Nesse sentido, a obra de Hesse obedece a tais apreensões que se cumprem com o auxílio de nosso olhar crítico, deixando-se aflorar as sensações acerca do protagonista segundo o ponto de vista do anônimo editor sobre um sujeito que considerou ser “estranho, selvagem e, ao mesmo tempo, tímido, muito tímido mesmo” (HESSE, 1995, p. 8), e que “vestia um sobretudo de inverno, de talhe moderno e cômodo, e no demais estava decentemente vestido, embora com certo desalinho” (HESSE, 1995, p. 9). A cada observação, esse editor aproxima-se de Harry Haller, estreitando os olhos observadores face ao olhar de quem é observado:

[...] o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah! lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade; expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido da vida humana. (HESSE, 1995, p. 13-14)

O personagem, meramente denominado da maneira como já se sabe, também designado logo de início como “Lobo da Estepe”, mostrando a dualidade na caracterização de seu perfil que, ao ser representado através do contraste entre indivíduo e fera lupina, tanto é capaz de fazer minuciosas digressões a respeito da vida quanto manter um posicionamento alheio às convenções sociais como se fosse um animal arredio. O que se pode perceber a respeito dessa duplicidade psicológica é a simbolização de um lado mais visceral da consciência de Harry Haller, identificada por intermédio de seus registros memorialísticos, que fornecem rastros acerca de sua personalidade caracterizada de maneira colidente, oscilando de forma insurgente, entre o delírio e a razão, o seu posicionamento pessoal sobre o mundo, e tornam essa ambivalência delineada conforme suas anotações, concedidas por fonte editorial:

Não sei por que motivo, eu, o Lobo da Estepe, o sem pátria e solitário odiador do mundo burguês, sempre morei em verdadeiras casas burguesas, talvez por um velho sentimentalismo de minha parte. Não vivia nem em palácios nem em casas proletárias [sic], mas precisamente naqueles ninhos da pequena-burguesia, decentíssimos, cheios de tédio e cuidadosamente conservados, onde há sempre um cheiro de terebentina e sabão e onde todos se sobressaltam quando alguém deixa a porta bater com força ou entra com sapatos sujos de lama. O amor por essa atmosfera vinda, sem dúvida, de minha infância, e meu secreto anseio por algo assim como um lar sempre me leva [sic] desesperadamente por esses velhos e estúpidos caminhos. (HESSE, 1995, p. 31)


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Embora o personagem Harry Haller seja oriundo de um meio social em que o ideal de burguesia e a vida decentemente regulada pelos costumes de uma sociedade tradicionalmente moralista que, na Europa de meados do século XX, havia sido destroçada pela Primeira Guerra Mundial tendem a servir como paradigmas de comportamento em espaço coletivo, ele se mostra apartado dessa tendência correspondente ao hábito de um contingente comunitário nessa determinada época. Suas lembranças permitem que ele revisite sua própria origem, a partir da infância, reelaborada nostálgica e amorosamente através de sua memória.

As sensações advindas do que se passou em sua vida face às percepções provenientes do que se passa em tempo presente mesclam-se no texto literário como se suas recordações pudessem ser convertidas em múltiplas imagens, formando um mosaico sentimental de colorações bastante variadas. Nesse caso, seria um mosaico emotivo de suas vivências, de seus sentimentos, de seu processo de aprendizagem e amadurecimento ao longo da vida, o que confere ao relato um traço bastante humanizado acerca de um sujeito que se vê de forma animalizada, uma característica relacionada à sensibilidade de uma condição humana desgarrada e à existência de um indivíduo tão avesso às convenções normativas de seu tempo. O espaço urbano habitado por ele proporciona essa emotividade, despertando da consciência do protagonista dados memoriais acerca de sua história pessoal, de um tempo heroico juvenil que já passou e que justamente traduz uma espécie de saudosismo épico referente a sua própria mocidade, período em que já se encontra toda a sua admiração por um estilo de vida solitário, em que se percebe Harry Haller como alguém suficientemente capaz de conduzir a sua existência como um incorrigível misantropo:

Com pretensa alegria, percorri as ruas cujo asfalto estava molhado pela chuva; as luzes dos postes, chorosas e veladas, através da úmida e fria obscuridade, projetavam no chão molhado luminosos reflexos de luz como num espelho. Nesse momento desfilaram em minha memória os anos de minha juventude: como admirava, então, aquelas enevoadas tardes de outono ou de inverno! como respirava, ansioso e embevecido, a sensação de isolamento e de melancolia, quando, noite adentro, enrolado em meu capote, atravessava as chuvas e tempestades de uma natureza hostil e revoltada [...]. Lastimáveis eram o agora e o presente, todas essas horas e dias incontáveis que eu perdia, que eu vivia em sofrimento, que não me traziam nenhuma dádiva nem a menor comoção [sic]. (HESSE, 1995, p. 32)

Em contraponto, como se pode observar, estão colocadas no trecho acima as recordações da juventude e as severas constatações de um homem já adulto e marcado pelo avanço do tempo, sendo notória a relação entre essas reflexões acerca de dois estágios de sua vida, imagens de si mesmo em contraste pela impossibilidade de (re)elaborar, enfim, o ideal


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pueril e/ou juvenil de sua própria vida principalmente por estar vivendo em uma etapa mais à frente, em que a maturidade e a consciência da morte a cada progressão temporal percebida pelo protagonista norteiam pensamentos e dilemas do ser. Nesse romance de Hermann Hesse, esse personagem tem a oportunidade de reencontrar-se mais jovem através da memória atrelada ao seu tempo de juventude e quanto mais ele se aproxima dessas lembranças, mais se acentua o desgosto vinculado ao seu momento atual de existência, já envelhecido e amargurado pela aversão à humanidade. Recordar de um período vivido em que o regozijo da jovialidade está à flor da pele serve consideravelmente de consolo ao fato de Harry Haller estar vivendo uma etapa demarcada pelo estreitamento cíclico de seu tempo de vida. Ele se depara com a perspectiva de um porvir desfavorável, com o desprazer de um instante presente que não lhe parece trazer sentido algum de viver e com a nostalgia avassaladora de si mesmo enquanto um homem jovem cheio de vontades e entusiasmo pelo seu futuro ainda não percorrido. As recordações que se traduzem por imagens a respeito de sua juventude deixamno fascinado, mas a figura do indivíduo que relembra de sua mocidade já não corresponde com aquela outra de sua fase existencial anterior. No entanto, ele se curva ao passado como se estivesse sucumbindo a sua própria queda naturalmente fulminante e associada a uma decrepitude vital iminente. Se for possível fazer uma releitura do mito de Narciso baseada nessa interpretação alegórica, a lembrança de Harry Haller acerca de sua juventude corresponderia à imagem de Narciso refletida no lago, que observa a beleza de sua juventude. A diferença entre ambos os personagens é que o herói da mitologia grega morre jovem e o protagonista do romance de Hesse apresenta-se como um sujeito demasiadamente maduro. Assim, cabe citar o seguinte:

El sujeto que se toma a si mismo como objeto invierte el movimiento natural de la atención; al hacer esto, parece estar violando ciertas prohibiciones secretas de la naturaleza humana. La sociologia, la psicologia profunda, el psicoanálisis, han revelado la significación compleja y angustiosa que reviste el encuentro del hombre con su imagen. La imagen es un otro yo-mismo, un doble de mi ser, pero más frágil y vulnerable, revestido de un carácter sagrado que lo hace a la vez fascinante y terrible. Narciso, al contemplar su rostro en el seno del manantial, queda fascinado por esta aparición, hasta el punto de morir al doblarse sobre sí mismo. En la mayor parte de los folklores y las mitologías la aparición del doble es un signo fatal. (GUSDORF, 1991, p. 11)

Harry Haller, “aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível [sic]” (HESSE, 1995, p. 34), vai ao encontro da fatalidade como se tivesse firmado um pacto consigo mesmo, mas driblando indomavelmente o evidente vigor físico em declínio. Esse propósito adquire razão de ser pelo


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fato de o personagem ter encontrado um livreto intitulado “O tratado do lobo da estepe” e utilizado as ideias dessa pequena obra, citadas em suas anotações, tal como se estivesse absorvendo um modo de viver mais bruto e semelhante ao da vida selvagem e solitária de um lobo, visto que, de certa forma, ele se vê refletido tragicamente na imagem desse animal, além de estar sendo referido o seu primeiro nome no opúsculo:

Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo [sic] horrivelmente absurda e despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e costumes. Precisamente aí era que a parte humana existente nele se punha a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurandolhe toda a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina. (HESSE, 1995, p. 48)

É também através dos olhos do lobo que Harry reforça seu repúdio à sociedade:

O Lobo da Estepe vivia, segundo seu próprio entendimento, inteiramente à margem do mundo convencional, pois não conhecera nem a vida de família nem as ambições sociais. Sentia-se isolado ora como um esquisitão e doentio eremita, ora como um indivíduo superiormente dotado, que por seu gênio se sobressaía do comum dos mortais. Desprezava conscientemente a burguesia e vivia orgulhoso de não pertencer a ela. (HESSE, 1995, p. 56)

Além de toda a ojeriza à burguesia que o Lobo da Estepe sente, o breve tratado que Harry Haller lê acentua a representação do antagonismo entre ele e o lobo apresentada na obra como um todo, ou seja,

A divisão em lobo e homem, em impulso e espírito, mediante a qual Harry procura explicar seu destino, é uma grosseira simplificação, uma violentação do real em favor de uma explicação plausível porém [sic] errônea da desarmonia que este homem encontra em si e que lhe parece a fonte de seus não leves sofrimentos. Harry encontra em si um “homem”, ou seja, um mundo de pensamentos, de sensações, de cultura, de natureza domada e sublimada, e vê também, ao lado de tudo isto, um “lobo”, ou seja, um obscuro mundo de instintos, de selvagerismo e crueldade, de natureza bruta e insublimada. (HESSE, 1995, p. 62)

Assim, o protagonista depara-se consigo mesmo, retorna a escrever suas anotações, engendrando reflexões que denotam conformação com o inútil confronto existencial vivido por ele:

Agora tinha nas mãos dois retratos meus: um, o auto-retrato em versos burlescos, triste e angustiado como eu mesmo; o outro, frio e traçado com aparência de alta


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objetividade por um estranho, visto de fora para dentro e de cima para baixo, escrito por alguém que sabia mais, e, no entanto, também menos do que eu. E esses dois retratos, meu poema triste e balbuciante, e o inteligente estudo de mão desconhecida, ambos me causaram dor, ambos tinham razão, retratavam ambos sem rebuços minha desconsolada existência, ambos mostravam claramente o insuportável e insustentável da minha condição. Este Lobo da Estepe devia morrer, sua odiosa existência devia encontrar fim por suas próprias mãos ou havia de consumir-se no fogo mortal de uma continuada exposição de si mesmo; deveria transformar-se, tirar a máscara e defrontar-se com uma nova encarnação do seu eu. (HESSE, 1995, p. 72)

O narrador procura desfazer-se de sua personalidade, passo a passo, de modo a querer abdicar de todo e qualquer ideal ou filosofia de vida que o havia orientado:

E outra vez depois de alguns anos amargos e difíceis, depois de haver construído uma nova vida ascética e espiritual, de haver criado um ideal, numa severa solidão e penosa autodisciplina, depois de haver atingido certa tranqüilidade e altivez, entregue à prática do pensamento abstrato e a uma meditação rigorosamente metódica, essa transformação vital também acabou por desabar, essa forma de vida perdeu num instante seu nobre e elevado sentido; arrastou-me de novo a viajar fatigantemente pelo mundo, amontoaram-se novas dores e novas culpas. E cada vez que arrancava uma máscara, que via ruir um ideal, cada um desses acontecimentos era precedido por um silêncio e um vazio cruéis, por um mortal isolamento e ausência de relações, um triste e sombrio inferno que agora de novo tinha de enfrentar. (HESSE, 1995, p. 72-73)

Ao longo do relato da personagem, a narrativa torna-se adensada pelos seus anseios, conformadamente abalado pelas inconstâncias pertinentes a todo homem ocidental. A trajetória dramática que lhe permite desnudar performaticamente seu autoconhecimento, a busca em vão pela isenção de todo sofrimento humano, aos rigores de seu asceticismo, a inevitável imersão na vida mundana, todas as circunstâncias que moldam o comportamento arredio de Harry Haller conduzem-no a dimensões temporal e espacial paralelas à realidade, a ponto de alcançar seu estado de transe onírico:

Sonhei que estava sentado numa sala de espera já fora de moda. A princípio sabia apenas que tinha uma entrevista marcada com alguma pessoa importante. Logo percebi que era o Sr. von Goethe quem iria receber-me. Infelizmente eu não estava ali em caráter pessoal, mas como correspondente jornalístico, o que muito me desagradava e não podia compreender por que demônios me tinham metido naquela enrascada. Além disso, estava preocupado com um escorpião que aparecia de vez em quando e tentava subir-me pela perna. (HESSE, 1995, p. 98)

Através dos sonhos do narrador, Goethe destila seus conselhos, abrandando a dramaticidade do ser, a tragicidade que se impõe pela retidão frente ao passar dos anos:


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— Meu amigo, levas o velho Goethe muito a sério. Não se devem tomar as pessoas idosas que já estão mortas demasiadamente a sério, pois seria cometer uma injustiça contra elas. Nós, os imortais, não gostamos de coisas que devem ser levadas a sério, preferimos gracejar. A seriedade, meu jovem é uma conseqüência do tempo; consiste, permito-me confiar-lhe, numa superestimação do tempo. Eu também, em minha época, dei valor demais ao tempo, por isso queria viver cem anos. Mas, na eternidade, como vês, não há tempo; a eternidade não é mais que um momento, cuja duração não vai além de um gracejo. (HESSE, 1995, p. 102)

O diálogo entre Narciso e Harry Haller talvez nos sirva para indicar, então, a tensão acerca do tempo presente e o alívio proporcionado pela memória nostálgica do passado vivenciada pelo narrador de O Lobo da Estepe:

Agora, libertada prodigiosamente por Eros, brotava a fonte das imagens, caudalosa e profunda, e o coração me parava a cada momento, de entusiasmo e tristeza também, ao pensar quão abundante fora a galeria de minha vida, quanto a alma do pobre Lobo da Estepe estava cheia de altas estrelas e eternas constelações. Apareceu a imagem da infância e a mãe, delicada e diáfana, como do alto de uma montanha azul; ressonou bronze e claro o coro das minhas amizades, a começar pelo fabuloso Hermann, o irmão espiritual de Hermínia; exalando aromas extraterrenos, como as flores do lago que se abrem sobre as águas, flutuavam as imagens das mulheres que amei, a quem desejei e exaltei em versos, das quais pouca coisa obtive e das que em vão tentei conquistar. (HESSE, 1995, p. 144-145)

Sendo Eros, a simbolização do amor, a entidade mitológica que enaltece as lembranças de Harry Haller, vale ressaltar que tal circunstância potencializa o seu narcisismo, o que, segundo Freud (1974, p. 90), seria propriamente “o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva”. A recordação maternal, os amores perdidos, os prazeres experimentados na juventude e as alegrias da vida apontam para a efemeridade de idealizações que se rompem pela própria evolução do circuito existencial do ser humano. Ao envolver o ego na trama sorrateira do pulso vital, instaura-se a fragmentação psicológica proporcionada pelas inúmeras projeções do eu, amparadas por Eros no decorrer do tempo:

Esse ego ideal é agora alvo do amor de si mesmo (self-love) desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal. (FREUD, 1974, p. 111)


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Harry Haller depara-se contra sua imagem, mas o foco sobre si mesmo acarreta múltiplas configurações imagéticas, e todas dizem respeito tão somente a ele:

E vi, durante um brevíssimo instante, o Harry que eu conhecia, mas com uma fisionomia inusitada, de bom humor, luminosa e sorridente. Mal o reconheci, porém, desfez-se em pedaços, dele saltando uma segunda figura, uma terceira e logo dez ou vinte, e todo o espelho gigantesco estava cheio de Harrys e de fragmentos de Harrys, infinitos Harrys, cada um dos quais eu olhava e reconhecia em um momento instantâneo como um relâmpago. Alguns daqueles Harrys eram tão velhos quanto eu, outros muito mais, alguns velhíssimos, outros muito jovens, rapazes, meninos, crianças de escola, garotos, molecotes. Harrys de cinqüenta e de vinte anos corriam e saltavam uns atrás dos outros, de trinta e de cinco anos, sérios e divertidos, dignos e cômicos, bem vestidos e esfarrapados e também completamente despidos, e todos eram eu mesmo, e cada qual era visto e reconhecido por mim e logo desaparecia com a velocidade do raio, corriam em todas as direções, para a direita, a esquerda, para o fundo do espelho e até saíam dele. (HESSE, 1995, p. 181)

A resolução, apesar de todo o pesar da personagem, leva-o ao encontro da harmonia consigo mesmo, reconhecer-se sem restrições ou reservas frente ao espelho do tempo vence a resignação de ter caminhado seu percurso quase inteiramente, o confronto humano cede lugar à fantasia, ao sabor das recordações. Tudo o que foi vivido o acompanha como se fosse sua sombra, a perseguir-lhe a cada passo:

Mesmo aqueles medianamente dotados, com o passar de uma centena de anos, atingiriam a maturidade. Examinei Harry demoradamente no espelho: reconhecia-o ainda, continuava ainda a parecer-se um tanto com o Harry de há cinqüenta anos, que num domingo de março havia encontrado Rosa nos penedos e havia tirado diante dela o boné de escolar. E, no entanto, havia envelhecido uma centena de anos após isso, havia cultivado a música e a filosofia, lutara até não poder mais, bebera vinho no Elmo de Aço e discutira sobre Krishna com homens de honesto saber. Amara Erika e Maria, fora amigo de Hermínia, disparara contra automóveis e dormira com a suave chinesinha; encontrara Goethe e Mozart e fizera alguns buracos na rede do tempo e da realidade ilusória, na qual caíra prisioneiro. (HESSE, 1995, p. 211-212)

A tônica de O Lobo da Estepe é a busca de um refúgio existencial no humor enquanto filtro de compreensão do devir da vivência humana em constante (des)construção, a projeção de um espaço imaginário em particular através do qual as divagações orientadas conforme a percepção do tempo de vida da personagem ganham ritmo performático e expressividade cênica no ilusório palco de um delirante teatro mágico, a revisitação onírica do passado pelo qual Harry Haller concede vazão a experiências desafiadoras e frenéticas, ora cobrindo a face de Narciso sob a máscara do lobo, ora descartando esse selvagem artefato de disfarce para que a fisionomia de seu rosto esteja em evidência. Espetáculo para os que vivem e adormecem para continuar a viver. Espetáculo de sonhos só para loucos.


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Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. (Tradução de Sergio Paulo Rouanet) BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução de David Jardim. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. The Penguin Dictionary of Symbols. Tradução de John Buchanan-Brown. Londres, Penguin Books, 1996. FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Tradução de Themira de Oliveira Brito, Paulo Henrique Britto e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1974. GUSDORF, Georges. Condiciones y límites de la autobiografía. Tradução de Ángel G. Loureiro. In.: LOUREIRO, Ángel G. Suplementos Anthropos. La Autobiografía y sus problemas teóricos. Barcelona, n. 29, dez. 1991. HESSE, Hermann. O Lobo da Estepe. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record/Altaya, 1995. RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. SPRINKER, Michael. Ficciones del “yo”: el final de la autobiografía. Tradução de Ana M. Dotras. In.: LOUREIRO, Ángel G. Suplementos Anthropos. La Autobiografía y sus problemas teóricos. Barcelona, n. 29, dez. 1991. TRESIDDER, Jack. Dictionary of Symbols. San Francisco: Chronicle Books, 1998.


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Espacio y Espectáculo: El encuentro con Romeu e Julieta (Grupo Galpão). Marina Simone Dias (PPGAU-UFES)

Este artículo investiga la arquitectura teatral y el espacio escénico contemporáneo brasileño, a través del trabajo y del lenguaje propio creado por el Grupo Galpão, de Minas Gerais. Los conceptos de espacio y lugar, propios de la arquitectura, así como la semiótica y la hermenéutica, son la base para el análisis de la tragedia Romeu e Julieta (Shakespeare, Grupo Galpão) como lugar de encuentro y como experiencia vivida y compartida entre actores y espectadores. Se analiza la obra desde el cruce entre Literatura, Teatro, Arquitectura y Escenografía, observando como la organización, adaptación y transformación del espacio ha generado un espectáculo teatral competente y fluido, que se apropia de los más diversos espacios y arquitecturas, y se acerca a su público. Palabras-clave: Teatro, Arquitectura, Escenografía, Romeu e Julieta, Grupo Galpão. Abstract: This article investigates the theater architecture and contemporary Brazilian stage space, through the work and language created by the Grupo Galpão of Minas Gerais. The concepts of space and place, typical of architecture, semiotics and hermeneutics, are the basis for analyzing Romeu e Julieta (Shakespeare, Grupo Galpão) as a meeting place and as lived and shared experience between actors and spectators. The work is analyzed from the cross between literature, theater, architecture and scenography, which, with its organization, adaptation and transformation of space, has generated a competent and fluid show, which appropriates the most diverse spaces and architectures, and about its audience. Keywords: Theater, Architecture, Scenography, Romeo and Juliet, Grupo Galpão. Prólogo: El espacio del espectáculo Las interrelaciones entre las diversas artes visuales y las humanidades en la posmodernidad en que vivimos –la sociedad del espectáculo1– es un tema que suscita una amplia gama de reflexiones por su relevancia y actualidad. Pese a todas las innovaciones tecnológicas que han revolucionado nuestras vidas, el arte y el teatro siguen vigentes. Para el público contemporáneo, Romeo and Juliet sigue vigente. No sólo porque habla de amor –y de poder, no hay que olvidarlo– sino porque nos invita a cuestionarnos y plantearnos infinitas preguntas: ¿Por qué vemos la obra una y otra vez y deseamos que ese final trágico cambie, que esa carta llegue y que los jóvenes no mueran? ¿Acaso quién no ha sentido amor? ¿Quién no se ha visto atraído por lo prohibido? ¿Quién no ha luchado, o ha querido luchar, hasta las últimas consecuencias por un deseo profundo? ¿Qué enamorado no ha encontrado obstáculos

1

DEBORD, Guy. La sociedad del espectáculo. Barcelona: Anagrama, 1999.


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que volvieron más fuerte ese amor? ¿Por qué el amor ocupa un lugar tan primordial en nuestras vidas? ¿Por qué juramos amarnos hasta que la muerte nos separe? Está claro que el motivo principal que despierta el interés del espectador es no conocer el argumento, y sobre todo, desconocer su final. En el caso de Romeo and Juliet, una de las obras más populares de la historia del teatro y de la literatura, con diversas versiones escénicas y cinematográficas –cuyo final trágico no ha sido alterado nunca–, lo que se busca, a través de la resemantización del texto original y del trabajo intercultural, es revivir la historia de los amantes de Verona. En la pluralidad de códigos que sostiene las redes textuales presentadas por el espectáculo, cada signo creado o explorado por la puesta en escena, con sus múltiples sentidos, es una invitación a la interpretación. Inmerso en un conjunto de estímulos visuales, sonoros y cenestésicos, el espectador recibe una serie de códigos informacionales que influyen en su experiencia estética. Como consecuencia de los estímulos recibidos, provocado a interpretar incluso lo que no fue literalmente expresado, el espectador construye el sentido de la obra, llenando sus lagunas. Así, la percepción ya es una interpretación, una creación –estética, ética, política, psicológica, lingüística– del sentido del texto espectacular. Además, se espera que cada nueva puesta en escena sea atractiva y le reserve al público alguna “sorpresa” ideológica o estética, como es el caso del montaje del Grupo Galpão2. En la praxis teatral contemporánea, el espacio es un elemento que juega importante papel en la recepción del público. Desde las neovanguardias teatrales, el espacio ya no es consecuencia directa del drama y ha abandonado su pasividad de espacio “a priori” o “neutral” a ser rellenado. Hoy es dimensión compositiva de la puesta en escena, que construye relaciones tanto físicas como psicosociales entre espectáculo y espectadores. En este sentido, ya no se trata de estudiar la “caja teatral” como simple objeto arquitectónico, sino de investigar cómo estas dos realidades –sala y escena, espacio del espectador y espacio del espectáculo– se interrelacionan generando un elemento nuevo, que evoluciona de modo continuo en el tiempo y en las sociedades y culturas, en concreto, en el Brasil contemporáneo. Desde la mirada transdisciplinar y posmoderna, se ha planteado un abordaje innovador, que estudia el espacio teatral y la escena como frutos de complejas e intensas relaciones.

2

El Grupo Galpão es una compañía de teatro creada en 1982, con sede en Belo Horizonte, Minas Gerais. Trabajan con directores invitados y desarrollan investigaciones con varios elementos escénicos, con destaque para los lenguajes del circo y la música en vivo tocada por los propios actores, y la “traducción” de varios clásicos al lenguaje brasileño. Montando espectáculos de gran comunicación con el público, tiene su origen relacionado con el teatro popular y callejero. El grupo hace giras no sólo por Brasil, sino también en el extranjero.


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Propuestas como la del Grupo Galpão se libertan de algunas ataduras, abandonan los espacios canónicos y se establecen en nuevas escenas3. La fuerza de este tipo de espectáculo inserta el público en una nueva relación con el texto, el lugar y el sentido de la obra. Así, el Romeu e Julieta del Galpão reclama no sólo la reelaboración de su texto dramático, sino la concepción de un espacio escénico específico. Como consecuencia, el espectáculo no sólo transita, sino se apropia de los más diversos espacios y arquitecturas, y se acerca a su público. Romeu e Julieta fue montado, en principio, exclusivamente para presentaciones de calle4, debido a la formación del grupo, al acceso a un público más amplio, a la comunicación más directa y a las potencialidades dramatúrgicas que los textos espectaculares adquieren en esos espacios. La disposición en teatro de arena, usada en las presentaciones callejeras de Romeu e Julieta –herencia del circo-teatro– multiplica los puntos de vista, acerca actores y público e intenta usurpar, a través de la ficción, el espacio real del espectador, cuestionando la seguridad de un lugar desde el que se observa sin implicarse directamente. En esos espacios y en esa disposición espacial particular, los actores se hallan en una “pista mágica”, con el público a su alrededor. Y éste tiene la posibilidad de desplazarse, cambiar su punto de vista, acercarse y buscar un mayor contacto con los actores y con el espacio escénico, en una relación activa con el espectáculo. No sólo asiste la representación teatral, sino que forma parte de ella. En esas presentaciones en espacios urbanos, a la proximidad física y psicológica se alía la identificación entre área de acción y área de espectadores, reforzada por la imprevisibilidad de algunas escenas y por los diversos juegos de ruptura de la “cuarta pared”: el espectador mantiene durante todo el tiempo la conciencia de estar delante de una representación teatral, una vez que es bastante difícil “olvidar” el sitio relativamente incómodo donde se está sentado, la proximidad de la presencia de los demás a su alrededor y de los cuerpos de los actores delante de sí, además de las miradas de que también es blanco. En la escena de la boda de Romeu y Julieta, por ejemplo, fraile Lourenço los bendice y, literalmente, tira “agua bendita” en la “multitud de pecadores”, que suele asustarse y gritar. En escenas como ésta, la percepción del público no es solamente visual, sino también cenestésica. Al final del espectáculo, los personajes vuelven a ser individuos actores: 3

Que pueden ser espacios no convencionales, alternativos y urbanos. En una nueva disposición espacial y una ambientación muchas veces inusitada, o apropiándose de lo urbano, el espacio se teatraliza. 4 Aunque posteriormente fue llevada en giras a diversos espacios teatrales, incluidos espacios teatrales canónicos. Cabe observar que tras Um Molière imaginário (1997), el Grupo Galpão redirecciona su trayectoria en los montajes siguientes: aunque no perdieron el carácter popular y cómico, entre otras herencias de la calle, son a la vez montajes concebidos para espacios cerrados, donde el diálogo con el público ha tenido que asumir un formalismo más evidente.


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comulgando con los espectadores, delante de éstos, ellos tocan sus instrumentos, cantan, bailan y pasan la gorra.

El Romeu e Julieta del Grupo Galpão El espectáculo Romeu e Julieta del Grupo Galpão fue montado con la dirección de Gabriel Villela y guión de Carlos Antonio (Cacá) Brandão. Creada a partir de intertextualidades, esta lectura de la tragedia aúna lo universal de Shakespeare, con lo local del lenguaje sertanejo5 de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa6. El espectáculo utiliza elementos del barroco mineiro7, de lo popular en su lenguaje escénico, así como el erotismo y el humor como contrapunto a lo trágico de la obra. Es un Romeu e Julieta sensible, local y contemporáneo, concebido como un espectáculo de calle, para ser presentado en diversos espacios, a partir de la propia trayectoria saltimbanqui del Grupo Galpão. Al mismo tiempo que en 1595-1596, Romeo and Juliet creó una nueva consciencia estética e ideológica y reveló a Shakespeare como un dramaturgo popular y universal, el montaje del Grupo Galpão, de 1992, creó su “estilo” y proyectó la compañía a nivel nacional –y poco tiempo después, también internacional. En Romeo and Juliet abundan las oposiciones, los elementos dispares, de tal forma que la tragedia consigue unir los conceptos –aparentemente inconciliables– de libertad y fatalidad. Desde el principio hasta el fin de la obra una serie de oposiciones articulan la tensión dramática de la tragedia: Capuleto/Montesco, amor/odio, vida/muerte, día/noche, boda/funeral, impulsividad/conveniencia, entre otros, espacializados en la escena. Lo trágico de la obra reside en que lo que podría haber sido una comedia con un final feliz y se convierte en lo que realmente es: una tragedia lírica que ha cruzado los siglos y perdura en nuestras vidas. Así, la obra parece sugerir que en la vida hay una compleja interacción entre situaciones contradictorias, opuestas y yuxtapuestas y que todo puede estar dentro de una doble moral. Nada más contemporáneo y posmoderno que Romeo and Juliet. Llama la atención esa mezcla de géneros de la obra: posee elementos de épica, comedia y drama romántico. Además, durante toda la tragedia persiste la ambigüedad y la 5

Sertanejo: típico del interior de las regiones norte y nordeste de Brasil. João Guimarães Rosa (1908-1967) fue médico, escritor y diplomático brasileño, de Minas Gerais, autor de novelas y relatos breves en que el “sertão” es el marco geográfico y cultural de la acción. Fue miembro de la Academia Brasileña de Letras, y su obra más influyente es Grande Sertão: Veredas (1956). 7 Romeu e Julieta se estrenó en el atrio de la iglesia de São Francisco de Assis, en Ouro Preto (MG), en septiembre de 1992. 6


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indeterminación, todo coexistiendo dentro de una estructura ágil, con un ritmo intenso y vertiginoso, que va en un crescendo de tensión y nos mantiene “pegados a la butaca”, hasta llegar agotados al final, con un “nudo en la garganta”. Como en un guión de cine de lo más actual, tres tramas distintas –el enamoramiento de los jóvenes, la pelea callejera y el casamiento concertado por Capuleto– avanzan por separado para rápidamente cruzarse y determinar el destino de los protagonistas. Así, el uso de una elaboradísima retórica, al lado del lenguaje obsceno popular y del tono profético-oracular, característico de la tragedia, confieren a la obra una plasticidad estilística que dificulta encerrarla en conceptos tradicionales. En el montaje, se recupera el valor de la palabra, así como el rol de lo plástico y visual. A partir de la creación conjunta y prácticamente simultánea del texto dramático (guión) y de la escena, ocurre una lectura simétrica del espacio dramático en la materialización de los espacios escénico y teatral. En Romeu e Julieta, la utilización del espacio urbano –plazas y parques– como espacio teatral se origina y se legitima en las propias referencias espaciales presentes en el texto dramático. En una tragedia en la que se cuestiona el orden social, convirtiéndose en el leitmotiv de los conflictos que ocurren en las calles y plazas de Verona –la riña inicial, los asesinatos de Mercucio y Teobaldo, y el destierro de Romeu– el espacio público, con su amplitud y diversidad, es el propio espacio escénicoteatral que, abarcando actores y público, establece nuevas interrelaciones entre ellos y estructura el argumento de la obra. Desde la concepción espacial, la furgoneta fucsia de la compañía fue explorada al mismo tiempo como espacio y elemento escénico central, convirtiéndose en una versión contemporánea de las antiguas carrozas de las troupes ambulantes y recuperando el carácter de celebración de las representaciones en espacios públicos8. Además de colaborar para la creación de su atmósfera específica –la inestabilidad del orden social y el conflicto público– aun proporciona al espectáculo una lectura popular y contemporánea, apenas preocupada con aspectos de verosimilitud, y más atenta a la estética y al sentido presentados al público. El tiempo efímero y veloz de la acción –los cuatro días que deciden el destino de los amantes–, se desenvuelve en un espacio reducido. La furgoneta, con el picadero que la circunda, representa todos los espacios de Verona –calles, plaza, palazzo de los Capuleto, celda del fraile Lourenço– y se resemantiza a cada escena. Sea en espacios públicos, sea en espacios canónicos de representación teatral, la imprevisibilidad del uso y las inversiones espaciales 8

BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. Grupo Galpão – 15 anos de risco e rito. Belo Horizonte: O grupo, 1999. p.27-30.


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posibilitadas por la manipulación del espacio de la furgoneta enriquecen la experiencia estética y la percepción espacial del público, como descrito a continuación. Esa escena flexible se asemeja al espacio desnudo del teatro isabelino en la medida que ambos presentan formas abiertas que moldean el espacio dramático a partir del espectador. El montaje, concebido en torno a la utilización de la vieja furgoneta del grupo como elemento escénico principal, elabora los múltiples significados del automóvil. La construcción y modificación del espacio escénico del montaje lo desplaza de su sentido original y produce extrañamiento en el público, pues la propuesta subvierte su propio valor semántico, normalmente asociado a la calle y al movimiento. Subversión todavía mayor ocurre en las presentaciones sobre escena italiana (o incluso isabelina9), pues es aún más inusitada la visión de un coche dentro de un teatro y sobre la escena. Al mismo tiempo, en esta configuración, contra el telón de fondo azulado, la furgoneta se teatraliza, pues su volumen tridimensional cede lugar a su valor estético como imagen bidimensional. Sin embargo, antes de buscar la representación mimética del espacio dramático, la furgoneta ofrece un conjunto de planos, pasarelas y escaleras que sirven a la evolución de los actores. Una plataforma colocada sobre la capota del vehículo representa el lugar de encuentro de los protagonistas, o aun las calles de la ciudad, mientras que su interior corresponde a la habitación de Julieta. En los laterales, escaleras conducen a la plataforma o a una especie de torre en cuyo alto se instalan el enorme parasol colorido y el Narrador, y que aun sirve de escondrijo al encuentro de los jóvenes que, entonces, permanecen alzados en el aire, a la misma altura de los elementos cósmicos.

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Utilizando los más diversos espacios teatrales, en julio de 2000, el Grupo Galpão presentó su Romeu e Julieta (en portugués) en la escena isabelina del Globe Theatre, en Londres, Inglaterra.


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Figura 1: Espacio y elemento escénico. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], s/d.

Su paradójica neutralidad posibilita, aun, flexibilidad en la ambientación y velocidad en el cambio de escenas, como por ejemplo en el paso de las calles de Verona (sobre el vehículo o en el suelo) o de la habitación de Julieta (dentro o sobre la capota) a la celda del fraile Lourenço (en el suelo). De este modo, las escenas se encadenan sin que sea necesario nada más que una simple indicación textual o escénica. En contrapartida, la dramaturgia propuesta permite también la utilización de la furgoneta en la representación simultánea de dos escenas: cuando la nodriza va en búsqueda de Romeu, por ejemplo, Julieta espera su regreso sentada en un taburete sobre el maletero abierto del vehículo; en la plaza de Verona, Romeu y la Nodriza se encuentran. La proximidad espacial permitiría que Julieta viera tal cita; sin embargo, se trata de la representación simultánea de diferentes espacios dramáticos en un único espacio escénico. Es interesante notar que el uso del vehículo contraría su valor semántico en escenas como la en que la Nodriza lo “conduce”, pues la furgoneta permanece inmóvil. Su único movimiento ocurre en la escena de la falsa muerte de Julieta: inesperadamente, sin ningún conductor visible, el coche se desplaza y hace hueco para que el público pueda ver Julieta en su sepulcro. Sobre un pórtico de madera formado por dos escaleras laterales, ella yace sacralizada en su vestido blanco, que contrasta con el horizonte del paisaje urbano, o contra el fondo azulado10 de la madrugada del jueves. En la unión con el horizonte y el infinito, se

10

Fondos escénicos de las presentaciones en espacios públicos y en espacios teatrales convencionales, respectivamente.


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percibe la desolación de su historia de amor. En esta misma escena, ocurre una de las diversas inversiones espaciales propuestas por la puesta en escena: Julieta, al fondo del área escénica, yace sobre el pórtico, a dos metros de altura del suelo, mientras sus padres la velan, sentados, debajo del mismo pórtico. Durante su funeral, cantando y llorando, con sus paraguas abiertos, todos caminan en dirección al público, mirando la cruz de Julieta, clavada en la lata de aceite decorada. La cruz asume, en este momento, el significado de la muerte y adquiere propio

mayor cuerpo

de

importancia

que

el

Julieta.

Figura 2: Funeral de Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

En los juegos de oposiciones de Romeo y Julieta, Shakespeare crea un juego dialéctico, elevando los lectores/espectadores11 a lo sagrado y a lo metafísico y, enseguida, tirándolos de vuelta a lo psicológico, a lo humano, al suelo. En la transposición intersemiótica, Villela/Galpão integran elementos del cielo y de la tierra y crean el “circocéu de Romeulua e Estrelajulia”. Estos elementos cósmicos capaces de influir en las acciones humanas y conducir el destino de los protagonistas, al mismo tiempo que signos del torbellino político y social, son leídos por el público a través de la materialización semiótica, que revela el discurso ideológico de la obra. Mientras la pareja de amantes dialoga con el cosmos a través de una “inconstante” luna de papel de plata, colgada de una caña de bambú, que se acerca y se aleja con el llamado de los protagonistas, la dimensión de lo real está presente en

Aunque “leemos” obras de Shakespeare, él nunca escribió una sola obra dramática como tal, sino que escribió guiones para sus puestas en escena. 11


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el círculo, trazado en el suelo con harina de trigo, que delimita el espacio escénico12. Las flores de plástico –en latas de aceite decoradas y con hojas naturales de helecho– constituyen el elemento escénico que integra visualmente la escena. En los ramos de flores dispuestos sobre la furgoneta y en el contorno del área escénica, rosas artificiales blancas y rojas simbolizan a la vez pureza y pasión. Juntas, como aparecen en escena, denotan la muerte13. Así, el espectáculo materializa la relación dialéctica shakespeariana entre el cosmos y el mundo físico, que alcanza su síntesis en el trágico destino de los héroes.

Figura 3: Luna de Romeu y Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

Esta relación entre lo sublime y lo terrenal se hace visible también a través del movimiento de los actores en el espacio escénico. El contraste entre horizontalidad y verticalidad se revela en la manera cómo se utiliza la furgoneta. Los actores suben, bajan y se desplazan entre las tres escenas/tablados: el capó, la capota y el maletero abierto. Ellos actúan sobre, dentro y delante del vehículo, y también a su alrededor. Las escaleras usadas en el espacio escénico, además de proporcionar dinamicidad, dan la dimensión vertical, así como los zancos, las cañas de bambúes con la luna que componen la intimidad de los protagonistas, y aun el grande y viejo parasol colorido. Éste, además de referenciar el circo y lo ambulante, corona

12

el

mundo

narrado

por

Shakespeare14.

En presentaciones de calle, la escena, el lugar de la ficción, es el círculo que busca referencias en el lenguaje del circoteatro y conjuga circo y arena. BRANDÃO, Carlos Antonio Leite. Grupo Galpão: Diário de montagem. Romeu e Julieta. v.1. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p.30. 13 Cf. COOPER, J. C. Diccionario de símbolos. Barcelona: Gustavo Gilli, 2000. p.81. 14 BRANDÃO, Op. cit., 1999, p.98.


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Figura 4: Escalera de la fiesta de los Capuleto. Foto: Guto Muniz [Grupo Galp達o], 2002.

Figura 5: Escalera del encuentro de Romeu-Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galp達o], 2002.

Figura 6: Escalera de Romeu y fraile Louren巽o. Foto: Guto Muniz [Grupo Galp達o], 2002.


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Respecto a la composición del espacio escénico, cabe observar que algunos signos plásticos adquieren tal fuerza que llegan a prescindir de referente textual. En el texto original de Shakespeare, en el prólogo al Acto I, el Coro aclara: CORO – [...] Dessas duas familias que o odio afasta Implacavel, nasceu um par de amantes Cuja má sorte, tragica e nefasta, Levou a paz ás casas litigantes. Desse odio de familia e seus extremos, E o infausto amor, que ainda ao morrer, mais forte Do que o odio, sepultou o odio na morte [...]1

En cambio, en el montaje del Grupo Galpão, el omnipresente Narrador no revela de entrada el desenlace de la tragedia. Tampoco es necesario: la propia escena y el espacio muestran lo que no está dicho. Desde el inicio y a lo largo de toda la obra, el público ve el destino de la pareja de amantes trazado a tiza en el suelo: la silueta de los protagonistas, a moda de las películas policíacas estadounidenses. La necesidad de condensar la narrativa shakespeariana en una nueva estructura temporal2 también lleva al prenuncio del fatal desenlace: éste es acentuado por cruces de madera clavadas en latas de aceite decoradas, delante de cada silueta. Los epitafios pintados en las cruces tampoco dejan dudas cuanto al destino de los protagonistas: “Romeu Montecchio 1596-2002” y “Julieta Capuleto 15962002”, cuyas fechas hacen referencia simultáneamente a la época de producción de la obra de Shakespeare y a la presentación del Grupo Galpão3. Como en la concepción narrativa de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, el fin ya está en el principio. Las extremidades de la espiral propuesta por el guión de Brandão se funden en la conciliación del conflicto. Romeu y Julieta, sobre los contornos de sus cuerpos y delante de sus cruces, mueren cogidos de las manos.

1

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Rio de Janeiro: Ed. Ministério da Educação e Saúde, 1940. Prólogo, p.19. La obra dramática original tiene aproximadamente cuatro horas de representación, mientras que el montaje del Grupo Galpão tiene poco más de una hora de duración. 3 Estos datos se refieren a las presentaciones de noviembre de 2002, en la Praça do Papa, en Belo Horizonte, Minas Gerais. 2


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Figura 7: Muerte de Romeu y Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

En otros momentos de la representación, como en la “escena del balcón”, es posible notar que lo efímero, la limitación del espacio y las dificultades impuestas por el ambiente condicionan la lectura del espacio escénico y su consecuente espaciamiento. La ciudad, el jardín y los muros son todos ellos hostiles a la unión de la pareja. Sin embargo, a pesar de las adversidades, el amor prospera, se eleva a las estrellas, disipa el horror y desafía todo que desdeña de su constancia. Romeu y Julieta están ciertos en desafiar el tiempo y las circunstancias: el mundo está equivocado. En este primer encuentro de los jóvenes a solas, las indicaciones escénicas del texto de Shakespeare definen el lugar de la acción dramática tan sólo como: “el pomar de Capuleto”, en ningún momento se menciona la palabra “balcón”. Sin embargo, la “escena del balcón” es hoy en día el principal icono escénico de los montajes de Romeo and Julieta. Verona. O pomar de Capuleto. Romeu aparece. ROMEO – Ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido. Julieta aparece á janella. Mas, silencio! Que luz será aquella Que brilla na moldura da janella? Ó janella, ó janella! és o nascente E Julieta o sol resplandescente!4

De hecho, en oposición a la ausencia de la palabra “balcón”, “ventana” es expresa cuatro veces en Shakespeare. Por lo tanto, a partir de la “fidelidad” al propio texto dramático, el montaje del Galpão explora la ventana de la furgoneta como signo semiótico. Jugando con 4

SHAKESPEARE, Op. Cit., II, ii, p.72.


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los signos textuales, surgen inversiones espaciales: Romeu es quien está físicamente en un plano superior. Desde la capota, él se declara a Julieta, que está abajo, en la ventana del vehículo. Ésta, sin embargo, al verse sorprendida en su secreto, se asusta: ROMEO – [...] Não me chames Romeu... mas sim o Amor! JULIETA – Uuuiii!!!5 (cierra rápidamente su ventana) Romeu pica el cristal, llamándola: “Abre!”. Julieta abre pocos centímetros de su ventana: JULIETA - Como pudeste vir até aqui? Os muros do pomar são altos e difíceis de escalar!6

Figura 8: Escena del "balcón". Foto de la autora, 2002.

En este momento, a través de los signos verbales, el público se sitúa en el pomar de los Capuleto. La imagen de “muros altos y difíciles de escalar” se traduce en términos de verticalización del espacio escénico. En lo alto de la escalera, sobre el capó del coche, los jóvenes se encuentran e intercambian sus promesas de amor: equilibrándose sobre zancos, Romeu le toca a Julieta –le “pide el pie” a Julieta– y los jóvenes se besan por primera vez.

5 6

BRANDÃO, Op. Cit., 1992, X, A cena do balcão. Ibid. X, A cena do balcão (grifo nuestro)


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Figura 9: Romeu le pide el pie a Julieta. Foto: Guto Muniz [Grupo Galpão], 2002.

Rehusando lecturas clásicas de la “escena del balcón”, la puesta en escena del Galpão saca el máximo partido de la furgoneta como elemento estructurante, sin imponer al espectador una imagen estereotipada de la escena. Al ofrecer una nueva comprensión de la concepción espacial –de hecho, poco definida por Shakespeare– la puesta en escena subvierte sensiblemente las representaciones canónicas de la obra y rescata para el público una visión renovada y, paradójicamente, fiel del texto original.

Figura 10: Boda de Romeu y Julieta. Foto de la autora, 2002.

Epílogo


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Disertar acerca de la obra más representada y versionada de Shakespeare puede ser un ejercicio interminable. Romeo and Juliet lleva siglos enseñando a generaciones el amor más puro: que sobrevive a las muertes de los amantes y donde la vida se reconcilia en la muerte. Como si la vida imitara el arte, el Grupo Galpão quiso crear y cautivar a un público propio, acercando la historia a su realidad local, superando tragedias personales7 y revelando su amor a la vida y al teatro. Su originalidad consiste en montar la obra desde otro lugar de enunciación e inserción cultural, a partir de nuevas referencias, nueva estética e ideología, y para otro público. Cuatro siglos después de Shakespeare, el Galpão presenta una lectura estética propia que reelabora el contexto isabelino, así como la cultura de Minas Gerais, con sus complejidades e idiosincrasias, y que logra reaproximar la obra original de los espectadores contemporáneos. Se observa aún que el espacio puede ser hoy un elemento escénico de gran potencial: mediador entre los diversos sistemas semióticos, entre las escenas del espectáculo y entre espectáculo y espectadores. El espacio escénico ya no es una mera tarima o decorado, sino una entidad que cuestiona modelos canónicos y estereotipados, una propuesta en la que se puede leer una poética, una estética y una crítica de la representación. Finalizada la representación, el público deja el espacio tras haber vivido un momento único e irrepetible, que lo instiga a una nueva comprensión de su propio lugar sociocultural y de su relación con el mundo. También el texto indaga del espectador su propia vida, a partir de su experiencia individual, personal. Después de Romeo and Juliet, el amor ya no puede ser el mismo. Merece la pena haber vivido y sufrido: el amor nos hace inmortales. Es la catarsis shakespeariana y posmoderna.

Figura 11: Actores pasan el sombrero. Foto de la autora, 2002.

7

La actriz que representaba el papel de Julieta, Wanda Fernandes, esposa del actor que hacía Romeu, Eduardo Moreira, murió en un accidente automovilístico con la furgoneta, en abril de 1994.


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Orfeu da Conceição: tragédia ou melodrama? A dramaturgia rapsoda de Vinícius de Moraes. Glauco Cunha Cazé (PPGL-UFPE)

Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre o texto teatral Orfeu da Conceição (1956), de Vinícius de Moraes; analisando as relações entre os gêneros tragédia e melodrama, bem como as representações do mito na modernidade e a ideia de um teatro rapsodo intuitivamente praticado pelo dramaturgo carioca do século XX. Palavras-chave: Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, Dramaturgia, Trágico e Tragédia. Abstract: This article presents a study on Vinicius de Moraes theatrical text Orfeu da Conceição (1956), and analyzes the gender relations beetween tragedy and melodrama, as well as the representations of the myth in the modernity and the idea of a rhapsode theater intuitively practiced by this 20th century carioca playwright. Keywords: Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição, Drama, Tragedy and Tragic. 1. Orfeu da Conceição: contatos com o outrora.

Poderia um homem escrever a palavra “tragédia” sobre uma página em branco sem escutar, atrás de si, a imensa presença da Oréstia, de Édipo, de Hamlet e de Rei Lear?" George Steiner

De uma fortuna crítica ainda aquém de suas potencialidades, a dramaturgia de Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes (1913-1980) reclama, por gravidade, por excelência, a presença imperiosa deste poeta do amor maior quando na feitura majoritária de um teatro em versos; não obstante o contato com o gênero dramático ter se dado antes mesmo da publicação de seu primeiro livro de poesias, O Caminho para a Distância, de 1933, quando o autor escreve, ainda em 1927, o texto Os Três Amores, uma imitação de A Ceia dos Cardeais (1902), de Júlio Dantas. O alargamento de sua pulsão teatral se faz, em seguida, com os textos, Cordélia e o Peregrino (1936), Orfeu da Conceição (1956), As Feras: chacina em Barros Filho (1961), Procura-se uma Rosa (1962), Pobre Menina Rica (1963/65)1, Ópera do Nordeste (adaptação 1

Comédia musical incompleta feita em parceria com Carlos Lyra.


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musical de Dom Quixote) tragédia musical em dois atos2, com canções do próprio Vinícius e de Baden Powell, além de outros projetos em dramaturgia que por motivos diversos foram interrompidos, a exemplo de Gilda e Ela, Uma Rosa nas Trevas (tragédia), Três Mulheres, História de Maggy, O Gigante sentado no penico (tragicomédia), Blim ou as aventuras de um playboy marciano na terra, A Perna Ortopédica, As Moreninhas (adaptação no plural do célebre romance de Joaquim Manuel de Macedo), Ganga-Zumba (tragédia lírica) e uma adaptação de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Seu exercício teatral de maior sucesso é, notadamente, Orfeu da Conceição (1956), premiado no Concurso de Teatro do IV centenário da cidade de São Paulo. Uma das marcas mais contundentes de Vinícius de Moraes, seja como dramaturgo, poeta ou músico, é a construção equânime de uma justaposição tradição/modernidade que o caracteriza como um autor filiado a conquistas modernas, ainda que de gestos largos para com o passado. Entretanto, este consórcio temporal intencionalmente equilibrado, percebido no cerne de grande parte da produção cultural de Vinícius, perde, em alguns textos, o nivelamento característico e passa a dialogar com mais entusiasmo, ora com a tradição, ora com a modernidade. Esta desarmonia é notada, de forma particular, em sua dramaturgia, de maneira especial nos textos classificados como tragédia, a exemplo de Orfeu da Conceição, onde o autor realiza uma imersão quase que absoluta na tragédia grega; ou como no texto As Feras: chacina em Barros Filho, de 1961, em que há um diálogo mais afinco com a modernidade que é, de fato, contemporânea ao dramaturgo. Vinícius de Moraes escreveu ainda, adjetivando como tragédia, os textos Uma Rosa nas Trevas, História de Maggy e Ganga-Zumba, além das já citadas As Feras: chacina em Barros Filho (tragédia pau-de-arara) e Orfeu da Conceição (tragédia carioca), corpus deste estudo. Considerando a impossibilidade de reprodução dos signos de uma tragédia ática em pleno século XX, qual o entendimento de tragédia ou mesmo de trágico, para um escritor inserido na modernidade como Vinícius de Moraes que insiste, como no caso de Orfeu de Conceição, em plasmar a aura da tragédia grega a despeito de todo um desconchave contextual? A bem da verdade, não há por parte do dramaturgo Vinícius de Moraes a obrigação de enquadrar seu texto teatral nos moldes da tragédia grega, tão somente por ter atribuído a sua peça o subtítulo de tragédia. Nem há por parte desta análise ao texto teatral Orfeu da Conceição um forçoso policiamento no sentido de tornar esta filiação trágica obrigatória, à

2

Original datilografado e incompleto.


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revelia do dramaturgo. Outros autores do teatro moderno brasileiro usaram a expressão tragédia para alcunhar suas iniciativas teatrais, a exemplo de Nelson Rodrigues, que trabalhou em demasia a expressão tragédias cariocas sem que, com isso, tenha intentado correspondência com Eurípedes, ou aguçado questionamentos que tenham a pretensão de validar, por aproximação ou distanciamento ao modelo clássico de tragédia, sua dramaturgia3. Entretanto, o que se apresenta como um dos pontos mais significativos nesta análise ao texto de Vinícius de Moraes, é o fato de, diferente de seus pares que, as mais das vezes, lançaram mão do termo tragédias cariocas no sentido de mau fado, desgraça, infortúnio, não reavivando necessariamente laços temporais entre o texto contemporâneo e o modelo grego do passado; o poeta da paixão, em esforço inverso, constrói seu Orfeu da Conceição se servindo de um protagonista negro de modelo grego, de um coro de viés clássico, de nomes mitológicos que caracterizam suas personagens, de um enredo lendário, de um modelo estrutural clássico no uso majoritário da poesia, além de fazer usufruto da aura heroica e mítica de uma personagem historicamente cultuada: o próprio Orfeu. Ou seja, escreve seu texto convocando o modelo trágico do passado ao proscênio de suas intenções dramatúrgicas; o que faz com que Orfeu da Conceição seja visto, a princípio, como uma tentativa de reedição do modelo grego de tragédia, ainda que esta tentativa não seja, efetivamente, corroborada pelo autor. O passado, por certo, é uma junção de discursos que não podem ser vistos como acabados. O passado contamina o presente e ajuda a projetar o futuro. Mas o passado não pode ser, segundo George Steiner, “uma luva na qual o modernismo pode deslizar quando quer” (2006, p.187). De acordo com Steiner:

O drama literário moderno voltou-se para a mitologia antiga em uma escala massiva. Cada registro do teatro trágico contemporâneo se lê como uma cartilha de mitos gregos: Antígona, Medeia, Electra, Édipo, Orfeu... [...] A tentativa de deslizar em máscaras antigas, implica na consciência de que nenhuma mitologia criada à época do empirismo racional se equipara ao antigo poder trágico ou em forma teatral (2006, p.184).

Por ser, a tragédia grega, uma referência de mobilização, de concentração da consciência coletiva, o retorno a essa modalidade teatral como uma possível tentativa de sensibilizar a turba de uma modernidade inquieta e fracionada, pode justificar, em parte, esse 3

É bem verdade que em algumas obras do dramaturgo Nelson Rodrigues, a exemplo de Senhora dos Afogados, as marcas de contato com o modelo de tragédia grega se fazem mais evidentes e intencionais.


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interesse por sucessivas reedições desse modelo de tragédia. A iniciativa de plasmar a essência trágica de um passado de inquestionável força dramática em Orfeu da Conceição reforça o que Steiner aponta como entendimento, no caso, por parte do dramaturgo brasileiro (e de outros que assim o fizeram), da funcionalidade dessa força dramática do ontem. O reaproveitamento do antigo exemplo trágico, também consoante Steiner, não deve ser soerguido de qualquer maneira, sob pena de configurar-se tão somente patética a iniciativa. O próprio gênero literário não deve ser visto como algo terminantemente atemporal, como algo disponível à adaptação a todo e qualquer tempo. A tragédia sinaliza um momento espiritual do homem grego e responde, tanto temática quanto formalmente, ao horizonte de expectativas de uma dada época e de uma dada cultura que devem ser consideradas. O desejo pela representação de uma tragédia, em Vinícius, não é suficiente para fazer valer a intenção de reeditar com sucesso um modelo de gênero datado e marcado por inúmeras particularidades. Esta impossibilidade de representação ipsis litteris da tragédia grega se dá, entre outras coisas, pela presença do patético (como adverte Steiner) na ressignificação de um mito que, em Orfeu da Conceição, apresenta-se transfigurado e incompleto.

1.1. Da incompletude do ser... Mito! “No novo quadro do jogo trágico, portanto, o herói deixou de ser um modelo; tornou-se para si mesmo e para os outros, um problema.” Jean-Pierre Vernant

Mito, alma da tragédia. Construto dramático. Princípio e finalidade. Epigênese de um todo destinado a proporcionar, no seio da tragédia, os princípios catárticos do terror e da piedade, segundo reflexões de Aristóteles4. Os temas trágicos provêm dos mitos. As considerações sobre Orfeu da Conceição e sua eventual ineficiência ou incapacidade de se fazer tragédia stricto sensu começam pela incompletude de um herói, de revestimento mítico, incapaz de reivindicar-se como alma de uma proposta trágica de verniz grego, com a qual Vinícius de Moraes busca contato inicial para a construção de seu texto. A amistosidade que caracteriza a personalidade do Orfeu carioca ao longo do texto (culminando numa demência comportamental), não contribui para uma atitude mais 4

Em A Poética, provavelmente registrada entre os anos 335 a.C. e 323 a.C.


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imperiosa, latitudinal, responsável como necessário gatilho, para o despertar trágico defendido por Aristóteles. Se o amparo mítico foi de todo fundamental para reconstruir a história de amor malfadada entre o músico da Trácia e sua bela ninfa Eurídice, é de se esperar, pelo encaminhamento temático costurado pelo dramaturgo a partir da escolha do título de sua peça, que o Orfeu brasileiro, revestido de tragicidade como o convém, fosse, em suas peripécias no ambiente da favela, seguir uma combinação de protocolos que tivesse início com uma indispensável ao todo - falha trágica5. O que acaba não acontecendo, ou acontecendo de maneira diminutíssima, parcial, distante da força preponderante que uma consubstancial falha trágica, precursora de um sinistro, propõe estabelecer.

(Riem gostosamente. Depois novamente se abraçam, mas desta vez com infinita ternura.) ORFEU (beijando a namorada) O meu amor tão bom... Meu bem... Meu bem... EURÍDICE Diz que mulher tem alma de gato. Tem. (Riem mais, abraçados. Depois Eurídice desenlaça-se.) ORFEU Já, neguinha? EURíDICE É preciso, meu amor... Preciso dar uma chegada em casa Ver mamãe. ORFEU Vê se volta, por favor... Tenho um sambinha novo pra mostrar E quem sabe se até você voltar Não sai outro... (MORAES, 1995, p.67)

Durante todo o primeiro ato da peça, as cenas de encontro e despedida entre o casal da história, a exemplo do que é visto no excerto acima, sugerem soluções frágeis de antecipação ao desastre, na narrativa. As idas e vindas da personagem Eurídice (preciso dar uma chegada em casa) é que estabelecem os momentos imbricados de amor e morte, presentes ao longo do texto. Tirante os momentos de comunhão entre o par, percebidos nas rubricas em destaque (sorrisos e abraços), um Orfeu estático (Vê se volta, por favor...), apesar do ato contínuo de compor e tocar seu violão, é o que se vê, em mais de uma cena, na relação do mítico casal de

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Hamartía: erro cometido pelo personagem de uma tragédia que resulta na peripécia. O termo aparece na Poética de Aristóteles, por isso também é conhecida pelos nomes de falha aristotélica, erro trágico ou falha trágica.


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Orfeu da Conceição. Preocupação consistente, por parte dos autores trágicos do passado, era com o encadeamento dos acontecimentos, das personagens e das suas motivações. Além do deslocamento do herói que precipitava a nevrálgica ação trágica. Preocupação, aparentemente menos presente no texto do escritor brasileiro. Em outro excerto, semelhante em muito ao acima mencionado, tem-se o momento fatal entre a despedida dos amantes, depois da primeira e única noite de amor, e a investida da personagem Aristeu contra a então desprotegida Eurídice. Trata-se do momento primordial à separação amorosa do casal protagonista. A partir de então tem-se o sofrimento de Orfeu a clamar por sua amada morta. George Steiner faz lembrar que “o herói trágico é responsável. Sua queda está relacionada à presença da enfermidade moral ou do vício ativo dentro de si” (2006, p.127). Entretanto, esse desvio de conduta que na tragédia responsabiliza o herói pela precipitação dos acontecimentos catastróficos, não se faz presente na personalidade do Orfeu da Conceição. A hybris (desequilíbrio interno do caráter do herói), definição grega para tudo o que passa da medida, descomedimento, confiança excessiva, orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência, que com frequência termina sendo punida, acaba não sendo localizada nas atitudes do protagonista de Orfeu da Conceição. O homem constantemente tentado a manifestar sua hybris, que por sua vez engendra a hamartia6, tem nas suas próprias mãos e ações a mola para a efetivação do destino. Todavia, a única “falha” de colaboração trágica duvidosa cometida pela personagem Orfeu, como se percebe no texto, resume-se ao fato de o herói não ter acompanhado sua amada até em casa, deixando-a à mercê de uma noite obscura e cheia de mistérios, como acentuam as didascálias, que enfatizam sobremaneira a presença da morte, personagem da Dama Negra. Albin Lesky, em A Tragédia Grega, defende que

a autêntica tragédia está sempre ligada a um decurso de acontecimentos de intenso dinamismo. A simples descrição de um estado de miséria, necessidade e abjeção pode comover-nos profundamente e atingir nossa consciência com muito apelo, mas o trágico, ainda assim, não tem lugar aqui. (2006, p. 36)

O dramaturgo brasileiro acaba por apequenar a importância de uma hamartia no comportamento de seu protagonista (fundamental para a estrutura trágica de concepção 6

Entenda-se a hybris como pré-disposição inicial ao erro: postura patológica que favorece a interferência divina, como se verá mais adiante, na ação destrutiva realizada pelo homem. Enquanto que a hamartia caracteriza-se pela própria ação efetiva. O erro sendo executado.


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grega), quando disponibiliza por meio de um texto econômico, uma atitude menos nobre por parte de um herói enamorado. A morte de Eurídice, no rastro do tema original como quer o dramaturgo brasileiro, é fundamental para o desenvolvimento da história. A companhia de Orfeu, levando-a em casa, por certo não significaria a garantia de um crime abortado, porque necessário ao enredo. Mas contribuiria desta feita (num eventual confronto com o algoz) para uma movimentação cênica que diminuísse o comportamento opaco, pouco atencioso desse protagonista que, agindo como agiu (ou não agiu), torna-se o único responsável pelo surgimento de uma tristeza que o dominará a partir de então, sem que esse mesmo protagonista tenha contribuído de maneira direta, grandiosa, verdadeiramente trágica, em sentido grego, para o martírio estabelecido 7. Segundo Albin Lesky, “o sujeito do ato trágico [...] deve ter alçado à sua consciência tudo isso e sofrer tudo conscientemente. Onde uma vítima sem vontade é conduzida surda e muda ao matadouro não há impacto trágico.” (2006 p.32) O Orfeu da Conceição, inadvertidamente, é transportado da alegria à dor sem que uma ação suscite terror e piedade, não obstante as cenas de dores, ferimentos e mortes admitirem filiação aos temas da tragédia. Ainda em sua Poética, amparo fundamental a esta análise, Aristóteles adverte:

Como a estrutura da tragédia mais bela tem de ser complexa e não simples e a ela deve consistir na imitação de fatos inspiradores de temor e pena – característica própria de tal imitação – em primeiro lugar é claro que não cabe mostrar homens honestos passando de felizes a infortunados (isso não inspira temor nem pena, senão indignação), [...] assim o resultado não será nem pena, nem terror. (2005, p. 31 e 32)

O Orfeu de Vinícius de Moraes é submetido ao sofrimento por omissão, não por atitudes. Sua “falha” é bem mais por uma postura passiva que por desvio de caráter. A personagem trágica está em erro, mesmo que não tenha consciência. O erro então seria a falta de consciência em deixar a mulher amada sozinha, na madrugada? Na despedida do casal, logo após a experiência amorosa, instaura-se, em verdade, o patético, não o trágico. Segundo Aristóteles, “o patético consiste numa ação que produz destruição ou sofrimento, como mortes em cena, dores cruciantes, ferimentos e ocorrências desse gênero.” (2005, p.31) O patético serve para suscitar e manter o pathos8 da vítima que ora se lamenta. Mas é preciso 7

Se bem que um confronto direto com o algoz de Eurídice somente afastaria, ainda mais, a ideia de ação tragédia em sentido grego, uma vez que os embates realizados sob o signo da tragédia grega são realizados no interior da própria personagem: uma lutada da personagem com ela mesma. 8 Pathos: Palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento e assujeitamento.


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que, ainda de acordo com as reflexões de Aristóteles, para o funcional desempenho da tragédia, a queda do herói trágico seja exemplar para que se viabilize a peripécia9, que não deve ser casual, e sim, fruto de alguma desmedida do herói. Albin Lesky reforça a hipótese de uma necessária queda exemplar quando diz, “assim, o homem que não naufraga em uma falha moral vai a pique porque, dentro dos limites de sua natureza humana, não está à altura de determinadas tarefas e situações.” (2006, p.30) Essas lacunas do herói mítico carioca em relação ao conscrito modelo do passado e as prescrições da tragédia clássica deixam evidentes fissuras na proposta dramatúrgica do escritor, considerando seu desejo de realocar a tradição (com quem insiste em manter um diálogo mais profícuo) em plena modernidade. Portanto, um hiato separa os mitos que o dramaturgo quer, então, próximos na essência de seu texto. O que para Jean-Claude Carrière, em seu ensaio sobre os mitos fundadores e as criações literárias, é extremamente natural, uma vez que essa incompatibilidade se dá porque “a maioria desses mitos novos é de origem literária, isto é, são personagens que têm um autor. Isso não é frequente no mundo antigo, onde os mitos ‘se manifestam’ na maioria das vezes antes dos homens.” (CARRIÈRE apud BRICOUT, 2003, p.27) Fica claro que a observação de Carrière diz respeito, de forma mais específica, aos novos mitos, e não necessariamente aos mitos reeditados, ligados por uma mesma placenta ao passado, como no caso do Orfeu carioca. Mas a carência de independência existencial destes mitos de criações literárias, observada por Carrière, parece caracterizar bem a principal personagem do texto teatral em estudo.

1.2 Tragédia ou Melodrama? Vinícius Rapsodo O propósito deste estudo, além de revelar o contato mais inclinado de um Vinícius dramaturgo com a tradição e de negritar a impossibilidade de uma reedição do modelo de tragédia grega no século XX; é de revelar associações possíveis com gêneros distintos para deixar ver a malha cheia de retalhos em que está exposto o texto Orfeu da Conceição. Tragédia ou Melodrama? A palavra melodrama, com efeito, traz ao pensamento a noção de um drama exagerado e lacrimejante. Segundo Jean-Marie Thomasseau, “a palavra nasceu na Itália, no século XVII: melodrama designava então um drama inteiramente cantado.” (2012, p.16) O que já se apresenta como um ponto inicial e particular de contato com o texto Orfeu da Conceição: a presença da música. Nos melodramas clássicos, segundo Thomasseau,

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Peripécia ou mudança súbita. É um termo da poética clássica que significa uma reversão das circunstâncias dadas.


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a peça era às vezes precedida de uma abertura musical, curto prólogo que dava o tom geral do conjunto do drama. [...] A música de melodrama é ao mesmo tempo expressiva e descritiva. Sua função é inicialmente emocional: ela substitui o diálogo na pantomima, prepara e sustenta os efeitos dramáticos e patéticos, acompanha a entrada e a saída dos personagens. (2012, p.131)

Essa definição, em alguma medida, aproxima-se da função dada à música por Vinícius de Moraes em seu texto. Uma música que emociona e que, em vários momentos, substitui diálogos inteiros, como se pode perceber na rubrica abaixo transcrita.

(Enquanto sua mãe fala, Orfeu não para um só instante de tocar, como se discutisse com ela em sua música, às vezes com a maior doçura, às vezes irritado ao extremo.10 Ao ver, no entanto, a face dolorosa com que Clio termina a sua exortação, corre a ela e abraçaa.) (MORAES, 1995, p.62 e 63)

Além da música, os melodramas históricos, em sua maioria, traziam em seu título o nome do herói11. Assim é o texto de Vinícius de Moraes, que traz além da associação nome da peça/protagonista, uma representação de herói que em muito se aproxima do tipo heroico melodramático identificado por Thomasseau, quando na afirmação de que “a característica de todo herói de melodrama é a de ser puro e sem manchas, e de opor às obscuras intenções do vilão uma virtude sem defeitos.” (2012, p.43) Por meio de aproximações como esta, também o comportamento do Orfeu carioca pode ser, sem prejuízo para o texto, associado às características melodramáticas apresentadas por Thomasseau.

(A cena clareia de modo fantástico, como se a intensidade do luar tivesse aumentado sobrenaturalmente.) ORFEU Querida! Não vai não! EURÍDICE Meu neguinho, que bobagem! É um instantinho só. Volto com a aragem... ORFEU Por que você está assim, filhinha? O que é que você tem? EURÍDICE 10 11

Grifo nosso. Exemplos apresentados por Thomasseau: Hariadan Barbaruiva, Marguerite d’Anjou, O Marechal de Luxemburgo.


90 É a Lua, coração. É a luz da Lua, não é nada não. ORFEU Ai, que agonia que você me deu Meu amor! Que impressão, que pesadelo! Como se eu te estivesse vendo morta Longe como uma morta... EURíDICE (chegando-se a ele) Morta eu estou. Morta de amor, eu estou; morta e enterrada Com cruz por cima e tudo! ORFEU (sorrindo) Namorada Vai bem depressa. Deus te leve. Aqui Ficam os meus restos a esperar por ti Que dás vida! (Eurídice atira-lhe um beijo e sai.) (MORAES, 1995, p.68)

O excerto selecionado retrata um dos (frágeis de solução) momentos de separação entre o casal protagonista. Na cena, por conta de uma sobreposição de Eurídice em relação à lua, Orfeu tem a intuição da ruína, do destino fatal de sua amada, e por consequência, de seu sofrimento. O herói prevê o calamitoso. É o que Thomasseau vai chamar de a voz do sangue presente no herói. “É ainda uma das formas da fatalidade: ninguém pode escapar-lhe. Ela cria um jogo de preparação patética e dramática frequentemente utilizada no melodrama: o pressentimento.” (2012, p.37) Ou mesmo a “consciência trágica” de uma existência. Em mais uma possível aproximação texto/gênero melodramático, Vinícius de Moraes consegue, por meio da concepção da personagem Clio, mãe de Orfeu, o que Thomasseau vai chamar de característica típica dos pais nobres nos textos melodramáticos clássicos (18001823). De acordo com o pesquisador, “os pais nobres dos melodramas são bastante convencionais. Seu papel é essencialmente o de proferir sentenças morais. Alguns deles, pais indignados, estão sempre prontos a lançar rapidamente sua maldição.” (2012, p.46) Atributos visivelmente imantados na personalidade da personagem Clio, e percebidos em textos como no bife abaixo apresentado.

CLIO Por caridade! Não me levem daqui! Ah, não me levem De junto de meu filho. Eu quero ele Doido mesmo, é meu filho, é meu Orfeu Por caridade, vão buscar meu filho


91 Vocês sabem, Orfeu da Conceição Sujeito grande, violão no peito Tá sempre por aí... Vocês conhecem É o meu Orfeu... Dizem que endoideceu [...] Por causa de uma suja descarada Uma negrinha que nem graça tinha Uma mulher que não valia nada! (subitamente possessa) Descarada! Ah, nasce de novo, nasce Pra eu te plantar as unhas nessa cara Pra eu te arrancar os olhos com esses dedos Pra eu te cobrir o corpo de facada! (muda de repente de tom) Não, ela não morreu! Meu Deus não deixa! Eu quero ela pra mim, eu quero Eurídice Só um instantinho eu quero ela pra mim! Eu juro que depois fico boazinha Prometo, Deus do céu! Não quero nada Só quero que me levem à cova dela Que é pra eu cavar dentro daquela terra Desenterrar o corpo da rameira Ver ela podre, toda desmanchada Cheia de bicho... APOLO (corre para ela) Chega, Cliol Chega! (MORAES, 1995, p.101 e 102)

A referência aos pais nobres do melodrama em seus sermões e explosões verborrágicas cabe de maneira justa no comportamento de Clio, não só no excerto disposto, em que sentenças de desespero são proferidas em tom de maldição a uma Eurídice morta, mas em textos anteriores em que a personagem aconselha o filho a evitar o ciúme alheio e a paixão desmedida. Uma mãe de vestimenta melodramática, portanto. A divisão do texto em três atos, embora não se distancie da estrutura da tragédia clássica, também não dista do modelo de melodrama. Entretanto, a forma estabelecida por este modelo, em detrimento daquele, prevê uma distribuição, segundo Thomasseau, assim organizada: “o primeiro ato consagrado ao amor, o segundo à infelicidade, o terceiro ao triunfo da virtude, atribuindo a maior parte à pintura da infelicidade.” (2012, p.35) Por essa tripartição dos atos e de suas peculiaridades, o texto de Vinícius de Moraes em sua totalização parece se adequar mais ao modelo de tragédia, que ao de melodrama, uma vez que, no melodrama, ainda de acordo com Thomasseau, “no último ato, a justiça imanente acaba sempre por ter a última palavra, no sentido estrito e no figurado, já que a maior parte dos melodramas termina com uma máxima moral.” (2012, p.36) O que não se realiza em Orfeu da Conceição. Além do mais “o melodrama tem por base o triunfo da inocência oprimida, a


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punição do crime e da tirania...” (THOMASSEAU, 2012, p.34) o que, mais uma vez, desloca o texto, isso porque, nos modelos melodramáticos, geralmente após o remorso do vilão e seu castigo, a calma e a harmonia voltam a se estabelecer no ambiente. Nem há calma, nem há harmonia no final de Orfeu da Conceição. O que se estabelece é o caos, um dado forte do sofrimento contemporâneo. “O mundo é partido [...]. O mundo não é organizado, a obra tão pouco, pois exprime a desordem, o caos, o fracasso, a impossibilidade de toda construção.” (LESCOT; RYNGAERT apud SARRAZAR, 2012, p.92) O sofrimento do herói inocente é o sofrimento de toda uma comunidade que chora a desestabilização de seu herói. O vilão não é punido e a justiça poética, comprometida. Na rubrica que determina o momento exato do ataque de Aristeu contra Eurídice (Entra. Ao voltar-se Eurídice, Aristeu, surgindo do escuro, um punhal na mão, mata-a espetacularmente. Eurídice cai.), tem-se, em verdade, o que George Steiner vai caracterizar como horror, típico de uma cena romântica que se distancia da concepção de tragédia grega. A cena é descrita sob o amparo de penumbras misteriosas e guiada por um sentimento de amor patológico. Segundo Steiner, esses momentos nos provocam o choque momentâneo, o calafrio na espinha – aquilo que os românticos chamavam de frisson – não o terror permanente da tragédia. E essa distinção entre horror e terror trágico é fundamental em qualquer teoria do drama. “Terror”, como nos lembra Joyce, “é o sentimento que aprisiona a mente na presença de tudo quanto é grave e constante no sofrimento humano”. Não existem gravidade nem constância no sofrimento retratado na cena romântica, somente um frenesi de capa e espada. É essa a diferença entre melodrama e tragédia12. (2006, p.94)

Por outro lado, ainda na mistura de gêneros associados ao texto, além de iniciar a história com um Corifeu, figura básica numa tragédia de arremate grego, o dramaturgo brasileiro faz uso do coro, elemento igualmente caracterizador das grandes tragédias gregas e que, ainda nas tragédias elisabetanas, ganha uma representação na figura do bobo. Segundo Rubem Rocha Filho, em seu A Personagem Dramática,

o coro enfeixava as funções de um narrador e comentarista; é de grande relevância o seu caráter de expressão lírica, a curtição da dor, do pathos, do sentimento do mundo. Diante das peripécias do destino, as reflexões e conclusões do autor e do bom senso comum ecoavam

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Grifo nosso.


93 através do coro, apto a ampliar a visão dos fatos particulares vividos pelos personagens (2010, p.33).

O coro em Orfeu da Conceição segue pelas mesmas letras o comportamento modal de sua encarnação primeira, quer seja representando o entendimento de uma coletividade, quer seja amparando, aconselhando o herói em seus momentos de maior ou menor aflição. O coro de uma tragédia grega participava da ação expressando compaixão ou outros sentimentos pelos personagens. Algumas vezes também destacava o sentido religioso da ação e a intercalava com preces. Por outro lado, simbolizava sempre o grupo cuja sorte está ligada aos personagens. É exatamente o que se percebe, em outras passagens do texto de Vinícius de Moraes: um coro sintonizado às frequências mítico/religiosas do passado. Primeiro, na intertextualidade bíblica (Creio em Deus Pai), o que rememora o tom de religiosidade presente nas grandes tragédias. Segundo, no tom de cobrança, de denúncia social proferido por uma voz de representação coletiva (É? Tem cada uma... Médico aqui no morro...) que acaba por aproximar o texto de outra particularidade da tragédia clássica, porque, segundo George Steiner, “a tragédia brota do ultraje, protesta contra as condições de vida. Carrega dentro de si as possibilidades da desordem, pois todos os poetas trágicos possuem algo da rebeldia de Antígona.” (2006, p.95). A utilização do coro em sentido religioso propõe um sincretismo que afasta o texto do modelo de tragédia, ao mesmo tempo em que começa a sugerir uma nova representação textual ao Orfeu da Conceição. A tragédia grega tem no politeísmo sua referência religiosa, enquanto que o escritor brasileiro opta, na intertextualidade com o Creio em Deus Pai, pelo cristianismo monoteísta. Consoante Steiner,

o cristianismo é uma visão antitrágica do mundo. [...] O cristianismo oferece ao homem uma segurança da certeza final e repouso em Deus. Ele conduz a alma na direção da justiça e ressurreição. [...] Sendo um limiar do eterno, a morte do herói cristão pode ser ocasião de tristeza, mas não de tragédia. [...] A verdadeira tragédia pode ocorrer somente aonde a alma atormentada crê que não resta tempo para o perdão de Deus. E agora é tarde demais. [...] E o melodrama romântico é pura teologia quando representa a alma sendo recuperada no extremo limite da danação.13 (2006, p.188)

O coro foi, na verdade, o núcleo inicial do teatro grego, embora se perceba que sua função se enfraquece aos poucos durante todo o séc. V a.C. e seguinte, na exata medida em 13

Grifo nosso.


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que os atores no palco tornam-se cada vez mais o centro da ação e a interferência do autor, ainda menor. Para Rubem Rocha Filho, ampliando sua citação anterior, “explica-se daí a tendência para a eliminação do coro no teatro moderno e a sua incompatibilidade com o estilo realista, onde não se admite a interferência visível do dramaturgo na ação cênica.” (2010, p.34) Na evolução do teatro ocidental o coro se transformará posteriormente em mero interlúdio musical entre os atos e, finalmente, desaparecerá, sendo ressuscitado modernamente pela ópera e sua descendente, a comédia musical. Tragédia, melodrama, drama romântico. Com quantos gêneros se deseje aproximar o texto de Vinícius de Moraes mais afeito a acomodações ele se fará, uma vez que plural. Decerto que em sua constituição, e por numerosos exemplos acima trabalhados, Orfeu da Conceição pode, de fato, a depender do ângulo de sua recepção, ser entendido como um gênero completo ou particular, ainda que um enquadramento o torne limitado. Mas a própria personalidade de seu autor, que em vida conjugou opostos, e sua inerente condição de homem moderno, faz com que esse texto acabe refletindo de maneira inevitável o pensamento múltiplo de um dramaturgo e da própria dramaturgia do século XX. Este pensamento múltiplo pode, de maneira bem mais convincente, ser aproximado da ideia de rapsódia, conceito criado e desenvolvido por Jean-Pierre Sarrazac (1946-) em O futuro do Drama, no início dos anos de 1980, com o objetivo de analisar a contribuição de Peter Szondi na obra Teoria do Drama Moderno, de 1954. De acordo com Céline Hersant e Catherine Naugrette, em verbete do Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo (uma obra que protesta conta a ideia de que o drama estava largado e morreria):

As características da rapsódia, tais como Jean-Pierre Sarrazac as formula, são ao mesmo tempo [...] caleidoscópio dos modos dramático, épico, lírico, inversão constante do alto e do baixo, do trágico e do cômico, colagem de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita em montagem dinâmica, investida em voz narradora, desdobramento de uma subjetividade alternadamente dramática e épica (ou visionária). (HERSANT; NAUGRETTE apud SARRAZAC, 2012, p.152 e 153)

Juntar e confrontar. A percepção de Sarrazac sobre o hibridismo como comportamento típico da dramaturgia moderna ocidental acaba colaborando diretamente para uma acepção do texto de Vinícius de Moraes (dramaturgo-rapsodo) e sua principal característica de caleidoscópio de modos dramáticos.


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Ao final, parece não importar se o texto se enquadra ou não em um gênero préestabelecido. O que vai importar, de fato, é a percepção da elaboração fragmentada dada por Vinícius (com a indubitável presença grega no foco) e de que maneira essa construção tão partida representa verdadeiramente o teatro brasileiro feito nos novecentos.

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Nietzsche e o espírito trágico. Lucyane de Moraes (PPGF-UFMG)

Resumo: Esse estudo tem por base o primeiro livro publicado por Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik), de 1872. Propõe, dessa maneira, expor três movimentos ou três formas de manifestações artísticas da Grécia Antiga, apresentando esse “primeiro Nietzsche”. Para tal, cabe abordar questões referentes a uma genealogia do espírito trágico, compreendida através da dramaturgia dos três tragediógrafos da Grécia Ática, bem como dos elementos teóricos e históricos em que o autor se baseou para a elaboração do seu estudo, ou seja, aqueles referentes à literatura, a mitologia da Grécia Antiga e a música do período, sendo esta interpretada por Nietzsche como aquela que melhor exprime o impulso Apolíneo-Dionisíaco (afirmação da vida que responde ao sentido da existência). Palavras-chave: Música, Teatro, Tragédia, Drama.

Nietzsche and the tragic spirit Abstract: This paper is based on the first book published in 1872 by Friedrich Nietzsche, The Birth of Tragedy: out of Spirit of Music (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik). It proposes to expose three forms of artistic expression from Ancient Greek, introducing the "first Nietzsche". For such purpose, it is necessary to approach questions of a genealogy of the tragic spirit, concerning to dramaturgy of the three tragedians of Greece Attica, as well as the theoretical and historical elements which the author relied in preparing his study, in other words, those related to literature, mythology of ancient Greece and the music of the age, which is understood by Nietzsche as the one that best expresses the Apollonian-Dionysian impulse (statement of life that responds to the meaning of life). Keywords: Music, Theatre, Tragedy, Drama.


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“Pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente”. [Friedrich Nietzsche]

A partir da primeira obra filosófica de Friedrich Nietzsche, propõe-se expor três movimentos ou três formas de manifestações artísticas da Grécia Antiga, apresentando a tese do filósofo sobre a origem do espírito trágico na cultura grega: 1 - Forma Apolínea (ou poesia épica): Épica, ou poesia heroica, entendida desde a antiguidade como palavra, discurso, voz; palavra proferida; palavra inaugural, criadora, tem sua raiz no vocábulo épea. Padre Raphael Bluteau, em seu Vocabulário Portuguez e Latino1 (1712-1728), registra em verbete próprio: “poesîa. Deriva-se do verbo Grego Poieein, que tem dous sentidos, & val o mesmo que Fazer, & Fingir, que saõ duas propriedades da Poesia, porque a sua perfeyção está em descrever, pintar, & representar as cousas ao vivo, como se as acabára de fazer, & juntamente tem liberdade para excogitar, & fingir o que quer. A Poesia he huma certa cadencia, medida harmonica, & metrica consonancia de palavras segundo as leys, & uso de cada lingua, com que se declara o que quer dizer com expressoens vivas, energicas, & mais livres, que as que se usaõ na Prosa. Com diversos generos de versos se fazem differentes Poesias Latinas, com versos Hexametros a Poesia Epica, ou Heroyca, (...) com versos Jambos a Poesia Dramatica, cujas tres partes saõ a Tragedia, a Comedia, & Tragicomedia; & com versos de todas as castas a Poesia Satyrica, como tambem a Poesia Profeptica, ou Didascalica, que val o mesmo que Exornativa, ou instructiva. (...) he certo que Museo, & Orpheo compuzeraõ hymnos em louvor de suas fabulosas Deidades, & alguns setecentos annos primeyro que houvesse Filosofos na Gentilidade, todas as materias concernentes à Religiaõ, & Filosofia moral, andavaõ em estylo poetico, & se communicavaõ com tradições de pays a filhos em versos, ou, para melhor dizer, em trovas, que se cantavaõ familiarmente nas casas, ou publicamente nas praças. (...) as Trovas foraõ inventadas para ajudar a memoria, & facilitar a lembrança das doutrinas, que os pays inculcavaõ aos filhos, & na opiniaõ de Santo Isidoro destas Trovas teve a Poesia o seu principio, & segundo o dito Santo, a Poesia he mais antiga que a Prosa. Pherecides, Filosofo Grego, discipulo de Pittaco, & Mestre de Pythagoras, foy o primeyro que desterrou das Escolas a Poesia, & introduzio a Prosa. E Plataõ, que seguio o mesmo methodo, assentou que a Poesia era impropria a hum homem Filosofo, que havia de fallar com propriedade em materias divinas, & sciencias naturaes; pela qual razaõ, tanto que começou a gostar da Filosofia de Socrates, lançou no fogo muitas Poesias, infructuosas verduras da sua mocidade. Pouco a pouco foy a Poesia perdendo o credito, Cicero a despreza, Socrates a condena, Democrito lhe chama loucura, & chegáraõ os Romanos a dizer que o estudo da Poesia era indigno de homem honrado. Porèm he certo que Plataõ, & outros assim antigos, como modernos Escritores, naõ condenaõ senaõ a Poesia profana, meramente fabulosa, ou escandalosamente lasciva, da qual summamente deve fugir o Christaõ: porque, se aquelle Rey Minos, do qual falla Hesiodo, moveo guerra a Athenas, porque algüs Poetas da dita Cidade o haviaõ collocado no Inferno. (...) Para a estimaçaõ da Poesia, naõ só ha de ser boa a materia dos versos, mas tambem a fórma, & esta para ser boa, ha de ser excellente; os versos saõ como os 1

Vocabulario Portuguez e Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico, Brasilico, Comico, Critico, Dogmatico, etc. autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses e latinos, e oferecido a El-Rey de Portugal D. João V. (1712-1728).


99 meloens, huns saõ frutos da terra, & outros saõ frutos do engenho; nestes dous generos de frutos, a mediania he vicio, & só na sua excellencia está a sua bondade. Poesia. Arte Poetica. Poetica, ae. Fem. sobentende-se Ars, tis. Fem. Cic. Poesis, is. ou eos. Horat. Quintil. No I. livro de Cicero De Inventione, em boas edições se acha Philosophiae, Poetriae, Geometriae; mas o antigo Rhetorico Fabio Victorino naõ lé neste lugar Poetriae, mas Poeticae.§ Poesia. Qualquer obra Poetica. Poesis, is. Fem. Carmen, inis. Neut. Poema, tis. Neut. Cic.§ A Poesia. O modo de compor, opposto à Prosa. Poesis, is. Fem. No livro 3. De Oratore, Cicero diz, Vel Poesis, vel oratio. Os que com mais particularidade querem distinguir a Poesia da Prosa, chamaõ em Latim à Prosa Oratio soluta, & à Poesia Oratio adstricta pedibus; mas naõ fallaõ taõ propriamente, como parece: porque (como discretamente advertio hum Critico moderno) tambem a Prosa tem seus pés, numeros, & medidas, como se póde ver no livro da Rhetorica, que Cicero, Quintiliano, & outros Oradores escrevèraõ.

Sabe-se, então, que as origens da poesia épica remontam a declamações e cantos ancestrais, proferidos em rituais religiosos e festas do povo, representando o ciclo de chegada de longínquas tradições fundadas na oralidade poética. Seus representantes são Homero (c. 750) e Hesíodo (c. -700) que irão eternizar lendas seculares da tradição oral, glorificando grandes feitos heróicos. A esse propósito, segundo teorias de Aristóteles, entende-se que na épica grega as epopeias advinham dos Aedos (poetas-cantadores) e dos Rapsodos, (costuradores de cantos), aqueles que “costuram” canções2, fixando o texto pela escrita. É um momento da literatura antiga que traduz os acontecimentos relatados em atos exemplares, funcionando como modelos de comportamento, mantenedores das tradições. Na Ilíada, de Homero, por exemplo, temos Aquiles, partícipe da Guerra de Tróia, personagem glorificado por atos heróicos, portador da Areté3, sendo este um exemplo de cidadão virtuoso capaz de desempenhar qualquer função dentro da sociedade. Representante da forma apolínea, a epopéia pertence ao gênero épico que vai caracterizar-se pela arte da beleza, da harmonia, da medida. Sendo assim, o poema épico terá uma tendência ética e artística, representado por Apolo, Ἀπόλλων (Apóllōn), deus da poesia épica, da aparência, da ilusão, das fantasias, da prudência, da experiência onírica e do poder divinatório4. Sobre Apolo, escreve Nietzsche: “Os Gregos representaram na figura do seu Apolo um tão ardente desejo de sonho: Apolo, como é o deus de todas as faculdades criadoras de formas, é também o deus da adivinhação. Ele que, desde a origem, é a «aparição» radiosa, a divindade da luz, reina também sobre a aparência, plena de beleza, do mundo interior da imaginação. 2

Cantadores que entoavam rapsódias. Padre Raphael Bluteau, em seu citado Vocabulário Portuguez e Latino, registra: “rapsodia. He palavra Grega, composta de Raptein, cozer, & odi, canto, porque Rapsodia, segundo a mais commua significaçaõ, val o mesmo, que hum ajuntamento de varios pedaços de Poesia, ou Prosa, etc. ou (como advertio Eustachio no primeyro livro da Iliada, citado em Cesar Bulengero, lib. 2. cap. 9.) Rapsodia se deriva de Rabdos, vara, & odi, canto, como quem dissera, Rabdodia, porque antigamente se cantavão as Poesias com hüa vara na mão, as de Eschylo com hüa varinha de murta, & as de Homero com hüa vara de loureyro. Mas a primeyra etymologia parece mais propria, tanto mais, que a Iliada de Homero foy chamada Rapsodia, por ser composta de varias poesias, unidas em hum só Poema. As Politicas de Lipsio saõ hüa Rapsodia, porque não tem deste Author mais que as conjunções, & particulas, com que liou as materias”. 3 Conceito primordial que exprime o ideal da educação na Grécia do século V a.C., juntamente com o conceito de Paidéia. 4 O poder divinatório é uma das maiores características do deus Apolo, deus dos advinhos e dos poetas, a quem os gregos erigiram um santuário na cidade de Delfos, templo elaborado pelos arquitetos Trofônio e Agamedes.


100 A mais alta verdade, a perfeição deste mundo, opostas à realidade imperfeitamente intelígível de todos os dias, enfim, a consciência profunda da natureza reparadora e salutar do sono e do sonho, são simbolicamente o análogo, ao mesmo tempo, da aptidão para a adivinhação, e da arte em geral, pelas quais a vida se tornou possível e digna de ser vivida. Mas à imagem de Apolo não deve faltar essa linha delicada, aquela que a visão apercebida no sonho não poderá transpor sem que seu efeito se torne patológico, porque então a aparência nos dará a ilusão de uma realidade grosseira: quero dizer, essa ponderação, essa livre serenidade nas emoções mais violentas, essa serena sabedoria do deus da forma” 5.

Em outras palavras, foi diante aos temores da existência que os gregos antigos criaram a cultura apolínea, valorizando a beleza, o louvor à vida harmoniosa, prudente e medida. Paralelamente à necessidade estética da beleza, foram inscritas em Delfos, no templo de Apolo, as seguintes frases: “conhece-te a ti próprio” (ΓνωθιΣεαυτον) e “nada em excesso” (μηδεν αγαν). Para Nietzsche, Hesíodo e Homero, sob a influência unicamente apolínea, mostraram, através da glória e dos grandes feitos que imortalizaram os heróis, a primazia da natureza de tornar as formas belas, considerando que somente a medida, a prudência, a bela aparência e o aspecto ilusório da bela forma impediam que o homem convivesse com a dinvidade da dor. 2 - Forma Trágica (ou nascimento do espírito da tragédia6): Se Apolo se afigura como o deus da harmonia, da medida, da prudência, Dioniso, ao contrário, é caracterizado pelo êxtase, configurando-se como o deus da metamoforse, da desmedida, do transe, das paixões, da vibração e da autenticidade, expressando a vida sem aparência, sem máscaras, sem artifícios, isenta, portanto, de caráter comedido. Segundo Nietzsche, Dioniso é um personagem estrangeiro, absorvido e agregado pela cultura grega, tornado “símbolo do poder inebriante da natureza”, relacionado com o “florescer da terra”, “da seiva que enche os bagos de uva”. De acordo com a mitologia Dioniso era filho de Zeus e da princesa Sémele, sua amante, nascido de uma “situação estranha”. Hera, esposa de Zeus, filha de Crono e Reia, criada por Oceano e Tétis, era conhecida pelo rancor que nutria contra as amantes do poderoso deus. Com ciúmes das contínuas infidelidades de Zeus, Hera persuade sua rival Sémele, então grávida de Dioniso, a covencer o amante Zeus de se mostrar a ela em sua primitiva forma, sendo Sémele atendida pelo deus que se perfigura sob a forma originária de 5

[GT] Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia). Guimarães editores. Seção 1, p, 42. comparar a tragédia com a epopéia, o Estagirista considera que a primeira lhe acrecenta a µɛʎοποιΐα e o espetáculo cênico. Mas tais elementos são perceptíveis mesmo na leitura dos próprios textos. Quer isto dizer que é na linguagem da tragédia (no ἔπος) que estão implícitos potencialmente a melodia e o espetáculo cénico com os seus componentes: gesto dança e som. A concepção de Aristóteles acerca do ἔπος na tragédia exprime assim um novo conceito de µέʎος, ao atribuirlhe uma tão grande força expressiva. De facto, a relação µέʎος-ἔπος estabelece-se de modo específico, pois tem como ponto de partida o ἔπος, que é o suporte da representação teatral, e ao mesmo tempo é através dele que se revela e se instila o som, a dança e o gesto. É também a partir dele que os tragediógrafos desenvolvem em recitativos e cantos um trabalho de modelação da linguagem com o intuito de pôr em destaque a voz nas suas possibilidades tímbricas, tessitura e interpretação”. In Mousiké: das origens ao drama de Eurípedes. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 23-24. 6“Ao


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raios e trovões, levando a mesma a ser consumida instantâneamente pelo fogo divino, restando ao deus somente o tempo de retirar os restos do pequeno Dioniso de suas entranhas. Escondido de Hera, Zeus costura os fragmentos do filho em sua coxa a fim de completar a sua gestação, possibilitando-lhe assim um renascimento. Entregue em segredo a Ino, sua tia, Dioniso é criado com a ajuda das ninfas que cuidam de sua educação, e após atingir a maioridade anda errante pelo mundo introduzindo em cada país a cultura da vinha e a técnica de fazer vinhos, aprendida com seu tutor, o sábio Sileno (Seilēnós). Daí, o culto a Dioniso, ligado ao vinho e à ebriedade, juntamente com a cultura da vinha, estende-se por toda a Grécia antiga. Morto e revivido, Dioniso é o “deus despedaçado”, símbolo da ambiguidade e duplicidade, o deus da transformação, o “deus que intensifica a vida e dissolve a forma” (a individualidade) através da embriaguez, representando a potência eterna da natureza, sempre acompanhado pelo cortejo dos tocadores de aulos (antigo instrumento de sopro, espécie de flauta dupla), das Ménades (Bacantes) e das Dríades (divindades dos arvoredos), representado mesmo por sua integração com a natureza. Em contraposição a Dioniso, Apolo, apresentado pela forma (que é aparência), está mais distanciado da natureza, pois aparece sempre individualizado. Nietzsche entende que será a partir do séc. VI A.C. que a tragédia 7 nasce oriunda do culto a Dioniso que, incorporado à Grécia antiga, é anexado à cultura grega, possibilitando uma aliança entre Apolo e Dioniso. A partir daí Apolo sofre mudanças estruturais pela dissolução da forma, e também Dioniso, antes apresentado como “o outro”, o estrangeiro (o primitivo), quando incorporado à cultura grega apresenta a forma de um Dioniso-Apolíneo (o agregador). Será então a partir de Ésquilo, que introduz o coro em suas peças, que a tragédia irá exprimir essa aliança paradoxal, resultante do encontro entre Apolo e Dioniso. A propósito, entende-se que a tragédia se desenvolve a partir do canto e do coro, do ditirambo dionisíaco, pelos quais, segundo Nietzsche, os participantes são excitados “à máxima intensificação de todos as suas capacidades simbólicas”. Será a partir da intervenção introdutória do coro que Ésquilo, visando dar sentido à história ao invés de simplesmente expor o evento mais concreto da trama, onde o héroi é também sacrificado, mostra cenicamente o quase obrigatório destino infeliz do herói trágico. Através da personagem de Édipo Rei, vitimado por seu próprio destino, Sofócles também apresenta o herói trágico, representado através do coro, demostrando em cena o sofrimento e as mazelas daquele herói,

Do grego: Tragoedia significa canto do bode - sacrifício aos deuses pelos gregos. As palavras gregas τράγος, tragos, (bode) e ᾠδή, odé, (canto) aliadas, derivaram na palavra tragédia. 7


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sem qualquer exaltação de suas glórias, intensificando o mito. Consequentemente, se Apolo confere medida à emoção e torna a cena uma experiência tolerável e apaziguadora, Dioniso, por sua vez, concede vigor e energia ao drama, principalmente por meio da música. Não coincidentemente, Nietzsche entende que a mais perfeita união entre mito e música se dá na tragédia, sendo a música a essência da tragédia, “essência que cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados dionisíacos (...) como mundo onírico de uma embriaguez dionisíaca”. Portanto, para Nietzsche a tragédia nasce da aliança entre mito e música. Sobre os aspectos apolíneo e dionisíaco da música, o compositor vienense Arnold Schoenberg em seu último livro teórico Funções Estruturais da Harmonia8, no capítulo XII, “Evolução apolínea em uma época dionisíaca”, explica: “A música clássica foi feita em um dos períodos apolíneos quando o uso de dissonâncias e seu tratamento, bem como o tipo de modulação, eram governados por regras que se tornaram a segunda natureza do músico. Sua musicalidade se punha em questão, se fosse incapaz de permanecer instintivamente dentro dos limites da convenção aceita. Nessa época a harmonia era inerente à melodía. Mas os novos acordes da época seguinte, uma época dionisíaca (iniciada com os compositores românticos), apenas começavam a ser digeridos e organizados, e as regras para sua utilização ainda não haviam sido formuladas, quando um novo movimento progressivo começa, antes mesmo que aquele último tivesse se estabelecido”.

E em nota de rodapé, Schoenberg acrescenta: “Nietzsche estabelece uma distinção entre o pensamento apolíneo, que caracteriza a proporção, moderação, ordem e harmonia, e seu oposto o dionisíaco, que é apaixonado, ébrio, dinâmico, expansivo, criativo e até destrutivo”. Para Nietzsche a tragédia não é só um gênero dramatúrgico, caracteriza-se como a potência da dor e do sofrimento, que intensificados de forma afirmativa responde ativamente, exaltando a afirmação da vida. Existir e sofrer entende Nietzsche, são condições humanas as quais a existência está vinculada, sendo necessário encontrar um sentido para o sofrimento. Dar sentido ao sofrimento significa, então, encontrar uma razão para a existência. É então em contato com sua potência afirmativa que a expressão dos impulsos apolíneo e dionisíaco se apresentam como princípios de natureza estética: “A tragédia, surgida, segundo Nietzsche, do confronto das forças apolíneas e dionisíacas, juntava vários seguimentos artísticos, tais como a música, a dança, o teatro, a poesia, a pintura, a escultura, a arquitetura, o que Wagner chamaria de Gesamtkunstwerk, ou melhor, a obra de arte total ou integral, ao tentar recriá-la por meio de seus dramas musicais. Mostrava, segundo Eric Bentley, ‘a estatura heróica do homem e a justiça dos deuses’. Tinha, portanto, como cerne o mito” 9.

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Escrito entre os anos de 1947 e 1948, Funções Estruturais da Harmonia foi publicado pela primeira vez em 1954, resumindo suas últimas teorias sobre a harmonia clássica e romântica. 9 In: Op. Cit., p. 32.


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A tragédia será então o veículo da unidade entre estas duas forças, dominada por Dioniso e apoiada por Apolo, sem exclusão de nenhuma delas, ambas expressas em um todo harmônico. Apolo prefigura a sophrosyne, a moderação, a ordem, a medida, a proporção, a harmonia, a disposição sadia do espírito, dando beleza à forma e, por sua vez, Dionísio a hybris, significando a desmesura, o excesso, o arrebatamento, a impetuosidade, aquilo que ultrapassa a medida humana, uma força trágica incomum. Nietzsche acolhe o impulso dionisíaco, como expressão das formas apolíneas, sendo a presença da medida apolínea aquilo que faz com que a tragédia não se torne apenas um ritual dionisíaco de liberação das emoções e dos instintos. É a personagem conceitual de Apolo que explicita o caráter de ilusão da tragédia através de seus elementos cênicos, sendo os versos, cantados, narrativas míticas desenvolvidas na forma trágica, transformados em representação da vida, fenômeno este que durou apenas um século. Se para Nietzsche a tragédia nasce da aliança entre mito e música, vale abordar alguns aspectos referentes à música na Grécia antiga, considerando possíveis fontes utilizadas pelo filósofo para a formulação de suas idéias. Primeiramente, no que diz respeito à música, sua origem etimológica advém da palavra mousiké (Μουσική), união dos vocábulos mous + iké, significando a arte das Musas. De acordo com a mitologia grega, a história da música começa com a morte dos seis filhos de Urano, conhecidos como os titãs, vencidos pelos deuses do Olimpo10. Objetivando cantar então as vitórias do Olimpo, Zeus toma para si a tarefa de criar nove divindades, partilhando por nove noites consecutivas o leito com Mnemosyne, deusa da memória, resultando o nascimento das nove musas, Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpomene, Polyhymnia, Terpsícore, Thalia, e Urânia, deusas das artes e das ciências, todas

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Dos vários poemas clássicos gregos sobre a guerra entre os deuses e os Titãs, apenas um sobreviveu. Trata-se da “Teogonia” atribuída a Hesíodo. Segundo este, os titãs eram os 12 filhos dos primitivos senhores do universo, Gaia, a Terra, e Urano, o Céu. Dos doze, seis eram do sexo masculino: Oceano, o rio que circundava o mundo; Ceos, titã da inteligência; Créos, deus dos rebanhos e das manadas; Hipérion, o fogo astral; Jápeto, ancestral da raça humana e Cronos, que destronou Urano e foi rei dos deuses. Os outros seis eram do sexo feminino, conhecidos como Titanides: Febe, a da coroa de ouro; Mnemosyne, personificação da memória e mãe das musas com Zeus; Reia, rainha dos deuses com Cronos; Témis, encarnação da ordem divina, das leis e costumes; Tétis, deusa do mar e Téia, deusa da vista. Tinham por irmãos os três hecatonquiros, monstros de cem mãos que presidiam os terremotos, e os três Ciclopes, que controlavam os relâmpagos. Urano iniciou um conflito com os titãs ao encarcerar os hecatonquiros e os ciclopes no Tártaro. Gaia e os filhos se revoltaram e Cronos cortou os órgãos genitais do pai com uma foice, atirando-os ao mar. O sangue de Urano, ao cair na terra, gerou os gigantes e da espuma que se formou no mar, nasceu Afrodite. Com a destituição de Urano, os titãs libertaram os outros irmãos e aclamaram rei a Cronos, que desposou Réia e voltou a prender os hecatonquiros e os ciclopes no Tártaro. Com excessão de Jápeto e Créos, que se casaram com mulheres de fora da sua própria linhagem, os titãs uniram-se entre si, dando origem a divindades menores. Dentre todos estes, Cronos e Réia produziram descendência mais numerosa: Héstia, Deméter, Hera, Hades, Posêidon e Zeus, sendo estes os primeiros deuses do Olimpo. Avisado de que seu filho o destituiria, Cronos engoliu todos eles, exceto Zeus, salvo por um ardil da mãe. Ao tornar-se adulto, Zeus fez Cronos beber uma poção que o forçou a vomitar os filhos, e uniu-se aos irmãos, os deuses do Olimpo, na luta contra os titãs pela posse do Monte Olimpo. Derrotando os Titãs, Zeus manda confinar Cronos e os titãs no Tártaro, estabelecendo seu domínio como o maior e mais poderoso dos deuses. Depois, os três filhos de Cronos dividiram a herança em três partes, ficando Zeus com o céu e o ar superior, Posêidon com o mar e Hades com o mundo subterrâneo.


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presenças permanentes no monte Parnaso, participantes do cortejo de Apolo, realizando rituais apolíneos. Freqüentadoras do Olimpo, as musas alegravam as festas dos deuses. Calíope, também chamada “a da bela voz”, era a musa da epopéia, da poesia épica, da ciência e da eloqüência, sendo a mais velha e sábia das musas, geralmente representada coroada de louros, sentada em posição de meditação, com a cabeça apoiada numa das mãos e um livro na outra; Clio era a musa da história e da criatividade, aquela que divulgava e celebrava realizações, geralmente representada como uma jovem, usando uma coroa de louros na cabeça, trazendo na mão direita uma trombeta e na esquerda um livro, intitulado Thucydide. Em algumas de suas representações traz a kithara11 em uma das mãos e, na outra, um plectro12; Erato, também chamada “a amável”, era a musa da poesia lírica e dos hinos, sempre representada com uma lira na mão e, por vezes, com uma coroa de rosas; Euterpe, a musa da música e da poesia lírica, é também considerada como a inventora do aulos, um tipo de flauta dupla, instrumento este com que geralmente aparece representada; Melpomene era a musa da tragédia, geralmente representada com uma máscara trágica. Em algumas representações ela aparece segurando uma faca ou bastão em uma mão, e a máscara na outra; Polyhymnia era a musa do hino sagrado, da eloqüência e da dança, geralmente representada numa posição meditativa, vestindo um longo manto; Terpsícore era a musa da Música e Dança, sendo geralmente representada segurando uma lira. Era também a deusa da alegria e do prazer; Thalia era a musa da comédia e da poesia leve, geralmente representada usando uma máscara cômica e portando um cajado de pastor; Urânia era a musa da astronomia e astrologia, representada com o globo celeste e o compasso nas mãos, vestindo um manto bordado com estrelas. Sabe-se ainda que também há na mitologia grega, outros deuses ligados à história da música, especialmente Orfeu, filho da musa Calíope, cantor, músico e poeta, além de Museo, filho de Eumolpo, grande musicista que, tocando, curava inúmeras doenças, e Anfião, filho de Zeus, que após ganhar uma lira de Hermes, passa a dedicar-se inteiramente à música. Instrumento considerado como o mais significativo no universo organológico grego, a lira, como é sabido, representa ainda hoje em termos comuns o instrumento mais conhecido da Grécia antiga, citada, como tal, nas diversas fontes literárias clássicas que chegaram até os dias de hoje, fontes essas fundamentais para o estudo das categorias organológicas e da música do período. Tanto é que o etnomusicólogo alemão Curt Sachs, em seu livro “A História dos Instrumentos Musicais”13, registra:

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Antigo instrumento de cordas grego da família da lira. Espécie de palheta, feita à época com pena de pássaros. 13 Publicado em Nova York no ano de 1940. 12


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“As Liras foram, sem dúvida, o instrumento principal, o divino. (...) Como atributo de Apolo, a lira expressava o aspecto apolíneo da alma e da vida grega, a prudente moderação, o controle armonioso e o equilíbrio mental, ao contrário os instrumentos de sopro representavam o lado dionisíaco, de embriaguês e êxtase”. E é como atributo de Apolo que sob o aspecto das fontes literárias gregas se pode identificar inúmeras citações feitas por diversos autores a esse instrumento. Em Alceste, por exemplo, Eurípedes se refere a Apolo tocando a lira, denominando-o a seguir pelo seu nome equivalente romano, Febo, tocando a cítara: “Ó casa hospitaleira de um homem liberal, também Apolo Pítio, de lira melodiosa, se dignou habitar-te (...) e dançava ao som da tua cítara, ó Febo, a corça de pêlo mosqueado, correndo com o seu tornozelo leve para além dos pinheiros de altas copas, inebriante pelo teu canto feliz”.: Em Ilíada, Homero escreve: “Durante todo o dia, até ao pôr do sol, estiveram em festa, e ao seu ânimo nada faltou no festim equitativo, nem a formosa lira que Apolo empunhava, e as Musas, que cantavam alternadamente com a sua bela voz”. E em seu Hino a Hermes14, Homero se refere a construção da lira de forma detalhada, descrevendo-a como um instrumento de sete cordas e composto de uma caixa de ressonância feita com o casco de uma tartaruga, atribuindo a Apolo a sua ampla utilização. De acordo com a lenda, Hermes rouba parte dos rebanhos guardados por Apolo, que, ao descobrir o feito, o conduz a Júpiter que o obriga a devolver os animais. Apolo, no entanto, encantado com o som do instrumento inventado por Hermes, dá-lhe o gado em troca da lira. Sobre a importância da lira, Platão, em sua República, considerando a música não como um fim em si, mas como um meio de condução às idéias, menciona diversas vezes o instrumento, inclusive como um meio para se

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O hino grego é uma forma literária na qual se cantam deuses e heróis. Hermes é o nome grego de Mercúrio, uma das doze divindades do Olimpo, filho de Júpiter e Maia, nascido no monte Cilene, na Arcádia. O hino a Hermes é o 4 o de uma série de vinte e dois poemas dedicados a várias divindades, atribuído ao poeta Homero, contando 580 versos que relatam a vida e os feitos do deus e de seu irmão Apolo.


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atingir a virtude. E Aristóteles, em sua Política, também se refere à questão dizendo que um instrumento deve ser um meio para a formação do caráter; uma forma de desenvolver a racionalidade e o espírito crítico permitindo ao músico discernir entre o simples prazer auditivo, que é insuficiente, e o verdadeiro propósito da música, ou seja, conduzir à virtude. À propósito, num sentido mais amplo, vale dizer que para os gregos antigos a música, por possuir qualidades morais, afetava o caráter e o comportamento dos homens, influindo em seu comportamento por imitação ou representação das paixões e dos estados da alma, ou seja, por influência de certa música evocativa de certo estado da alma, ficavam os homens tomados por certa paixão, fosse ela boa ou má. 3 - Forma do Otimismo Teórico Socrático (ou morte do espírito trágico): Sabe-se que em suas peças teatrais Eurípedes dava um sentido novo ao prólogo, diminuía a função do papel do coro e, sobretudo, se utilizava de um mecanismo chamado deus ex-machina, expressão latina traduzida do grego, “ἀπὸ μηχανῆς θεός” (apò mēchanḗs theós), significando literalmente “deus da máquina” ou “deus de dentro da máquina”: “Alude a um instrumento mecânico utilizado por Eurípedes que permitia a uma divindade ou ser sobrenatural descer sobre o palco, oferecendo dessa forma uma saída para uma situação aparentemente irresolúvel15”. Este artefato, introduzido repentinamente na cena, atuava como instrumento de resolução da trama, tornando-a mais inteligível para o espectador, conduzindo melhor a história, conectada a um determinado conceito moral. Nietzsche afirma que Eurípedes, ao utilizar esse dispositivo, intervém na trama de forma racional introduzindo o Socratismo na tragédia grega, ou seja, que Eurípedes, sobretudo, “mata o espírito trágico” quando pressupõe o inteligível como condição do belo. Entende Nietzsche que a tragédia morre, através de Sócrates, sob um golpe de Eurípedes, denominando de otimismo teórico socrático aquilo que leva ao seu aniquilamento. “Não devemos continuar a dissimular o que está escondido no fundo desta cultura socrática: a ilimitada ilusão do otimismo! Não nos devemos espantar mais de que amadureçam os frutos de tal otimismo, de que a sociedade, corroída até as camadas mais baixas pelo ácido dessa cultura, vá pouco a pouco tremendo com a febre do orgulho e dos apetites; de que a crença na possibilidade de semelhante civilização científica se transforme a pouco e pouco em vontade ameaçadora, vontade que exige a felicidade terrestre alexandrina e invoca a intervenção de um deus ex machina «à Eurípedes»! Temos que observar o seguinte: para poder durar, a civilização alexandrina necessita de um estado de escravatura, de uma classe servil, mas, obrigada pela sua concepção otimista da existência, nega a necessidade desse estado: assim, quando se gasta o efeito das suas tão belas como enganadoras e

15

In: Poética. Ed. Eudoro de Sousa, Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1998.


107 lenitivas palavras acerca da dignidade humana e da dignidade do trabalho, a civilização caminha a pouco e pouco para um desastroso aniquilamento” 16.

O otimismo teórico, para Nietzsche, irá, ao subordinar a arte ao julgamento da verdade, resultar na depreciação da própria vida sob a tentativa de corrigir suas mazelas, amenizando a dor e o sofrimento e minimizando a sua potência criadora em nome de uma transcendência. Para Nietzsche é mal aquilo que não tem poder de construção. E sendo vil uma ideia de resignação da vida através da transcendência divina, afirma que a astúcia, sob a forma de uma fragilidade humana, permite que os débeis contaminem e imponham a todos uma mentalidade de senso comum (não-afirmativa). “Temos de assumir perante nós mesmos a responsabilidade de nossa existência; é por isso que decidimos realmente ser os pilotos dessa existência e não permitir que ela se assemelhe a um absurdo acaso. Devemos abordá-la com um mínimo de audácia e de temeridade, pois podemos perdê-la por qualquer coisa que venha a acontecer.”17

Sob a ótica peculiar nietzschiana, Sócrates é visto como uma personagem teóricoracional representante de uma verdade absoluta que subjuga o espírito trágico da existência humana, explicando assim a repulsa do autor frente à hegemonia do pensamento platônico, via Sócrates, na cultura ocidental. No entanto, Nietzsche reconhece que o otimismo socrático irá proteger o homem do terror do sofrimento e da dor ao postergar a felicidade para uma vida futura, imputando a morte do espírito trágico a uma razão socrática. Platão, em sua Apologia de Sócrates, demonstrava que os artistas trágicos tinham menos conhecimento do que os filósofos, ratificando a ideia socrática de que os artistas, criando ilusões, desconheciam a verdade e dispersavam a vida, dando à arte um sentido de simulacro da verdade, o que faz Nietzsche afirmar que a filosofia platônica propõe uma correção da tragédia, alegando que em Platão existe uma tentativa de separar instinto, emoção e razão. Mais tarde, Nietzsche irá afirmar a existência de afinidades entre o cristianismo e o platonismo através da criação de dois mundos - inteligível e sensível - da qual o cristianismo irá se apropriar como fundamento de suas teorias. Por isso, afirma que “a tarefa da filosofia do futuro é a subversão do platonismo”: “É nessa oscilação entre cristianismo e a antiguidade, entre um cristianismo medroso ou mentiroso e um pensamento antigo igualmente sem coragem e sem iniciativa que se passa a vida do homem moderno, sofrendo com isso; o temor hereditário das realidades naturais e, por outro lado o atrativo renovado desse naturalismo, a necessidade de se agarrar a alguma coisa, a impotência do conhecimento que oscila entre o bem e o mal, tudo isso gera inquietude e confusão na alma humana e a condena a ficar estéril e sem alegria 18”. 16

Ibid., pp. 145-146. Ibid., p. 17. 18 Ibidem., p, 25. 17


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Entende Nietzsche que os gregos, a partir de Ésquilo e Sófocles, tiveram a capacidade de criar uma sensibilidade para lidar com a dor e o sofrimento, condições da própria existência humana, sendo a partir da arte que o povo grego introjetou o gosto pela tragédia, transfigurada em potência humana essencial que fez com que a vida fosse possível de ser vivida. Por isto, tendo a arte trágica o poder de realizar essa transformação e sendo por meio desta que os gregos conseguiram viver em um mundo sofrido e angustiante, constituídos como aspectos da própria natureza humana, conclui o filósofo: “Os gregos não se furtaram de conviver com o aspecto trágico da vida”, porque “a arte não julga, a arte cria”. Considerações finais Retomando a questão, se a evolução da arte resulta do duplo caráter dos impulsos apolíneo e dionisíaco, para Nietzsche faz-se necessário reconstruir uma nova aliança entre mito e música, em contraposição ao pensamento legado pela dialética socrática. Assim é que em O Nascimento da Tragédia Nietzsche irá postular a importância do coro trágico e da pulsão dionisíaca contra o aspecto paralisante do otimismo socrático, em nome de uma filosofia nova que proponha salvar o conhecimento dos dados que a consciência acessa, entendendo que o silêncio inicial do ruminar necessariamente passa por uma reflexão do trágico, condição fundamental para a criação de um novo estado de embriaguez “em que se encarnasse o mito da humanidade de amanhã”. E resumindo, afirma Nietzsche: “Sou um discípulo do filósofo Dioniso, prefiro ser um sátiro a ser um santo”. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ARISTÓTELES - Poética. Lisboa: Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1998. BARATA, José Oliveira - Estética Teatral. Lisboa: Moaes ed., 1981. BORIE, Monique, ROUGEMONT, Martine e SCHERER, Jacques - Estética Teatral – Textos de Platão a Brecht. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982. CAZNÓK, Yara Borges e Neto, Alfredo Naffah - Ouvir Wagner – Ecos Nietzschianos. São Paulo: Musa, 2003. CORRÊA, Paula da Cunha - Harmonia – Mito e Música na Grécia Antiga. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2003. DIAS, Rosa - Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. __________ Amizade Estelar Schopenhauer, Wagner e Nietzsche. Rio de Janeiro: Imago, 2009. FERRY, Luc - Homo Aestheticus – L’Invention du Goût a L’Age Démocratique. Paris: Editions Grasset & Fasquelle, 1990.


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Sobre o “trágico” na previsão da própria morte de Ismael Nery. Rosana de Morais (PPGA-UNESP)

Resumo Esse artigo investiga a ocorrência do “trágico” na obra pictórica e poética de Ismael Nery, que relacionado ao drama pessoal nos últimos anos de sua vida, entre 1930 e 1934, pode ser entendido como uma tragédia encarnada, onde vida e obra ao se confluírem, constituíram um jogo no qual a necessidade e o acaso forjaram Previsão da Própria Morte, uma obra inquietante do modernismo brasileiro. Ao transpor os limites de espaço-tempo, veremos o diálogo com a antiguidade clássica e a arte contemporânea, e como esse artista vivenciou seu pathos e não apenas o representou.

PALAVRAS-CHAVE: Ismael Nery; Modernismo Brasileiro; Morte; Trágico;

Abstract This article aims at investigating how the “tragic” occurs at Ismael Nery’s pictorial and poetic masterpiece, relating it to the personal drama in the last days of his life, between 1930 and 1934, which can be understood as the tragedy embodied. When life and work converge, it can constitute a game, in which the necessity and the random act forged “Previsão da Própria Morte”, a provocative masterpiece in the Brazilian Modernism. When breaking the boundaries of space and time, we can see the dialogue between classic ancient and contemporary art, and how this artist not only represented his pathos, but above all experienced it.

Key words: Ismael Nery; Brazilian Modernism; Death; Tragic.

Introdução

Ismael Nery, em algumas pinturas, poesias e escritos de sua última fase artística, representou elementos que podemos entender como “trágicos”, tal mudança em seu lirismo talvez seja devida ao drama particular originado pelo diagnóstico de tuberculose, a doença que o levou à morte em 1934. No entanto, a ocorrência desses elementos aparenta ter relação também com sua vida pregressa à doença, culminando numa espécie de tragédia encarnada na obra “Previsão da Própria Morte”, desenho no qual Nery prevê a idade com que morreria,


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profecia alardeada desde sua juventude, e que se cumpriu como destino, aos trinta e três anos de idade. Os elementos trágicos a serem analisados são aqueles que inspiram horror e pena, ocasionados pelo acaso e fortuna, e que, transformaram-se em destino. Contidos nesse desenho e nos fenômenos em torno dele, sendo o ponto de partida para um breve estudo sobre o trágico em Nery. Nessa obra, vemos representado alegoricamente um presságio, e, através desse registro que se tornou real, temos o desfecho trágico. E dessa forma singular, podemos considerar que numa abstração de espaço-tempo, o artista dialogou com a antiguidade clássica e também com manifestações contemporâneas na arte, ao romper com o limite da representação artística ao vivenciar seu pathos. Ao descortinarmos as particularidades e acontecimentos em torno de Previsão da Própria Morte, que precedem o desenho em mais de quinze anos e o desfecho ocorrido cerca de dois anos depois de sua feitura, vemos uma obra emblemática do modernismo brasileiro, e quiçá, das artes visuais. Nessa análise, foram utilizadas algumas noções sobre o trágico oriundas da filosofia e do teatro, relacionando aos próprios escritos de Ismael Nery e à crítica de autores brasileiros. PREVISÃO DA PRÓPRIA MORTE: A TRAGÉDIA ENCARNADA Os poetas serão os últimos homens a existir, porque neles é que se manifestará a vocação transcendente do homem.

Ismael Nery

Tão precoce quanto sua morte foi sua vida, teve contato com as vanguardas europeias e com o modernismo brasileiro, no panorama nacional da primeira metade do século XX foi tido como um artista controverso e por vezes maldito, o que acarretou um atraso de quase vinte anos para o reconhecimento de seu legado. Ismael Nery nasceu em 1900 no Belém do Pará e morreu em 1934 no Rio de Janeiro. Foi um artista polivalente, e se expressou através da pintura, poesia e filosofia, é considerado que teve três fases artísticas: expressionista, cubista e surrealista. Além de seu legado de pinturas e poesias também elaborou o sistema filosófico nomeado “Essencialismo”, o qual nunca fora escrito e chegou a nós através dos relatos e depoimentos de seus amigos. De sua produção pictórica restam cerca de duzentas pinturas, e mil desenhos e aquarelas, e pode-se dizer que, na contra corrente da história do modernismo brasileiro, sua


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obra é majoritariamente marcada pelo estudo da figura humana e com poucas alusões ao contexto nacional. Sendo que, sua produção ou que restou dela, fora conservada pelo esforço e dedicação de amigos e conhecidos salvando-a dos cestos de lixo ou da simples destruição, sem menosprezar tantos outros que não foram citados nesse estudo destacam-se o zelo da esposa Adalgisa Nery e do amigo Murilo Mendes. A fim de encerrar essa sucinta apresentação de Ismael Nery vejamos o retrato descrito por Mendes no prefácio que escreveu em 1972 a pedido de Antônio Bento:

O menino nasceu com o século em Belém do Pará, cresceu sob a tutela propícia dos Deuses, filho de um médico que, já com grande fama, morreu muito jovem (Dr. Ismael Nery) e de uma senhora singularíssima, enigmática (D. Marieta Macieira, mais tarde a “Irmã Verônica”), armada de poderes mediúnicos, familiar dos Karamazof1, inteligência notável mas descontrolada, que infernizou a vida do filho (“Ela me construiu e me destruiu”, dizia este); encarnação, em modo superlativo, da “Genitrix” de Mauriac. (BENTO, 1973, p. 7)

Ainda muito jovem, e por volta de seus quinze anos, Ismael afirmava que morreria aos 33 anos, a idade de Cristo, a idade que seu pai morreu. Essa certeza, quase profética, foi atestada por Murilo Mendes, por Antônio Bento, entre outros amigos2. E assim ocorreu seu falecimento com 33 anos de idade, no dia 6 de Abril de 1934, cujos acontecimentos são narrados vividamente nas memórias de Pedro Nava, que fora seu último médico, a seguir, o relato na voz do personagem Egon3 (NAVA, 1983, p. 313 – 315):

A doença foi se mantendo mais ou menos no mesmo quadro até fins de março de 1934 quando aumentaram os sinais de fraqueza e, pior, sonolência que logo passou a uma situação de torpor grave do qual ele mal emergia. (...) Era católico e como tal acabaria. (...) Se insistentemente chamado, sua mímica era de esforço, como foi de sofrimento e protesto quando sua mãe abriu um armário do seu quarto, dele tirando o hábito de irmão-menor dos franciscanos, dizendo alto que ia amortalhá-lo com o dito. Egon sempre guardou a impressão de 1

Mendes faz alusão à obra de Dostoievsky, que na grafia das traduções atuais é Os Irmãos Karamázov, na grafia original para a edição de 1973 lê-se: “Karamazof” (BENTO, 1973, p.7). 2 Algumas das fontes que atestam essa previsão são: Murilo Mendes (1996, p. 58), Antônio Bento (1973, p. 28) e Affonso Romano de Sant’Anna (MATTAR, 2000, p. 60). 3 Em suas memórias Pedro Nava cria o heterônimo Egon, que é seu porta voz..


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que ele esteve consciente até que sobreviesse sua morte. Esta veio às oito horas e quarenta minutos da noite de 6 de abril de 1934. (...) Do velório de Ismael o Egon guardou três impressões indeléveis. Do desespero grandioso de sua mãe que lembrava o das heroínas do teatro antigo e que estava envultada pelas figuras femininas de Sófocles com suas lágrimas bagas de fogo. Da atitude exemplar de Adalgisa cuja dor era mostrada apenas pelo silêncio, pela imobilidade, pelo decorum da atitude, pelo espanto e pela palidez que a cobria. (...) O terceiro fato ocorrido no velório de Ismael Neri e que ficou para sempre gravado na memória de Egon foi a conversão instantânea de Murilo Mendes.

A descrição vívida de Pedro Nava recria o desfecho dramático da vida de Ismael, e também o acontecimento marcante para Murilo Mendes, sua conversão instantânea ao catolicismo, que se deu através de uma espécie de catarse e que alterou profundamente sua poesia nos anos posteriores. Então, como se rebobinássemos uma película, voltemos ao desenho objeto desse estudo, o qual antecipa esse desfecho, dialeticamente transformando-a em tragédia, pois fecha o paradoxo, entre uma previsão de juventude e uma obra inquietante, validado pela morte derradeira.


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FIGURA 1. Ismael Nery. Previsão da Própria Morte, nanquim sobre papel, 15,6 x 22,3 cm, c.1932, col. Chaim José Hamer, S.P.4

Previsão da própria morte (fig. 1) é um nanquim sobre papel, tal composição não é datada e supõe-se que tenha sido feita no ano de 1932. Na qual, temos uma espécie de lápide com destroços de um corpo humano e ao redor e em perspectiva vemos três cruzes, na lápide vemos inscrito o nome de Ismael Nery, logo abaixo se lê a indicação 1900-1933, que dão a entender o ano de seu nascimento e a referência de sua morte aos trinta e três anos. Essa previsão atestada em relatos e testemunhos de diversos amigos alcança na pessoa mística que foi Nery, um tom de profecia, desvairo religioso e obsessão pela figura de Cristo. Que fora retratado em pinturas, em alguns de seus poemas e exacerbado em sua própria fala, como atesta esse trecho colhido em Mendes (1996, p. 57) “Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo encarregado dos sentidos do Universo.”. E justamente esse misticismo que atraiu a alguns, afastou tantos outros, teremos, através de Bento (1973, p. 13-14), a crítica mordaz de Oswald de Andrade com que fulminava poetas e escritores de seu desagrado, adaptada ao pintor: “Não vi e não gostei!” e ainda mais

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Ismael Nery. Previsão da Própria Morte, reprodução fotográfica em Aracy do Amaral, Ismael Nery: 50 anos depois. (São Paulo: MAC Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984, p. 240).


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tarde, diria não acreditar na existência de Ismael Nery, afirmando ser pura criação de Murilo Mendes e de Antônio Bento. Ainda analisando sua obsessão religiosa, vemos na crítica de Aníbal Machado a revelação de transtornos decorrentes e crescentes, ao comentar que, “as taras ancestrais, misto de doçura, religiosidade e certo sadismo psíquico, repontam nele, criando e destruindo a sua personalidade.” (AMARAL, 1984, p. 257). E também na crítica de Sant’Anna:

O ego inflado de Ismael Nery, na confluência entre a mitomania e o misticismo o levaria a coincidir sua figura ainda mais com a do cristão. Não apenas foi enterrado com o hábito de São Francisco, mas tentou coincidir sua morte com a sexta-feira da paixão, quando tinha também, como Cristo, 33 anos. Atrasou-se um pouco, morreu uma semana depois, na sexta-feira de Páscoa. Morria miticamente cercado pelo número três. Morria reinscrevendo simbolicamente a idade da morte do seu pai, também de nome Ismael, morto aos 33 anos. Ismaelpai e Ismael-filho, o Ismael-pai era médico, o Ismael-filho o enfermo. O Ismael-Cristo e o Ismael-homem. O EU e o OUTRO. Dois em um. Três em um: a circularidade mítica e psicanalítica do 33. (MATTAR, 2000, p. 60 - 61)

Seu pathos, tanto a obsessão quanto a doença, na medida em que foi se intensificando fora representado em suas últimas produções, como vemos nesse texto de Ribeiro:

À medida que a doença avançava, suas imagens também apontam a marcha da destruição. Retratou corpos esquartejados com maior crueza, à maneira dos cortes dos açougues e em alguns casos ordenava as letras de seu sobrenome à semelhança do INRI sobre a cruz de Cristo. Seus desenhos do último ano registram as vísceras se voltando contra o organismo, provocando sua destruição e o corpo, não apenas em partes, mas em pedaços decompostos, justificando seu clamor de 1933 na “Oração de I.N.”. (MATTAR, 2000, p. 65)

Os comentários críticos e os testemunhos, aqui concatenados, enfatizam o que podemos ver em outras obras desse período, nas quais percebemos que Nery ao comunicar suas emoções, pensamentos e filosofia, também deflagrou o drama da fragilidade da vida. Essa intensidade dramática de mostrar a fragilidade da vida através da representação intensa da doença e da morte, talvez como tentativa de superação do próprio sofrimento, surge


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também nas obras de outros pintores, por exemplo, o brasileiro Flávio de Carvalho5 e a mexicana Frida Kahlo6. Na série Minha mãe morrendo de Flávio de Carvalho, executada em 19 de Abril de 1947, retrata em nove desenhos, os instantes finais da agonia de sua mãe Dona Ofélia. De indubitável intensidade esses desenhos traduzem a solução encontrada por Flávio para superar o momento de tragédia. E também Frida registrou em suas pinturas seu sofrimento, ao pintar com cores intensas as dores de suas inúmeras cirurgias na coluna no quadro Coluna Quebrada de 1944, e o dilaceramento físico e psíquico decorrente de três abortos, representados na pintura Hospital Henry Ford de 1932; afirmando certa vez, que não pintava sonhos ou pesadelos, pintava sua própria realidade. Os temas que envolvem dor, flagelação e morte se tornaram recorrentes na arte contemporânea, entre tantos outros artistas citamos apenas Carvalho e Kahlo devido ao período artístico próximo e assaz similar ao de Nery. No entanto, esses temas que envolvem sentimentos dramáticos, nos parecem paradoxais em Nery, pois em seu catolicismo a salvação era justamente a morte, vemos no comentário de Enock, a percepção do agravamento através de seu lirismo:

Após ser acometido pela tuberculose que o vitimaria, o lirismo de sua obra surrealista foi cedendo lugar a um exercício de flagelação, de abertura de suas próprias entranhas, e ao afloramento do pesadelo. Foi quando ele criou algumas das obras mais lancinantes da modernidade brasileira. (SACRAMENTO, 1996, p.10)

O lirismo a que se refere o crítico, não parece corresponder à previsão e espera que possuía Ismael da própria morte, e talvez, possamos entender seu “exercício de flagelação”, como consciência e superação, ou simplesmente, ajuste desses conflitos mediante a implacável tragédia. A obra de Ismael em sua totalidade, plástica e poética, e não tão somente as últimas fases, reverberam a frase que Denise Mattar (2000, p.13) tão apropriadamente comentou, “Nery abre tanto a sua alma que rasga o seu corpo.”. Que a nosso ver, enfatiza a tragicidade

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Flávio de Carvalho: polêmico artista brasileiro e um dos grandes nomes do modernismo, atuou em inúmeras frentes, tendo sido: escritor, pintor, arquiteto, teatrólogo e etc. Nasceu 10 de Agosto de 1899 em Barra Mansa, Rio de Janeiro e faleceu em 4 de Junho de 1973, em Valinhos, São Paulo. 6 Frida Kahlo: pintora mexicana próxima da estética surrealista, nasceu em 6 de Julho de 1907 e faleceu em 13 de Julho de 1954, em Coyoacán, México.


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da suas últimas produções executadas no período entre 1930 – 1933, e foram percebidas por críticos que analisaram sua obra, vejamos a observação de Ribeiro: Seu “Testamento Espiritual”, escrito em novembro de 1933, fornece pistas para o entendimento de sua relação com a doença também manifesta em sua produção plástica dos últimos anos. Nele se coloca como um predestinado a explicar, seguindo os passos de São Francisco, a consolar e a amar. Prega que “a humanidade, como as plantas, precisa de estrume” e que de “nossos corpos renascerão aqueles corpos gloriosos que encerram as almas dos poetas, aqueles de que nós já trazemos o germe”. Dessa forma acolhe a doença responsável pela glorificação de seu corpo e espírito. (MATTAR, 2000, p. 65)

Esses excessos, paixões e sofrimentos que compõe seu pathos, surgem não apenas em detrimento de doença, dor ou perdas, mas também no conjunto de sua obra, como vemos na interpretação do psicanalista Harmer, sobre outros aspectos constantes na produção de Nery:

Como psicanalista amante de arte, significou muito ver desfilar diante de mim: filogênese, ontogênese, figura combinada, desenvolvimento fetal, trauma de nascimento, narcisismo, depressão, complexo de Édipo, psicossomática, instinto de vida, instinto de morte etc. (MATTAR, 2000, p. 67)

O olhar psicanalítico de Harmer parece endossar a percepção do mergulho intenso e visceral de Ismael, mergulho esse, que talvez seja o divisor de águas entre o dramático e o trágico, criando espanto não apenas pelo horror, e sim, “Mesmo dentre os eventos fortuitos, mais surpreendentes são os que parecem acontecer de propósito.” (ARISTÓTELES, 1999, p. 48-49). Ao pensarmos na obra de Ismael como um diário e entendermos que toda obra de arte tem necessariamente um cunho biográfico, refletindo a época e o individuo que a gerou, podemos situar os eventos que afluem de sua obra junto à psicanálise, como Harmer observou nesse trecho:

À medida que as obras eram apresentadas, fui me deparando com uma qualidade artística jamais vista por mim na pintura moderna brasileira.


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Excelente no desenho, na aquarela e no óleo, transmitindo sempre uma emoção e um sentimento que me tocavam profundamente. Porém o que mais me impressionou e surpreendeu é que vi, numa parte da obra de Nery, Freud, artista plástico, e isto eu ainda não tinha visto na pintura brasileira e nem na internacional. (MATTAR, 2000, p. 67)

A observação que traça um paralelo entre a obra de Ismael e a psicanálise, possibilitada também pela aproximação do artista ao surrealismo, podem embasar boa parte das interpretações sobre os fenômenos conscientes e inconscientes que afluem em suas pinturas, desenhos e escritos. No entanto, a obra de Nery também parece estar em consonância com seu sistema filosófico, o Essencialismo; que pleiteava uma abstração do tempo e espaço, na busca do aperfeiçoamento físico e espiritual do homem, ou seja, ao fazer tal abstração sobre o mais simples ato, poderíamos identificar aquilo que é verdadeiramente bom na ação humana, pois teria o mesmo significado em qualquer época que fosse feito. E assim, as particularidades e acontecimentos ou fenômenos em torno de Previsão da Própria Morte e das últimas produções de Ismael, parecem estar relacionados tanto ao acaso de forças externas, quanto à liberdade de suas escolhas, que acabaram por forjar uma tragédia encarnada, misto de seus pensamentos e ações, aproximando-o quase a um mito7. CONSIDERAÇÕES FINAIS – RESSURREIÇÃO DE ISMAEL NERY “Um conselho vos dou, com a autoridade que me conferem as rugas de minha resta, o meu olhar febril, as minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causa nojo, mesmo que tal nojo seja mínimo. Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico das vossas sensibilidades.”

Ismael Nery

Talvez, para essas considerações finais seria mais apropriado ao invés de ressurreição considerar a salvação e aniquilamento de Ismael. Mas, ressurreição aqui nesse breve estudo, pretende aludir a uma nomenclatura que, talvez, Ismael preferisse para que fosse entendido o aniquilamento que o salvou. Pois justamente seu declínio físico apenas confirmou cada um de seus passos e pathos, e mesmo alegoricamente, é da ressurreição de Ismael que se buscou tratar, ao pesquisar sua vida e sua obra nesse estudo. 7

Referência alusiva à exposição Ismael Nery: 100 anos a poética de um mito, a cargo da curadoria de Denise Mattar (MATTAR, 2000) e ao artigo de Mário Pedrosa datado de 4 de dezembro de 1966 publicado no jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, no qual o autor correlaciona a genialidade de Leonardo Da Vinci ao homem universal e artista total que também foi Ismael Nery (AMARAL, 1984, p. 194-197).


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De forma, por vezes anacrônica e um pouco desordenada, pretendeu-se explicitar os elementos trágicos na obra de Nery, alguns em decorrência e correlação direta a tuberculose que o levou à morte, outros com relação ao seu misticismo e o “Essencialismo”, seu sistema filosófico. Com esse estudo, não fora pretendido adentrar e esmiuçar o conceito de trágico filosófico ou teatral, e sim apenas, apontar algumas aproximações possíveis nas artes visuais. No caso da Previsão Da Própria Morte de Ismael Nery, o intuito fora o de organizar os antecedentes e precedentes da feitura desse desenho, por acreditar, que é uma obra inquietante na arte brasileira, e quiçá, na história da arte. E assim, convido o leitor, esse implacável júri das permanências no tempo, a reconsiderar mais uma vez a “tragédia encarnada” na vida e obra de Ismael Nery. Vimos que, os elementos “trágicos”, como os descritos por Aristóteles, que causam terror, piedade e emoções não esperadas, passaram a ocorrer com freqüência na obra de Nery a partir do diagnóstico da tuberculose, transitando entre o dramático e o trágico. No entanto, o desenho Previsão da Própria Morte, é um registro pictórico feito em torno de 1932, e com artista já enfermo, no qual ele inscreve a idade com que morreria. Presságio ou previsão, atestada em documentos e relatos desde a juventude do artista. Através dos textos elencados, sabemos também, da crescente obsessão mística pela figura de Cristo e por todos os fenômenos que rondaram a vida de Ismael em torno do número três e do trinta e três, por exemplo, a santíssima trindade e a morte do pai; e o quanto, seu próprio sistema filosófico facilitou essas projeções reais e imaginárias. Não cabe aqui, julgar a religiosidade de Nery, e sim, apenas contextualizá-la. Então, acredito que podemos auferir que os fatos pregressos de uma vida e pensamento místico-religioso, mediante a ferocidade da tuberculose que o impeliu à morte criaram uma obra onde o drama se fez trágico. justamente por justificá-lo. Ou seja, ao entendermos a previsão sinistra desde a juventude a cerca da idade com que morreria como acaso; e correlacionarmos a sua liberdade de escolhas, representada pela fatalidade da doença, porém essa insondável no momento da feitura do desenho; vemos o desfecho inquietante e espantoso, uma tragédia encarnada: onde vida e obra ao se confluírem, constituíram um jogo no qual a necessidade e o acaso forjaram Previsão da Própria Morte. Que só pode ser compreendida com esse potencial de significados trágicos, na medida em que, conseguimos conhecer e identificar esses elementos, que numa abstração de espaçotempo, tão cara a Nery, foram justificados apenas no desfecho final, onde temos a salvação e a redenção do artista.


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E assim, quando analisamos uma das obras onde Ismael Nery retrata sua própria morte, sua potencialidade da expressão artística, a revelação de significados profundos conscientes e inconscientes, que fora forjada entre o modernismo brasileiro e as vanguardas artísticas europeias; podemos sentir, apesar de mais de oitenta anos decorridos de sua morte, seu vigor: maldito, moderno e surrealista. Quiçá, ao novamente narrar os passos trilhados por Ismael Nery, esse homem tão singular e que tinha certeza que seu legado continuaria em qualquer outro e em todos os outros, reverbere em nós e assim sejamos tocados por essa chama, essa paixão, e que nos tornemos poetas, que cumpramos seu vaticínio, e que também nós, manifestemos a vocação transcendente do homem.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Aracy do. Ismael Nery 50 anos Depois. São Paulo: MAC Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1984. _____. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora 34, 2001. ARISTÓTELES. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. BARBOSA, L. M. F.; RODRIGUES, M. T. P.. Ismael Nery e Murilo Mendes: Reflexos. Juiz de Fora: UFJF MAMM, 2009. BENTO, Antônio. Ismael Nery. São Paulo: Gráficos Brunner, 1973. CATTANI, Icléia. Ismael Nery. Porto Alegre: Kraft Escritório de Arte, 1984. CHIARELLI, Tadeu. Um Modernismo Que Veio Depois. São Paulo: Alameda, 2012. MASP. Ismael Nery (1900-1934). São Paulo: MASP, 1974. MATTAR, Denise. Ismael Nery: 100 anos depois a poética de um mito. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2000. MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São Paulo: Edusp, 1996. NAVA, Pedro. O Círio Perfeito. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. SACRAMENTO, Enock. Ismael Nery. São Paulo: Casa das Artes, 1996. SZONDI, Peter. Ensaio Sobre O Trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguardas Europeias e Modernismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1985. TOLEDO, J.. Flávio de Carvalho: O comedor de emoções. São Paulo: Brasiliense, 1994.


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Efemeridade e fabulação em penélope de Tatiana Blass. Petruska Toniato Valladares (PPGA-UFES)

RESUMO: O presente artigo propõe uma análise da instalação Penélope, de Tatiana Blass, exposta do dia 24 de setembro de 2012 até o dia 01 de abril de 2012, na Capela do Morumbi; problematizando a questão da desmaterialização do objeto artístico mediante a efemeridade da obra, sua relação com o espaço em que foi apresentada, estabelecendo possíveis relações entre o título e a representação pictórica sob a forma de tear, que nos remete a fabulações imagéticas acerca do mito grego de Penélope e Ulisses. Palavras- chave: Instalação. Efemeridade. Espaço. Mito.

ABSTRACT: This article proposes an analysis of Penelope installation, Tatiana Blass, exposed the 24 September 2012 until 01 April 2012, in the Chapel of Morumbi; questioning the issue of dematerialization of the art object by the ephemerality of the work, its relationship with the space that was presented, establishing possible relations between the title and the pictorial representation in the form of tear, which leads us to imagery fables about the Greek myth Penelope and Ulysses. Keywords: Installation. Ephemerality. Space. Myth.


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Introdução

A Instalação enquanto poética artística permite uma gama variada de possibilidade e suportes, se tornando uma prática recorrente na produção artística contemporânea. Tais práticas levam criadores e espectadores a refletirem com afinco sobre as obras, levando a interpretações diversificadas e pessoais. Conforme Guattari: “É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”. (GUATTARI, 1992, p. 135).

A Instalação intitulada Penélope, da artista plástica brasileira Tatiana Blass, rompe com a tradição escultórica, compondo uma narrativa visual através da relação com o tempo e o espaço que se dá de forma essencial a sua concepção. A obra consiste em um grande tear manual, de pedal, posicionado no altar da Capela do Morumbi, através do qual se estende um longo tapete vermelho de 14 metros, que se apresenta tecido de um lado e do outro se transforma em um emaranhado de fios (200.000 metros de lã e chenille), que desordenadamente atravessam as paredes pelos buracos existentes na construção – resultado da técnica construtiva em taipa de pilão – e se estendem pelo jardim, onde se misturam, invadindo a paisagem no entorno da capela, cobrindo o gramado, tomando conta dos arbustos e das árvores, ocupando a vegetação (ver figuras 1 e 2).


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Figura 1 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011. Foto Everton Ballardin. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Figura 2 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011. Foto Everton Ballardin. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Penélope permitiu uma apreciação única com relação ao tempo e ao espaço em que foi exposta, trazendo em si questionamentos acerca da efemeridade das Instalações, e a relação do espectador através da vivência de uma experiência temporal e espacial proporcionada pela obra, além de compor uma narrativa visual capaz de nos remeter ao mito grego de Penélope.


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1 A obra e o mito Ulisses e Penélope não haviam gozado sua união por mais de um ano, quando tiveram de interrompê-la, em virtude dos acontecimentos que levaram Ulisses à Guerra de Tróia. Durante sua longa ausência, e quando era duvidoso que ele ainda vivesse, e muito improvável que regressasse, Penélope foi importunada por inúmeros pretendentes, dos quais parecia não poder livrar-se senão escolhendo um deles para esposo. Penélope, contudo, lançou mão de todos os artifícios para ganhar tempo, ainda esperançosa no regresso de Ulisses. Um desses artifícios foi o de alegar que estava empenhada em tecer uma tela para o dossel funerário de Laertes, pai de seu marido, comprometendo-se em fazer sua escolha entre os pretendentes quando a obra estivesse pronta. Durante o dia, trabalhava nela, mas, à noite, desfazia o trabalho feito. E a famosa tela de Penélope, que passou a ser uma expressão proverbial, para designar qualquer coisa que está sempre sendo feita, mas não se acaba de fazer (BULFINCH, 2002, p.222).

Conceito e ideia sempre foram inerentes ao processo criativo da arte. No livro Arte Contemporânea, Archer transcreve uma citação do artista minimalista Sol LeWitt que diz: “na arte conceitual”, escreveu LeWitt, “a ideia ou conceito é o aspecto mais importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma conceitual de arte, isto significa que todo o planejamento a as decisões são feitas de antemão, e a execução é uma questão de procedimento rotineiro. A ideia se torna uma máquina que faz a arte”.1 Em entrevista para a Revista Valise, do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRGS, a artista declarou que o título e o conceito da instalação, vieram após a obra consumada: E no Penélope foi muito diferente porque foi o título. Eu havia feito o trabalho e não sabia que título dar e então a produtora da exposição contou o mito da Penélope, pois pensava que havia relação. Então resolvi dar o título, mas na verdade, às vezes acho que até atrapalha um pouco, pode parecer que é uma ilustração do mito, pois a referência é muito forte. O trabalho veio de outro lugar, era para adicionar mais um sentido e não pra ilustrar uma história. (BASCHIROTTO, 2014, p. 57).

Mas, é quase que imediata à composição de uma narrativa visual sobre o mito grego através da instalação Penélope, afinal, cor, forma e disposição proposta, representam, mesmo que metaforicamente, conceitos e valores que nos remetem imediatamente a história de Penélope e Ulisses. O conceitualismo, parte significativa da arte contemporânea, fica evidente na instalação em questão, que proporciona um envolvimento do espectador, levando cada um a lembrar do mito a partir do momento em que se conhece o título da obra, que em 1

ARCHER, 2012, p. 56.


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conjunto com a imagem reforça ainda mais a experiência sensível e de encantamento que, embora metaforicamente, a obra proporciona.

2 A obra enquanto criação imagética

A arte conceitual é uma prática que privilegia o conceito e o pensamento reflexivo. O objeto artístico na contemporaneidade invoca uma relação ampla no empreendimento de significações, e a instalação Penélope é alicerçada na criação conceitual, com grande empreendimento de significações. Sobre a relação estética e percepção das obras contemporâneas, Johanson escreve: O artista, pela transposição tão exata quanto possível de sua “visão”, mais ou menos rica e profunda, poderá conduzir as pessoas a um universo inteiramente novo, igualmente rico e penetrante, pois a beleza estética admite graus, e quanto maior a originalidade e riqueza dos sentimentos e ideias experimentados pelo artista, e quanto mais direta for a relação com eles, mais intensa e reveladora será a emoção daqueles que os contemplam por meio da obra de arte (JOHANSON, 2005, p. 51).

O homem antigo dava sentido ao mundo através dos mitos. Com a modernidade o homem perdeu sua capacidade de produção simbólica, passando esta a ter uma importância psíquica, uma vez que o inconsciente conserva essa capacidade. Muitas interpretações sobre o mito de Penélope remetem ao campo da psicologia, sendo frequentemente comparadas a relações pessoais. As significações na obra de Tatiana Blass são ao mesmo tempo objetivas e subjetivas. A compreensão da instalação decorre da forma como serão desvelados os signos e significados presentes. Essa capacidade semiótica, inerente ao ser humano, que é capaz de construir relações metafóricas, enxergado algo como outro algo, exatamente como aconteceu com a própria artista, nos proporciona uma gama de possibilidades dentro da instalação em questão. Forma, cor e disposição dos elementos são capazes de evocar os mais diversos sentimentos. Em um primeiro momento o tear e a predominância da cor vermelha nos leva a pensar no amor e na práxis da tecelagem, atividade que durante muito tempo foi considerada como prática exclusivamente feminina.


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Se pensarmos na história da Grécia antiga, essa referencia relacionada ao papel da mulher é ainda mais forte, pois a imagem da esposa perfeita estava diretamente ligada à figura da tecelã, especialmente as mais abastadas, que deveriam ficar no recato do lar, se ocupando com a fiação e tecelagem, como era o caso de Penélope, retratada em vasos gregos, trabalhando em seu tear, a espera do marido (ver figuras 3 e 4).

Figura 3 – Vaso grego. British Museum, Londres – Reino Unido. Fonte: <www.penn.museum>

Figura 4 – Vaso grego. Museo Archeologico Nazionale, Chiusi – Itália. Fonte: <www.logosphera.com>

Além do mito de Penélope, na esfera mítica, no que concerne à relação entre a mulher e a tessitura, há vários mitos que se destacam pela evidência que o fiar, o bordar, o tecer e o costurar são utilizados pelas figuras femininas como um meio de determinar destinos de outras figuras e da humanidade, do seu próprio futuro, e de toda uma vida.


128 “Tecer é também uma imagem arquetípica da própria vida, uma trama feita de muitos fios, experiências, sentimentos e acontecimentos diferentes. Cada um de nós tem uma história singular, que começamos a tecer no nascimento e concluímos na morte”. (GREENE; SHARMAN-BURKE, 2001, p. 126).

O tapete vermelho de grande dimensão, que aparece sendo tecido e desmanchado a partir do elemento chave, que é o tear, também é passível de muitas interpretações. Para a artista, a concepção do tapete vermelho surge vinculada metaforicamente ao local da exposição, a Capela do Morumbi: “queria usar algum elemento próprio de uma capela, por isso escolhi o tapete vermelho, e a partir disso a ideia foi se desenvolvendo”. 2 Para o curador da exposição, Douglas de Freitas, a simbologia do tapete vermelho não está particularmente ligada à religião, mas sim ao poder. A cor púrpura, muito valorizada na Antiguidade e Idade Média, é um vermelho escuro que tende ao roxo, obtida através de algumas espécies de moluscos. Eram necessárias grandes quantidades desses moluscos e grande mão de obra para realizar a extração da substância utilizada para o tingimento, o que tornava o tecido extremamente caro. Devido ao alto custo, o vermelho era tipicamente usado pela realeza e membros da Igreja, e com o tempo tornou-se símbolo do poder real e eclesiástico. 3 Para o espectador a dimensão da obra remete ao tempo de espera de Penélope por Ulisses, ao tamanho do seu sentimento, e a cor ao sangue derramado nas batalhas de Ulisses. Outra observação com relação ao tapete é a sua representação enquanto tecelagem, onde se apresenta tecido em um lado e desfeito no outro, vinculando à ideia de que Penélope tecia pela manhã e à noite secretamente ela desmanchava. Assim, era como se anulasse o tempo, até a volta de seu amado (ver figuras 5 e 6).

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Tatiana Blass em entrevista concedida a Viviane Baschirotto, em março de 2014. www.tatianablass.com.br


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Figura 5 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011. Foto Everton Ballardini. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Figura 6 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011. Foto Everton Ballardini. Fonte: <design-milk.com>

TAMBÉM NA VISÃO DO CURADOR DA EXPOSIÇÃO, DOUGLAS DE FREITAS, O TAPETE NOS RECEBE NA PORTA DA CAPELA COMO SÍMBOLO DE PODER E O SEGUIMOS “ATÉ O TEAR, E VEMOS SUA CONSTRUÇÃO DISSECADA; HÁ UM MOVIMENTO DÚBIO, NÃO SABEMOS SE A PEÇA SE DESMANCHA OU SE ELA ESTÁ SENDO CONSTRUÍDA.

PARADO, O TEAR ACABA POR DESVENDAR O CONSTRUIR DESSA FORMA, UM ATO QUE NORMALMENTE NÃO SE FAZ VISÍVEL. TATIANA NOS DÁ ALGUNS ELEMENTOS PARA INSINUAR UMA EXISTÊNCIA, UM MOVIMENTO, OU UMA CONSTRUÇÃO, E CABE A NÓS IMAGINARMOS O RESTANTE.” 4

Em uma interpretação da escritora, e colaboradora do jornal online Folha de São Paulo, Noemi Jaffe, “fazendo e desfazendo o tecido, ela transforma a demora em

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malícia e, assim, o caos que se vê do lado de trás da capela é como um elogio vermelho à astúcia feminina.” 5 A obra se estende pela parte externa da capela. Os fios que saem emaranhados do outro lado do tear e ultrapassam as paredes de taipa, passando pelo buraco, “invadem o verde do jardim, forrando toda a grama, arbustos e árvores, criando um movimento dúbio de construção e desconstrução, citação ao mito de Penélope.” 6, além de nos remeter a questão da passagem do tempo e ao tempo de espera, pois as intempéries (chuva, crescimento da vegetação) agem diretamente sobre a obra, tomando conta dos fios que acabam incorporados pela natureza. As práticas artísticas contemporâneas levam criadores e espectadores a refletirem com afinco sobre as obras, levando a interpretações diversificadas e pessoais. Conforme Guattari: “É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”. (GUATTARI, 1992, p. 135).

É possível perceber que, sobre a relação obra e mito, a propensão a fabular é inevitável, afinal a imagem nos defronta com sentimentos e significados diversos. São fabulações puramente imagéticas, que se concretizam pela apreensão do conteúdo factual, e levam a um discorrer acerca dos elementos que compõem a obra.

3 A obra no tempo e no espaço

A instalação site-specific Penélope é alicerçada na criação conceitual, com grande empreendimento de significações, absorvendo e construindo o espaço a sua volta ao mesmo tempo em que o desconstrói. Para Miwon Kwon: “Fosse dentro do cubo branco ou no deserto de Nevada, orientada para a arquitetura ou para a paisagem, a arte site-specific inicialmente tomou o “site” como localidade 5 6

www1.folha.uol.com.br. www.tatianablass.com.br.


131 real, realidade tangível, com identidade composta por singular combinação de elementos físicos constitutivos: comprimento, profundidade, altura, textura e formato das paredes e salas; escala e proporção de praças, edifícios ou parques; condições existentes de iluminação, ventilação, padrões de trânsito; características topográficas particulares (KWON, 2008, p. 167).

A experiência sensível proposta pela artista consiste em estender a obra para o jardim, provocando uma intervenção na paisagem, fazendo com que a espacialidade do local faça parte da obra. Sobre essa intervenção o curador da exposição discorre, “do outro lado do tear, os fios escorrem desordenadamente, correm o chão ou sobem as paredes vencendo-as pelos buracos existentes na arquitetura – resultado da técnica construtiva da taipa-de-pilão – e ganham o jardim, se arrastando ao modo de um cipó-chumbo, planta parasita que serviu de referência para a obra. Por não ter clorofila, o cipó-chumbo não pode produzir seu alimento, precisando de uma planta hospedeira para se manter viva. Por cobrir a planta aos poucos, a sufoca; a única maneira de matar a praga é matando também o hospedeiro”. 7

O contexto do museu é parte fundamental na poética da obra em questão, funcionando não só como elemento ativo, mas atuando também como suporte propositivo e catalisador de interatividade. “Parece inevitável termos de deixar para trás as noções nostálgicas do local [site] como sendo essencialmente amarradas às realidades físicas e empíricas do lugar [place]. Tal concepção, se não ideologicamente suspeita, com freqüência parece estar fora de sintonia com as descrições predominantes da vida contemporânea como rede de fluxos sem âncora” (KWON, 2008, p. 182).

A experiência gerada pela obra de Tatiana Blass se dá em um recorte de espaço e tempo promovendo relações e interações essenciais à existência da obra. A partir do momento em que a natureza interage com a obra, percebe-se claramente as articulações visíveis e reais provocadas pela artista. A artista deixa claro sua intenção quando utiliza os buracos da construção para estender a obra para o jardim, mais ainda, quando dispõe os fios de forma que toda ação do tempo interfira na obra, tornando-a visivelmente inacabada, algo em constante construção.

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Douglas de Freitas, curador da exposição. Fonte:<www.tatianablass.com.br>.


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A obra se estende pela parte externa da capela. Os fios que saem emaranhados do outro lado do tear e ultrapassam as paredes de taipa, passam pelo buraco, “invadem o verde do jardim, forrando toda a grama, arbustos e árvores, criando um movimento dúbio de construção e desconstrução, citação ao mito de Penélope.” 8, nos remetendo, assim, a questão da passagem do tempo e ao tempo de espera (relacionando ao mito grego de Penélope e Ulisses), pois as intempéries (chuva, crescimento da vegetação) agem diretamente sobre a obra, tomando conta dos fios que acabam incorporados pela natureza (ver figuras 7 e 8).

Figura 7 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011. Fotos Everton Ballardini. Antes e depois de seis meses. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

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Fonte: <www.tatianablass.com.br>.


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Figura 8 – Tatiana Blass: Penélope. Capela do Morumbi. 2011. Fotos Everton Ballardini. Antes e depois de seis meses. Fonte: <www.tatianablass.com.br>

Como afirma Rosalind Krauss, “Um dos aspectos mais notáveis da escultura moderna é o modo como manifesta a consciência cada vez maior de seus praticantes de que a escultura é um meio de expressão peculiarmente situado na junção entre repouso e movimento, entre o tempo capturado e a passagem do tempo” (KRAUSS, 2007, p. 7).

As relações intrínsecas com o espaço e o tempo promovem a poética proposta por Tatiana Blass: ao mesmo tempo em que a obra absorve e constrói o espaço a sua volta ela o desconstrói. De acordo com Cristina Freire (2006, p. 46) “se o contexto da galeria ou do museu é parte fundamental da instalação, a primeira observação a ser feita é que ela não ocupa o espaço, mas o reconstrói criticamente”. Na instalação site-specific Penélope, o espaço da exposição foi pensado como obra, pela artista, que estabelece uma relação direta com esse espaço por meio da criação de uma obra que dialoga com todo o seu contexto de instalação.

4 A obra e a sua efemeridade

Penélope é uma Instalação site-especific de caráter temporário, transitório, efêmero por excelência. A artista, através da inserção da obra no ambiente, ultrapassa os limites do espaço interno do sítio e passa a desvelar as características do entorno, redimensionando e reestruturando a paisagem. A construção poética em Penélope se


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inicia a partir do momento em que a obra em conjunto com a natureza é remodelada, e na forma como os espectadores acompanham e percebem essa interação. Trata-se de uma produção para existir por um período de tempo determinado, em um local específico e que, mesmo que seja refeita, fora do contexto inicial não será mais a mesma obra, pois não terá mais o mesmo sentido, nem a mesma configuração. Segundo Miwon Kwon, “Nesse contexto, a garantia de uma relação específica entre um trabalho de arte e o seu “site” não está baseada na permanência física dessa relação [...], mas antes no reconhecimento da sua impermanência móvel, para ser experimentada como uma situação irrepetível e evanescente” (KWON, 1997, p. 170).

Conservações de instalações temporárias tem sua importância em tudo de intangível relacionado a elas, para que não se percam os modos de produção e a prática artística empregada. As instalações se apresentam como “um conceito prometido, cuja promessa se desenvolve, cresce, murcha, acerta, fracassa, mas deixa sempre resíduos. Seu conceito não se dissolve [...]” (HUCHET, 2006, p. 37), mas é preciso cuidado, afinal a memória do espectador e do artista, sem registro, pode ser tão efêmera quanto a própria obra de arte. Documentações e registros acerca das instalações temporárias são imprescindíveis, sendo fundamental a sobrevivências das mesmas, mas cria-se uma situação onde temos, de acordo com Cristina Freire (1999), dependendo da forma como o artista conduz sua ideia, uma linha tênue para definição se o que existe é uma obra de arte ou um documento.9 São as imagens e outras formas de registro que possibilitam que estas obras de constituição efêmera sejam analisadas, descritas e de certa forma apreciadas por quem não teve a oportunidade de vê-las no período em que estiveram expostas, além, claro, da questão mercadológica, conforme observou Miwon Kwon (2008, p. 174) “A documentação fotográfica e outros materiais associados com a arte site-specific [...] já há muito têm sido moeda corrente nas exposições de museus e um selo do mercado de arte”.

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FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: Arte conceitual no museu, p. 128.


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Registros documentais são de suma importância, pois se apresentam como extensão e testemunho de obras efêmeras, garantindo uma perpetuidade que seria impossível sem tais recursos. A documentação é essencial para que a memória da arte efêmera não fique limitada apenas as lembranças do artista, do público e dos críticos.

Considerações finais

Em meio a tantas rupturas e reformulações conceituais nas artes, observa-se uma liberdade em relação às convenções artísticas contemporâneas que faz surgir criações como Penélope; com poética e linguagem plástica singular, incluindo também a concepção dos espaços, que funcionam, muitas vezes, como parte relevante para a compreensão das obras. O campo ampliado na arte é um campo complexo, um sistema dinâmico sempre aberto a novas conexões. A questão do lugar, a ocupação do espaço, a instalação da obra no próprio espaço, são questões cruciais quando se faz uma reflexão acerca da arte contemporânea e mais especificamente da Instalação. Obras vinculadas a um lugar previamente determinado, como foi o caso de Penélope não se apresenta como um suporte estático a ser contemplado, promove vivências com experiências temporais e espaciais únicas, que vão muito além do fator estético, e que puderam ser aqui descritas e analisadas com base em registros documentais (fotografias, entrevistas publicadas, vídeos), sem os quais a obra se perderia no tempo e no espaço, ficando registrada apenas na memória do artista e dos espectadores presente durante o tempo de exposição. A artista, através da inserção da obra no ambiente, que ultrapassando os limites do espaço interno do sítio e passa a desvelar as características do entorno, redimensionando e reestruturando a paisagem. Com isso proporciona uma simbiose entre arte, espaço e espectador, que através da imagem do tear, comenta, incorpora ou de algum modo implica conotações simbólicas, culturais e sociais, possibilitando um diálogo com quem a contempla, e os leva a fabular sobre o mito grego de Penélope e Ulisses.


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Referências ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma história concisa. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. BASCHIROTTO, Viviane. Entre meios e matérias. Revista Valise. Rio Grande do Sul: UFRGS, v. 4, n. 7, p. 49-58. jul. 2014. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: a idade da fábula – história de deuses e heróis. 26. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. GREENE, Liz; SHERMAN-BURKE, Juliet. Uma viagem através dos mitos: o significado dos mitos como um guia para a vida. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 1992. HUCHET, Stéphane. A instalação em situação. In: NAZARIO, Luiz; FRANCA, Patricia (orgs). “Concepções contemporâneas da arte”. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. JOHANSON, Izilda. Arte e intuição: a questão estética em Bergson. I. ed. São Paulo: Associação Humanitas/FFLCH/USP, FAPESP, 2005. KRAUS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins fontes, 2007. KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre o site-specificity. Arte & Ensaios 17. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, EBA, UFRJ. Tradução de Jorge Menna Barreto. Rio de Janeiro, 2008.


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L.H.O.O.Q. e o valor esteフ》ico: Como a obra de Duchamp criou um novo conceito de readymade. Pテウlen Pereira Sartテウrio (PPGA-UFES)


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Em 22 de agosto de 1911, o segurança de plantão do Museu do Louvre, ao chegar no salão das obras renascentistas, se depara com um espaço vazio antes ocupado por um retrato de pequenas dimensões de uma mulher, posicionado entre um Ticiano e um Correggio: La Gioconda (a Mona Lisa), de Leonardo da Vinci. Até o final da tarde do mesmo dia, nada havia sido divulgado pois não se sabia ao certo se era o caso de um roubo ou de alguma catalogação do museu. Na noite anterior, o italiano Vincenzo Peruggia, ex-funcionário do Louvre, passou a noite escondido esperando o dia amanhecer para realizar o que viria a ser o roubo mais conhecido da história da arte1 e transformar, assim, a pintura renascentista Mona Lisa em a “celebridade” Mona Lisa. Até 1911, a Mona Lisa estava longe de ser uma das pinturas mais famosas do mundo. A fama veio após ter sido estampada em vários jornais e revistas internacionais que noticiaram o roubo e a obra ter sido finalmente encontrada e devolvida ao museu, no ano de 1913. Hoje fala-se sobre o sorriso enigmático, a identidade da modelo, a linha do horizonte mais baixa de um lado, a composição em pirâmide e outros infinitos motivos que seriam justificáveis para Mona Lisa ter a fama que lhe é atribuída. Mas a verdade é que o roubo da Mona Lisa criou um mito na arte. Antes de ser encontrada, multidões passaram a ir ao Louvre só para ver o espaço vazio onde o retrato costumava ficar. Pela primeira vez, houve fila na entrada do museu. Grande parte dos visitantes do Louvre se amontoam para dizer que viram e estiveram no lugar onde fica a pequena obra, de 53 por 77 centímetros. Até o final do século XX, era fácil reconhecer e diferenciar um objeto de arte de um objeto cotidiano. De uma maneira geral, escultura e pintura simbolizavam a arte e eram concebidos sem maiores dificuldades sobre ser ou não ser arte. Investigar aonde estava a Mona Lisa original e apreciar o espaço vazio deixado por uma “obra de arte” não parecia descabido. No mesmo ano em que a Mona Lisa volta ao Louvre, Marcel Duchamp cria Roda de Bicicleta. Duchamp, assim como Da Vinci, começa como pintor de óleos sobre tela, mas cedo abandona a pintura propriamente dita e, junto ao grupo Dadaísta, começa a contestar os valores atribuídos às artes em geral. Marcel Duchamp e os demais Dadaístas rejeitam todas as técnicas e experiências já construídas nas artes. Os artistas fazem uso absurdo de objetos e linguagens (os quais eram atribuídos valor estético) e não se intimidavam ao usar materiais industriais, desde que fossem empregados de modo não convencional.2 O Dadaísmo, o mais radical dentre os movimentos da vanguarda europeia, não exerce mais uma crítica às tendências artísticas precedentes, mas à instituição arte e aos rumos tomados pelo seu desenvolvimento na sociedade burguesa3. Roda de Bicicleta é uma das primeiras obras criada por Duchamp e consiste em uma roda de metal presa a um banco de madeira de maneira a criar um novo objeto. Apresentada a princípio com o propósito de negar o objeto artístico como algo intocável e precioso, Roda de Bicicleta é o primeiro readymade de Duchamp e, mesmo que re-elaborado pelo artista, nem por isso escapou da crítica sobre ser ou não arte; ter ou não valor. Roda de Bicicleta, assim como os outros readymades, são capazes de se livrarem de sua utilidade real no cotidiano para 1

WITTMAN, Robert K. Infiltrado: A história real de um agente do FBI à caça de obras de arte roubadas. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro. Zahar, 2011. 2 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 356 3 BURGER, P. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008, p. 57


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serem inseridos na esfera da arte. Em 1913 eu tive a feliz ideia de fixar uma roda de bicicleta a um banco de cozinha e ficar a vê-la rodar… Em Nova York, em 1915, comprei numa loja de ferragens uma pá para a neve na qual eu escrevi “em antecipação ao braço partido”. Foi por essa altura que a palavra readymade me veio ao espírito para designar esta forma de manifestação. Um ponto que eu desejo frisar é que a escolha destes readymades nunca foi ditada por deleite estético. A escolha baseou-se numa reação de indiferença visual e, em simultâneo, com uma total ausência de bom ou mau gosto.4

MARCEL DUCHAMP Roda de Bicicleta, 1913 [original destruído, foto da terceira versão - 1951] The Museum of Modern Art – Nova York

Inicialmente, pode-se acreditar que Duchamp escolheria aleatoriamente qualquer objeto do cotidiano e o “transformaria” em arte ao deslocá-lo do lugar original para dentro do museu/galeria. Essa escolha seria, em partes, de maneira arbitrária, uma vez que o próprio Duchamp dizia tentar encontrar objetos esteticamente não interessantes. Claro que, apesar da escolha dos objetos ser feita aleatoriamente, segundo Duchamp, e sem pensar em algum valor estético, não deve-se confundir a escolha do objeto feita ao acaso com a atitude de escolher um objeto ao acaso. A ação dos readymades é o lugar no qual Duchamp demonstra que a arte é muito além da visão, do gostar ou não gostar. Essa atitude eleva objetos banais a condição de obra de arte quando ganham uma assinatura e são transferidos

4

DUCHAMP, Marcel. À Propos des readymades IN: Arte do séc. XX. Taschen, 2005, p. 457.


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para os museus e galerias.5 É muito difícil escolher um objeto porque, no final de quinze dias, você começa a amá-lo ou odiá-lo. Você deve se aproximar de algo com indiferença, como se você não tivesse estética emocional. A escolha dos readymades é sempre baseada na indiferença visual e, ao mesmo tempo, na total abstinência de bom ou mau gosto.6 Roda de Bicicleta inaugura uma fase, que, segundo Argan, “repudia qualquer lógica, é nonsense, faz-se (e quando se faz) segundo as leis do acaso7”. A questão relativa a indiferença na escolha de um objeto, ou a escolha de um objeto passivo, é um dos pontos iniciais para o pensamento de Duchamp. Roda de Bicicleta configura um readymade assistido, definição que o próprio Duchamp posteriormente utiliza para designar obras que possuem dois ou mais objetos extraídos do cotidiano, retirando, assim, a utilização funcional dos mesmos.

Marcel Duchamp instaura uma nova linguagem no campo das artes. Até o começo dos anos 10, o objeto era inábil de ser desligado da subjetividade: primeiramente, a do criador, de quem originou-se, e logo em seguida, à subjetividade do espectador, de quem é solicitada a apreciação, de onde parte o juízo de valor8. O juízo de valor é uma atenção específica dada a algo, e, portanto, se faz de maneira puramente subjetiva e temporária. Não se trata de compreender um processo, mas sim de estabelecer um julgamento. Este conceito de gosto e experiência estética é parcialmente anulado por Duchamp, pois a comunicação entre o juízo de valor e o objeto não são mais o ponto inicial para a prática do artista.

A estética para Duchamp nada tinha a ver com a capacidade, bem ao contrário disso, ele propõe uma visão relativa do gosto ser como um hábito: ser uma repetição de algo já instaurado. O gosto como hábito, para Duchamp, se mostra como uma forma de limitação que bloqueia uma generalizada apreciação da vida9. Se você começa a repetir alguma coisa várias vezes, isso se torna gosto. Bom ou ruim, é sempre a mesma coisa, ainda é gosto.10 E como disse a Cabanne posteriormente: As pessoas armazenam nelas mesmas uma linguagem de gostos, boa ou ruim, de modo que quando se deparam quando algo, se esse algo não é um reflexo de elas mesmas, elas nem ao menos

ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CULTURA BRASILEIRA. Apropriação. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfmfuseaction=termos_texto&cd_verbete=3182 Acesso em: agosto de 2014. 6 CABANNE, Pierre. Dialogues with Marcel Duchamp. New York: Da Capo Press, 1987, p. 48 7 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 353 8 DUFRÈNNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Paris: Éditions Kliencksieck, 1967, p.57 9 MCEVILLEY, Thomas. Empyrrhical Thinking (and why Kant can’t). Artforum, 1988. 10 CABANNE, Pierre. Dialogues with Marcel Duchamp. New York: Da Capo Press, 1987, p. 48 5


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olham para isso. Mas eu tento de qualquer forma11. A Fonte, de 1917, se transforma no exemplo principal da escolha aleatória e negação da estética do gosto, além de ser o readymade mais notório de Duchamp. O urinol de porcelana branca, com pouco mais de 50 centímetros de altura, colocado de forma invertida e assinado por R. Mutt, inegavelmente, na época em que foi enviado ao Salão dos Independentes, causou estranheza. Houve um grande desconforto por parte do júri ao se deparar com um objeto industrial produzido em série (além de ser um objeto exclusivamente para uso no banheiro) sendo promovido à obra de arte. Ainda que o Salão propusesse a aceitação de todas as obras enviadas, A Fonte foi excluída da exposição.

Assim como Roda de Bicicleta, segundo Duchamp, A Fonte nada mais é que um simples objeto passivo deslocado de seu lugar comum e denominado “objeto artístico”. O que se vê é um mictório, mas não é essa a questão de interesse. Não por suas características físicas ou a forma que foi exposta, assinada e sobre um pedestal, mas sim a hipótese de que algo pode se tornar arte, sem necessariamente ter sido criado para apreciação estética (e sem a necessidade também da criação, podendo ser uma simples apropriação, como foi o caso dos readymades).

Se o Sr. Mutt fez ou não com as próprias mãos A Fonte, isso não tem importância. Ele a escolheu. Ele pegou um objeto comum do dia a dia, situou-o de modo a que seu significado utilitário desaparecesse sob um título e um ponto de vista novos – criou um novo pensamento para o objeto.12

MARCEL DUCHAMP assinada R. MUTT A Fonte, 1917 [fotografada para The Blindeman n°2 por Alfred Stieglitz] Nova York

11 12

Ibid., p. 94 DUCHAMP, Marcel. Em defesa de Richard Mutt. Nova York: The Blind Man, 1917 apud TOMKINS, Calvin. Duchamp. São Paulo: Cosacnaify, 2005, p. 208-209.


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Apesar de, por inúmeras vezes, Duchamp afirmar que escolhe os objetos ao acaso, segundo Thierry de Duve é impossível crer fielmente na fala do artista quando se diz indiferente na escolha do objeto. A indiferença visual absoluta é impraticável, e Duchamp alinha em seus escritos muitas pistas que indicam sua consciência a respeito. (…) Desde que a disciplina da estética existe, o sentimento da beleza tem sido a verdadeira substância do gosto, que, por sua vez, tem participado dos domínios em que a estética legisla.13 E mesmo quando Duchamp diz ir contra a estética do gosto, quando é questionado sobre Roda de Bicicleta, ele apenas disse que "gostava de olhar para ela, assim como gostava de olhar para chamas a dançar na fogueira14”.

Um exemplo claro de readymade impossibilitado de ser considerado uma seleção ao acaso é L.H.O.O.Q., de 1919. Duchamp comprou uma reprodução qualquer da Mona Lisa e acrescentou um bigode, um cavanhaque e uma legenda abaixo da imagem com as letras L.H.O.O.Q., que a priori parece uma abreviação, mas lida em Francês soa como elle a chaud au cul, em Português, algo parecido com ela tem o rabo quente. Além da obra ter sido criada no mesmo ano do aniversário de 400 anos da a morte de Leonardo da Vinci, é inegável que a escolha do quadro da Mona Lisa não tenha sido rigorosamente previsto. A esta obra em particular foi cunhado o termo readymade retificado, fórmula inventada pelo próprio Duchamp ao descrever objetos que deveriam sofrer acréscimo.

MARCEL DUCHAMP L.H.O.O.Q., 1919 Philadelphia Museum of Art

13

DE DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. In: Revista do Mestrado em História da Arte. nº 5. EBA/UFRJ, 1998. p. 131 14 MINK, Janis. Marcel Duchamp: a arte como contra-ataque. Trad. Zita Morais. Singapore: Taschen. 2006, p. 48.


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Ainda que Duchamp buscasse envolver ironia e utilizar jogos de palavras em seus readymades, a escolha da Mona Lisa para L.H.O.O.Q. ser de maneira aleatória é irreal. O mito da arte, o roubo mais famoso da história, o quadro com maior fama pintado por um gênio, a obra mais valiosa do mundo; todas essas definições evidentemente pesam para a escolha desse readymade. Se o princípio das obras era ser desprovidas de valor estético, Duchamp gera uma incompatibilidade de idéias ao criar L.H.O.O.Q.. A partir de L.H.O.O.Q., tendo a Mona Lisa como base para esta obra, Duchamp pode ter cometido um deslize que só se conseguiria perceber quase um século depois.

É impossível não fazer juízo de valor sobre a mulher renascentista, ainda mais depois de todo o mito criado em torno da obra. Ao eleger a obra de Leonardo da Vinci como um readymade, Duchamp se apropria de uma pintura com valor estético inestimável, e por L.H.O.O.Q. estar estritamente vinculada a Mona Lisa, torna-se utópico não lhe atribuir valor estético.

A partir de L.H.O.O.Q., Duchamp abre um precedente para que hoje exista um incessante número de obras chamadas readymade mas criadas para exclusiva contemplação, se apropriando de objetos já carregados de juízo de valor. Muitos dos trabalho ditos readymade atual, apesar de serem atraentes, inteligentes e até mesmo manterem seu foco readymade, não devem ser considerados como foram os de Duchamp. Podem até parecer Duchampianos, mas concentrar-se no parecer é perder o sentido. Os readymades de Duchamp funcionaram como uma rejeição ao estilo, agora o readymade tornou‐se um estilo.15 Duchamp não quis criar um novo estilo de arte, mas sim “sugerir que os seres humanos podem exibir qualquer coisa uns aos outros, com intervalos incontáveis de significado e todos os tipos de apreciação que esta realização se abre”.16

O readymade como hábito e como prática artística vai contra todo e qualquer questionamento que Duchamp propôs com suas obras. De maneira inusitada e controversa, o principal website dedicado a vida e obra de Marcel Duchamp, o Understanting Duchamp, comenta especialmente sobre Roda de Bicicleta em cinco aspectos estéticos: prazer visual ocioso; efeito cômico; justaposição de movimento e estático; evocação de prazeres domésticos (sugere uma roda de fiar); e semelhança de uma forma humana (cabeça e pescoço).17 Todos os propósitos iniciais do readymade são colocados de lado nessa análise altamente comparativa e cheia de julgamentos estéticos.

A Fonte, quando contemplada hoje em dia, perde drasticamente o sentido ao ser a ela atribuída explicações como “uma semelhança com as formas femininas”, ou ser reconhecida como boa ou ruim pelos materiais de sua composição. Ainda que o urinol original tenha se perdido, a exposição de réplicas (as quais os museus e galerias fazem questão de dizer que são réplicas) não deveria sofrer nenhuma objeção, já que o importante para Duchamp era a idéia, 15 16 17

MCEVILLEY, Thomas. Empyrrhical Thinking (and why Kant can’t). Artforum, 1988, p 126 Ibid. p. 126 http://www.understandingduchamp.com/ Acesso em: agosto 2014.


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e não o objeto em si. Procurar algum sinal de virtuosismo, como se faz, é estar completamente fora do contexto.

Pegaram meus readymades e acharam beleza estética neles. Eu joguei o suporte para garrafas e o urinol na cara deles como um desafio e agora eles admiram eles pela beleza estética deles.18

Réplicas de A Fonte expostas em diversos museus/galerias

A Fonte, Roda de Bicicleta, L.H.O.O.Q. e outros readymades de Duchamp são hoje, ironicamente, cabíveis de comparação com a Mona Lisa de Leonardo. Não por aspectos técnicos, mas pelo simples desejo de contemplação por parte do espectador; da vontade de entender o porque a obra é boa ou ruim a partir de uma avaliação estética. As filas no Louvre e as parede de proteção da Mona Lisa são confortavelmente comparáveis aos aquários de vidro em que se encontram as réplicas das obras de Duchamp.

Milhões de artistas criam; somente alguns poucos milhares são discutidos ou aceitos pelo público e muito menos ainda são os consagrados pela posteridade. Em última análise, o artista pode proclamar de todos os telhados que é um gênio; terá de esperar pelo veredicto do público para que a sua declaração assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte. (...), o papel do público é o de determinar qual o peso da obra de arte na balança estética19.

18 19 72

KENCAS, Alexander. The grand Dada. Nova York: The New York Times, 03 de Outubro 1968, p. 51 DUCHAMP, Marcel. O Ato Criador. In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.


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BIBLIOGRAFIA:

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1987.

DE DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. In Revista do Mestrado em História da Arte. nº 5. EBA/UFRJ, 1998. p. 125 – 149.

DUCHAMP, Marcel. O ato criador. Apresentado à Federação Americana de Artes, em Houston, abril de 1957 In: BATTCOCK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 2004.

GUERSON, Milena. Olhares sobre a obra de marcel duchamp - a máquina de idéias, o antígeno artístico, o artífice intertexto – um pensador na arte. Revista Cogitationes, Vol. II, Nº 5. Juiz de Fora, ago - nov/2011

MCEVILLEY, Thomas. Empyrrhical Thinking (and why Kant can’t). Artforum, outubro 1988 PAZ, Octávio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002.


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A rainha do Frango Assado - o Kitsch na instalação de Alex Vallaur. Katler Dettmann Wandekoken (PPGA-UFES)

Resumo: O artigo apresenta uma análise da instalação “Festa na casa da Rainha do Frango Assado”, de Alex Vallauri, realizada para a XVIII Bienal Internacional de São Paulo, em 1987, a partir da ótica da Estética Relacional e discute como o Kitsch se atualiza na obra. Palavras-chave: Estética Relacional, Alex Vallauri, Instalação, Graffiti Kitsch. Title: The queen of Roast Chicken - Kitsch in installation of the Alex Vallauri Abstract: This paper presents an analysis of the installation "Party in the House of Roast Chicken Queen," by Alex Vallauri, made for the XVIII International Biennial in 1987, from the perspective of Relational Aesthetics and discusses how to Kitsch updates on the work. Keywords: Relational Aesthetics, Alex Vallauri, Installation, Graffiti Kitsch.

Introdução Reconhecido como o precursor do graffiti no Brasil, Alex Vallauri (1949-1987) espalhou seus graffitis icônicos carregados de humor e referências da cultura de massa pela cidade de São Paulo, transpostos em estêncil em inspiração a partir da sua prática com a xilogravura. Uma singularidade da pop-art com o tropicalismo sintetizada em imagens de bota preta, acrobatas, cupidos, diabos, tigre, pantera, frango assado e telefone, por exemplo, brincavam alegoricamente com a imaginação dos transeuntes. As figuras eram mensageiras do seu despojamento, alegria, humor irônico; um mundo mágico de fantasia que remetiam à infância, mas também ao desejo, em choque à esterilidade do caos urbano. Situada entre a pintura e gravura, podemos dizer, a técnica do estêncil é recuperada por Vallauri nessa década de 1970 para projetos de arte urbana, quando criou matrizes em escala grande para estampar os espaços públicos com desenhos de fácil leitura e reconhecimento. Isso teve ressonância também ao se multiplicar também entre outros artistas de performance e intervenção urbana da época, que tiraram o estêncil do limbo das artes decorativas e recuperou para a Arte Contemporânea dando uma nova dimensão, aliada às pretensões da Pop e saudando o uso que havia na década de 1930 pelos artistas da Ècole de Paris.


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A preferência pelo estêncil se dá por conta da sua estrutura compositiva bastante simples, feita à mão, com rapidez e baixíssimo custo - muitas vezes utilizando papelão para recortar os moldes. Como na qualidade de suporte também facilita uma ação de intervenção em um muro, por exemplo, era uma escolha certa para não correr grandes riscos com a ofensiva policial, principalmente em se tratando de um contexto de final da ditadura militar no Brasil. Por essas qualidades, o estêncil foi uma escolha essencial para o seu projeto de conduzir uma arte que propicie a experiência estética acessível a todos os públicos. O historiador de arte e estudioso da obra de Vallauri, João Spinelli, destaca que a escolha do estêncil vem da preocupação do artista em acompanhar as potencialidades da gravura, que o faz perseguir um desejo de levar às ruas: O artista percebeu que, além de estar em livros, pôsteres e cartazes impressos, a gravura poderia também, de uma forma mais imediata, ser estampada nas paredes e muros das grandes cidades - como fizeram os artistas do século XIX da belle époque, que mudaram a maneira de ver a arte por intermédio dos cartazes- as affiches, por vezes assinadas por importantes pintores como Toulouse-Lautrec (SPINELLI, 2010, p.30).

O projeto democrático de Vallauri de arte urbana parte do intuito de integrar a arte à vida social com um toque lúdico, salienta Spinelli (2010, p. 30) “não somente como instrumento de ação ou de intervenção sobre a realidade, e sim, bem mais que isso, de invenção”. Seus graffitis eram arquitetados numa relação com a cidade como se fora uma narrativa de história em quadrinhos. A Bota Preta (Figura 1) – uma bota fetichista de cano longo e salto agulha - foi a primeira a criar um percurso à deriva pela cidade. Apareceu em bancos de praça, rodoviárias, fachadas abandonadas, entrou nos mictórios públicos e saunas gay. Depois, se juntou a um soutien de bolinhas, um acrobata, luvas que apontavam para uma direção aleatória, telefone, taça de bebida, até figurar a silhueta de uma sensual mulher, tal como as misses dos anos 1950... enquanto que num muro próximo, surgia também um mágico com sua cartola. Assim criavam-se situações relacionais e afetividade entre os graffitis, o público e a cidade. Em algumas circunstâncias, ganhavam interferência de outros artistas (FIGURA 2) ou do público, que acrescentava frases ou desenhos em reforço à mensagem visual proposta pelo artista. A exemplo, Spinelli conta sobre a interferência que a socióloga Guta Marques fez ao lado do grafitti Mandrake em uma oportunidade: “escreveu: Abra-me cadabra-me” (SPINELLI, 2010, p. 131).


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Figura 1 - Graffiti “Bota Preta” de Alex Vallauri em muro de São Paulo. Final da década de 1970.

Fonte:<https://catracalivre.com.br/geral/promocao-catraca/indicacao/a-arte-o-grafitee-o-protesto-de-alex-vallauri>.

Figura 2 - Graffiti de Alex Vallauri (mulher e telefone) com graffiti de Carlos Matuck (homem com buquê de flores). Rua Inácio Pereira da Rocha. São Paulo. 1983.

Fonte: <http://intervencaourbanaribeirao.blogspot.com.br/2012/05/alex-vallauri.html>.

A jornalista Leonor Amarante destacou em reportagem para O Estado de S. Paulo sua percepção sobre a sensorialidade disseminada pelo graffiti da Bota Preta: A bota, um dos desenhos mais populares de Alex Vallauri, perambulou calçadas, chutou, acariciou, protegeu do frio, dançou em gafieiras e discotecas. Transformouse. O couro virou piche, e a perna, parede. Agora ela sai do universo estático do


149 muro e estampa camiseta. Vira personagem de audiovisual. Perpetua-se em xerox e livro de artista (AMARANTE apud Spinelli, 2010).

Já pelo depoimento de Vallauri, percebemos a intencionalidade de converter os símbolos da cultura de massa em ícone de fácil assimilação em convergência às potencialidades que eram exploradas na Arte Contemporânea naquela década pela abertura alcançada pela Pop art: “ao chegar em Nova York, percebi que o telefone é muito importante para os norte-americanos. Eles o utilizam para melhor controlar suas vidas. A partir daí, saí pelas ruas imprimindo telefones por toda a cidade” (NOVA YORK, 1983). Como um enigma, as intervenções deixavam questionamentos, assim sintetizados por Beatriz Rota-Rossi (2013, p.11): “a intervenção é política por excelência e a bota nasce como ícone, que encerra em si a lúcida percepção do autor sobre as questões sociais de seu tempo. Mas também é um enigma, um fetiche. A quem pertence?”. Essa inegável potência subversiva dos graffitis de Vallauri no espaço público, de transgredir a própria maneira de fazer e circular a arte, foi experimentada em nova estrutura quando convidado em 1985 para integrar o Núcleo 1 – contemporâneos 2 da XVIII Bienal Internacional de São Paulo, com o tema “O homem e a vida”, de curadoria de Sheila Leirner. A instalação intitulada “Festa na casa da Rainha do Frango Assado” (Figura 3) possibilitou uma nova dimensão para a proposta do artista. Ocupou os três andares do prédio da Bienal, um total de 88m², onde foi construída uma casa-graffiti com sala, cozinha, banheiro, garagem, jardim e um bar. Nessa instalação, Vallauri trabalhou com os seus já conhecidos graffitis, boa parte criados em recortes de PVC, que se tornaram personagens da festa aliados a objetos que habitaram a casa-graffiti. Repleta de ícones da sociedade de consumo, desde os personagens-moradores, até os móveis reais, como geladeira, cadeira, sanitário e até papel higiênico eram demarcados com graffiti. Os personagens-graffitis participavam de uma festa onde a “Rainha” era a anfitriã e o público da Bienal, junto a outros personagens, era o convidado.


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Figura 3 - Ambiente de banheiro da instalação “Festa na casa da Rainha do Frango Assado”, de Alex Vallauri. 1985.

Fonte: Reprodução catálogo “Alex Vallauri: São Paulo e Nova York como suporte”, Museu de Arte Moderna de são Paulo. 2013. Criada em um muro para os vizinhos no bairro East Village, em Nova Iorque – onde Vallauri desenvolveu diversos projetos junto com outros artistas que vivenciavam essa cena Pop -, a personagem Rainha do Frango Assado (Figura 4) foi personificada pela atriz Claudia Raia em performance apresentada na abertura da Bienal. Seu gestual, assim como a caracterização, reforçava a cultura Kitsch que sobressaía como tema da instalação. Spinelli nos conta as referências assimiladas por Alex na construção da Rainha, que, como vemos, já trazia uma afetividade nostálgica e idealização de um universo feminino, além da sua relação com os objetos de espaços de intimidade – para retomar um termo de Bachelard1 (1993). “A rainha resume uma busca que se inicia intuitivamente nos primeiros 1

Ver: BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Tratando a casa como

potência de imagens de um “espaço feliz”, ela se torna uma questão fenomenológica. Temos o espaço vivido como espaço afetivo (BACHELARD, 1993, p. 206). Ao afirmar que “as imagens da casa caminham nos dois sentidos: estão em nós tanto quanto estamos nelas” (BACHELARD, 1993, p. 20) depreendemos que somos atraídos a formar vínculos, moramos nessas imagens de intimidade, de cabana, concha e ninho como nos mostra Bachelard.


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desenhos de infância, nos mergulhos nas caixas de bijuteria da Casa Lear, nas histórias infantis, nos filmes dos anos 60, na observação fascinada do mundo feminino e de seus fetiches” (SPINELLI, 2010, p. 200). Figura 4 – Ambiente de cozinha da instalação “Festa na casa da Rainha do Frango Asssado”, de Alex Vallauri. 1985.

Fonte: <www.circuitoa.com.br>.

1. Estética Relacional e antagonismos no espaço da instalação Ao debruçar-se sobre as práticas artísticas do início dos anos 1990, o crítico e curador Francês Nicolas Bourriaud identifica lacunas impossíveis de responder criticamente a essas novas práticas pela teoria e reflexões das propostas vanguardistas ou pelas pós dos anos 1960. Dada essa inadequação crítico/teórica para apreender as novas práticas artísticas (como as de Rirkrit Tiravanija e Maurizio Cattelan), Bourriaud cunha o conceito de Arte Relacional para refletir sobre a produção na sua própria época e tempo atual. Isso porque essa estratégia relacional explicitada por Bourriaud dos novos artistas se distanciava tanto de um retorno a qualquer formalismo do legado da modernidade, como tampouco intencionava um sentido de ineditismo ou de ruptura como exemplo das vanguardas e também não podia ser respondida


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pela utopia política das décadas anteriores. A conjunção entre arte e vida que está no cerne das propostas do início de década de 1990, que, contudo, devemos relembrar que já era referencial para a década de 1960, se personaliza e marca essa conceituação de Arte Relacional. O foco desses trabalhos, para entendermos o que está em jogo agora nessa conjunção entre arte e vida, está na preocupação com as relações humanas e seu contexto social dentro da arte, na experiência do público como fator construtivo da obra. A participação do público é requisitada para efetivar a obra. Sendo assim, as problematizações são marcadas por questões ao mesmo tempo sociais e estéticas. Em tempos em que o vínculo social se tornou um produto padronizado, a prática artística se efetiva como uma via de experimentações sociais, sendo o espaço de arte poupado à uniformização dos comportamentos (BOURRIAUD, 2009, p. 13). Para tanto, multiplicamse na contemporaneidade os projetos artísticos das instalações como campo fértil de experimentações relacionais. Mais do que considerar o espaço, as instalações relacionais se pautam numa duração de temporalidade não-monumental baseada muitas vezes na disponibilidade; na percepção sensorial e, como já dissemos, na participação interativa efetiva do público como (re)criador da obra. Essa cultura interativa apresenta a transitividade do objeto cultural como fato consumado (BOURRIAUD, 2009, p. 36). Para além de enfatizar como um campo ampliado, a cultura interativa corrobora com a ultrapassagem do domínio exclusivo da arte. Como equação, está em jogo o fator sociabilidade. Seguindo essa perspectiva, identificamos em Alex Vallauri uma preocupação estética relacional central em sua proposta democrática de arte. Com o desejo poético de que a cidade fosse pensada como uma história em quadrinhos pelas suas intervenções e vivida afetuosamente pelos transeuntes no sentido de ser afectado2 – para retomar um termo de Spinoza (2013) – foi nessa metaformose de seus graffitis transpostos para o espaço expositivo da instalação na galeria que ele alcançou uma resposta mais direta do público. A partir da instalação, seus graffitis se relacionavam com o público, o qual vivenciava todos os ambientes da casa, e se multiplicava para outros espaços indefinidamente, já que o público podia adquirir seus recortes-graffitis e reproduzi-los em outros ambientes, ou mesmo adquirir os móveis e objetos da Casa. Assim, se recriavam e renovavam situações ambientais. Para cada molde que saía, ganhava-se uma nova Casa. Além disso, enumeramos mais 2

Sobre afetos ver: SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.


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processos relacionais nesta obra, como a da obra-obra. Isso porque, meses após a realização para a Bienal, Vallauri foi convidado a realizar uma instalação semelhante em uma galeria de Fortaleza, no Ceará, a “Arte Galeria”, a qual ele chamou de “A Rainha do Frango Assado visita a Rainha do Ceará”. Aqui, fica evidente o elemento propositivo de obra aberta, que não é fixa, é mutante e depende de seu público e origem/lugar. Villaça parece entender de forma semelhante tal proposta geral dos projetos de Vallari quando escreve na apresentação para a exposição individual de Vallauri na Galeria Cesar Aché, no Rio de Janeiro, em 1985, que “com a participação lúcida do espectador, estes graffitis-recortes podem criar inúmeras situações, dando a cada associação um renovado sentido de humor” (VILLAÇA, 2010 apud SPINELLI, 2010, p. 128). É claro que, em diferentes graus, podemos considerar que a arte sempre foi relacional, como nos atenta Bourriaud. Mas, para ele, a obra de arte na contemporaneidade sugere um interstício social – espaço de relações humanas com possibilidade de troca para além das vigentes no sistema global. A natureza da exposição de arte contemporânea “cria espaços livres, gera durações com um ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida cotidiana, favorece um intercâmbio diferente das ‘zonas de comunicação’ que nos são impostas” (BOURRIAUD, 2009, p. 23). Bourrriaud reconhece um caráter inato político na arte contemporânea, ainda que não se aproxime de uma transgressão: “a arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se empenha em investir e problematizar a esfera das relações” (2009, p. 23). Mesmo porque, para ele, esse interstício social permanece mais ou menos harmonioso com o sistema global. A exemplo, cumpre, todavia, uma contrapartida à mecanização das funções sociais característica da sociedade atual. “No interior desse interstício social, o artista deve assumir os modelos simbólicos que expõe: toda representação remete a valores transferíveis para a sociedade”, defende Bourriaud (2009, p. 24). “Toda obra é modelo de um mundo viável” (BOURRIAUD, 2009, p. 27), complementa. Para ele, a obra de arte pode ser criadora de relações sociais, de microutopias do cotidiano e não deve ser pensada apenas como reflexo da sociedade. Artista e público agem no aqui agora, ativando modelos de resposta aos problemas para a sociedade em contraponto à utopia política que rondou as décadas anteriores. Assim, refletindo sobre a crítica feita pelo historiador de Arte Edward Lucie-Smith, em seu livro Art Today, sobre a instalação de Vallauri, em que diz: Era uma recriação satírica de uma casa de classe média, como o espelho do burguês com pretensões de ascensão, iniciando a afirmar-se na terra de ninguém, entre os


154 ricos e os pobres. A ascensão da classe média era um fenômeno marcante no Brasil da década de 1980, especialmente na cidade de São Paulo. A pintura brasileira reinterpreta com frequência a pop art, adaptando-a ao contexto e optando pelos suportes não convencionais (LUCIE-SMITH, 2007 apud SPINELLI, 2010, p. 10).

Reconhecemos nesta obra de Vallauri uma leitura sobre os reflexos da nova situação política do país, como a de um país perdido em sua identidade e guiado por uma classe média burguesa em ascensão. Contudo, Vallauri se esquiva de uma abordagem panfletária de uma visão política e se ancora nos aspectos do cotidiano para um efeito de identificação e autocrítica no público que se permite vivenciar a instalação. Com o enfoque no Kitsch, cujas disposições analisaremos a seguir, ele cria símbolos e um imaginário artístico que, para nossa interpretação, sugere esse interstício social: ativa no público uma reação e imersão no cotidiano, além das esferas sociais e políticas, pelo humor e ironia. Em resposta direta e crítica à conceituação da “Estética Relacional” formulada por Bourriaud, Claire Bishop alerta, entretanto, que a defesa por práticas relacionais esconde e tenta anular o antagonismo nas esferas política, social e cultural dos trabalhos de arte contemporânea. Em nome da formação de vínculos sociais e microutopias cotidianas, essas formas estetizadas de arte como pretendeu Bourriaud, a obra é sempre aberta, não em seus significados, mas em sua própria forma e estrutura. De tal forma também descrevemos a instalação de Vallauri, que é aberta pela participação do espectador, pela continuidade de seus graffitis serem multiplicados em outros espaços pelos moldes de estêncil e pela articulação entre uma instalação e outra, como a “A Rainha do frango Assado visita a Rainha do Ceará”. Mas, por essa questão, Bishop critica que as interações humanas tornem-se o próprio tema da obra e diluem-se os parâmetros de avaliação do trabalho de arte. É como se bastasse para Bourriaud que uma obra aborde a estratégia relacional. Assim, em tom provocativo, ela declara: “para Bourriaud, a estrutura é o tema - e nisso ele é muito mais formalista do que percebe” (BISHOP, 2011, p.118). Isso porque ele deixa de fora problematizações no que tange à própria recepção da obra, já que basta a interação do público como for, e também questões internas próprias da obra. Nisso, estamos de acordo e Bourriaud se esquiva de fomentar uma reflexão para além da forma da obra. Ainda que afirme que toda arte contém algo de político, ele se isenta de análises e deixa as obras sem uma articulação com o contexto social, político e cultural. Não que elas não contenham, por vezes há bastante potencial, mas escapam se seu foco analítico, como o caso de Tiravanija, cuja análise feita por Bourriaud é criticada por Bishop da seguinte forma: “o que cozinha, como e para quem é menos


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importante para Bourriad que o fato de que ele distribui os resultados do que ele cozinha” (BISHOP, 2011, p.116). Citando o exemplo de Gillick, Bishop declara que a estratégia usada “busca uma abertura perpétua em que sua arte seja um pano de fundo para outras atividades” (BISHOP, 2011, p.116). Aqui, de fato, Gillick se limita em produzir arte como desvio para qualquer ação do participante. Por esses exemplos e considerando também a proposta de Vallauri, entramos na questão do pressuposto democrático inerente à estética relacional. Bishop (2011, p. 117) desconfia que “todas as relações que permitem diálogo são automaticamente presumidas democráticas e, portanto, benéficas”. Ora, de fato, a democracia é um conceito e um projeto político que está no centro dos antagonismos discutidos por Bishop e mereceria uma análise profunda à parte. 2. Sociabilidades como forma da obra A instalação “Festa na casa da Rainha do Frango Assado” reconstruiu não somente um ambiente Kitsch, como uma vida Kitsch dentro do prédio da Bienal. Paredes decoradas com motivos florais, móveis e eletrodomésticos pintados com motivos de onça, frutas ou frango assado. Carro e bicicleta mais caros da época na garagem – um Monza cedido pela General Motors e uma bike da Caloi-, uma fonte com luz de neón no jardim, cores tropicais em tons fortes e brilhantes que disputavam com todos os bibelôs imagináveis....assim foi montada a casa da Rainha para receber o público. Os visitantes eram recebidos ao som de boleros, rumbas e salsas. Desejo, nostalgia e signos de ostentação, aliados à precariedade dos painéis cenográficos, remetiam ao caráter descartável da modernidade. Ao entrar no ambiente, a imagem mental remete diretamente à obra pop de Richard Hamilton “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?” (Figura 5).


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Figura 5 - Colagem “O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?”, de Richard Hamilton. 1956. Concebido como pôster e ilustração para o catálogo da exposição This is tomorrow [Este é o amanhã] do Independent Group de Londres.

Fonte: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/pioneiro-da-pop-art-richardhamilton-morre-aos-89-anos>.

O quadro, composto por colagens de anúncios e publicidade de revistas da época, compõe uma cena doméstica em que um atraente casal e praticamente nus se exibe em meio a um amontoado de objetos de desejo da vida moderna, como eletrodomésticos, móveis, tecnologia, decoração, enlatados, pôsteres, jogos e outros objetos de consumo e prazer da classe média da década de 1950. Na colagem de Richard Hamilton operam signos da cultura de massa ordenados pelo consumo e desejo da classe média, tal como os utilizados posteriormente por Vallauri, que inclusive se inspirou nas referências da década de 1950. A diferença de um ser apresentado como um quadro e o outro incorporar a tridimensionalidade da instalação coloca o primeiro como um próprio anúncio dessa crítica às aspirações da classe média, e aí também está a ironia; enquanto que a instalação nos remete a essa manipulação do cotidiano pelo próprio público, que teria se emancipado, mas por outra ótica, está preso nessa nostalgia e no falso desvinculamento com a Modernidade.


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Os objetos, como dizemos, são portadores desses valores. Conforme define Moles (1998), o Kitsch é um estado de espírito que, eventualmente, se cristaliza nos objetos. Isso porque os objetos são portadores de signos e valores da vida cotidiana. O Kitsch é uma atitude. Traz como problematização a relação cotidiana com o ambiente (MOLES, 1998, p. 15). Para Moles (1998, p. 26), “o Kitsch é uma arte pois adorna a vida cotidiana com uma série de ritos ornamentais que lhe servem de decoração, dando-lhe o ar de uma complicação estranha, de um jogo elaborado, prova de civilizações avançadas”. Entre os valores do Kitsch destacamos o ritual de um estilo de vida e o Gemütlickeit. Por ritual exemplificamos a hora do chá, as regras de recepção, ritos, enfim, constitutivos da burguesia e transmitidos até a nossa época variando de cada sociedade. É a sedução de um estilo de vida. E pelo termo germânico Gemütlickeit temos o valor Kitsch que é “ligado à alma e ao coração, intimidade agradável e afetuosa, virtude de sentir-se à vontade” (MOLES, 1998, p. 15). Isso corrobora com a aproximação do Kitsch com a utopia de ser uma felicidade para todos – ideal subjacente à sociedade contemporânea. Há algo de universal nele. Conforme a própria descrição de Villaça sobre a instalação de Vallauri, “A Festa na casa da Rainha do Frango Assado” recompõe ambientes em que estão implícitos e encenados esses rituais. Como o banho da mulher sensual, o cozinhar e lavar louça, a comemoração com o bolo de aniversário, e a própria recepção das visitas na Festa, são situações em que o Kitsch se liga ao cotidiano pela transmissão de um estilo de vida que toca a intimidade, aliado a esses objetos de desejo do consumo da burguesia. Alheio à ideia do belo ou do feio transcendente, o Kitsch cumpre uma função pedagógica: “o Kitsch dá prazer aos membros da sociedade de massa e, por esta via, lhes permite o acesso a exigências suplementares e a passar da sentimentalidade à sensação” (MOLES, 1998, p.77). Quando passa para o campo da sensação, percebemos que o Kitsch pode se assumir como Camp, conforme definição de Sontag. O Camp é totalmente estético, é uma forma de olhar o mundo como fenômeno estético. Contudo, a estética não se dá nos termos de julgamento do belo, mas no seu grau de artifício e estilização. “Encarna una victoria del estilo sobre el contenido, de la estética sobre la moralidad, de la ironia sobre la tragédia” (SONTAG, 2011, p. 370).


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Outra característica própria é a teatralidade, o que enriquece com nova dimensão a atitude Kitsch e nos parece cúmplice dos rituais, conforme citamos. Por propor uma visão cômica do mundo e, portanto, artificial, afastada da Natureza, o Camp se embute dessa sensibilidade como um papel que o indivíduo exerce para lidar com o cotidiano. Assim explica Sontag (2011, p. 360): “Percibir lo camp en los objetos e las personas es comprender el Ser como Representación de un Papel. Es la más alta expresión, en la sensibilidad, de la metáfora de la vida como teatro”. Uma questão mais com que o Camp lida é o tempo. E compreendendo essa relação, também entendemos sua dimensão fantasiosa e mesmo fantástica. Como muito bem coloca Sontag, não é uma relação de novo versus antigo: “El tiempo libera a la obra de arte del contexto moral, entregándola a la sensibilidad camp. Otro efecto; el tiempo reduce el ámbito de la banalidad. Lo que fue banal puede, con el paso del tiempo, llegar a ser fantástico” (SONTAG, 2011, p. 367). Ou seja, para que o indivíduo acesse o Camp, deve liberar-se de um moralismo para com o fracasso, é uma capacidade de fantasiar em vez de frustrar-se. Na instalação de Vallauri nota-se que a atmosfera Kitsch ambiental é dotada de dimensão lúdica, irônica e antisséria, característicos do Camp. No Camp, “a seriedade fracassa. Contém uma mescla adequada do exagerado, fantástico, apaixonado e ingênuo” (SONTAG, 2011, p. 365). Da mesma forma, quando Moles (1998, p. 22) declara: “objetos inanimados, tendes pois uma alma”, tomamos os objetos como carregadores de sentido do cotidiano. Pelo exposto, podemos depreender que os objetos artísticos de Vallauri (Figura 6) articulados no ambiente de instalação, demarcados como arte pelo graffiti, levam à produção de relações pela via da atitude Kitsch e Camp. Bourriaud destaca a importância funcional de formas como a reunião, a festa, a visita que teria “‘função de ponto e encontro’ que constitui o campo artístico e funda sua dimensão relacional” (2009, p. 42). Assim, as relações humanas se tornam formas integralmente artísticas, e os artistas cada vez mais se concentram na invenção de modelos de sociabilidade.


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Figura 6 - Montagem com fotos de ambientes e objetos da instalação “Festa na casa da Rainha do Frango Assado”, de Alex Vallauri.

Fonte: <http://sussurrandoemversosetrovoes.blogspot.com.br>.

REFERÊNCIAS

BISHOP, Claire. Antagonismo e estética relacional. Revista Tatuí, n. 12, 2011. Disponível em: <http://issuu.com/tatui/docs/tatui12>. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. MOLES, Abraham A. O Kitsch: a arte da felicidade. São Paulo: Perspectiva, 1998. ROTA-ROSSI, Beatriz. Alex Vallauri: da Gravura ao Grafite. São Paulo: Editora Olhares, 2013. SPINELLI, João J. Alex Vallauri: Graffiti. São Paulo: BEI Comunicação, 2010. SONTAG, Susan. Notas sobre el camp. In: SONTAG, S. Contra la interpretación. Barcelona: Alfaguara, 2011.


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Impresión de estados alterados. Monica Elisa Contreras, Dario Ivan Ramirez (PPGA-UFES)

Ficha técnica Autor: CoRa Título: Impresión de estados alterados Técnica: Impresión directa de rostro Medidas: 12 impresiones de 28 x 28 cm c/u Año: 2015


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Entre Crescer e Cair - Processos iniciais. Rodrigo Hipólito, Fabiana Pedroni, Maria Angélica Pedroni (PPGA-UFES/CARUFES/PPGHIS-USP) O presente ensaio visual apresenta parte do processo de criação do trabalho “Entre Crescer e Cair”. A proposta, em desenvolvimento, joga com dúvidas sobre a dicotomia Natural/Artificial através de pareamentos como Inserção/Sobreposição, Desgaste/Memória, Deslocamento/Decet. Na fase inicial dos diálogos para a concepção de “Entre Crescer e Cair” encontram-se esquemas, desenhos, palavras soltas e registros fotográficos. Através dessas anotações visuais é possível perceber o valor da matéria-madeira para o desenvolvimento do jogo poético em construção. Do mesmo modo, a ordenação realizada através de uma mirada para os utensílios improvisados para a vida no campo e a evidência das presenças orgânicas e sintéticas marcam os caminhos visuais indicados por este ensaio.


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Formas Flutuantes. Wanessa Cordeiro (PPGA-UFES) A história de Fayga começou em Lodz, Polônia no ano de 1920. Estabeleceu-se no Brasil em 1934, país onde iniciou sua trajetória artística a partir da gravura figurativa nos anos de 1940 até a abstração total perfazendo um caminho de mais de 60 anos de produção intelectual. Para este ensaio foram selecionadas algumas aquarelas que compuseram a exposição “A Música da Aquarela” apresentada no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1999. Constituída por uma série de 31 aquarelas em que a cor se manifesta na forma abstrata. Fayga Ostrower trata a cor como um elemento libertador ilimitado, à medida que a obra se desenvolve as cores ganham uma variação de maior ou menor intensidade, além de encontrarem-se umas com as outras em uma expressividade que mantém certa relação com o real. Estas aquarelas foram à renovação de uma artista que se encontrava em sua fase madura, pois remetem à redescoberta de sua subjetividade criadora e de seus objetivos poéticos e estéticos. Estes trabalhos nascem, em parte, da beleza temporal da música que a artista transporta para a espacialidade. “Orquestra uma transferência de ritmos, movimentos, fluidez, numa interação quase completa entre a lógica de criar com autonomia criativa e um mundo poético totalmente pessoal, o que a leva a criar uma interação entre o material e o acaso criado por seus gestos”. (COUTINHO, 1999, p. 10) Fayga acreditava que, com poucas cores básicas, era possível criar relações distintas e formular ordenações colorísticas que correspondiam a expressivas e naturais estruturações espaciais. Não é possível falar de cores isoladas, pois o valor exato de cada cor depende do conjunto onde ela é vista: seu “contexto colorístico”. (OSTROWER, 1986, p. 236) Na exposição “A Música da Aquarela”, a artista tomou como base criadora três cores básicas, o azul, o magenta e o amarelo. Neste ensaio, levantaremos considerações em relação às manifestações do elemento visual cor em algumas das obras expostas. Como por exemplo, no tríptico Oceano (Figura 1), onde as variações de azul se manifestam em uma textura que evoca uma vaga. A imensidão oceânica não permanece estática, pois há simulações de movimentos provocados pelo vento. Os traços são diretos e se impregnam com os acasos que ocorrem durante a


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elaboração da obra. Camada após camada, a aquarela gera nuances que se enriquecem com seus traços anteriores. Formas e cores se transpõem, como se compostas como música, nota após nota, além de ritmos, repetições e intervalos. A artista explora as formas através de múltiplas variações, e aprofunda suas descobertas cromáticas para formar uma atmosfera penetrante e suave. A técnica da aquarela é uma transmissão ideal entre os títulos que remetem a uma figuração e a abstração, passagem secreta entre o imaginário e a memória, materializada na transparência adquirida pela tinta diluída. O azul possui um movimento concêntrico o que evoca a uma maior sensação de profundidade e torna-se cada vez mais intenso de acordo com a amplitude de sua tonalidade. “Quanto mais escuro for o azul maior é a capacidade de atrair os seres humanos para o infinito, despertando desejos e forças sobrenaturais”. O azul claro fica cada vez mais longínquo e à medida que vai clareando perde sua sonoridade até encontrar o silencio absoluto e transformar-se em branco (KANDINSKY, 2000, p.93). Na obra Transições (Figura 2), ocorre literalmente uma transição entre o branco existente no suporte passando por um magenta translúcido que vai se transmutando em um azul escuro traçando uma diagonal no centro da folha criando uma ideia profundidade. Fayga cria um jogo de equilíbrio e não perde o ponto de apoio, os traços não são diretos e se impregnam com os acasos que ocorrem durante a elaboração da obra. A aquarela gera nuances que se enriquecem com traços anteriores, a composição torna-se ritmada e com aspectos fluidos. Com um olhar sobre a natureza a artista não pretende reproduzi-la, mas reproduzir sua essência transpondo elementos da natureza para suas obras. Fayga explora as formas através de múltiplas variações aprofundando suas descobertas cromáticas. O primeiro desafio é se inscrever na referência original que é o branco do papel arché e depois como dispor a luminosidade e intensidade de cada cor e ao mesmo tempo conectar as cores entre elas. Essas obras não são estruturadas por um esboço, existe somente a cor que deve se instalar e determinar seu lugar adequado criando um intenso jogo entre o imaginário e os segredos de seus gestos. Portanto, a artista escreve sobre o pensamento imaginativo propondo como exemplo o pintor que de fato, não imagina em termos de imagens concluídas, ele pode partir de emoções que nem sempre são conhecidas conscientemente.


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Referências: GAGE, John. A Cor na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

LUSTOSA, Heloisa Aleixo; COUTINHO, Wilson; SAMPAIO, Lilia. A Música Da Aquarela. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1999.

BARROS, Lilian Ried Miller. A Cor no Processo, Um estudo sobre a Bauhaus e a Teoria de Goethe. São Paulo: Senac São Paulo, 2011.

COUTINHO, Wilson; SAMPAIO, Lilia. Fayga Ostrower. Rio de Janeiro: GMT Editores Ltda, 2001.

GOETHE, J. W. Doutrina das Cores. Tradução GIANNOTTI, Marcos. São Paulo: Nova Alexandria, 4° Ed, 2013.

OSTROWER, Fayga. Universos da Arte. Rio de Janeiro: Campus Ltda, 3° Ed, 1986.

KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2° Ed, 1996.


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A linguagem corporal como narrativa em Blow Job (1964). Samir Torres Scardini (PPGA-UFES)

Resumo O corpo tem potencial imenso para construir narrativas por meio das reações físicas e fisiológicas que o acompanham. Andy Warhol, na direção do filme Blow Job (1964), ao longo de 35 minutos expõe em close e com câmera fixa um conjunto de reações de uma pessoa em uma simulação ou real felação. Em nenhum momento é exibido um parceiro ou órgão genital, o único direcionamento apresentado é o título. O restante fica por conta da imaginação dos expectadores com base nas experiências pessoais a visualizarem as reações do rosto do ator. Uma forma de mostrar o invisível com base apenas nas consequências de uma provável ação sugerida. A seguir será proposta uma análise da obra com base em Steven Shaviro, no livro The Cinematic Body. Palavras chave: Warhol, Blow Job, Shaviro, corpo. Abstract The body has immense potential to build narratives through physical and physiological reactions that accompany it. Andy Warhol toward Blow Job film (1964) over 35 min in close exposes fixed camera and a series of reactions of a person in a simulation or actual fellatio. In no time you see a partner or genital organ, the only direction is presented the title. The rest is up to the imagination of viewers based on personal experiences viewers the actor's face reactions. One way to show the invisible based only on consequences of a probable suggested action. The following will be proposed analysis of the work based on Steven Shaviro, in The Cinematic Body. Keywords: Warhol, Blow Job, Shaviro, body.

Introdução

Sugerir. É isso que Andy Warhol aparenta fazer no filme Blow Job (1964). Um filme mudo, em preto e branco, com uma câmera fixa que mostra apenas as expressões de uma pessoa. Sim, chamo aqui pessoa e não simplesmente ator. Não é possível dividir onde ela atua e onde ela apenas reage ao estímulo.


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Se alguém assistir a Blow Job sem ler o título, o filme se trataria apenas de um conjunto de cenas sugerindo inúmeras situações podendo ser descritas pelos observadores como dor, tensão, alívio e prazer, tão reais e diferentes tais como a própria realidade.

O real é a inspiração típica de Warhol que apresenta em várias de suas produções a ânsia por mostrar o cotidiano destacando a arte que existe nele. Mais uma vez, Warhol conseguiu mostrar as minúcias do real nos surpreendo neste filme mudo que sugere apresentar como seria o rosto de uma pessoa durante o sexo oral desde o início, orgasmo e satisfação (INDIANA, 2006).

O Filme

Gravado em 1964, Blow Job compõe a filmografia de Andy Warhol, um desenhista publicitário que se voltou para o campo da arte experimental realizando obras que retratavam o cotidiano, sejam os pequenos atos como o sono, comer uma maçã, o sexo, o acender e apagar das luzes de um prédio à noite, extraindo o potencial sensível de cada uma dessas ações.

O filme original em preto e branco tem cerca 35 minutos de duração, entretanto, para esta pesquisa foi possível somente o acesso a uma versão editada de 9 min11. Gravado na “Factory” uma das poucas coisas de concreto que podemos afirmar sobre a sua realização é que conta com a participação DeVeren Bookwalter, 25 anos, um dos inúmeros artistas em início de carreira que frequentavam o estúdio de Warhol (INDIANA, 2006).

A questão se ocorreu ou não uma felação ou se foi uma simulação não será objeto deste artigo. Bookwalter, ator deste “monólogo” estava no início de sua carreira e, mais tarde, se consolidou tendo destaque, principalmente, em produções para a televisão, ganhando prêmios1 como o Los Angeles Drama Critic Award em 1978.

As histórias em torno de Blow Job são várias, como o ator escolhido primeiramente não ter acreditado que o convite fosse real e não ter aparecido para as filmagens; o sexo oral ser

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DeVeren Bookwalter – Obituary. NYTimes.com. The New York Times 31/07/1987.


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realizado por uma mulher; o sexto oral ser realizado por cinco rapazes e até mesmo não ter ocorrido nenhuma forma de felação, apenas uma simulação.

Warhol não se preocupava com a natureza interior do cinema, mas apenas com seus efeitos mais flagrantes e superficiais. Destacando uma lógica de estímulo e resposta do corpo (SHAVIRO, 1993). Com isso, deixa toda a questão de narrativa para o expectador, ficando a cargo da criatividade pessoal de cada um imaginar como cada personagem chegou àquele ponto na trama.

As sensações vivenciadas pelos personagens são potentes. Warhol foca em cada sensação vivida, seja através do uso intenso da câmera fixa ou do close sem tempo pré-determinado, tendo como resultado a fragmentação das reações físicas (SHAVIRO, 1993). Esse fato pode ser identificado em um Bookwalter, no início do filme desinteressado e pensativo, e sua evolução para uma perda de controle das expressões do rosto e finaliza com o restabelecimento da tranqüilidade após o orgasmo ou pseudo orgasmo. Blow Job é um tipo de filme onde “nada” acontece, afinal temos apenas um rosto com várias expressões e um título, nada mais, além disso. Até mesmo o som e as cores são retirados. Esse minimalismo nos força naturalmente a prestar mais atenção aos detalhes, uma resposta habitual, no intuito de entender o que ocorre ali. Seria a mesma reação de uma pessoa cega que tem audição e tato potencializados se comparada a uma pessoa com todos os sentidos normais (SHAVIRO, 1993).

Possivelmente, Warhol quis aumentar nossa atenção aos gestos de dor, prazer, tédio ou satisfação, que ganham um peso imenso. O cenário se apresenta neutro: uma parede descascada sem nenhum detalhe que chame a atenção como forma de acentuar ainda mais o rosto do personagem.

A fragmentação das reações

Um rosto e com ele se narra todo um acontecimento, sem som, sem texto e apenas um título. Warhol possibilita a divisão quase que fisiológica da ação sugerida no título. Olhos, boca, músculos da face, movimento conjunto do pescoço e cabeça, são as únicas formas utilizadas


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para retratar todo o acontecimento. A importância elemento corpo é tamanha que é possível fazer uma análise separada de cada elemento com o ato sexual sugerido. Ao se concentrar no elemento boca, é possível observar que o modelo se mostra comprimindo os lábios, cerrando os dentes e posteriormente a apresentando de forma convencional até por final e limpa pelo próprio modelo, demonstrando as fases do ato que vão desde o prazer intenso até o momento que deixa de se tornar prazer para a dor, e posterior a satisfação aparente e desligamento. O cigarro no final é como um sinal que tudo voltou a sua normalidade e o tédio toma conta novamente daquela pessoa, o orgasmo é apenas um momento do dia.

É possível ressaltar, ainda, a ausência de sorrisos por parte do modelo, como se o personagem estivesse arrependido ou não tivesse gostado de ter praticado o ato, ou ainda que não recebesse o prazer que esperava. Os momentos em que os dentes são expostos demonstram mais dor do que prazer.

As mãos e braços têm participação discreta no filme, pelo menos na forma visível. Aos 3min21 se apresentam levantadas e com os punhos cerrados em uma possível demonstração de gozo no qual o modelo sugere se render a uma sensação, em um movimento de tentar segurar a própria cabeça. Em posterior elas surgem em tela postando um cigarro na boca e o acendendo.

É claro que elas estavam participando da ação o tempo todo, entretanto, pelo corte do close, não é possível visualizar sinais de sua ação. Aos 5min28 é sugerido que as mãos foram utilizadas para fechar a calça após o sexo (ação evidenciada pelo movimento dos ombros), entretanto de forma muito rápida, não coerente com o tempo que se levaria. Seria necessário se levantar (caso estivesse sentado) ou se abaixar (caso estivesse em pé), esta incoerência no movimento pode ser um sinal de simulação de todo o ato, sendo esta a falha que demonstra isso de forma mais clara.

Através dos movimentos realizados pela cabeça e pescoço é possível perceber que ela se mantém em sua maior parte voltada para o horizonte ou para a vertical, em momentos de elevação súbita. Ela por várias vezes é encostada na parede, que utiliza como apoio,


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principalmente após os 2min30 de filme, talvez seja após o orgasmo momento no qual a felação deixa de promover prazer e passa a causar desconforto.

Após os 5min se observa a estabilização e retorno a normalidade, com movimentos de cabeça, corpo simulando o fechamento do zíper e em seguida é aceso um cigarro e todo o movimento da cabeça passa a demonstrar um momento de introspecção, no qual o modelo se preocupar em se ajeitar e posicionar-se de forma mais confortável no suporte, possivelmente uma cadeira.

Os olhos não mentem. Quem nunca ouviu esta frase? Realmente, o olhar é um dos elementos mais utilizados para se verificar a veracidade de um determinado sentimento ou emoção. Nos primeiros minutos do filme Bookwalter chega a olhar para a câmera, como se estivesse se ambientando à situação. Warhol tem como característica não gravar dois takes da mesma cena. Então, provavelmente entre a conversa sobre o filme e o filme propriamente dito não houve muito tempo para o ator pensar no que ali estaria ocorrendo.

Olhos se fecham em alguns momentos, em seguida voltam-se para baixo, possivelmente para visualizar um provável parceiro (a), e voltam a contemplar o horizonte. Chama atenção a indiferença do olhar, pois para o homem que se prende mais aos estímulos visuais, é fundamental a visualização do ato como elemento a mais do prazer, e no caso representado, o olhar do personagem se mostra disperso.

A direção

A inovação mais surpreendente de Warhol foi não diferenciar o personagem assumido pelo ator da realidade da pessoa que a interpreta:

Todo mundo seguiu em frente fazendo o que sempre tinha feito, sendo eles mesmos (realizando suas rotinas da mesma forma que faziam no dia-a-dia), entretanto na frente das câmeras. Suas vidas se tornaram parte dos meus filmes e, claro, os filmes passaram a fazer parte de suas vidas; e assim, muito em breve não seria possível separar os dois. (BERG, 1989)

A busca por retratar o cotidiano se revela também nos elemento de direção, a ausência de cortes, roteiros improvisados e sem ensaios e na iluminação simulando o natural.


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Em Blow Job toda a ação é filmada com uma câmera fixa, com o ator em uma posição central da imagem, não dá para saber se ele está em pé ou sentado, apenas que se encontra próximo à parede, pois chega a encostar nela por algumas vezes.

A iluminação é na sua maior parte lateral (esquerda para direita), o que causa uma sombra no lado direito do modelo, bem como na parte inferior do rosto do personagem nos momentos em que olha para baixo. Tal luz provavelmente seja proveniente de uma janela, na tentativa mais clara de retratar com seria o ato ali descrito em sua realidade dentro de uma casa qualquer.

Quanto ao figurino, o pouco que podemos observar é que é composto por uma jaqueta de material parecido com couro, com as golas levantadas, aspecto típico do estilo rebelde da década de 1960, apresentado no filme The Wild One, estrelado por Marlon Brando em 1953.


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Figura

01: sequência

de print screen “Andy Warhol

Blow Job

(1964)”.

Disponível

em:

https://www.youtube.com/wacht?v=1MKfUxIij04. Acesso em: 15/04/2015.

Em termo de efeitos podemos destacar a ausência proposital do som, gerando, por conseqüência, maior atenção ao conteúdo imagético. Quanto à edição de imagens nota-se momentos nos quais são acrescentados elementos circulares, possivelmente furos na própria película, bem como o clareamento intencional da imagem até a sua saturação (vide figura 01).


191

Estes elementos que marcam os primeiros 7 segundos de exibição, e ocorrem novamente por volta dos 2min50, se repetindo aos 5min55 e aparecem por último aos 8min40. Podemos interpretar estes sinais como “vinhetas” para os momentos chave do filme, tais como o primeiro contato da boca com o órgão sexual do ator, a ejaculação, o encerramento da felação e por último o retorno do personagem para outras atividades.

Conclusão

Blow Job é um filme que não passa despercebido. Gera sentimentos sempre. Um filme que retrata um ato sexual apenas com a sugestão de reações do rosto de um personagem.

A estratégia, por mais que não tenha sido criada por Warhol, foi executada com maestria, encaixando-se perfeitamente na proposta de causar o choque do real, isolando o ato do contexto e apresentando cada reação do corpo com destaque.


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Figura 02: sequência de print screen “Hysterical Literature: Session One: Stoya (Official)” disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PQuT-Xfyk3o> Acesso em: 15/04/2015.

Um paralelo do que foi apresentado por Warhol foi feito em 2008 e 2009 pelo fotógrafo Clayton Cubitt na série de vídeos intitulados “Hysterical Literature”.

Nesta versão são

apresentadas mulheres estimuladas por meio de vibradores tentando realizar a leitura de um livro. Os vídeos tiveram como plataforma de exibição o Youtube, sendo que o primeiro “Hysterical Literature: Session One: Stoya (Official)” contabilizou mais de 15 milhões de


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exibições. Comparando o projeto de Warhol e Cubitt, percebemos que os aspectos de direção da câmera fixa são mantidos, bem como o tom preto e branco, entretanto os vídeos apresentam som, o que chama a atenção do expectador para outros elementos.

Clayton James Cubitt é conhecido por criar obras ousadas que interagem erotismo e moda. Seus trabalhos são uma tentativa de ultrapassar os limites do óbvio e, assim com Warhol, descobrem que é muito mais impactante insinuar do que simplesmente exibir um ato.

Hysterical Literature e Blow Job são propostas de Cubitt e Warhol para uma análise mais profunda dos atos por elas tematizados. A masturbação feminina e o sexo oral são temas que movimentam com intensidade o imaginário das pessoas. Entretanto, a maioria das produções acerca desse assunto se foca, basicamente, na estimulação dos genitais. Estes criadores visualizaram nas reações corporais aos estímulos, algo muito mais arrebatador e capaz de produzir significado.

Por isso, alteram o foco de suas objetivas para as mudanças no rosto, corpo e fala, desprezando o elemento fálico ou vaginal. Como resultado, alcança manifestações muito mais reais, a reação dos rostos e os espasmos corporais ocupam a totalidade da tela, e não concorrem com a visualização dos órgão sexuais, que provavelmente chamariam mais a atenção dos expectadores. Soma-se a tudo isso, a estética simples dos cenários, figurinos, juntamente com a utilização do P&B nas imagens.

Em Blow Job e em Hysterical Literature a atividade invisível é radicalmente presente a partir das respostas visíveis que provoca (SHAVIRO, 1993). Podemos destacar como a principal característica das duas produções o seu poder de sugestão, hoje tão evidenciado nas propagandas, nos quais se mostra um produto e posterior uma reação. Sem essa estratégia seria impossível relacionar causa e efeito dos produtos anunciados, dentro do curto tempo de 30 segundos dos comerciais de televisão. O filme ainda mostra o quão avançado se encontrava Warhol em relação ao seu tempo. Suas estratégias de direção ainda são consideradas inovadoras e inspiradoras mesmo 50 anos após serem utilizadas.


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Referências: BERG, Gretchen. “Nothing to lose: an interview with Andy Warhol”, IN Andy Warhol: film Factory, London: British Film Institute, 1989.

INDIANA, Gary. Andy Wahol: Mr. América. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006.

SHAVIRO, Stevie. The cinematic body: teory out of boudns. Minneapolis: University of Minnesota, 1993.


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A mulher gorda na arte: Transgressões e possibilidade. Júlia Almeida de Mello (PPGA-UFES)

Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar uma discussão sobre a produção artística de mulheres corpulentas que trazem uma carga política direcionada a busca pelo distanciamento dos preconceitos através da arte. Questões concernentes a gênero, identidade e poder são entrelaçadas através da leitura de obras de artistas como Laura Aguilar, Rebecca Harris, Brenda Oeulbaum, Elisa Queiroz e Fernanda Magalhães. A metodologia da pesquisa se baseia em um levantamento próprio que iniciamos em 2011, com o propósito de (re)conhecimento do projeto poético dos artistas que utilizavam o corpo gordo como imagem geradora em suas criações. Os resultados comprovam a potência artística na reavaliação de valores culturais engessados e homogeneizados. Palavras-chave: Arte. Gordura. Gênero. Política.

Abstract This article aims to present a discussion of the artistic production of corpulent women that brings a political load directed to the search of prejudice detachment. Issues related to gender, identity and power are intertwined by reading works by artists like Laura Aguilar, Rebecca Harris, Brenda Oeulbaum, Queiroz Elisa and Fernanda Magalhães. The research methodology is based on an survey we started in 2011 with the purpose of (re)knowledge of the poetic project of the artists who used the fat body as generating image in their creations. The result shows the artistic potency in the revaluation of cultural values stiffed and homogenized. Keywords: Art. Fat. Gender. Policy.

A arte é capaz de refletir momentos, histórias, memórias, culturas e sociedades. Tendo essa potência, ela também é capaz de mostrar e reamostrar os corpos de seu tempo. Várias figuras foram tidas como ideais ao longo dos séculos. Apesar disso, os padrões clássicos de beleza pareceram perdurar. Ainda assim, com a popularização da obesidade, o aumento de peso da sociedade e as especulações médicas em torno dos níveis de gordura, diversos artistas encontraram maneiras de demonstrar seu


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posicionamento em relação a esses assuntos. Como dizem Haslam & Haslam (2009, p. 197), “obesity is opening up new areas of artistic exploration and expression”1. Em 2011, iniciamos um levantamento para conhecer melhor quais artistas trabalhavam ou já haviam trabalhado com o corpo gordo na contemporaneidade e encontramos, à época, mais de 50 representantes. Grande parte deste número corresponde a artistas corpulentas que parecem se relacionar com a arte como forma de rediscutir o lugar desse corpo na sociedade. Essas artistas parecem apresentar uma arte de enfrentamento às questões concernentes ao gênero e aos padrões estéticos, através de trabalhos que comportam uma forte carga política. Embora as artistas não se assumam em algum tipo de movimento, indicam buscar resultados semelhantes: o distanciamento do(s) preconceito(s). As artistas que veremos no decorrer deste artigo possuem histórias e corpos em comum. Começaram a idealizar a sua arte a partir da sua imagem, da exploração da sua corpulência em busca de um confronto com o preconceito. Depois de usarem a arte para extravasarem suas angústias e reivindicarem seus direitos, muitas indicaram perceberem na arte uma possibilidade de traduzir vozes daqueles que, por algum motivo, foram silenciados. Assim, o que parte do próprio corpo, transcende para o reflexo alheio, uma proposta que condiz com as abordagens da teoria Queer, que para a filósofa Beatriz Preciado (2010), acabou tomando o sentido de denúncia de exclusões e de falhas das políticas de identidade. Muitas das artistas que trabalham a partir de suas formas corpóreas fazem uso do autorretrato. Como sugere a historiadora de arte e feminista Amelia Jones (2002), o autorretrato, à primeira vista, pode representar uma espécie de autobiografia, um texto narrado em primeira pessoa. Além disso, para artistas mulheres, ele pode ser usado como uma potente estratégia que as coloca no lugar de “autoras”, ao invés de “objetos” como foi (e tem sido) a maneira tradicional de representação do corpo feminino na história da arte. In picturing themselves photographically, they speak themselves as subjects (creating their own visual narrative or autobiography of sorts) and thus

“A obesidade está abrindo novos caminhos para a arte e a expressão” (HASLAM & HASLAM, 2009, p. 197, tradução nossa). 1


197 unhinge the age-old tendency to collapse any image of a woman’s body into the status of speechless and dominated object2 (JONES, 2002, p. 69-70).

Jones sugere que para muitas artistas feministas, usar o próprio corpo na fotografia pode ser uma maneira de minar a concepção cartesiana convencional onde o tema está unificado ao autor (implicitamente masculino). Elas podem, com o próprio corpo, criar interconexões entre sujeitos e objetos, autor e observador, ressignificando o contexto do autorretratamento. A primeira artista que trazemos para a discussão faz uso dos autorretratos e teve a sua produção artística destacada nos anos 1980. As fotografias de Laura Aguilar (1959-) se apresentam como uma tentativa de discutir preconceitos de raça, cor, tamanho, origem e sexualidade. Além de se considerar latina (possui descendência mexicana, embora tenha nascido na Califórnia), é lésbica e possuidora de um corpo considerado excessivo para os padrões contemporâneos. Muitas de suas obras parecem reluzir uma espécie de fusão entre corpo (na maioria das vezes gordo) e paisagem. O autorretrato de Aguilar reflete a mesma ideia de afirmação do corpo que outras artistas que serão citadas. Constatamos que é bastante comum o projeto poético se originar do conflito das artistas com o próprio corpo e, com o desenvolvimento das ideias, se transformar em algo mais coletivo. Como se fosse necessário entender as suas particularidades para tentar compreender outros silenciados pelas barreiras sociais. Aguilar começa discutindo, expondo, revelando sua corpulência e aos poucos começa a dialogar com o “ser latina”, “ser homossexual” e em seguida, com o “somos todos

diferentes”,

justamente

distanciando

a

sua

arte

do

padrão

“masculino/hetero/branco”. Talvez haja um empenho em quebrar as barreiras e buscar desconsiderar essas categorias engessadas e homogeneizadas que provocam a exclusão. Para Jones, artistas como Aguilar propiciam uma experiência de quebra com o “isso pertence a mim” e encorajam o espectador a se reconhecer no outro. São obras que podem provocar uma aproximação com a cena, uma compreensão da situação, ou que no mínimo fazem com que os privilégios da hegemonia sejam questionados. Na Figura 1, temos um autorretrato de Aguilar que, liberta de amarras sociais, se dispõe nua no quarto de outra mulher, como sugere o título. “Ao se fotografarem, elas falam como sujeitos (criando a sua própria narrativa visual ou autobiográfica) e, assim, pertubam a tendência tradicional de dispor qualquer imagem do corpo de uma mulher para o status de objeto, sem voz, dominado” (Jones, 2002, p.69-70, tradução nossa). 2


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Figura 1 – In Sandy’s room, Laura Aguilar, 1989. Fotografia, 47 x 52 polegadas. Fonte: www.leslielohman.org/exhibitions/2014/images-2014/bodies/23_Aguilar_Sandy's.jpg. Acesso em: 23 nov. 2014.

Entendemos a imagem como uma forma de provocação, onde a artista parece não se importar de estar sendo observada nua, se refrescando, no quarto de Sandy. Para Jones ela, como uma “odalisque”, obviamente perturba a imagem posta tradicionalmente na cultura ocidental da disponibilidade da sexualidade feminina e da musa (feminine ideal) como sendo magra, branca e heterossexual. Ela parece ironizar a posição de mulheres como Olympia, cujo corpo longilíneo e a pose sedutora, são trocados pela corpulência e uma pose de autorreflexão. Segundo Jones, Aguilar desconstrói os retratos de musas de artistas como Édouard Manet (1832-1883) e Ingres por colocar a rotundidade no lugar da carne sólida, a libertação no lugar do confronto (no caso de Olympia) e, afinal, um corpo muito menos disponível ao espectador. A predileção pelas escalas de cinza no autorretrato de Aguilar também retiram todo o luxo dado nos retratos de Manet e Ingres. Ainda de acordo com Jones, o espectador, ao entrar em contato com a cena criada por Aguilar, tenta tatear, procurar algo reconhecível nela, mas por não conseguir, acaba percebendo a alteridade, sente-se incentivado a ver o outro nele mesmo (ou a se ver no outro).


199

Brenda Oeulbaum (1961-) tem uma postura política bastante aproximada à de Aguilar, embora a sua produção não enfoque tanto o autorretrato. A artista também abraça causas de gênero para discutir os seus trabalhos e todos parecem partir de algo subjetivo rumo ao coletivo. Ela desenvolve o “Venus of Willendorf Project”, que resulta em esculturas feitas a partir de livros de dietas e que carrega o seguinte slogan: “They’re not making your @$$ any smaller, so let me make some kick @$$ art with them!”3

Figura 2 – The Venus of Fonda, Brenda Oeulbaum, 2013. Escultura com páginas de publicações de dieta e exercícios da atriz Jane Fonda. Fotografia: Patricia Izzo. Fonte: http://brendaoelbaum.me/page/2/. Acesso em: 23 nov. 2014.

Na Figura 2 temos um dos trabalhos do projeto. A Vênus surge a partir de páginas de publicações de dietas e exercícios da atriz Jane Fonda (1937-), considerada símbolo da “Eles não vão tornar a sua bunda (@$$, ou ass) menor, então deixe-me fazer uma arte “maneira” (kik@$$, ou kickass) com eles” (NO DIET, 2013). 3


200

saúde e boa forma e que nos anos de 1980 promovia atividades e redução de medidas através de artigos e videoaulas. Segundo Oeulbaum (2013), foi descoberto que Fonda possuiu distúrbios alimentares como anorexia e bulimia, desencadeados por baixa autoestima e dificuldade de aceitação da própria imagem, o que a faz concluir que “a thin body does not a healthy person make neither in mind nor body”4 (s.p). Um curta disponibilizado pela artista permite uma melhor compreensão do seu posicionamento frente às dietas. “Results may vary (trigger warning)” (2012), dirigido por Brett Scott, possui uma estética que remete ao film noir com um senso de humor apurado. Oeulbaum aparece com um livro de dietas na mão e decide se pesar. Ela se mostra tão interessada no livro que começa a digeri-lo (literalmente). Página, por página, a artista envolta em uma roupa bordada com palavras sinônimas de gordura passa cerca de 8 minutos deglutindo o livro. A cada minuto sua feição vai mudando, sugerindo um desconforto em relação ao sabor das escritas. No final, quando resta somente a capa, ela se direciona a balança e, com o mesmo peso inicial, comprova que o livro “não valeu de nada”. A artista recebe doações de livros para a produção de novas Vênus através do seu blog e possui outros projetos e participações com outras artistas engajadas nas questões concernentes a corpo e gênero. Outra artista que também merece ser citada e que possui discursos interligados a Aguilar, Oelbaum, Queiroz, Magalhães e tantas outras, é a Rebecca Harris (1977-). O corpo é a chave para a sua produção artística e a sua relação com ele frente aos discursos sociais e médicos também parece resultar em tensões. Formas de extravasar o preconceito, o não aceite da gordura. Ela atua com práticas artísticas variadas e se considera uma fat activist. Há dois anos, conta que deixou de fazer uma cirurgia bariátrica para explorar os limites do seu corpo “grande” e a arte tem sido o meio para isso (HARRIS, acesso em: 23 mar. 2014).

“Um corpo magro não torna uma pessoa saudável, nem em mente, nem em corpo” (OEULBAUM, 2013, s.p, tradução nossa). 4


201

Figura 3 – Untitled (red MRI), Rebecca Harris, 2013. Tecido bordado em ponto cruz. Fonte: www.rebecca-harris.com/#!2013/c23sg. Acesso em: 23 mar. 2014.

Na Figura 3, Harris manipulou digitalmente o resultado de uma ressonância magnética e o reproduziu em bordado com pontos cruz sobre uma espécie de manto vermelho. A postura do corpo nos traz uma ideia de passividade. A cor vermelha, inclusive, se analisada com a incidência da luz dourada que banha a parte superior do trabalho, pode remeter a algo divino, sagrado. Ao mesmo tempo, a forma com que a espécie de manto fica suspensa na parede, através de ganchos, nos traz a memória de aventais médicos/hospitalares, que por fim são bastante semelhantes aos usados em açougue. Como Saville, Harris parece ter feito uma brincadeira entre corpo + carne + sangue. Esta obra fez parte da exposição “Body Modification & the Female Body” (2013), cuja proposta era justamente mostrar ao espectador a interpretação da artista frente às modificações corporais, principalmente relacionadas à redução de peso, promovidas pela medicina. Elisa Queiroz (1970-2011), também fazia uso de autorretratos e uma das marcas do seu processo criativo era a ironia, que encontra-se presente em obras como “Intempérie de espaço” (Figura 4), instalação com doses de humor e ludicidade.


202

Figura 4 - Intempérie de espaço, Elisa Queiroz, 2002. Instalação. Ploter, papelão, tecido e plástico. Fonte: QUEIROZ, [200-].

Trata-se de dois cabides, cada um sustentando algo: o da esquerda um vestido e o da direita um corpo gordo com a cabeça de Queiroz. O vestido parece não caber nesse corpo caricaturizado plotado sob uma folha de papelão. O trabalho lembra as brincadeiras de vestir bonecas e recortar e colar roupinhas em desenhos de papel, mas o título indica que o jogo da artista não é assim tão ingênuo. “Intempérie” significa, no sentido figurado, catástrofe, infortúnio. A instalação apresenta um contraste de tamanhos: vestido estreito e corpo gordo. O vestido combina com o corpo, mas não cabe nele. O espectador fica instigado a vestir esse corpo, mas se intriga ao notar as diferenças de tamanho entre um e outro. Cada um no seu espaço, interagindo sem se unir, pode ser uma das mensagens da obra, que também nos lembra que [...] os regimes de verdade contemporâneos permanecem imersos em uma cultura somática, em vista da qual os corpos ganham visibilidade e


203 inteligibilidade em função de sua materialidade física mais primária, como o volume, a forma e a superfície (RAGO, M.; VEIGA-NETO, A.; 2009, p. 269).

A última artista que veremos é Fernanda Magalhães (1962-) que também possui uma poética autorreferencial. Seus projetos também podem ser tidos como questionamentos frente aos padrões estéticos aparentemente impostos pela mídia, cultura e sociedade de uma maneira geral. No documentário “Rotundus” (2005) sobre a artista, produzido durante a Oficina de Documentários promovida pela Kinoarte de Londrina, mostra-se inconformada com a frequente associação da corpulência com algo que incomoda, que é deslocado. Seu corpo parece ser utilizado como protesto, posicionamento político contra, dentre outras coisas, a hegemonia da magreza. “Gorda 9” (Figura 5) é um dos trabalhos da série “A representação da mulher gorda nua na fotografia”, iniciada em 1995.

Figura 5 – Gorda 9, da série “A representação da mulher gorda nua na fotografia”, Fernanda Magalhães, 1995. Fonte: www.flickr.com/photos/fernandamagalhaes. Acesso em: 14 mar. 2014.


204

Magalhães dispõe no centro do trabalho sua fotografia e em ambos os lados, o corpo de uma mulher magra, cada lado com uma metade do corpo. Sua cabeça foi substituída pela cabeça da Vênus de Willendorf e em torno de seu corpo lemos: “A cabeça da Vênus de Willendorf da fertilidade e deusa do colo”. Magalhães, tal qual Brenda Oeulbaum, se apropria da deusa corpulenta para salientar que a gordura deve ser entendida em um campo mais amplo, distante da frequente associação negativa e com doenças. Segundo Tvardovskas e Rago (2007, p. 66), a imagem “acéfala” de Magalhães pode indicar que qualquer cabeça pode se encaixar ali, pois esconder o próprio rosto pode denotar que “[…] seu problema não é individual, mas coletivo”. Ela encontra-se em uma altura maior que as metades da mulher magra e sob uma espécie de pódio feita por um recorte de um texto que diz: “Uma outra página enumera uma lista de pedidos aos aliados não gordos. O primeiro: ser vista como um ser humano sexual”. Identificamos um desejo em reafirmar a volúpia e de protestar contra as associações do gordo com algo distante do prazer sexual. O “tapa sexo” representado pela colagem em papel rosa reforça a ideia. A conclusão a que pudemos chegar pinçando essas artistas é que existe um campo de luta que visa, dentre outros valores articulados, distanciar o corpo gordo da negação. Uma forma de autoaceitação e relação com práticas políticas feministas e/ou Queer, onde ser gorda pode significar desconfigurar o mito feminino. Nesse sentido, a imagem produzida por essas artistas enfrenta as imagens midiáticas estudadas por Bordo (2003), que insistem em serem propagadas em filmes, na televisão e na mídia de uma maneira geral, impondo regras para a feminilidade. Os resultados são repensamentos da situação desses “sujeitos corpos” na contemporaneidade. Em últimas palavras, podemos dizer que a gordura na arte contemporânea vem aparecendo como uma espécie de porta voz daqueles que se tornam, de alguma maneira, silenciados pelos discursos hegemônicos.


205 Referências bibliográficas

AGUILAR, Laura. In Sandy’s room. 1989. Disponível em: < http://www.leslielohman. org/exhibitions/2014/images-2014/bodies/23_Aguilar_Sandy's.jpg >. Acesso em: 23 nov. 2014. BORDO, Susan. Unbearable weight: feminism, western culture and the body. 10 ed. Berkley e Los Angeles: University of California Press, 2003. HARRIS, Rebecca. Untitled (red MRI). 2013. Disponível em: <http://www.rebeccaharris.com/#!2013/c23sg>. Acesso em: 23 mar. 2014. _______________. Artist’s statement. Disponível em: <http://www.rebeccaharris.com/#!artists-statement/c1k4w>. Acesso em: 23 mar. 2014. HASLAM & HASLAM. Fat, glutonny and sloth: obesity in literature, art and medicine. 1 ed. Liverpool: Liverpool University Press, 2009. JONES, Amelia. Performing the other as self. In: SMITH, Sidonie; WATSON, Julia. Interfaces: women, autobiography, image, performance. Michigan: University of Michigan Press, 2002. MAGALHÃES, Fernanda. Fernanda Magalhães. Disponível <http://www.flickr.com/photos/fernandamagalhaes>. Acesso em: 14 mar. 2014.

em:

OEULBAUM, Brenda. The venus of Fonda. 2013. <http://brendaoelbaum.me/page/2/>. Acesso em: 23 nov. 2014.

em:

Disponível

PRECIADO, Beatriz. “Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo. Poiésis, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da UFF, Niterói, nº 15, agosto de 2010. Disponível em: <http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis15/Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2013. RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (Orgs.). Para uma vida não-fascista. 1 ed. São Paulo: Autêntica, 2009. QUEIROZ, Elisa. Elisa Queiroz. [200-]. Catálogo de obras da artista não publicado. Arquivos do Processo de Criação de Elisa Queiroz disponível no Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) na Universidade Federal do Espírito Santo. 36 p. TVARDOVSKAS, Luana; RAGO, Margareth. Fernanda Magalhães: arte, corpo e obesidade. In: Caderno Espaço Feminino, Revista do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Uberlândia, v. 17, nº1, jan./jul. 2007. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/378>. Acesso em: 24 jul. 2013.


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O encontro entre Édipo e a esfinge em pinturas. Antônio Leandro Barros (PPGH-UNICAMP)

Resumo Considerando a temática desse V Colóquio, essa comunicação se propõe através de uma recolecção de pinturas explorar a poética de um dos temas mitológicos mais importantes e influentes da história da arte: o mítico encontro entre Édipo e a Esfinge quando o herói trágico caminhava de volta a Tebas rumo a concretude de seu destino. Assim, essa comunicação trata-se de um estudo de caso visando apresentar pinturas importantes sobre o tema e que de certa forma moldaram nossa imaginação da cena. São cinco as obras selecionadas compondo um painel interessante da força histórica do próprio tema: dois vasos gregos do século V a.C.; um dos três grandes quadros pintados por Ingres; a pintura de Gustave Moreau; e finalmente o quadro pintado já em fim de carreira por de Chirico. Palavras-chave: Édipo, esfinge, encontro, pintura.

Abstract Considering the theme of this Colloquium, this communication proposes, through a recollection of paintings, explor the poetics of one of the most important and influential mythological themes in art history: the encounter between Oedipus and the Sphinx, when the tragic hero walked back to Thebes towards the concreteness of his fate. Thus, this communication it is study in order to present important paintings on the theme and that somehow shaped our imagination of the scene. There are five works selected composing an interesting panel of the theme own historical strength: two greek vases of the fifth century BC; one of three great paintings by Ingres; Gustave Moreau painting; and finally the painting already in late career by de Chirico. Key-words: Oedipus, sphinx, encounter, painting.


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É preciso lembrar que embora a trilogia tebana de Sófocles seja ainda hoje o texto fundamental dos estudos sobre Édipo ela não representava em palco a vida pregressa de Édipo, isto é, antes de ser Rei. Considerando-se que, até onde se sabe, nenhum dos grandes tragediógrafos atenienses fez uso do episódio no teatro, poder-seia argumentar das dificuldades cênicas para uma tal representação. Longe dessas dificuldades, são diversas as fontes antigas textuais e vasculares a respeito do tema. Na cultura mitológica, a cena representada é o momento decisivo para a confirmação de todo o destino da personagem trágica em questão. Dentre as fontes literárias antigas, o texto considerado mais completo é que se encontra na Biblioteca, escrita aproximadamente no século II e atribuída a Pseudo-Apolodoro (3.5.8). A esfinge teria os pés, o peito e o rabo de leão, cabeça de mulher, e asas de pássaro (à diferença dos monumentos egípcios, os quais foram chamados por Heródoto de androesfinge – sem asas e com cabeça masculina). O monstro teria sido enviado por Hera e, de acordo com essa versão literária, seu enigma seria: “O que é que tem uma voz e ainda se torna quadrúpede, bípede, e trípode?” (trad. livre) Édipo encontra a solução como sendo o homem: quando bebê engatinha, quando adulto anda sobre duas pernas, e quando velho usa o apoio de uma terceira perna, por exemplo, um cajado ou bengala. Porém, desde a antiguidade coube à pintura as representações mais decisivas desse ponto particular da mitologia edipiana, que desde sempre teve papel significativo no imaginário ocidental. Ainda que sigamos o Livro 35 de Plínio, o Velho (História Natural), e concordemos que as ditas pinturas mais excelentes da antiguidade tenham todas se perdido, a pintura vascular antiga que sobreviveu dá farto testemunho do quanto o tema era apreciado. Das cinco obras que abordaremos nessa comunicação, duas são vasos do século V a.C. – e haveriam inúmeros outros exemplos do mesmo período. Na verdade, parece possível afirmar que nunca se representou tanto este tema quanto na pintura de vasos antiga. A primeira obra a comentar é uma das representações mais antigas que se tem do tema e é possivelmente a imagem mais famosa desse encontro (inclusive já tendo sido

utilizada

em

selos

postais

do

Vaticano).

Trata-se

de

contemporaneamente atribuído ao chamado Pintor de Édipo (figura 1).

um

cálice


208

Por vezes considerado o primeiro espaço pintado em vasos, o lado interno central do cálice era um espaço pictórico em alta estima por ser o tondo, o círculo interno, um espaço quase plano, ao contrário das outras superfícies externas e dos outros tipos de vaso. Ademais, propícia a realização de imagens que são descobertas pouco a pouco pelo seu espectador, pois reveladas à medida que é consumido o líquido contido no cálice.

Figura 1: Édipo e a esfinge de Tebas. Pintor de Édipo; cálice de cerca de 470 a.C. Museu Gregoriano Etrusco, Vaticano.

Sendo os cálices principalmente utensílios para o consumo do vinho, eram utilizados preferencialmente em um banquete festivo – symposium. Assim, os pintores cientes dos efeitos envolvidos, em geral decoravam o interior dos cálices com cenas bem humoradas, animadas, ou mesmo de natureza sexual. No entanto, apesar do lado externo apresentar uma série de sátiros em zombarias manejando diversos tipos de vasos, especificamente no interior desse cálice não há nada desse gênero festivo. No tondo é representado esse que é um dos episódios mais críticos da mitologia grega: o encontro entre Édipo e a esfinge de Tebas.


209

Conforme as atribuições de John Beazley – o criador do maior índice de cerâmicas gregas antigas –, Pintor de Édipo é uma titulação em função da obra em questão. Em estilo de figuras vermelhas, a imagem apresenta Édipo, em trajes de viajante, serenamente sentado diante da coroada esfinge. Aqui não se busca o apuro naturalista dos corpos, e o uso da linha, embora simplesmente energética, não busca a agitação dos mesmos. Mas, ao contrário, estabelece algo como um movimento estático, isto é, movimento apenas na medida em que segue o ritmo determinante; como se não tivesse movimento anterior, nem pudesse haver posterior. Paralelamente, em considerações literárias, também Auerbach (p. 24-25) havia percebido que as narrativas trágicas, e mesmo cômicas, da Grécia antiga conduzem a um ponto fixo determinante ao destino das personagens, e não ao evolutivo, à mudança ou transição a partir de si. Similarmente, nessa pintura tudo acontece dentre essas linhas, não entre os corpos das personagens, mas no ritmo das linhas que as formam – cujo detalhe decorativo floral é exemplar. Seu vigor linguístico caracterizase pelo uso delicado e preciso das linhas sinuosas; observe-se o diálogo entre o detalhe floral que compõe o espaço vazio e a curva do rabo da esfinge, ou simplesmente as ligeiras curvas dos pontos de apoio (solo, rocha, coluna e base). O jogo de cruzamentos de braços e pernas da personagem trágica é belíssimo. Bem como a expressividade e tensão dos rostos que se confrontam – tanto na ausência ocular da esfinge, quanto nos olhos fixos e na boca ligeiramente aberta de Édipo. Sendo um tondo fechado, a proximidade das figuras é realçada, criando enorme tensão apesar do repouso energético das personagens. Essa síntese do impulso corporal e sua expressão articulada por meio de linhas de contorno dialoga com o estilo definido pelo jovem Roberto Longhi (2005, p. 8) como “linha funcional”: certa exaltação da energia vibrante do corpo sem comprometimento material. Tendo por suporte o espaço circular fechado, essas linhas ganham em tensão e tornam o efeito do sereno confronto de olhares ainda mais surpreendente. De tudo o já dito, ainda mais importante é seu poder de invenção. Era comum a representação do episódio com a esfinge por sobre uma coluna, mas totalmente peculiar a representação de Édipo sentado em perfeito estado contemplativo, braços e pernas cruzados tranquilamente como se diante de uma escultura sobre um pedestal em exibição. O Pintor de Édipo faz do episódio uma cena de contemplação artística. E a considerar que a própria pintura seria vista em meio a um symposium, a peça parece


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comentar avant la lettre a afirmação de O. Wilde (p. 100) de que os gregos constituíram uma nação de críticos de arte. A segunda obra (figura 2) é uma ânfora que encontra-se atualmente no importante museu estatal de antiguidades de Munique, e foi atribuída novamente por John Beazley ao dito Pintor de Aquiles. Tal designação se deve à outra importante ânfora atribuída ao mesmo pintor com a representação do herói antigo (atualmente no Museu Vaticano). Beazley definiu o período de atividade do Pintor de Aquiles entre 470 a.C. e 425a.C., portanto, contemporâneo ao período de Péricles e à Idade de Ouro de Atenas. Embora seja mais estimado pelos seus belíssimos desenhos em lekythoi sobre fundo branco, nessa obra o pintor trabalha no suporte vascular favorito daquele que é considerado seu mestre: o Pintor de Berlim.

Figura 2: Édipo e a esfinge. Pintor de Aquiles; ânfora de cerca de 425 a.C. Staatliche Antikensammlungen, Munique.

Segundo Oakley, é na sua fase mais madura que o Pintor de Aquiles desenvolve novos temas com os quais continuaria até sua fase final, e dentre eles um de seus favoritos se tornou o confronto de Édipo com a esfinge – há pelo menos três vasos com o mesmo tema atribuídos ao pintor. O vaso em questão segue o estilo das


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figuras vermelhas sobre o fundo negro e revela uma vez mais o acurado domínio linear do pintor, especialmente no drapeado da capa de viajante de Édipo, nas asas da esfinge, e na expressão dos rostos. No entanto, novamente deve-se observar que esse estilo linear para além da funcionalidade energética da ação, busca uma visualização decisiva do encontro com as personagens também em repouso temporário. Aqui, por exemplo, a esfinge está mais baixa e recuada no seu apoio do que no outro vaso do mesmo pintor que se encontra no Museu de Belas Artes de Boston. Além disso, ao invés da coluna, a esfinge está sobre um mero pedestal, o que diminui a efetividade metafórica do desfecho do confronto com o seu salto no vazio. Nesse vaso, Édipo não apresenta o gestual de uma resposta, mas enfrenta o monstro com o bastão. Essa composição básica de duas figuras separadas por um bastão já havia sido empregada pelo Pintor de Berlim, mas aqui ela ganha ainda mais dramaticidade. A linha vertical do bastão faz recordar Heráclito: “O caminho dos pintores, reto e curvo, é um e o mesmo.” (p. 80) Esse “reto e curvo” se acentua nos ombros do vaso dando resultados fenomenológicos formidáveis. Ao posicionar o olhar mais ao lado da figura de Édipo, o bastão se curva em direção a ele praticamente desenhando um escudo ou proteção. Ao posicionar o olhar do outro lado, o bastão se curva por sobre a esfinge como se o gesto de Édipo a pudesse conter. Dessa forma, esse jogo de “um e o mesmo” da linha reta e curva determina mais do que o espaço entre figuras. Aponta para o reconhecimento de uma intimidade: a fixação de um destino. Em uma só imagem se apresentam o quadrúpede, o bípede, e também o trípode. E o reconhecimento de que Édipo não acha a resposta, mas ele é o destinado a responder; ele é propriamente a resposta. Tendo visto esses dois vasos como representantes de uma série maior de imagens do mesmo tema que circulavam na antiguidade é preciso saltar muitos séculos para que se encontre novamente o tema entre nomes consagrados da moderna história da arte. Em fins do século XVIII e ao longo do século seguinte, intensificou-se um tipo de revival dos temas e motivos trágicos antigos. Nas artes plásticas, particularmente na França, o movimento neoclássico foi partícipe ativo dessa intensificação, muitas vezes com veiculações temáticas indiretas (o exemplo mais forte talvez seja o Marat Assassinado, de David, e sua relação com a tragédia de Agamêmnon).


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Nesse sentido, Ingres (formado na oficina de David) parece ter sido atraído ao longo de sua vida artística ao episódio do confronto entre Édipo e a esfinge. Ele pintou a cena ao menos três vezes, e com largas diferenças temporais, atestando um interesse recorrente. A primeira dessas pinturas data de 1808 (atualmente no Louvre, Paris), quando o pintor estava em Roma graças a bolsa do Prêmio de Viagem. A segunda é de quase vinte anos depois, 1826, pintada durante seu período florentino (atualmente na Nacional Gallery, Londres). Por fim, a obra que melhor abordaremos nessa comunicação: pintada apenas três anos antes da morte do pintor octogenário, isto é, em 1864 (figura 3).

Figura 3: Édipo explicando o enigma a esfinge. Jean-Auguste Dominique Ingres; 1864. Walter Art Museum, Baltimore.

A terceira pintura está iconograficamente mais próxima da primeira. Pois, a segunda pintura apresenta maior abertura ao céu, uma esfinge mais repousada em seu sítio, e remove um detalhe profundamente significativo ao herói trágico: o pé de um cadáver no escuro da caverna sob a esfinge. O fato é que o pé é um elemento decisivo


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nesse confronto por dois motivos complementares: o significado do nome Édipo (“pés inchados”) e o enunciado do enigma. A propósito, em todas as três telas Ingres acrescenta à figura da esfinge um elemento diverso da sua descrição tradicional (conforme o já citado Pseudo-Apolodoro): os seios de mulher, posicionados exatamente à altura do olhar de Édipo. Esse particular erótico-dramático poderia justificar os comentários contemporâneos ao pintor de que também ele teria absorvido um traço romântico (crítica que o próprio Ingres sempre discordou). A primeira vista, a grande diferença da tela de 1864 é a inversão da composição, como em espelho. De resto, ela parece muito próxima da tela de 1808: Édipo nu e em pose clássica, porém portando os elementos clássicos do viajante; uma personagem ao fundo que corre em desespero; ao longe a vista de Tebas através da fenda montanhosa. Além é claro, do seu vigor estilístico neoclássico de requintado apuro de acabamento, claro-escuro a destacar o herói centralizado e certa idealização do corpo nu (em pose muito próxima da escultura Hermes com a Sandália, do Louvre). Nas três telas, o momento escolhido para a representação é o decisivo instante em que Édipo serenamente responde o enigma através do bonito jogo gestual de suas mãos. Tal resposta silenciosa cria uma ambiguidade em que não é possível saber com precisão a solução que ele encontra. Se é a resposta clássica “o homem”; ou se já há uma interpretação paralela à de Thomas de Quincey (BORGES, p. 71), sugeriu que o sujeito do enigma seria menos o homem genérico que o próprio indivíduo Édipo: desvalido e órfão na sua manhã, solitário na idade viril, e apoiado em Antígona na cegueira e velhice. E é exatamente nesse gestual ambíguo que reside a diferença crucial entre a primeira e a última tela de Ingres. Pois, na tela de 1864 uma das mãos deixa de apontar para a própria esfinge e aponta para baixo em direção as ossadas e cadáveres na caverna escura. Nos últimos anos de vida o pintor cria outra ambiguidade entre a resposta correta e sua relação com a morte. Édipo praticamente indica o terceiro pé, o da velhice, como o do cadáver. Eis o pavor da esfinge com o seu próprio desfecho ao reconhecer a resposta correta. Eis a transformação psicológica do tema clássico na velhice do próprio pintor, que retirou a inscrição de sua assinatura da pedra de apoio de Édipo, e pôs na poeira à altura da caveira.


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No mesmo ano que Ingres pintou seu “último Édipo”, outro grande pintor francês investiu no mesmo tema: Gustave Moreau. Sua tela “Édipo e esfinge” (figura 4) é considerada o marco inicial da maturidade artística de Gustave Moreau - até então um pintor pouco conhecido e apreciado. Foi justamente com ela que o pintor conquistou sucesso de crítica estrondoso no Salão parisiense em 1864, com o qual a carreira do artista deslancharia e ele se tornaria uma das principais personalidades do meio artístico francês. Em cena, o confronto entre Édipo com a esfinge no caminho para Tebas, onde ele se tornaria rei e casaria com a própria mãe.

Figura 4: Édipo e a esfinge. Gustave Moreau; 1864. Metropolitan Museum of Art, Nova York.


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Conservam-se ainda um número considerável de esboços do artista para a obra em questão. Moreau estudou atenciosamente a obra de mesmo tema de Ingres, de 1808. Além dessa, que se encontra no Louvre, Ingres pintou ao longo da vida outras duas telas de mesmo tema, a última no mesmo ano de 1864; porém Moreau dificilmente conhecia outra obra senão a primeira. Contudo, as diferenças de estilo e composição são evidentes entre os dois mestres franceses. A obra de Ingres concentrase no momento decisivo da resposta de Édipo, e é o herói, em uma postura inclinada a frente e com o gestual em direção ao monstro, quem propriamente confronta a esfinge com sua resposta, quase a encurralando. Já na obra de Moreau se dá o inverso. Aqui é a esfinge a figura que propriamente concretiza o confronto, lembrando a figura da femme fatale tão em moda no século XIX, avançando sobre o corpo nu do herói, com postura solene e firme. Moreau concentra a pintura no confronto em si, e não no enigma ou na resposta. Em relação ao contexto histórico e artístico é preciso recordar, por exemplo, que apenas um ano antes Manet e outros haviam conseguido organizar o Salão dos Recusados, onde entre outras obras se expôs o famoso e polêmico Almoço na Relva. Dessa maneira, concomitante a beleza da execução pictórica, Scott C. Allan argumenta que parte do sucesso de crítica alcançado por Moreau parece provindo de uma quase declaração panfletária em favor dos grandes mestres clássicos contra o que se entendia como o mal gosto pictórico da época – a excessiva naturalização devida ao realismo, a escancarada sexualidade dos nus, principalmente femininos, e a vulgarização dos temas históricos e clássicos. A pintura de Moreau parece confrontar todas essas ditas desqualificações de uma só vez, tal qual o herói trágico. E representa metaforicamente na figura da esfinge todas as suas críticas. Por outro lado, na figura do herói trágico sustentam-se as qualidades clássicas da pintura, por exemplo em sua postura quase escultórica; qualidade também observada na recorrência que a obra faz estilo particular de Andrea Mantegna, reconhecido especialmente nas formas montanhosas, no corpo e cabelos de Édipo, e no detalhe do pé morto, ossudo e veiado, na parte inferior da pintura. Assim, combinados o estilo e a pose da figura, Moreau conferiu ao seu Édipo a solidez corporal e moral que pretendia, transformando-o quase em uma peça escultórica. Nesse sentido, seria interessante pensar na inversão que se realiza quando comparada


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esta pintura com algumas das antigas representações do tema em peças vasculares gregas nas quais a esfinge foi representada sobre um pedestal. Henri Dorra defendeu a pose de esfinge como uma interpretação precisa da etimologia da palavra em grego (algo como “apertar”). Entretanto, apesar do ataque da femme fatale monstruosa, nessa pintura a personagem acossada pelo enigma parece ser ela mesma, como se fosse ela a desesperada em ouvir a resposta: o homem. É ainda curioso tendo em perspectiva que após essa pintura Moreau fez outras tantas representando sempre a “esfinge vencedora”. Na sequência de intensificação da retomada de valores e temas mitológicos, o tema edípico foi largamente reavivado no século XIX juntamente com muitos dos motivos gregos. Porém, foi na virada do século que as releituras críticas da parte de Sigmund Freud transformaram inteiramente a recepção de sua narrativa, permitindo que Édipo voltasse a ser uma das personagens chave da psique humana. Assim, após novo salto temporal, enfim chegamos a última obra que consideraremos nessa comunicação (figura 5). É curioso lembrar que de Chirico pintou esse quadro apenas um ano após o rebuliço da adaptação cinematográfica de Pasolini para a peça de Sófocles. Na tela do cinema o jovem Édipo confronta a esfinge violentamente; é ele quem vai atrás dela e, ao encontrá-la, simplesmente a ataca ignorando completamente o lançamento do enigma.


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Figura 5: Édipo e a esfinge. Giorgio de Chirico; 1968. Fundação Giorgio e Isa de Chirico, Roma. Por outro lado, esse Édipo pictórico de fim de carreira de de Chirico aparece totalmente absorvido pelo enigma. O herói trágico dá as costas à esfinge como quem necessita de reflexão antes de sua resposta, e praticamente volta-se para o espectador à espera da solução. A obra parece inspirada na versão moderna popular de que Édipo, não sabendo a solução, responderia corretamente por acaso: enquanto o herói trágico levava a mão à cabeça em gesto reflexivo dada a situação, a esfinge teria reconhecido no próprio gesto o indicativo para a famosa resolução da charada, como se Édipo apontando para si respondesse “o homem”. O gesto da figura pintada poderia também ter outra conotação, baseando-se na interpretação moderna. Borges (p. 71) recorda que foi no século XIX, com De Quincey, que surgiu uma segunda interpretação e complementar a tradicional: o sujeito do enigma seria menos o homem genérico que o indivíduo Édipo desvalido e órfão na sua manhã, solitário na idade viril, e apoiado em Antígona na cegueira e velhice. No entanto, como em geral, a obra de de Chirico é significativamente mais irônica.


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A começar pelo estilo característico da proposição metafísica do pintor. Suas linhas de contorno dos personagens os tornam menos reais do que o ambiente de montanhas altas – que pode recordar as composições de mesmo tema de Ingres, ao longo do século XIX. Há cor, mas não há carne, nem sequer musculatura, isto é, não há propriamente anatomia, mas sim um esboço ou esquema humano básico. Os pés diminutos de dedos delicados do herói o deslocam do apoio do solo em uma leveza metafísica característica das personagens do pintor. Ademais, há ainda outros detalhes característicos como as molduras curvadas no interior do espaço, e as representações arquitetônicas no tronco da personagem; como se Édipo trouxesse Tebas nas vísceras. Por fim, o detalhe mais decisivo: a cabeça de manequim ao invés da cabeça humana, fazendo do herói um modelo sustentado pelas travas de madeira. Assim, de Chirico parece invalidar ironicamente o encerramento do discurso do poeta grego Giorgio Seféris quando da premiação do Nobel: “Quando, no caminho de Tebas, Édipo se encontrou com a esfinge que lhe propôs seu enigma, a resposta que deu foi: o homem. Essa simples palavra destruiu o monstro. Temos muito monstros por destruir. Pensemos na resposta de Édipo.” (p. 174) A pintura em questão não tem o homem nem Édipo como interlocutores, mas apenas a ideia, metafísica por excelência, do homem e de Édipo, isto é, suas figurações de humanidade – dominados pelo enigma. Foi o próprio de Chirico quem afirmou como questão artística: “O que devo amar senão o enigma?” E atente-se, isso também é um enigma.


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A tragédia da Abstração Informal e o drama da Pintura nos anos 1980. Claudia Botelho (PPGA-UFES)

Resumo: A Pintura dos anos 1980 manifestou valores e características de outros momentos passados. Ela esteve em conexão com a Abstração Informal e com o Expressionismo Abstrato. O texto trágico de Ferreira Gullar “Teoria do não- objeto” de 1960 decretava a falência da pintura, porém o incentivo da pintura nos anos 1980 revogou os diagnósticos terminais. Assim, o trágico conceitualismo dos anos 60 foi encenado na arena dos anos 80 como um espetáculo dramático. Palavras chave: Fim da Pintura, Abstração Informal, Pintura dos anos 80.

Abstract: Painting 1980s expressed values and characteristics of other past times. It was in connection with the Informal Abstraction and Abstract Expressionism. The tragic text Gullar "Theory of non-object" 1960 decreed the bankruptcy of painting, but the incentive of painting in the 1980s overturned the terminal diagnosis. Thus the tragic conceptualism of the 60s was staged in the arena 80 as a dramatic spectacle. Keywords: Painting End, Abstraction Informal, 80s Painting.

O retorno da pintura nos anos 1980 prova que a tragédia anunciada como o “Fim da Pintura” pelo Pós- Modernismo não existiu. Tudo não passou de um drama provocado pelo antigo desejo de se criar algo novo, de romper definitivamente com a tradição que consistia em classificar a arte em categorias e gêneros. Os artistas de abstração subjetiva existiram em número expressivo Brasil. A Arte Abstrata Informal/Lírica foi produzida no âmbito artístico brasileiro entre a metade dos anos 1940 e os anos 1960, entretanto, apenas nos anos finais da década de 1950 alcançou seu devido reconhecimento. A Arte Abstrata Informal ou Lírica desenvolvida no Brasil nas décadas de 1950 e de 1960 esteve alinhada com a abstração produzida em outras partes do mundo na segunda metade dos anos 1940, especificamente, a partir de 1945. A Abstração do Pós- Guerra Mundial simbolizou o culminar das transformações artísticas do final do século XIX a meados do século XX. As pesquisas na arte que visavam romper com o passado acadêmico traziam em si o desejo de libertar a arte da representação do mundo exterior, vigora então, a compulsão artística pela expressividade. A historiadora Dora Vallier realizou estudos aprofundados sobre a abstração na arte do século XX e afirma que, na


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construção da Arte Abstrata, “[...] surgem formas que já não contêm a imagem do mundo exterior. O artista já não nomeia, exprime. Cabe ao espectador reagir e aprender a significação do que é expresso” 1. Na Arte Abstrata a realidade foi captada e traduzida pelo artista de diferentes maneiras. Em um primeiro momento, os artistas abstratos buscaram na racionalidade científica a expressão de sua pintura, pois, almejavam dar à arte um sentido lógico, aproximando assim, arte e ciência. Tal objetivo se compreende pela época que esses artistas produziram. Desde o Iluminismo a razão se tornou o centro das discussões do mundo moderno. No entanto, a abstração da arte, nos anos pós- guerra tomou novo rumo, foi em busca da individualidade do sujeito, sem abandonar visualidade plástica apreendida de diferentes experiências anteriores. As tristezas e angústias geradas pelos bombardeios das guerras fizeram os artistas repensarem suas praticas, desde momento em diante, começaram a voltar-se para si mesmo, procurando os valores que a ciências modernas haviam deixado escapar, dessa forma, a produção artística desse período não retrocede nas pesquisas estéticas, mas abrem espaço da expressão livre e individual do sujeito. Em sua evolução, a arte não recua sob à passagem da figuração para a abstração. A partir da crise da imagem como representação surgiram às novas descobertas que deram origem à criação da obra abstrata. A ideia de que a arte podia revelar a realidade do mundo por meio da imitação (mímese), ou da reprodução ilusionista de fenômenos naturais foi posta em dúvida. A Arte Abstrata que se desenvolveu no Brasil teve influências das manifestações europeias e norte-americana. Os artistas brasileiros estiveram em contato, por meio de exposições de obras internacionais dentro do país, ou através de viagens de estudos ao exterior, com as diferentes manifestações da Arte Abstrata, ocorridas no Pós-Guerra. Contudo, afirma Lopes, “Mesmo que alguns de nossos artistas tivessem tido contato com o Expressionismo Abstrato americano [...] a fonte de maior interesse e afinidade continuava a ser a produção dos abstracionistas líricos franceses” 2. A Escola de Paris continuou sendo o destino de vários artistas brasileiros. Estes em contato com o que se produzia fora do país iam atualizando a gramática abstrata da arte brasileira. Estiveram em intercâmbio com a arte francesa os artistas: Antônio Bandeira, Iberê Camargo, Clovis Graciano, Geraldo de Barros, Noêmia Guerra, Inimá de Paula, Flávio Shiró, Arthur Luiz Piza, Alberto Teixeira, Yolanda Mohalyi, Manabu Mabe e Frans Krajcberg.

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VALLIER, Dora. Arte Abstrata. Tradução de João Marcos Lima. São Paulo: Martins Fontes, 1980. LOPES, Almerinda da Silva. Arte Abstrata no Brasil. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2010, p. 89.


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Figura: 01. Yolanda Mohalyi. Composição à Margem do Rio. Técnica mista , 75,5 x 83 cm, 1959. Fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=artistas_obras& acao=mais&inicio=17&cont_acao=3&cd_verbete=365. Acesso em 23 de abril de 2015.

O fim do Estado Novo, no contexto político brasileiro, favorecia redemocratização a aceleração do desenvolvimento industrial. Com o término da Segunda Guerra Mundial se restabelecia o intercâmbio do país com a Europa, A expectativa da abertura do país e seu crescimento econômico inspirava a produção artística construtiva. Na arquitetura, se via desde os anos 1930, a encomenda de edifícios modernos, de formas sintéticas e despojadas, centrada na valorização das linhas e dos planos geométricos abriam perspectiva para a introdução da Arte Abstrata de matriz geométrica3. Todavia, nas artes plásticas as formas construtivas chegaram apenas, na virada da segunda metade do século XX. Os grupos da Arte Concreta, desde o seu princípio se organizaram e lançaram seus manifestos a favor da abstração que produziam. Com as organizações dos grupos e com a defesa propagada por alguns críticos e artistas da abstração geométrica, essas vertentes foram ganhando cada vez mais espaço dentro das instituições artísticas do país. Enquanto os artistas da Arte Abstrata Informal e Lírica mantinham-se em seus ideais de liberdade e individualidade. Assim, ainda estando presentes nas mostras e participando de alguns debates críticos, mantiveram-se sem muito se importarem em se destacarem no contexto da época. Essas atitudes fizeram com que a Abstração Informal/ Lírica só viesse à cena brasileira quando as diferenças entre os dois grupos concretos foram se acentuando, o que levaria a ruptura entre eles. Foi com o enfraquecimento desses grupos, que os artistas da abstração informal/líricos conseguiram a ascensão no cenário artístico brasileiro. Apenas, a partir das IV (1957) e V (1959) edição da Bienal Internacional de São Paulo, que a Arte Abstrata Informal/Lírica alcançaria devido reconhecimento.

3

LOPES, 2010.


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[...] Se o Concretismo marcou presença e soberania nas primeiras bienais de São Paulo, desde a IV edição (1957), começava a dar sinais de enfraquecimento, prestes a completar seu ciclo, a partir da dissidência do grupo Neoconcreta. Em contrapartida, era a vez da Abstração Informal ou Lírica sair do ostracismo e ganhar adesão de uma plêiade de competentes artistas, momento em que até alguns dos antigos concretistas renitentes passariam a fazer algumas incursões por essa linguagem 4. Os artistas que produziam uma abstração livre e subjetiva não aderiam a programas filosóficos, ideológicos ou político, e ativeram-se a uma postura mais isolada, sem se agruparem e/ou produzirem manifestos. Esta postura livre acabou lhes inferindo a falta de reconhecimento e prestígio. Aqueles que defendiam a abstração da arte brasileira pelo viés da racionalização não mediram seus esforços na tentativa de colocar a abstração informal/lírica em lugar de inferioridade na produção brasileira. Um exemplar texto dramático que inspirava terror e terminava anunciando um acontecimento catastrófico com a Abstração Informal/ Lírica foi o manifesto produzido por Ferreira Gullar intitulado “Teoria do não- objeto”, lançado em 1960 pelo Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Em seu escrito, Gullar anunciava a “Morte da Pintura”, no roteiro de seu texto o autor explicava que ao longo dos anos, a Arte Moderna havia conduzido o fim da pintura. Conclui que no ápice de seu desenvolvimento a arte abstrata germinou o “não- objeto”. “[...] Com a eliminação do objeto representado, a tela- como presença material- torna-se o novo objeto da pintura. Ao pintor cabe organizá-la mas também dar-lhe uma transcendência que subtraia à obscuridade do objeto material [...]”5 . Contudo, para Ferreira Gullar a pesquisa abstrata que proporcionaria a concepção da arte no “não- objeto” foi realizada pelos artistas que realizavam suas abstrações na arte pela vertente da racionalidade, da depuração das formas, e não poderia ser engendrada por outro caminho que se afastasse desses conceitos, ou seja, a experiência subjetiva e individual dos pintores informais não contribuíram para a renovação da arte ensejada anos depois. Para Ferreira Gullar, “O caminho seguido pela vanguarda russa mostrou-se bem mais profundo. Os contra-relevos e Tatlin e Rodchencko, como as arquiteturas de Malevitch, indicam uma evolução coerente do espaço representado para o espaço real, das formas representadas para as formas criadas”6. Nesse percurso Ferreira Gullar vai intencionando demonstrar que a problemática que haviam chegado os pintores abstratos modernistas não encontrou sua solução na própria Arte Moderna. Segundo o autor, a arte abstrata da primeira metade do século XX havia registrado o fenômeno da libertação da pintura de sua moldura e da escultura de sua base, todavia, os críticos daquele período não perceberam que a própria obra colocava problemas novos, que iam além da representação, e que para sobreviver a arte precisava definitivamente escapar do círculo fechado da estética tradicional7.

4

LOPES, 2010, p.42. 5

GULLAR, apud COCCHIARALE, F., & GEIGER, A. B.. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 237 (grifo do autor). 6Ibid., 7

Ibid.

p. 240 (grifo do autor).


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Dessa forma, a Arte Moderna ia concluindo o seu ciclo, entretanto, depois de romper com as questões técnicas era preciso dar um novo passo, o caminho agora era em direção à resignificação da própria arte. Essa resignificação precisava incluir novos conceitos na obra de arte, que a libertasse dos limites convencionais da matéria, do suporte, dos meios e das técnicas. Essa desmaterialização da arte, na visão de Ferreira Gullar era a criação do “nãoobjeto”, ou do objeto especial, que segundo o autor, “[...] um objeto especial em que se pretende realizar a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá sem deixar rastro [...]” 8. Todavia, o ensaio teórico do autor não perdia de vista a ênfase na insignificância da Abstração Informal no desenvolvimento da arte. Concluindo, que o alcance do novo objeto determinava o fim, sem recomeço, para aquela pintura não havia executado renovações em relação à tradição pictórica. No penúltimo parágrafo de seu texto deixa claro que, [...] as experiências tachistas e informais, na pintura e na escultura, mostram-nos a sua face conservadora e reacionária. Os artistas dessa tendência continuam- embora desesperadamente- a se valer dos apoios convencionais daqueles gêneros artísticos. Neles o processo é contraditório: em lugar de romper a moldura para que a obra se verta no mundo, conservam a moldura, o quadro, o espaço convencional, e põem o mundo (os materiais brutos) lá dentro. Partem da suposição de que o que está dentro de uma moldura é um quadro, uma obra de arte. É certo que, com isso, também denunciam o fim dessa convenção, mas sem anunciar o caminho futuro 9. Dessa forma, Ferreira Gullar anunciava a tragédia da Arte Abstrata Informal, pois definindo- a como incapaz de ultrapassar a barreira da arte convencional, pela forma que se apresentava, não conseguiria avançar para a construção de objetos especiais. Sem deixar a Modernidade, não haveria mais lugar para a pintura subjetiva, e no advir da Pós-modernidade, as faces da pintura abstrata informal/ lírica não seriam apreciadas. Nos anos 1960 a arte tomaria novos caminhos. Na tentativa de romper com o passado virá à negação da tradição. A eliminação das técnicas artísticas convencionais e o deslocamento da função do artista ocasionaram inúmeros novos fenômenos na arte que se chamou de Pós-moderna10.

8

GULLAR, apud COCCHIARELE, 1987, p. 241 (grifo do autor).

9

Ibid., p. 237 (grifo do autor).

Sabemos que esses termos Pós- moderna, Pós- modernismo, e outros pós-, instauraram inúmeros questionamentos e debates nos últimos anos, todavia para compreensão do nosso texto utilizamos o entendimento da autora Leirner que assim apresenta: ‘O pós-moderno como manifesto é sempre uma reação ao corpo coeso de trabalho realizado na primeira metade deste século- a própria palavra “pós-modernismo” faz pressupor mesmo que há um novo modernismo erigido sobre o cadáver de seu antepassado- porém definese diferentemente em cada caso específico [...]’ (LEINER, Sheila. Arte e seu tempo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1990, p. 105). 10


226

No embalar do Pós- modernismo, nos anos 1960 e 1970, viu-se a pintura, enquanto objeto tradicional apresentada no suporte da tela, sendo afastada das discussões críticas e da instituição artística. O conceitualismo e a experimentalismo imperam por essas décadas empurrando a pintura para uma posição de inferioridade. Ao longo desse período, a pintura foi obrigada a se repensar como linguagem que ampliasse suas experiências tanto no campo do que apresentava, ao alcance do conceitual, quanto na renovação de seus meios ou suportes. As margens das instituições críticas da arte a pintura se manteve renegada e indesejada, no entanto, não tardaria o seu retorno. No entanto, na virada dos anos 1980, de acordo com Paul Wood, [...] havia o ressurgimento do interesse por uma nova investigação das possibilidades da pintura após um período de inquestionável eclipse. Na história da arte moderna, o próprio fato da ausência de cultivo de uma área pode torna-la interessante para uma geração: os tempos mudaram e com eles a necessidades. Por outro lado, havia o mercado, que nunca deve ser subestimado [...]11 Assim, os artistas voltavam a manifestar o interesse pela pintura, entre o final da década de 1970 e os anos 80. Em 1982 o crítico italiano Bonito Oliva criou o termo Transvanguarda para denominar o ressurgimento da pintura na Europa. Esse retorno trazia de volta e o prazer de manipular materiais e suportes convencionais, e o fazer artesanal. No Brasil o retorno da pintura foi marcado pelas mostras de jovens artistas que foram ocorrendo em diferentes locais, todavia, a mais famosa delas ficou conhecida como: Como vai você geração 80? . Assim, Geração 80 nomeou a pintura que retomava a cena no Brasil, nos anos 1980. Nessa década a produção artística brasileira foi identificada pelas mostras coletivas que foram se espalhando no país, como por exemplo, as mostras: A Pintura como Meio, realizada no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, em 1983; Como vai você geração 80? ocorrida na Escola de Artes Visuais do Parque Laje, na cidade do Rio de Janeiro, em 1984; a Grande Tela, instalada na XVIII Bienal de São Paulo e o evento BR-80, promovido pelo Itaú Cultural. A pintura que aparecia nos anos 1980 era uma reação à arte produzida na década anterior. A ação dos artistas que naquele momento retomavam o fazer artístico pela pintura se definia como uma contraposição à intelectualidade e o conceitualismo dos anos 1970. Os artistas da Geração 80 reavivaram a pintura por meio da subjetividade e da individualidade manifestados pela cor e pelos gestos. O contexto político do Brasil era marcado por movimentos políticos de lutas, com o fim da ditadura, a abertura para partidos políticos e a almejada conquista das Diretas Já. Era um momento de euforia no país, e a pintura dos anos 1980 vinha para dizer isso, estavam contentes, alegres, se sentiam livres. 11

WOOD, Paul. et al. Modernismo em disputa: A arte desde os anos quarenta. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998, p. 232.


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Diante dessa volta efervescente da pintura na década de 1980 trouxe a resposta de que a pintura não havia morrido, e que os valores da arte subjetiva e livre tinham sobrevivido. Assim foi preciso rever o destino trágico que nos anos 1960 a crítica de arte lhe havia escrito. A tragédia do Fim da Pintura parecia agora apenas um drama, onde acometido da ironia a pintura zombava daqueles que a condenará no passado. O retorno da pintura nos anos 80 apresentava acontecimentos de intensa emoção. As grandes telas de pinturas vigorosas incitam um reencontro com o prazer e com o sentimento, mas não eram sentimentos apenas introspectivos, suas referências estavam na realidade cotidiana da sociedade brasileira. Através de figuras ou de manchas, os mais variados materiais e suportes, a nova pintura objeto encontrava suas inspirações nas cidades, nas paisagens, na arquitetura, ou em qualquer outro lugar, que a liberdade deste novo momento lhe proporcionava.

Figura: 02. Jorge Guinle. Bella Ciao! Óleo sobre tela, 190 x 120 cm, 1985. Fonte: Coleção Augusto Lívio Malzoni. Reprodução fotográfica Eduardo Ortega. Disponível em <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9273/jorge-guinle> Acesso em 23 de abril de 2015.

O texto do crítico Frederico Morais intitulado, Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você? publicado em Revista Modulo Especial- Catálogo oficial da exposição “Como vai você, Geração 80?12, no Rio de Janeiro em 1984, trazia um novo roteiro

MORAIS, Frederico. Gute Nacht Herr Baselitz ou Helio Oiticica onde está você? Edição especial catálogo da mostra "Como vai você, Geração 80?", jul. 1984. In: ONDE ESTÁ VOCÊ GERAÇÃO 80? Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 2014, p. 101. 12


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para Abstração Informal, não mais arguida a desaparecer, mas sim revigorada por algumas de suas heranças deixada à pintura desta Geração 80. Em seu escrito Frederico Morais apresenta a pintura que voltou a ter lugar na cena brasileira nos anos 1980 com uma citação de outro texto seu, onde diz: ‘[...] “Dizem que é bad painting, eu a vejo linda. Dizem que é feia, ultrajante- eu a sinto sensualíssima, tem seis dedos, um olho só e manca de uma perna. I love her” ’13. Logo, Frederico Morais explica o que era essa pintura mal vista pela crítica daquele momento, senão bela, é a pintura dos anos 80, aquilo que nunca deixou de ser, a expressão, o olhar, a ideia do artista que lhe transforma em arte. Para o autor, “[...] pintura é emoção, ela tem de nascer dentro das pessoas, no estômago, no coração, só na cabeça não dá. A arte vira ilusão de ideias [sic] e o erro está aí. A pintura é fruto de uma experiência, não nasce como teoria, mas ela pode gerar uma teoria [...]” 14. Os jovens pintores das mostras dos anos 1980 não se preocupavam mais com o dogmatismo do novo. Eles buscavam na História da Arte alguns elementos que reapresentavam, revisaram e recodificaram por meio de metáforas ou diretamente, fossem da arte figurativa ou da arte abstrata. Entretanto, não se prendiam a um panorama evolutivo ou a determinados estilos e movimentos. As referências da arte do passado eram inúmeras e sem culpa, os artistas não negavam esse retorno, pois a pintura dos anos 80 não pode ser vista como um retorno de meras técnicas, estilos, temas ou tendências, ao contrario disso, ela se mostrava livre para experimentar. A Geração 80 se pode ser vista como um legado da produção das vanguardas brasileiras. No entanto, houve uma reversão de valores da década de 1970, a produção artística que retoma a pintura nos anos 1980 foge dos referenciais teóricos e quebra a história da arte que se prolongava pelas vanguardas. Contudo, não tão distante no tempo, a Arte Abstrata Informal foi resgatada pelas obras de vários pintores da nova geração. Quanto a isso afirma Frederico Morais, “[...] Um retorno do artista a si mesmo, à sua subjetividade, mediante a liberação de uma fantasia não planejada ou controlada, e que se manifesta por uma intensificação do gestual e da cor, quase um neoinformalismo ou neofigurativismo [...]” 15. Acrescenta Morais, que restabelecendo à subjetividade e à individualidade os artistas se reaproximam do público, pois quanto mais próxima do indivíduo estivesse o conteúdo da obra, maiores seriam as experiências vividas que ela poderia comunicar. Dessa forma, a produção artística dos anos 1980 mostra que a arte atual não retoma preceitos antigos, acadêmicos ou modernos. Ela não manifesta um retrocesso de técnicas, meios e suportes para legitimar a eternizarão da pintura ou de qualquer outro meio expressivo

13

MORAIS, apud, Onde Está Você Geração 80, 2014, 101.

14Ibid.

, p. 101

15Ibid.

, p. 101.


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Nos servem as atitudes dos jovens artistas da Geração 80 para mostrar que arte contemporânea não exclui linguagens, pelo contrário, ela inclui novos e tradicionais meios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GULLAR, apud COCCHIARALE, F., & GEIGER, A. B.. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta. Rio de Janeiro: Funarte, 1987. LEINER, Sheila. Arte e seu tempo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1990. LOPES, Almerinda da Silva. Arte Abstrata no Brasil. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2010. MORAIS, Frederico. Gute Nacht Herr Baselitz ou Helio Oiticica onde está você? Edição especial catálogo da mostra "Como vai você, Geração 80?", jul. 1984. In: Onde Está Você Geração 80? Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 2014. Catálogo de exposição. VALLIER, Dora. Arte Abstrata. Tradução de João Marcos Lima. São Paulo: Martins Fontes, 1980. WOOD, Paul. et al. Modernismo em disputa: A arte desde os anos quarenta. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998.


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“Instalação’ e/ou ‘instalação’”: A obra de Regina Rodrigues e sua relação com o espaço na arte contemporânea. Tatiana Campagnaro Martins (PPGA-UFES)

Resumo O presente texto tem como objetivo fazer uma reflexão sobre a relação dos trabalhos de Regina Rodrigues (1959-) com o espaço de exposição. Nossa discussão aborda o campo tridimensional na arte contemporânea, pensando a escultura não só como objeto autônomo voltado para a contemplação, mas também como manifestação das transformações da noção de espaço na arte contemporânea. Palavras chave: cerâmica, escultura, objeto, instalação, galeria/museu.

Abstract This paper aims to reflect on the relationship of the work of Regina Rodrigues (1959 - ) with the exhibition space. Our discussion focuses on the three-dimensional field in contemporary art, thinking of the sculpture not only as independent object made for contemplation, but also as a manifestation of the transformation of the concept of space in contemporary art.

Keywords: ceramics, sculpture, object, installation, gallery / museum.

Introdução

Nosso ponto de partida para a reflexão sobre a relação das obras de Regina Rodrigues 1 (1959 -) com o espaço de exposição foi a observação das legendas de algumas fotografias de

1

Regina Rodrigues é natural de Araguari, em Minas Gerais. Graduou-se em Decoração e em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU. Cursou especialização em arte educação na Universidade de São Paulo (USP). Possui mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Católica de São Paulo (PUC).


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propriedade da artista, onde suas obras recebiam a denominação de ‘instalação’. Neste artigo não pretendemos julgar e enquadrar os trabalhos aqui apresentados dentro de uma ou outra categoria, pelo contrário, pretendemos analisá-los no seu ambiente de exibição, investigando sua relação com esse espaço, atentos aos problemas teóricos que dele emergem, buscando compreender o que levou a artista a defini-los como ‘instalação’. Nesse contexto analisaremos as obras Gravetos (1993), Prospecção (1991/2008) e Corais (2002), descritas pela artista como instalações. Em uma abordagem histórica, trataremos das questões conceituais que envolvem as obras tridimensionais da escultura à instalação, focando nas transformações da noção de espaço e nas relações do observador com a obra. Para isso utilizaremos como suporte teórico, os pensamentos de Rosalind Krauss no livro, Caminhos da escultura moderna (1998) e as questões levantadas por ela no texto A escultura no campo ampliado (2008); as definições de Claire Bishop sobre instalação em Installation Art (2010), assim como os apontamentos sobre site-specific de Miwon Kwon no texto Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity (2008).

Obras tridimensionais e as transformações da noção de espaço.

Quando nos referimos ao campo tridimensional na Arte, englobamos não só a escultura plena em seu conceito tradicional, mas também os relevos, os objetos e as instalações (RIBENBOIN, 1999, p.226). O século XX presenciou o convívio entre esculturas bastante distintas. Uma vertente estava voltada para a modelagem e o entalhe, interessada na forma em profundidade, na tradição humanista e nos critérios orgânicos. Outras obras tridimensionais se aproximavam de construções, em termos arquitetônicos e mecânicos, voltadas para a forma pura e a materialidade (RIBENBOIN, 1999, p.8). [...] a medida em que a escultura do século XX rejeitou a representação realista como sua principal ambição e voltou-se para jogos bem mais genéricos e abstratos da forma, surgiu a possibilidade – o que não se deu com a escultura naturalista – de que o objeto esculpido fosse visto como nada senão matéria inerte. [...] (KRAUSS,1998, p.301)

Foram várias as influências que levaram a tridimensionalidade aos novos rumos na arte moderna; o cubismo com as colagens e seus desdobramentos no espaço; a força das experiências construtivistas na Rússia e na Alemanha com a Bauhaus; as manobras críticas ao


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sistema da arte realizadas por Duchamp (DUARTE, 2005, p.11), os happenings dadaístas, a exposição internacional surrealista (1938) e a Merzbau (1923) de Kurt Schwitters. Ao se desvencilhar da lógica do monumento e absorver o pedestal, a escultura moderna através de seus próprios materiais ou do processo de sua construção, se tornou mais autônoma e autorreferencial, revelando o caráter mutável de seu significado e função, sem um lugar fixo, transportável e nômade (KRAUSS, 2008) conquistando a possibilidade de explorar o espaço. Na década de 1960 a escultura minimalista propôs uma “nova relação da obra de arte com o espaço, e sobretudo, do espectador com a obra” (DUARTE, 2005, p.11). O Minimalismo questionou o objeto de arte autônomo ao deslocar seu significado para o espaço de apresentação, devolvendo ao espectador um corpo físico (KWON, 2008). Donald Judd (1928-1991), no texto Objetos específicos (1965), considerado um manifesto teórico do minimalismo, diz que o uso das três dimensões abre espaço para qualquer coisa e que “[...] o trabalho tridimensional não sucederá de maneira clara a pintura e a escultura. Não é como um movimento; de qualquer modo, movimentos já não funcionam mais; além disso, a história linear de alguma forma se desfez. [...]” (FERREIRA, 2006, p.97).

Ao fazer essa afirmação Judd se refere aos trabalhos dos artistas de sua geração que não são nem pintura nem escultura. Trabalhos que utilizavam cor, forma e superfície de maneira integrada, inscritos no espaço. Em sua maioria envolviam novos materiais ou coisas que antes não eram usados, como fórmica, alumínio, lâminas de aço e acrílico, materiais que não se identificavam de maneira óbvia com a arte (FERREIRA, 2006). “(...) os escultores minimalistas, tanto em sua escolha dos materiais como em seu método de os compor, tinha por objetivo negar a interioridade da forma esculpida – ou ao menos repudiar o interior das formas como fonte de significado. (...)” (KRAUSS, 1998, p.303)

Os minimalistas buscavam uma arte não representacional e utilizavam a simples repetição, “uma coisa após a outra” (JUDD apud KRAUSS, 1998, p.292) como método para evitar as interferências da composição relacional (BISHOP, 2010). A escultura minimalista teve forte influência dos pensamentos do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Alguns dos pressupostos de Merleau-Ponty, em Fenomenologia da Percepção (1994), são que o sujeito que percebe e o objeto que é percebido estão entrelaçados e são interdependentes; que nossa percepção não depende apenas da visão, pois percebemos


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com o corpo todo; que o sujeito precisa estar fisicamente presente naquele momento e que o mundo está ao nosso redor e não a nossa frente. Essas ideias foram fundamentais para os artistas e críticos teorizarem sobre a nova estética da escultura minimalista que marcou a passagem da escultura tradicional para a ‘Arte Instalação’ (BISHOP, 2010). Segundo Rosalind Krauss (2008) no final dessa mesma década, a escultura como categoria precisaria ser infinitamente maleável para abarcar as “[...] coisas realmente surpreendentes [...]” e heterogêneas que vinham acontecendo, como: [...] corredores estreitos com monitores de TV ao fundo; grandes fotografias documentando caminhadas campestres; espelhos dispostos em ângulos inusitados em quartos comuns; linhas provisórias traçadas no deserto. [...] (KRAUSS, 2008, p.129).

Ainda na década de 1960 a palavra instalação começou a ser usada por revistas de arte para descrever a forma como uma exposição era organizada. A expressão Installation Shot, que designava a fotografia documental de trabalhos que ocupavam todo o espaço, deu origem ao termo Installation Art (BISHOP, 2010), geralmente traduzido para o português como ‘Instalação’. Utilizaremos o termo com a letra maiúscula para diferenciá-lo de ‘instalação’, o ato de instalar algo em algum lugar, também utilizado na montagem de exposições de arte. Clair Bishop, chama a atenção para a linha tênue que separa ‘Instalação’ e ‘instalação’. Segundo ela, ambos desejam aumentar a consciência do espectador em relação ao modo como os objetos são posicionados no espaço, no entanto, na ‘Instalação’ o espaço e os elementos dispostos dentro dele são considerados na sua totalidade, enquanto que a ‘instalação’ é secundária em relação ao trabalho individual (BISHOP, 2010). Na ‘Instalação’ o espectador entra fisicamente na obra, como uma presença literal no espaço, onde seus sentidos como tato, olfato e audição são tão importantes quanto à visão. Bishop considera essa presença literal do observador no espaço como a característica chave da ‘Instalação’ (BISHOP, 2010). Se na arte moderna a escultura propunha ao observador um movimento ao seu redor e um olhar contemplativo, na ‘Instalação’ é reivindicada a participação do receptor, a imersão de seu corpo e de seu movimento no interior da obra. Alguns desses trabalhos de ‘Instalação’ passaram a ter uma relação inseparável com sua localização, de forma que os elementos físicos do lugar passaram a fazer parte da identidade da obra. Essa nova modalidade de arte, chamada de site-specific, segundo Miwon Kwon, estava voltada para a arquitetura ou para a paisagem,


234 [...] inicialmente tomou o “site” como localidade real, realidade tangível como identidade composta por singular combinação de elementos físicos constitutivos: comprimento, profundidade, altura, textura e formato das paredes e salas; escala e proporção de praças, edifícios ou parques; condições existentes de iluminação, ventilação, padrões de trânsito; características topográficas particulares. [...] (KWON, 2008, p.167)

Os trabalhos site-specific focados na relação entre a obra e sua localização, desejavam extrapolar os limites da pintura e da escultura como linguagem, repensando o objeto artístico em seu contexto, onde o observador estaria envolvido em uma experiência corporal. Outro ponto levantado pelos trabalhos site-specific aborda a questão mercadológica onde, a inseparabilidade física entre obra e lugar, provocavam uma resistência às forças capitalistas de mercado (KWON, 2008). Essas experiências se intensificaram e diversificaram nas últimas décadas, de forma que Miwon Kwon classifica três estágios distintos para a arte site-specific, um fenomenológico, outro social/institucional e outro discursivo. Não cabe aqui, nos aprofundarmos nessas questões, devido ao breve espaço do texto, mas é importante sabermos que tais manifestações não só dialogam com o espaço e interagem com aspectos multissensoriais, como também envolvem questões sociais e políticas provocadas, pelas novas exigências do mundo contemporâneo.

O espaço na obra de Rodrigues

Daniel Buren (2009) afirma que a arte existe inserida em limites, muitas vezes despercebidos mas precisos e definidos, e que o ateliê é a primeira moldura da arte (2009). A partir de seu pressuposto, observamos como as obras de Regina Rodrigues escolhidas para análise nesse texto se relacionam com o local de exibição pública, sem descartaremos a importância do ateliê como espaço de produção, pois segundo Buren fazem parte de um mesmo sistema. “[...] como podemos ver, o museu e a galeria em uma das mãos e o ateliê na outra estão unidos para formar a fundação de um mesmo edifício e um mesmo sistema. Questionar um e deixar o outro intacto não leva a nada. [...]”2 (BUREN, 2009, p.111, tradução nossa)

2“[...]

as we shall see, the museum and gallery on one hand and the studio on the other are linked to form the foundation of the same edifice and the same system. To question one while leaving the other intact accomplishes nothing. [...]”.


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Acreditamos ser de fundamental importância para compreendermos a relação do trabalho de Rodrigues com o espaço da galeria, conhecer algumas questões que envolvem seu processo de criação e o espaço de produção. Regina Rodrigues ao longo de sua trajetória artística utilizou como principal meio em suas criações a linguagem cerâmica, explorando seu potencial não funcional e voltando seu interesse para as características próprias dos materiais pertinentes a esse meio. A cerâmica como técnica comporta um modo de fazer bastante peculiar, que depende de matérias primas, ferramentas, equipamentos, procedimentos e um espaço de trabalho adequado. As variações nesse conjunto de elementos, apontaram limitações e caminhos, colaborando com a diversidade na produção cerâmica em diferentes culturas ao longo da história da humanidade e ao redor de todo o globo terrestre. É como parte integrante desse universo milenar do fazer cerâmico que o processo de criação de Regina Rodrigues se desenvolve. Ao fixar residência em Vitória no ano de 1992, Rodrigues assumiu a cadeira de cerâmica da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Durante os dias úteis da semana, lecionava as disciplinas dessa área e desenvolvia projetos de pesquisa voltados para questões relacionadas com a cerâmica. Nos fins de semana, retornava ao laboratório onde realizava seus trabalhos de cunho pessoal, suas experiências estéticas e poéticas. A oficina de cerâmica da universidade funcionou então como ateliê para Rodrigues. Um espaço adaptado fisicamente para a produção cerâmica, mas também um espaço acadêmico, onde sua produção se misturava às de seus alunos durante o processo de confecção. Um local propício para as aulas práticas e sobre tudo um espaço de diálogo e reflexão sobre a cerâmica como linguagem. Ao descrever sua experiência visitando os ateliês parisienses, Buren conta que descobriu o senso de realidade ao ver os trabalhos inseridos no contexto do atelier, o que chamou de “verdade”. Ele acrescenta ainda que essa verdade não se restringe apenas ao artista, à obra e ao espaço, mas também ao ambiente onde estavam inseridos (2009). Em Rodrigues, essa realidade/verdade, a qual Buren se refere, envolve todo o ambiente acadêmico, os trabalhos dos alunos, suas descobertas como pesquisadora, além da diversidade de um espaço com múltiplas produções. A relação de Rodrigues com a oficina de cerâmica extrapolava a funcionalidade de uma sala de aula ou de um simples espaço de produção. Ela interagia com o espaço e usava as paredes da pequena sala anexa (reservada, para pesquisas) como suporte para ensaios de seus


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projetos em andamento. Esse anexo funcionava como um depositório de ideias, onde as experiências nas paredes ou sobre as bancadas se mantinham em contínuo diálogo com a artista. É dessa relação, não só com o espaço físico interno e externo da oficina, mas também com os acontecimentos e a rotina desse espaço, que surgem os módulos que compõem os trabalhos da década 1990. Gravetos (1993) (ver figura 1) foi o primeiro trabalho realizado por Regina na cidade de Vitória no Espírito Santo, trazendo indícios de que o impacto da mudança de ambiente, cidade/estado/instituição, foi uma das molas propulsoras da obra em questão3. O módulo que compõe a obra surgiu a partir da relação da artista com a paisagem ao redor da oficina de cerâmica. Foi caminhando no trajeto, repetido diariamente, de sua residência até o espaço de trabalho que Rodrigues coletou os galhos secos caídos das árvores. A artista se apropriou de tais objetos, reproduziu-os em cerâmica, replicando-os em série, para posteriormente serem utilizados na montagem da obra.

Figura 1: Regina Rodrigues. Detalhe de Gravetos, 1993. Galeria Espaço Universitário Fonte: foto cedida pela artista

3

Para mais informações sobre o processo de criação de Rodrigues em Gravetos consulte MARTINS, Tatiana C.. Gravetos no caminho: Marcas do rastro criador em gravetos (1993) de Regina Rodrigues. In: Farol: revista do programa de Pósgraduação em Artes PPGA/UFES, Vitória, ano 10/número 12, p.90-95, 2014.


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Na Galeria Espaço Universitário, a artista montou os módulos sobre o piso, um após o outro, formando dois caminhos. Um com os gravetos mais escuros, trabalhados com engobe4 e o outro com os gravetos mais claros, queimados na fumaça5. Fixados por trás com arame, deslocou verticalmente alguns gravetos e lateralmente outros criando a sensação de movimento. Esses caminhos irregulares, ora estavam dispostos lado a lado ora se cruzavam, passando um por cima do outro, como se acompanhassem a topografia de um solo imaginário, como os atalhos e bifurcações criados pelos transeuntes sobre a grama do campus universitário, onde coletou os galhos secos que originaram os módulos. Ao utilizar o chão e criar um trajeto, Rodrigues tira o observador de sua zona de conforto ao propor um ângulo de visão de cima para baixo e um deslocamento pelo espaço ocupado obra. A materialidade do objeto e a mimesis da forma, provocam os sentidos do espectador, remetendo às sensações provocadas pelos galhos naturais e a paisagem de onde foram retirados. No entanto, o observador mantém uma postura muito mais contemplativa do que de imersão no contexto da obra, o que reafirma a entidade autônoma da mesma. Em Gravetos, a forma do trabalho é o elemento gerador de sentido e o espaço onde este se encontra inserido, a galeria “com suas impecáveis paredes brancas, luz artificial (sem janelas), clima controlado e arquitetura pura” (KWON, 2004, p.169), exerce a função de neutralidade. Este trabalho pode ser desmontado e remontado em outros locais sem que haja uma perda de sentido. Portanto, a nosso ver, o termo ‘instalação’ em Gravetos tem uma proximidade maior com a montagem da obra do que com a ‘Instalação’ seguindo os parâmetros propostos por Bishop e descritos anteriormente nesse texto. A serialidade e a repetição de módulos também são o ponto de partida da obra Prospecção. Na construção desses módulos, Rodrigues parte de uma técnica básica de modelagem muito utilizada na construção de objetos, a técnica do rolinho6. Distanciados de sua função de origem, os rolinhos foram produzidos desafiando as possibilidades de espessura que a argila suporta, neste caso aproximadamente 0,3 cm. São módulos idênticos em sua forma, porém feitos em argilas diferentes, modelados a mão e utilizados ainda crus (quando a argila está seca e não possui nenhuma liga entre seus grãos, seu momento de maior fragilidade) ressaltando suas características físicas como texturas e cores in natura. É do 4

Engobe: argila líquida, de cor natural ou pigmentada com minerais, que é utilizada para pintar a superfície de outra argila antes da queima. 5 Queima feita em latão com pó de serra para alterar a cor da cerâmica. 6Técnica do rolinho: Consiste na construção de formas a partir da sobreposição de rolinhos de argila colados com barbotina e/ou costurados com a espátulas. Para mais informações colsulte RODRIGUES, Maria Regina. Cerâmica. Vitória: UFES, Núcleo de ensino a distância, 2011.


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contato direto com a matéria, dos movimentos precisos que se repetem no rolar das mãos sobre a argila, que surge a forma fina, alongada e simétrica. Em busca de uma solução de montagem para esses delicados módulos, Rodrigues escavou um pequeno nicho (0,5 X 6,5 X 40 cm) na parede da sala anexa à oficina de cerâmica, onde realizou as primeiras experiências de inserção dos finos rolinhos de argila crua nesse vão (ver figuras 2 e 3).

Figura 2: Fotografia tirada em 2014 do ensaio realizado por Regina Rodrigues em 1998 na parede da sala de cerâmica da UFES. Rolinhos de argila crua incrustados na parede, aproximadamente 6,5 x 40 x 0,5

Figura 3: Detalhe do ensaio em 1998 Fonte: Foto cedida pela artista

Fonte: Foto Tatiana Campagnaro.

O local de execução do ensaio foi um cantinho escondido atrás da porta, que ao mesmo tempo mostrava e escondia o trabalho (ver figura 4 e 5). Quando a porta estava aberta e as pessoas circulavam de um cômodo para o outro, o ensaio ficava coberto pela porta. Ao entrar no cômodo e fechar a porta, a experiência se mostrava para quem entrou no ambiente, mas só realmente quem fechava a porta é que via essa experiência, ou seja, a artista e uns poucos autorizados por ela.


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Figura 4 e 5: Experiências sobre as paredes da sala anexa na oficina de cerâmica Fonte: fotos Tatiana Campagnaro

Esse ensaio se configura como um documento do processo de criação dessa artista, que não tem como hábito registrar suas ideias em forma de desenhos, nem de projetar bidimensionalmente suas obras. Cumpre o papel de protótipo, de maquete de uma obra à vir a ser. A parede, que funciona como um caderno para seus experimentos, nos revela o caráter intimista desse ensaio escondido atrás da porta e sugere uma relação com a passagem de um ambiente para o outro, do espaço reservado (da sala anexa) para o coletivo (a sala de aula). Prospecção como obra, foi apresentada pela primeira vez em uma coletiva no ano de 1999, na exposição de abertura da Casa Porto das Artes Plásticas (ver figura 6). Rodrigues levou sua experiência da parede atrás da porta da sala anexa para as paredes de um prédio histórico, uma edificação tombada a nível estadual, datada de 1903.


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Figura 6: Prospecção, 1999. Rolinhos de argila incrustados na parede, aproximadamente 6,5 x 400 x 0,5 cm. Casa Porto das Artes Plásticas. Fonte: foto cedida pela artista

O espaço escolhido para a montagem, lida novamente com a passagem entre dois ambientes, um corredor e uma sala de exposição. Ao escavar as paredes Rodrigues faz uma prospecção no verdadeiro sentido do termo, derivado da mineralogia, mas muito utilizado por restauradores, um método ou técnica de localizar e avaliar jazidas, uma forma de sondagem, de investigação (FERREIRA, 2004). A artista descortina as camadas de tinta sobrepostas deixando-as aparentes em uma das extremidades da montagem, revelando através da sucessão de cores, anos da história do edifício (ver figura 7). No restante da parede a escavação é mais profunda, chegando ao reboco onde são incrustados os rolinhos de argila. A sequência estrutural simples dos módulos perfilados lado a lado ou um após o outro, remetem a serialidade dos minimalistas. Inseridos na superfície literal da parede acompanhavam o espectador no seu trajeto de um ambiente ao outro da exposição como se pertencessem à própria estrutura do edifício e tivessem sido revelados na mesma escavação. Prospecção reverbera as questões: o que há por trás das paredes da galeria? Seriam os delicados rolinhos, uma forma simbólica de representar o fazer artístico como base de sustentação da instituição? Uma forma de questionamento à maneira como as instituições moldam a arte?


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Figura 7: Detalhe de prospecção,1999, Casa porto das Artes Plásticas. Fonte: Foto cedida pela artista

Em 2008 Rodrigues apresenta uma nova versão de Prospecção em outra exposição coletiva. A exposição, Nomadismo e Territorialização, trouxe como proposta o trabalho de artistas, que segundo Lincoln Guimarães Dias, curador da mostra, “[...] respondem ao estado de negatividade que se constituiu na arte das últimas décadas a partir da dissolução da especificidade formal das obras, da crise da própria noção de obra e do vácuo deixado pela falência do projeto ético e político que caracterizou a modernidade. [...]”. (Dias, 2008, p.4)

Ainda segundo ele, os trabalhos operavam a partir dessa perda de lugar, seja ressituando-se provisoriamente, seja aprofundando os sintomas dessa perda. A exposição aconteceu simultaneamente em dois espaços, na Galeria Matias Brotas Arte Contemporânea e na Galeria de Arte Espaço Universitário. Duas galerias distantes apenas 550 metros uma da outra que promoveram uma exposição única. Nessa mostra o trabalho de Rodrigues voltava a discutir os limites espaciais. Na Matias Brotas, os finos e delicados módulos de argila foram incrustados na parede próxima a entrada da galeria. O recorte na parede ultrapassava a porta de vidro que dava acesso ao ambiente onde Prospecção se projetava do interior da galeria para o espaço externo (ver figura 8), sugerindo uma continuidade virtual até a Galeria Espaço Universitário.


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Figura 8: Planta da Galeria Matias Brotas Arte Contemporânea com a localização da obra prospecção em vermelho Fonte: disponível em: <http://www.matiasbrotas.com.br/pt/galeria.php> Acesso em 14 nov.2014

Prospecção, nas duas exposições, traça uma forte relação com o espaço onde foi instalada e o deslocar-se do espectador, assim como ocorreu no ensaio de ateliê. Essa relação com o espaço, com a passagem entre dois ambientes, entre o que é visto e o que está escondido, são os fatores geradores de sentido na obra. Em cada instalação a obra proporciona uma nova reflexão sobre essa relação espaço/obra/instituição. Em Prospecção, o espaço onde o trabalho foi instalado (o cubo branco teoricamente neutro) está vinculado ao sentido da obra. Removido do local, perderia a totalidade ou parte de seu significado. Poderíamos usar aqui as palavras de Richard Serra “remover a obra é destruir a obra” (apud CRIMP, 2005, p.136). A obra Corais (ver figura 9) foi produzida para o 4° Salão do Mar, realizado na Casa Porto das Artes Plásticas, uma exposição com temática marinha onde o trabalho obteve o prêmio Menção Honrosa. Nesse caso a obra tinha um encargo a cumprir para que fosse aceita no Salão. O tema da exposição foi o ponto inicial para sua criação e o universo cerâmico as


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diretrizes para sua construção. Foi a partir da técnica do torno7 que foram produzidos os módulos cilíndricos, que juntos compõem a obra. Com essa ferramenta de produção em série e a colaboração de um torneiro de ofício, Rodrigues produziu centenas de cilindros com diâmetros aproximados de 4 a 5 cm e alturas entre 5 a 20cm. Os módulos semelhantes, mas não idênticos, enquanto ainda estavam úmidos, foram sendo colados uns aos outros com ângulos de inclinação variados formando grupos com 8, 10, 12 elementos. Levados ao forno, os pequenos grupos adquiriram uma coloração clara, quase branca, dessa argila após a queima.

Figura 9: Detalhe da obra Corais, 2002. Casa porto das Artes Plásticas Fonte: Foto cedida pela artista

Na galeria, Rodrigues dispôs os grupos de cilindros sobre uma base de MDF na cor natural, com aproximadamente 200 x 200 x 30 cm. Encostados uns aos outros, formando um único objeto, remetiam à forma de um recife de corais. O material, a escala e a forma sugeriam que o trabalho seria dotado de uma força animada, como se fossem seres orgânicos. Isolados do chão pela base e distante da parede, a obra recebia a luz natural que entrava pela janela. Contrastando com o restante da iluminação uniforme da galeria, criava um jogo de luz e sombra e uma atmosfera mística. O observador ao se aproximar e circular a obra, mantinha 7

O torno é um equipamento que possui um disco horizontal acoplado a um eixo que gira, movido mecanicamente ou à eletricidade. A argila é colada a esse disco que gira, possibilitando através da pressão das mãos do ceramista a conformação de peças circulares.


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uma postura contemplativa, voltando-se para o objeto e dando as costas para o restante do espaço. Como em Gravetos, o termo ‘instalação’ parece-nos ter mais relação com a montagem dos módulos na composição da obra do que com as questões relacionadas ao espaço de exposição e ao modo de observação.

Considerações finais

Durante a análise desses três trabalhos de Rodrigues, podemos observamos que não existe um padrão na relação que suas obras mantêm com o espaço de exposição. Em Gravetos e em Corais, a forma geradora de sentido na obra se destaca no espaço neutro da galeria. Aproximam-se da concepção moderna de escultura, como objeto autônomo e autorreferencial. Fica claro também, que nessas obras, a relação da artista com a materialidade da cerâmica como meio de expressão é muito forte. Independentemente da mola propulsora que originou os módulos que compõem o trabalho ou do conceito final da obra, as características plásticas dos materiais se sobressaem à questão da relação com o espaço. A obra Prospecção insere-se na contemporaneidade ao se negar a seguir os padrões previamente definidos de montagem de trabalhos sobre a parede da galeria, por não se contentar em ser apenas um objeto contemplativo, mas uma obra que propõe um exercício reflexivo sobre sua relação com o espaço. Outro fator que nos chamou a atenção foi a forma como a artista registrou fotograficamente suas obras, ou como orientou os fotógrafos que fizeram os registros. Na maioria das imagens em seu poder, o enquadramento privilegia detalhes da obra e não o espaço como um todo. Acreditamos que o termo ‘instalação’ foi empregado pela artista, devido principalmente ao caráter modular de suas obras, que só se concretizam fisicamente no ato da instalação, ou seja, em sua montagem. As obras tridimensionais de Rodrigues distanciam-se da escultura tradicional e se desdobram no espaço expositivo sem fazer dele o seu ponto principal. No entanto, a materialidade dessas obras é tão forte que ousaríamos deixar esses termos de lado e chamá-las simplesmente de cerâmica.


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REFERÊNCIA

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A arte como possibilidade de um novo habitar. Vinicius Gonzalez (PPGA-UFES)

O presente artigo investiga a potencialidade que algumas obras de arte pública trazem de ativar novas paisagens urbanas através de suas construções/intervenções nas cidades. Para isso se faz necessário entender como a arte dialoga com as transformações urbanas provocadas pelo rápido e enérgico processo de modernização a partir da segunda metade do século XX. Falamos de obras que possibilitem reflexão sobre o papel da arte pública na ativação de uma memória urbana, na ativação afetiva dos lugares, resignificando e transformando-os enquanto paisagem urbana. São novas imagens/projeções, não apenas pela simples relação arte/cidade, mas principalmente por carregar em si um discurso memorialístico como conceito chave para essa ativação. Palavras-chaves: Arte, Memória, Paisagem Urbana, Cidade This article explores the potential that some public art works bring to activate new urban landscapes through their constructs / urban interventions. For this it is necessary to understand how art speaks to the urban transformations caused by the rapid and energetic modernization process in the second half of the twentieth century. We speak of works that allow reflection on the role of public art in the activation of an urban memory, affective activation places, redefining and transforming them while urban landscape. Are new images / projections, not only for the simple relationship between art / city, but mainly carry in itself a memorialistic speech as a key concept for this activation. Keywords: Art, Memory, Urban landscape, City

"A cidade favorece a arte, é a própria arte". É citando Lewis Mumford que Argan (2005, p.73) inicia seu capítulo “A cidade ideal e a cidade Real", para logo de inicio deixar clara a estreita relação entre o fazer história da arte e o fazer história da cidade. Como ele próprio continua, ela, a cidade, não é apenas um invólucro ou uma concentração de produtos artísticos, mas um produto artístico ela mesma. Como, então, entender a cidade pelo olhar da arte? Antes, porém, vamos resgatar algumas discussões sobre a cidade e sua percepção através da paisagem, afim de estabelecer como nos colocamos, ou pelo menos, como enxergamos o papel do sujeito nessa teia de relações urbanas. Entendemos que seja fundamental partir de uma leitura universal para, pelo menos, tentar dar conta do nosso microcosmo. Estamos falando de uma busca por um reconhecimento ontológico do termo, ou


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simplesmente sentir-se parte. Condição fundamental no processo de significação do lugar que habitamos. Afinal, habitar é ser-estar no mundo. Por mais que exista um diagnóstico “padrão” para o futuro territorial dos complexos urbanos, também é sabido que cada cidade possui particularidades e especificidades que fazem suas engrenagens serem única, que nos possibilitam enxergá-las com olhos mais delicados, ou como em nosso caso, possibilitam realizar uma leitura poética do que o campo da arte entende sobre o conceito “cidade”. Nesse sentido a definição de cidade parte de uma leitura histórica do seu processo de formação como busca de reconhecimento dos caminhos trilhados até chegar ao ponto da busca pela apropriação de uma realidade urbana que podemos chamar de nossa. Historicamente, a cidade quase sempre foi sinônimo de refúgio, proteção, sobrevivência. Símbolo máximo da libertação do homem diante da natureza. Trazia em suas idealizações a promessa de continuidade da frágil raça humana, como acreditava os medievais, quando os homens livres viviam dentro dos muros, enquanto os camponeses, do lado de fora, ficavam a própria sorte. Ainda na pólis grega, a cidade propiciava aos homens livres a oportunidade de alcançar a imortalidade de pensamento e de ação, e deste modo ascender acima da servidão biológica (TUAN, 1980, p.172). Argan (2005, p.73) afirma que a ideia de cidade ideal sempre esteve profundamente arraigada em todos os períodos históricos da humanidade, sendo assim inerente ao caráter sacro a relação institucional com a cidade. Esse pensamento se confirma na contraposição recorrente entre a cidade celeste ou divina e a cidade terrena ou humana. Tal dualidade nos leva a crer que o homem buscou em quase toda sua existência (se o ainda não faz) denegar o natural como sagrado afim de desmistificar o que não dominava, sempre em detrimento da construção de um recinto artificial que por diversas vezes almejou ser sacralizado, ou simplesmente, reduzir a região mitológica da natureza em espaço sagrado da civilização humana. Ou como sentencia Argan, a natureza como mundo das causas primeiras e das finalidades últimas. Quando se fala em cidade, nós que pertencemos às civilizações urbanas, assumimos sempre uma postura dupla e contraditória em relação a esta forma de vida associada (CACCIARI, 2009, p.26). De um lado, concebemos a cidade como lugar de trocas afetivas, relações inteligentes e seguras. Aprendemos ao longo de nosso desenvolvimento como raça que viver em grupos se torna mais vantajoso quando o que está em jogo é a sobrevivência. Através do coletivo preservo o indivíduo e vou construindo os laços necessários para vencer


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as adversidades naturais. Se nos primórdios, o ambiente hostil prevalecia sob nossas frágeis condições humana, a medida que nos associamos por afinidade desenvolvemos a grande habilidade de viver socialmente. Os agrupamentos passam a marcar territórios, criando-se um lugar para se morar, um porto seguro afetuoso e confortável onde se pode repousar após longa jornada. Um dos dilemas pós-modernos apontados por Cacciari (2009, p.33), é quando nos diz que não habitamos mais as cidades. Habitamos territórios cuja métrica já não é espacial; já não existe qualquer possibilidade de definir eixos espaciais precisos. Se antes os sítios eram divididos por espacialidades palpáveis, como territórios não habitados ou zonas rurais, hoje dificilmente conseguimos distinguir os limites entre as cidades que configuram uma região metropolitana por exemplo. Lynch (2011, p.52) define que os limites “são os elementos lineares não usados ou entendidos como vias pelo observador”. Fala em quebra de continuidade, como as praias, os rios, ferrovias e até mesmo espaços em construção como as áreas industriais que circundam muitas zonas metropolitanas. Se formos diminuir o foco e adentrarmos nas estruturas urbanas, ai sim o problema se agrava. Entre os bairros que compõe uma cidade muitas das vezes os que os separam são uma ruela ou um beco, elementos que se interpenetram e se sobrepõem regularmente. Com esse pensamento nos chama a perceber que não se trata de uma materialidade visível que o verbo habitar facilmente nos remete. [...] O habitar não tem lugar lá onde se dorme e, por vezes, se come, onde se vê televisão e se diverte com o computador de casa; o lugar do habitar não é o mero alojamento. Só uma cidade pode ser habitada; mas não é possível habitar a cidade se ela não se dispuser a ser habitada, ou seja, se não “der” lugares. O lugar é o sítio onde paramos: é pausa – é análogo ao silêncio de uma partitura. Não há música sem silêncio [...] (CACCIARI, 2009, p.35). Fala de uma transposição geográfica e física quando afirma que o desenvolvimento da metrópole para território não pode ser programado. Não se trata, contudo, de uma incapacidade técnica ou de uma vontade política, e sim da simples impossibilidade de programação dos limites administrativos, que mesmo existindo são todos artificiais e fictícios. Estamos falando de uma diluição dos limites tradicionais que até mesmo a carga simbólica que o termo cidade carrega em si não suporta mais dentro de uma região metropolitana, por exemplo. Onde começa e termina uma cidade? Em uma avenida? Uma esquina? Ou quem sabe em um olhar?


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Com o devido cuidado e sem ter a intenção de estender a longos parágrafos a discussão, podemos afirmar que habitar não se trata de um estado de ter residência, morar em uma construção, como dois corpos independentes. Mas sim, estabelecer um modo no qual o homem, ao desenvolver possibilidades de uma relação ser-no-mundo1, constrói o mundo que o circunda. Enquanto ocupação, o ser-no-mundo é tomado pelo mundo de que se ocupa […] “a ocupação se concentra no único modo ainda restante de ser-em, ou seja, no simples fato de demorar-se junto a” (HEIDEGGER, 1954, p.01). Perceber e responder o que nos faz ser parte, porque não podemos imaginar uma natureza do ser (essência) sem considerar o seu entorno. Em um claro (e breve) exercício de flexão do pensamento heideggeriano nos interessa sua preocupação na questão do ser em conjunto enquanto tal e como esse ser se relaciona com o todo, em uma proposição dialética entre o interior e o exterior.

Figura 1 - Robert Smithson, The Monuments of Passic, New Jersey, 1967. Fonte: James Cohan Gallery

1

Com o conceito de ser-no-mundo Heidegger pretende caracterizar a simultaneidade de mundo e homem, mostrando que a existência do homem recebe seu sentido da sua relação com o mundo e que este obtém sua significação através do homem. (FERREIRA, Acylene Maria Cabral. O destino como serenidade).


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Podemos percerber que as grandes cidades converteram-se em um arquipélago de enclaves modernizados – com suas torres corporativas, shoppings centers e condomínios fechados – cercados por vastas áreas abandonadas, terrenos vagos ocupados por populações itinerantes (PEIXOTO, 2004, p.393). É um mundo cada vez mais sem passado (ou seria um novo passado?), uma nova geografia econômica que obriga os indivíduos que nele habitam a novas relações de interação. Forma-se uma instabilidade espacial em áreas onde o fazer e desfazer é contínuo. Criam-se espaços críticos, paisagens quebradas bem no meio da cidade, deslocando continuamente nossa percepção. O aparecimento dessas novas estruturas espalhadas pelas cidades são detritos de um passado violentado. Resíduos do progresso, depósitos em que se acumulam vestígios arqueológicos; fraturas aparentemente desprovida de rosto e história. Seria essa fração de memória a matéria constituinte na (re)construção imagética da paisagem urbana através da arte? Robert Smithson realizou, no final dos anos de 1960, diversas expedições de reconhecimento da paisagem através de regiões industriais nos arredores de Nova York. Resultado: uma série de seis fotografias e um foto/mapa intitulados “The Monuments of Passic”. Através de uma narrativa documental, fez um tour por essa paisagem para retratá-la devastada pela industrialização e pelo crescimento urbano. Nenhum desses monumentos mapeados por Smithson são lugares aos quais seus habitantes atribuíram qualquer significado. Ele não faz referência à história ou à antiga configuração urbana da região, mas evidencia e aponta desde então o problema da transformação urbana e a relação de memória dos seus habitantes. Smithson no seu texto sobre “Monuments of Passic” tratou as estruturas fotografadas como ruínas às avessas, ou seja, “não desmoronaram em ruínas depois de serem construídas, mas se ergueram em ruínas antes mesmo de serem construídas” São cicatrizes que revelam as marcas deixadas por um processo de modernidade, caracterizado pela brutalidade interventiva e pela velocidade de deslocamento e adaptação proveniente de interesses econômicos especulativos, geradores de espaços latentes, oscilando entre o existir e não-existir. Através de Heidegger, usufruímos de uma noção existencial fenomenológica, baseada na posição do homem no mundo enquanto ser ativo constituinte do todo, para entender as engrenagens que o leva a construir sua relação memorialística através da arte com a cidade e sua respectiva paisagem urbana. Essa torção filosófica contribui no desenvolvimento do


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pensamento quando abordamos a problemática da memória na arte pública. Diante do exposto, podemos afirmar que, ao paço que (re)construímos o nosso entorno, nossa realidade, entramos em constante estágio de habitação daquilo que nos faz parte. Imersão. Completude. Vejamos, por exemplo, a obra “After Banhof Video Walk”, dos artistas Janett Cardiff e George Miller. Desenvolvido para a Documenta de Kassel, de 2013, o trabalho foi projetado para acontecer em uma antiga estação ferroviária da Alemanha, em Kassel, e consiste em um vídeo de 26 minutos que é “projetado” em um Ipod que o espectador retira em uma cabine localizada dentro da estação. Guiado pelo vídeo e pelas vozes de Cardiff e Miller, o espectador-usuário-transeunte passa a se relacionar com a estação e a vaguear por uma paisagem que é tanto ficção quanto realidade. Fala-se em um perturbador e misterioso mundo2, onde os participantes ao assistirem as cenas na pequena tela do aparelho eletrônico, sentem a presença do que vêem ao se posicionarem no mesmo local que tudo foi filmado. E quando buscam enquadrar o aparelho com a cena que se desenrola, tentam seguir os mesmos movimentos como se fossem o operador da câmera, causando estranha sensação de deslocamento temporal. Nesse momento, passado e presente se cruzam em um espaço paralelo criado pelos artistas, onde se discuti uma memória de um passado nem tão distante assim. Mais do que isso. Fala, também, de uma memória paisagística típica de uma cidade modernizada ao evidenciar uma relação nem sempre percebida que o usuário da estação ferroviária tem com seus pares e os aparelhos urbanos que utiliza. E que só percebemos a ausência quando participamos do trabalho.

2

Em uma tradução livre, esse trecho descritivo da obra foi adaptado do site dos artistas.


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Figura 2 – Janett Cardiff & George Miller - After Bahnhof Video Walk - Documenta de Kassel, 2012. Foto Malvina Sammarone Assim, habitar se faz através de uma relação sensível com o mundo (fazer arte). Habito porque me sinto parte do que me proponho a transformar. Reconfiguro. Vejo o que ninguém vê. Ou quando vejo o que todos veem meu olhar extrai nuanças e detalhes que possivelmente passaram despercebidos pela grande maioria. A cidade para mim é campo fértil de possibilidades infinitas. O skyline urbano é como uma paisagem impressionista explodindo em movimentos multicoloridos. Retomando Tuan, talvez esse skyline urbano se aproxime da experiência espacial dos habitantes das grandes florestas tropicais: onde a linha do horizonte, o infinito, é barrada pelos troncos de uma mata fechada, quando na verdade não há horizonte, e sim uma grande carência de marcos visuais (TUAN, 1980, p.91).No caso das cidades, nossas árvores são de concreto, e vislumbrar o horizonte se transforma em exercício de imaginação diante de truncadas e inúmeras ruas e avenidas. Talvez o mais próximo que consigamos chegar, seja no infinito perspectivo arquitetônico. Por isso que, quando Lynch constrói a ideia de que olhar para a cidade pode dar um prazer especial, por mais comum que possa ser o panorama, ele deixa claro que ao mudarmos a perspectiva do olhar passamos a enxergá-la como uma grande obra de arte temporal, como ele mesmo define. Temporal porque não aceita padrão como outras artes, temporal porque a cidade é vista sob todas as luzes e condições atmosféricas possíveis. “A cada instante, há mais


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do que o olho pode ver, mais do que o ouvido pode perceber, um cenário ou uma paisagem esperando para serem explorados” (LYNCH, 2011, p.01). Rykwert, ainda na introdução do seu livro “A sedução do lugar”, faz interessante relato. Desde a fase acadêmica questiona o conjunto de ensinamentos recebidos sobre a natureza racional dos assentamentos urbanos, “assim como a ideia de que a cidade é moldada por forças impessoais”. Para ele, outras noções, sentimentos e desejos comandam os projetistas e construtores, não relacionando o crescimento das cidades apenas ao que os economistas ensinavam. Acredita que a cidade seja um “artefato almejado, um constructo humano em que muitos fatores conscientes e inconscientes desempenham seu papel” (RYKWERT, 2004, p.05). Mesmo reconhecendo a intenção de distanciamento na construção dos edifícios corporativos e dos prédios habitacionais, o autor diz que: [...] A sensação da cidade e o seu tecido físico estão sempre presentes para os habitantes e visitantes. Apreciado, visto, tocado, cheirado, adentrado, consciente ou inconscientemente, esse tecido é uma representação tangível daquela coisa intangível, a sociedade que ali vive – e suas aspirações. Uma representação, uma figuração – mas não, ínsito, uma expressão. A palavra “expressão” sempre me faz pensar em algo involuntário, instintivo, e por tanto, passivo, algo como creme dental para fora do tubo (RYKWERT, 2004, p.07) Nesse sentido, precisamos nos atentar e repousar nossos esforços. Através de um olhar estético, enxergamos naturalmente a cidade como obra de arte. Por meio dela, podemos descobrir suas qualidades como paisagem; ambiente carregado de significados materiais e imateriais; de interpretações. E como sugere Rykwert, representação, ao contrário de expressão, sugere reflexão, intenção e até mesmo, nesse contexto, um desígnio. A cidade assim, se torna nesse momento o grande suporte, meio de construção e reconstrução de realidades e representações, ativando e (re)configurando novas paisagens a cada olhar mais atento, por fim, produzindo outra realidade visual. Ora, sendo a cidade então uma marca cultural, enxergá-la como suporte e expressão da arte não é nenhum exagero, pois como afirma Maderuelo, ela possui qualidades como paisagem e por isso está sujeita a um olhar estético. Entendida como obra de arte, la ciudad se encuentra sometida a la mirada estética y, a través de ella, podemos descubrir sus cualidades como paisaje, entorno sentimental, depósito de la historia y escenario arquitectónico (MADERUELO, 2001, p.18) Quando o autor espanhol traz a cidade como fruto do trabalho coletivo, gera um profundo significado simbólico, ao ponto que podemos considerá-la como uma obra de arte


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porque representa as aspirações, ideais, realizações e frustrações de seus habitantes ao longo de toda história. Entende-se, portanto que sítio urbano, através de suas inúmeras paisagens, torna-se um campo onde ocorre a materialização entre diferentes espaços e tempos, entre diversos suportes e tipos de imagem. Nesse contexto, acreditamos que a arte pública se coloca como responsável por ativar novas paisagens, como ocorre quando acontece eventos como o “Madri Abierto” (Madri, Espanha) e o “Arte Cidade” (São Paulo, Brasil). Tais ações não buscam afirmar a necessidade da arte estar fora dos museus e galerias, muito pelo contrário, procuram enfatizar novas estratégias espaciais e críticas sobre o uso do espaço urbano (público). Diante desse novo contexto urbano, a arte contemporânea apresenta, e representa, sobretudo, a complexidade do ambiente, suas diferenças e, principalmente, a consequente capacidade de interpretação de cada um que de fato ali habita, determinando múltiplas possibilidades de leitura. A arte pública interage de tal modo com a realidade da cidade e os seus fluxos que não é percebida como tal. A desmaterialização da arte é fruto das reflexões contemporâneas sobre o seu papel e lugar. A cidade como lugar da vida cotidiana, do coletivo, do fluxo de ações, dos acontecimentos e temporalidades e da acumulação histórica, oferece reflexão estética ao converter-se em parte das obras-manifestações de arte pública. São nessas condições que os artistas contemporâneos, através de suas intervenções/instalações, estabelecem mudanças no cenário, estimulam o debate comunitário, interagem com a arquitetura do entorno e corroboram para um novo olhar sobre o lugar. Quando observamos na arte contemporânea um campo ampliado de atuação, possibilitado pelo encurtamento da relação discursiva entre o fazer e o pensar, passamos a enxergar as práticas artísticas pautadas em espacialidades diversas.


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O tempo histórico como tempo contemporâneo: ponderações sobre a história da arte. Tainah Moreira Neves (PPGA-UFES)

Resumo Esse trabalho pretende ponderar sobre os diversos modos de construir a história da arte, principalmente sobre aquele defendido por Ronaldo Brito em seu texto intitulado “Fato estético e imaginação histórica”. Além disso, utilizaremos o pensamento desenvolvido pelo historiador francês Georges Duby para fortalecer e contrapor algumas ideias levantadas por Brito. Para melhor ilustrar as proposições que serão pontuadas ao longo do texto, tomaremos como exemplo obras de arte e monumentos arquitetônicos, com o intuito de facilitar a compreensão das ideias apresentadas. Com isso, defenderemos o conceito de que o tempo histórico sempre será contemporâneo àquele que o interpreta, ao historiador da arte. Palavras-chave: Tempo histórico, História da Arte, Georges Duby Abstract Our intention is to think about the many ways to build the history of art, especially on that advocated by Ronaldo Brito in his text entitled "Fact aesthetic and historical imagination". In addition, we will use the thought developed by the French historian Georges Duby to strengthen and oppose some ideas raised by Brito. To better illustrate the propositions that will be scored in the text, we will take as an example works of art and architectural monuments, in order to facilitate understanding of the ideas presented. With that, we will defend the concept that historical time will always be contemporary to the one who interprets, the art historian. Keywords: Historical time, History of Art, Georges Duby Introdução Em seu texto intitulado “Fato estético e imaginação histórica” 1, publicado primeiramente no livro ‘Cultura. Substantivo plural’2 de 1996, Ronaldo Brito3 pondera sobre alguns problemas que estavam sendo levantados no âmbito do mestrado em História Social da Cultura. O principal deles era o de pensar a história da arte como um fato histórico, sem incorporar a dimensão da cultura, do simbólico a esse conceito. E que, com isso, tornava-se necessário

1

BRITO, Ronaldo. Fato estético e imaginação histórica. In: Brito, Ronaldo; LIMA, Sueli de (org.). Experiência Crítica. Rio de Janeiro: Casac Naify, 2005. 2 PAIVA, Márcia de; MOREIRA, Maria Ester (Org.). Cultura. Substantivo plural: Ciência política, história, filosofia, antropologia, artes, literatura. São Paulo: Editora 34, 1996. 3 Atualmente é professor no curso de especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil e do programa de pósgraduação em História Social da Cultura na PUC do Rio de Janeiro.


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repensar a abordagem da história da arte feita pelo historiador, já que ela é constituída de “uma ambiguidade, uma relatividade, um questionamento que não é somente da ordem da consciência mas, sobretudo, da ordem da vivência”4. Essa nova abordagem, defendida por Brito, seria uma experiência histórica, uma inter-relação entre sujeito e objeto, entre historiador e obra de arte, que, sem dúvida, exigiria uma imaginação histórica por parte do interpretante. Defendido por outros teóricos, como Merleau-Ponty, Max Weber, Nietzsche, Guilio Carlo Argan, o conceito de que os fatos históricos, assim como as obras de arte, são fatos interpretados pelo historiador, com toda sua armadura cultural contemporânea, é também ponderado pelo historiador Georges Duby5. O francês vê a História como uma construção, e que no seu interior “existem elementos passíveis de análises que podem acrescentar e enriquecer o conhecimento” 6. Para Duby, é essencial que o historiador trabalhe com relações interdisciplinares, uma vez que, ele é um “construtor, recortador, leitor e interprete de processos históricos” 7. Além disso, a imaginação também é relevante para o historiador francês, já que “o discurso histórico é uma espécie de construção imaginária”8. Portanto, tanto Brito como Duby, defendem que o historiador deveria dar a devida importância à sua imaginação, não para criar fatos inventados, mas para elucidar o processo de construção histórico. Como poderíamos entender por completo a história de uma obra de arte do século XIII se não vivemos nesse período, se não partilhamos os mesmos gostos e crenças? Resta-nos, somente, imaginar, não algo inventado por nós mesmos, e sim uma construção imaginária baseada em fatos, documentos, relatos dos mais diversos tipos e das mais diversas fontes. Uma vez que, não conseguimos desvincular a história da arte da história da civilização humana, já que a arte, e com isso a arquitetura, é intrínseca ao homem. “O propósito da obra de arte é conservar e comunicar significados existenciais experimentados”

9

pelo indivíduo na sua relação com seu entorno. Assim, a História é um

desenrolar de significados possíveis e a evolução da história da arte se dá paralelamente ao desenvolvimento

psicológico

do

indivíduo.

“Todas

as

possibilidades

existenciais

experimentadas no curso da história estão agora à nossa disposição, mas estamos cegos e não as vemos, ou optamos por um reduzido conjunto de significados, na crença de haver 4

BRITO, Ronaldo. 2005, p. 140. (1919-1996) Historiador francês especializado na Idade Média. 6 SANT'ANNA, Luiz Alberto Sciamarella. Georges Duby e a Construção do Saber Histórico. 2001. 108 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós- Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001. Disponível em: <http://www.liber.ufpe.br/teses/arquivo/20040506103327.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2014, p. 5. 7 SANT'ANNA, Luiz Alberto Sciamarella. 2014, p. 18. 8 Ibid., p. 53. 9 NORBERG-SCHULZ, Christian. Arquitectura occidental. Barcelona: G. Gili, 2001, p. 225 (tradução nossa). 5


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descoberto a ‘verdade’ absoluta”.10 Portanto, dever-se-ia utilizar esses “produtos humanos” para melhor compreender o papel do símbolo artístico e arquitetônico e sua atuação no contexto da cidade, verdadeiro repositório das memórias e símbolos do passado, dessa forma melhorando a percepção da arquitetura e da arte nos dias de hoje, assim como melhor entendendo as inter-relações entre o homem, sua arte, sua arquitetura e sua cidade, entre o espaço e seus significados.

O Tempo Histórico como Tempo Contemporâneo Toda a história é contemporânea ao historiador que a lê, que a constrói e que a interpreta. Com isso, cada história será contada de forma diferente por cada historiador, já que cada indivíduo carrega sua própria “armadura cultural”, derivada de sua vivência. Este fato faz com que a História não seja uma afirmação absoluta de algo, e sim uma verdade interpretada por cada historiador. Podendo ser modificada, interpretada e reinterpretada por cada um, não havendo a necessidade de se encontrar a verdade absoluta (que, muito provavelmente, nem exista). Esses fatos ficam ainda mais visíveis ao historiador da arte, que apesar de ser sempre contemporâneo ao objeto artístico, pode interpretá-lo e percebê-lo sempre de forma diferente11. Brito defende que “o fato de o texto literário ou a obra de arte serem contemporâneos do esforço de compreensão recoloca, enfaticamente, a questão do envolvimento do historiador com a obra” 12, uma vez que “só se conhece a arte quando se a está experimentando” 13. Porém, se só podemos apreender a arte quando a experimentamos, e se a “armadura cultural” de uma pessoa que viveu no século XV é diferente da do homem do século XXI, consequentemente, suas interpretações serão diversas, podendo até mesmo, serem contraditórias. Ronaldo Brito afirma que: Cultura é experiência vivida e assim se incorpora inextricavelmente ao real. Os historiadores, felizmente, ficam perplexos ao saber que o fato histórico é fato interpretado, e interpretado também por eles mesmos: o problema da história tem início exatamente na relação do historiador com esse fato.14

10

Ibid., p. 229 (tradução nossa). BRITO, Ronaldo. 2005, p. 140. 12 Ibid., p. 145. 13 Ibid., p. 145. 14 Ibid., p. 149. 11


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É bem provável que Brito nunca tenha lido Georges Duby, um dos mais reconhecidos historiadores do mundo, e que nunca tenha se familiarizado com seu pensamento. Isto faz com que o teórico brasileiro generalize a “classe” dos historiadores, tomando-os como meros copiadores de histórias, sem perceber que suas “novas” proposições já foram defendidas por vários teóricos antes dele. Duby defende exatamente que o “historiador não é mais um colecionador e empilhador de fatos, ele é um construtor, recortador, leitor e intérprete de processos históricos” 15. Outro ponto do pensamento do historiador francês que teria sido de enorme importância para Brito é o fato que a ideia de uma história de explicações finalistas, em que as dimensões das ciências humanas não são incorporadas, é negada por Duby. Para ele, as fronteiras entre a História e as demais ciências humanas deveriam quase não existir, passando a serem “interfaces submetidas a fluxos e refluxos da elaboração do conhecimento, tornando-as,dessa forma, permeáveis à elaboração e concretização de uma verdadeira interdisciplinaridade”16. Além disso, Georges Duby abandona a concepção da história superficialmente centrada em indivíduos excepcionais, algo que também é defendido por Brito em relação às artes. Para o francês era necessário estudar o homem em sociedade, apercebendo dessa “sociedade como uma paisagem que é sistema, cuja evolução é determinada por múltiplos fatores que se relacionam, não no sentido de causa e efeito, mas de correlação e de interferência”17. Já Ronaldo Brito acredita que a importância histórica e a evidência estética de uma obra de arte não deveriam ser dissociadas, pois não seria possível conservar a materialidade dessas obras sem suas avaliações estéticas. Além disso, o teórico brasileiro defende que ninguém é “connaiseur”, especialista “por princípio ou méritos pretéritos, só se conhece arte quando se a está experimentando”18.Por isto, Brito afirma que “o juízo estético está constantemente em ação, a obra é sempre contemporânea e isso imprime a sua contribuição à dinâmica de transformação do real”19. Algo muito parecido com a afirmação de Merleau-Ponty, também lembrada por Ronaldo Brito: “(...) o historiador trata dos eventos no presente, com sua armadura cultural, com sua estrutura epistemológica, conformando esse objeto. Para ele, não existiria passado em nenhum sentido estável do termo” 20.

15

SANT'ANNA, Luiz Alberto Sciamarella. 2014, p. 12. Ibid., p. 12. 17 Ibid., p. 26. 18 BRITO, Ronaldo. 2005, p. 145. 19 Ibid., p. 150. 20 Ibid., p. 141. 16


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Para a melhor compreensão das ideias defendidas por Brito e Duby tomaremos como exemplo algumas obras de arte e de arquitetura, como a Mona Lisa de Leonardo da Vinci e a Basílica de Saint-Denis, na França. As obras foram escolhidas a fim de melhor ilustrar o entendimento de que o tempo histórico será sempre contemporâneo ao historiador/historiador da arte. Primeiramente, analisaremos a pintura feita por Leonardo da Vinci no início do século XVI, a Mona Lisa (Figura 1). Provavelmente um retrato de Lisa Gherardini, esposa de Francesco del Giocondo, um comerciante florentino de tecidos21. Os processos artísticos e a identidade da modelo continuam ainda obscuros, apesar de inúmeras tentativas de descobrir algo a mais dessa pintura enigmática. Feita provavelmente em Florença, na Itália, é dito que Da Vinci a carregava por suas viagens. Atualmente se encontra na Ala Denon do Museu do Louvre em Paris, atrás de um vidro a prova de balas, de um guarda corpo e de uma multidão faminta por um registro da obra (Figura 2 e Figura 3). É muito provável que um historiador contemporâneo tenha uma experiência estética completamente diversa daquela sentida por Leonardo e por historiadores antigos. Estando em um local totalmente protegida de tudo e todos, é muito difícil haver uma experiência estética verdadeira com a obra, a própria “aura” do museu, sua imutabilidade, contribui para isso. A questão de que o tempo histórico é contemporâneo ao historiador é evidente, a pintura está diante dele. Porém, não é tão claro a forma com que a pintura influencie, de modos diferentes, os espectadores e seja influenciada, também de modos diversos, pelos mesmos.

LOUVRE. Mona Lisa – Portrait of Lisa Gherardini, wife of Francesco del Giocondo. Disponível em: <http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/mona-lisa-portrait-lisa-gherardini-wife-francesco-del-giocondo>. Acesso em: 10 dez. 2014. 21


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FIGURA 1 – MONA LISA. LEONARDO DA VINCI, 1503-1506. ÓLEO SOBRE MADEIRA POPLAR, 77 X 53 CM. FONTE: HTTP://WWW.LOUVRE.FR/EN/OEUVRE-NOTICES/MONA-LISA-PORTRAIT-LISA-GHERARDINI-WIFEFRANCESCO-DEL-GIOCONDO. ACESSO EM 10 DE DEZEMBRO DE 2014.

FIGURA 2- FOTO DA MULTIDÃO EM FRENTE AO QUADRO MONA LISA, DE LEONARDO DA VINCI NO MUSEU DO LOUVRE, EM PARIS. FONTE: HTTP://WWW.DANIELALEXANDERPHOTOGRAPHY.COM/DATA/PHOTOS/150_1MONA.JPG. ACESSO EM 10 DE DEZ. DE 2014.


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FIGURA 3 - FOTO DA MULTIDÃO EM FRENTE AO QUADRO MONA LISA, DE LEONARDO DA VINCI NO MUSEU DO LOUVRE, EM PARIS. FONTE: HTTP://UPLOAD.WIKIMEDIA.ORG/WIKIPEDIA/COMMONS/THUMB/9/9F/MONA_LISA_CROWD.JPG/800PX-MONA_LISA_CROWD.JPG. ACESSO EM

10 DE DEZ. DE 2014.

Acredito que através da arquitetura poderemos ilustrar melhor o conceito defendido nesse artigo, uma vez que a arquitetura histórica se encontra em uma posição fixa na cidade desde a sua construção até a atualidade. Além disso, “os monumentos são, de modo permanente, expostos às afrontas do tempo vivido”22 , fazendo deles retentores da memória de várias gerações, que impõem suas características e modos de pensar. Tomaremos a Basílica de SaintDenis (Figura 4), localizada na cidade de Saint-Denis, no norte de Paris, como exemplo. Local de peregrinação desde o século V e foi reedificada no século XII pelo abade Suger (c. 1081-1151). Essa igreja posteriormente serviu de modelo para as catedrais francesas construídas a seguir. Com o passar dos anos, a Basílica de Saint-Denis continuou a receber visitantes e peregrinos que veneravam Saint-Denis (São Dionísio) e que também queriam admirar os tesouros da igreja23. Com o passar dos anos o edifício da igreja continuou a ser modificado pelas sociedades contemporâneas a ele (Figura 5). Com a Revolução Industrial, a cidade de Saint-Denis se tornou um polo industrial importante, abrigando fábricas e casas de operários, a cidade cresceu em torno da Basílica. Atualmente, no século XIX, a Basílica de Saint-Denis é um dos marcos mais notórios da cidade de Saint-Denis e até mesmo seu símbolo (Figura 6). Porém, devido a condição social e econômica ela não se porta mais como em outros tempos. Consequentemente, a cidade de Saint-Denis sofre com preconceitos e rejeições por parte da camada mais abastada da sociedade francesa, que a veem como um local pobre e sem importância. Todas essas

22

CHOAY, Françoise. As Questões do Património: Antologia para um combate. Lisboa: Edições 70, 2011. p. 26. LENIAUD, Jean-michel; PLAGNIEUX, Philippe. La Basilique Saint-Denis. Paris: Éditions du Patrimoine, Centre des Monument Nationaux, 2012. p. 54. 23


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adversidades têm um impacto negativo para a basílica, tornando-a quase esquecida por parte da população francesa e mundial. A característica “fixa” da arquitetura na cidade proporciona à ela um maior envolvimento por parte dos espectadores do que uma obra de arte isolada em um museu. Tornando-a uma construção cheia de camadas, físicas ou não, dos tempos históricos vividos por ela. Com isso, é positivo olharmos a história da arquitetura e como ela sempre exigiu o envolvimento do espectador e do historiador, para então podermos compreender a história da arte e como as obras artísticas exigem uma experiência estética, que será sempre contemporânea.

FIGURA 4 - RECONSTITUIÇÃO DA FORMA DA ABADIA DE SAINT-DENIS NO SÉCULO XII, APÓS A REEDIFICAÇÃO DO ABADE SUGER. FONTE: HTTP://WWW.SAINT-DENIS.CULTURE.FR/FR/1_4A_VILLE.HTM. ACESSO EM: 22 JUL. 2014.

FIGURA 5 - FOTOGRAFIA DA BASÍLICA COM SUA TORRE NORTE, ANTES DE 1846. FONTE: HTTP://WWW.FOLIAMAGAZINE.IT/PARIGI-NEL-MEDIOEVO/. ACESSO EM: 22 JUL. 2014.


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FIGURA 6 – VISTA AÉREA ATUAL DA BASÍLICA DE SAINT-DENIS E SEU ENTORNO. FONTE: HTTPS://WWW.GOOGLE.COM/MAPS/VIEWS/STREETVIEW?GL=BR&HL=PT-BR. ACESSO EM: 22 JUL. 2014.

Considerações Finais Portanto, os conceitos que Ronaldo Brito defende em seu texto já são conhecidos e afirmados por diversos historiadores. Porém há um certo receio em se posicionar, em defender uma verdade, mesmo sabendo que ela nunca será absoluta e que os fatos são sempre interpretados. Já que temos a consciência de que não existe uma resposta finalista em relação à História e à História da Arte porque temeremos em nos posicionar? Será devido ao medo de sermos contraditos por outros teóricos contemporâneos ou não a nós? Seja como for, devemos sempre ter em mente que a história é produto das relações humanas, assim como a arte, e são passíveis de interpretações e reinterpretações. Essa complexidade é própria de todo o produto humano. E ao envolver-se na experiência da obra de arte o historiador será sempre contemporâneo à ela


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Referências Bibliográficas BRITO, Ronaldo. Fato estético e imaginação histórica. In: Brito, Ronaldo; LIMA, Sueli de (org.). Experiência Crítica. Rio de Janeiro: Casac Naify, 2005. CHOAY, Françoise. As Questões do Património: Antologia para um combate. Lisboa: Edições 70, 2011. COSAC

NAIFY. RONALDO

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Universidade

Federal

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Pernambuco,

Recife,

2001.

Disponível

<http://www.liber.ufpe.br/teses/arquivo/20040506103327.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2014.

em:


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Curadoria como prática artística: a experiência da exposição Formas de voltar para casa. Clara Sampaio Cunha (PPGA-UFES)

Resumo O presente artigo analisará e discutirá a experiência da exposição Formas de Voltar para Casa que ocorreu em maio de 2014 no Centro de Vitória/ES, em colaboração com os artistas Polliana Dalla (ES), Thais Graciotti (ES), Haroldo Saboia (CE) e Fernanda Porto (CE). A experiência será abordada a partir de bibliografia produzida por artistas como Daniel Buren e Brian O’Doherty, e críticos e curadores como Harald Szeemann, Hans Obrist e Terry Smith. Junto às transformações dos espaços expositivos e da prática curatorial, vem se somando uma ação que integra conceitualmente a experiência da obra de arte. É nesse sentido que se tem observado atuações cruzadas entre artistas e curadores. O artigo pretende voltar a atenção para a produção em circuitos independentes e para a possibilidade que a curadoria se curatorial se construa colaborativamente na organização de exposições, gerando diferentes alternativas para a produção e circulação da arte.

Palavras-chave: curadoria, critica institucional, processos artísticos, arte contemporânea.

Abstract The article proposed in this abstract is part of an ongoing dissertation research at Universidade Federal do Espirito Santo, entitled Curation as artistic practice. In this subject, the exhibition Ways of Coming Back Home (May 2014) that took place at the independent venue Sala ao Lado (Vitória/ES) will be analyzed and discussed. The exhibition was conceived in collaboration with artists Polliana Dalla (ES), Thais Graciotti (ES), Haroldo Saboia (CE) e Fernanda Porto (CE). This experience will be approached by using texts written by artists such as Daniel Buren and Brian O’Doherty, and art critics and curators such as Harald Szeemann, Hans Obrist and Terry Smith. The article focus at the artistic production developed by independent art venues and the understanding of curation as an artistic practice that could be carried on as a collaborative way to produce art, creating alternatives to art creation and circulation.

Keywords: curation, institutional critique, artistic processes, contemporary art.


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Introdução A primeira década do século XXI é considerada o período em que a curadoria se firmou como elemento essencial no sistema de arte1, seja no seu papel de formação de público, como intermediador dos diálogos entre artistas-exposição, seja na forma como a figura central do curador tem se sobressaído no circuito artístico. Como um facilitador entre esses mundos, tem de estar apto a criar a partir da manipulação de uma cultura material existente, com intuito de gerar uma ocupação criativa do espaço expositivo.

À transformação prática da função

curatorial, a de preservação de coleções e organização de mostras, vem se somando uma ação concebida criativamente que agrega conceitualmente a experiência da obra de arte. Nesse sentido, têm-se observado a atuação de artistas-curadores que fazem uso da crítica institucional como ferramenta para criação de exposições e compreendem o processo como integrante a sua prática artística. O artigo apresentará um panorama da prática curatorial e da experiência da exposição Formas de Voltar para Casa que ocorreu em maio de 2014, no Espaço Sala ao Lado, no Centro de Vitória. A exposição foi realizada em colaboração com quatro artistas: Polliana Dalla (ES), Thais Graciotti (ES), Haroldo Saboia (CE) e Fernanda Porto (CE). A Sala ao Lado surgiu no início de 2014 e é um coletivo formado por Polliana Dalla, artista visual, Vitor Graize, jornalista e cineasta, e Clara Sampaio, artista visual e curadora. O espaço contíguo à produtora de cinema Pique Bandeira foi cedido para uso do coletivo, que iniciou suas atividades em fevereiro de 2014 com objetivo de incentivar diálogos e experimentações em arte contemporânea.

Curadoria como prática artística e a proposta da exposição Formas de voltar para casa Se formos buscar as origens do museu moderno, chegaremos ao ambiente de um proto-museu desempenhado pelos gabinetes de curiosidades a partir do século XVI – restritos inicialmente à nobreza e ao clero – e, à confusa organização, para nós, dos Salões Parisienses (XVII). Essas atividades irão abrir espaço para a criação do museu propriamente dito após a Revolução 1

TREZZI, 2010, p.01.


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Francesa (1789-1799). O interesse em criar locais próprios para a exibição de obras - e difundir a noção de arte como patrimônio público - tomará forma no Museu do Louvre (1793), considerado por Hans Ulrich Obrist, o primeiro museu moderno nas acepções que conhecemos. Há o interesse que as obras de arte e os objetos que simbolizam o patrimônio nacional sejam eternos e resguardados pela instituição-museu. É nesse contexto de que a figura do curador se coloca inicialmente, com a função de zelar pelos acervos dos museus no século XVIII, em meio às transformações sócio-políticas daquele período. Hoje, além das atribuições mencionadas, temos visto o termo sendo utilizado para designar seleções de vários tipos, como em revistas de gastronomia com receitas “curadas” por um chef renomado e outros. O fato é que, como explica Terry Smith (2011), “o título de curador é assumido por qualquer um que possua minimamente um papel de criar situações nas quais algo criativo deve ser feito; (...) para o consumo de “objetos criados” ou (...) ocasiões de cunho artístico”2 Com a transformação dos espaços expositivos, os artistas passaram a problematizar os suportes (moldura, cavalete, pedestal) e o próprio espaço da galeria e do museu. O cubo branco acepção modernista para o espaço institucional supostamente neutro e adaptável -

se

consolidou como modelo expositivo mais utilizado, pois nele, como afirma Brian O’Doherty, “o mundo exterior não deve entrar, de modo que as janelas são lacradas. As paredes são pintadas de branco. (...) A arte existe em uma espécie de eternidade [que] dá à galeria uma condição de limbo.”3 É justamente sobre essa normatização que vários artistas irão se posicionar criticamente às instituições. Em The Function of the Museum, texto publicado originalmente em 1973, Daniel Buren afirma que o museu é um espaço privilegiado com uma função tripla: estética, econômica e mística4 que envolve o suporte efetivo ou validação, a valoração, e a consolidação do que é arte. Um trabalho que ao mesmo tempo crítica e está inserido em grandes instituições se justifica pela pungência em discutir modelos que são impostos e aceitos sem muitos questionamentos: “se um trabalho se abriga no museu-refúgio, o faz porque encontra ali seu conforto e ‘enquadramento’, um enquadramento que é considerado natural enquanto é meramente histórico”.5 Essa discussão reverberaria em projetos artísticos dos mais diversos tipos, entre eles o Museu de Arte Moderna (1968-1972) de Marcel Broodthaers. Ali, o artista desestabilizaria hierarquias operando como diretor, curador, artista, montador e outros. O museu não tinha sede definida e aconteceria em seções: a mais conhecida, o “Departamento 2

SMITH, 2012, p.17-18, tradução nossa. O’DOHERTY, 2007, p.05. 4 BUREN, 1983, p.41. 5 BUREN, op.cit, p.42. 3


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das Águias”, durou apenas um ano. O artista pensou soluções de apresentação para os objetos ao expor, segundo Bernadette Panek (2006, p.109) “uma relação irônica entre o objeto real, a obra-de-arte, as imagens e as palavras”. Ao mimetizar elementos comuns ao funcionamento do museu, como a divulgação, o convite, o evento de abertura, entre outros, coincidiria o local de produção (ateliê) com o de recepção (museu). Enquanto os objetos expostos não eram de fato obras de arte (como o artista mesmo atestou nas etiquetas de identificação), a instalação com um todo era. A discussão remonta a separação definitiva entre ateliê e museu no século XIX, período este que é marcado pela consolidação do museu como formador de uma história cultural da arte e como conceitua Andrea Fraser, um “aparato de reificação cultural que tudo engloba”.6 Para falarmos da ideia de uma curadoria como prática artística, precisamos voltar às experiências de artistas como Marcel Duchamp e Joseph Kosuth. De acordo com OBRIST (2014, p.37), desde o momento que se lançaram para além do circuito patrocinado dos Salões Parisienses (séc. XIX), os artistas já estavam de certa forma realizando curadoria sobre seus trabalhos e os de outros artistas. Muitas dessas experiências sobreviveram inclusive como modelos para a prática curatorial contemporânea. Marcel Duchamp já havia feito experiências nesse sentido quando apresentou em Paris “1200 sacos de carvão” (1200 bags of coal, 1938) e “Milha de barbante” (Mile of String, 1942) ambas problematizando a circulação e interação dos visitantes com as obras de arte. Com esses trabalhos, Duchamp abriu caminhos para que os artistas começassem a tratar as salas do museu ou até o museu inteiro como contexto a ser indagado em suas obras.7 Mais tarde, artistas como Joseph Kosuth aproveitaram a oportunidade de estarem inseridos no circuito institucional para mostrar visões antagônicas dentro do museu. Kosuth apresentou as exposições The play of the Unmentionable em dois momentos: em Viena, com “Ludwig Wittgenstein: Das Spiel des Unsagbaren” (1989) e em Nova Iorque com “The Brooklyn Museum Collection: The Play of the Unmentionable” (1990). Na primeira, à ocasião da comemoração do centenário do filósofo Ludwig Wittgenstein, o artista foi convidado pela Associação de Artistas Visuais de Viena – Secession8, e apresentou uma intervenção na fachada do edifício, além de criar instalações com textos de filósofos e mostrar “artistas amigos” como Louise Bourgeois e Monica Bonvinci. A segunda, uma exposição do acervo do museu cujo 6

FRASER, op.cit, p.182. OBRIST, 2014, p.29, tradução nossa. 8 A Secessão Vienense, movimento fundado em 1897 que atuou até 1920, possui sede que hoje funciona como galeria de arte contemporânea. Fonte: Secession. Disponível em:<http://www.secession.at/kuen stlerinnenve reinigung/index_e.html> Acesso em 18 de março de 2015. 7


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discurso curatorial partiu da justaposição de obras de períodos e países distintos, apresentou obras envolvendo questões políticas, religiosas ou sexuais consideradas polêmicas na época de sua realização. Coerente com seus trabalhos anteriores - que compreendem o artista como questionador da natureza da arte – as duas propostas de instalação-exposição discutiam o sentido de produto cultural e o papel da arte na sociedade. O artista provocou comparações entre os trabalhos ao compreender que a disposição das obras é assumidamente produtora de significados e responsável por alterar nossa percepção sobre a própria História da arte. Já em Formas de Voltar para Casa, a proposta de uma curadoria colaborativa, que envolveu os integrantes do coletivo e os artistas mencionados anteriormente, abarcou a decisão de toda a organização da exposição: temática, obras, suportes expositivos, texto e material de divulgação. A mostra abordou as estratégias que o artista, em sua condição de viajante, se desloca para buscar origens e novas experiências, mas também para deixar vestígios e produzir memórias afetivas com os locais que encontra. Não por acaso podemos remeter aos artistas da performance e landart, que a partir da década de 60, ao se lançarem aos espaços externos ao museu, marcarão suas presenças em territórios afastados das cidades ou em pleno caos urbano. É aí que deixam rastros, coletam objetos, e retornam à casa-ateliê. Formas de Voltar para Casa partiu da compreensão do processo contínuo de ir e voltar, caros aos artistas que tem como objeto de estudo questões sobre travessia e/ou permanência. Essa maneira de produzir provoca alterações na forma como irão pensar e fazer arte. Assim, observamos uma utilização frequente de ferramentas de mapeamento, artifícios de retorno, seja de maneira literal, com seus objets trouvés, seja na forma de cartografias que irão montar a partir de seus registros (fotografias, textos, diagramas e outros). A construção da exposição, quase toda à distância, reflete também a condição contemporânea de estar presente em várias partes do mundo ao mesmo tempo. Ao passo que havia a vontade de se construir uma exposição - montar as obras, criar e instalar os suportes expositivos – os artistas também precisavam apresentar suas propostas, abrindo as questões para debate em grupo. A partir do tema proposto, a frase-título funcionou como questionamento e norte: “como voltar para casa?”. As obras escolhidas e produzidas especialmente para a ocasião indicaram pistas para uma resposta. Os objetos de Haroldo Saboia são como inventários de viagem, uma coleção de objetos em que, pouco a pouco, se tem a oportunidade de experimentar o que o artista viveu ou quer construir, uma fresta pela qual aproximamos nosso olhar de sua experiência criativa de artista-colecionador e fotógrafo. A coleção, no caso de Polliana Dalla, percorre países latinos por suas línguas, particularidades e


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semelhanças compondo cartografias, objetos (fotografias, desenhos, colagens) que unidos criam traços de paisagem. Os contos e postais de Fernanda Porto são um convite para a jornada à esfera do doméstico, ao imaginário da infância de lugares que ela poderia ter vivido, uma construção de nostalgia que se mistura com sua própria lembrança do real. Por fim, é o mergulho na topologia insular de Vitória e da Islândia que fará o percurso dos trabalhos de Thais Graciotti, nos quais o isolamento simbólico da ilha se fez protagonista de uma condição de estranhamento e mesmerização. Para cada um desses trabalhos foram pensadas, em grupo, soluções expositivas específicas. Os objetos variados de Haroldo Saboia que compunham um processo de investigação em “Como fazer um diagrama” (Figura 1, 2014) foram dispostos sobre uma mesa branca presa à parede juntamente com fotografias emolduradas ; uma prateleira de quatro metros de extensão com as obras de Polliana Dalla (Figura 2,“Sem título”, 2014) rebatia a instalação de Fernanda Porto (Figura 3,“Casas que morei com minha mãe”, 2014), um texto também com quatro metros de comprimento aplicado na parede oposta; e por último, a artista Thais Graciotti escolheu projetar um de seus trabalhos em um bloco de papel sulfite branco sobre uma prateleira de mesmo tamanho (Figura 4,“EYJA”, 2014), além de uma impressão em adesivo vinílico (“Divagação sobre as ilhas”, 2014) na única janela da sala, por onde entra a luz natural do ambiente.

Figura 1 (Vista superior da obra de Haroldo Saboia) e Figura 2 (Vista das obras de Polliana Dalla, à esquerda), fotografias de Clara Sampaio (acervo pessoal).


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Figura 3 (Vista da instalação de Fernanda Porto) e Figura 4 (Vista da obra EYJA, de Thais Graciotti), fotografias de Clara Sampaio (acervo pessoal).

A montagem foi inteiramente realizada pelos artistas e equipe de produção da Sala ao Lado, bem como o desenho dos suportes que foram executados em marcenaria. Para o projeto de iluminação (Figuras 5 e 6) foram utilizadas luminárias domésticas de diferentes modelos e alturas, criando situações variadas de iluminação para cada trabalho.

Figuras 5 e 6. Vistas da exposição, fotografias de Heitor Riguette. Disponível em: <http://bit.ly/1DEZE25>. Acesso em: 20 de abril de 2014.

Quando as atitudes se tornam forma, uma das exposições mais emblemáticas de Harald Szeemann (Kunsthalle Berna, 1969), trabalhou comportamentos e gestos que resultariam em arte. Sessenta e nove artistas foram convidados a participar da mostra: “foi uma aventura do início ao fim, e o catálogo, que discute como as obras poderiam assumir forma material ou permanecerem imateriais, documenta essa revolução nas artes visuais”.9 O exemplo serve para ilustrar uma questão cara às curadorias realizadas contemporaneamente: seria a exposição uma grande “obra total” de seu autor, uma figura que usa os trabalhos para ilustrar uma determinada teoria? Esse pensamento parece ir de encontro com as expectativas de artistas e alguns 9

OBRIST, 2010, p.113.


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curadores: “as exposições são melhor concebidas por meio de conversas e colaborações com os artistas, cujas contribuições devem guiar o processo desde o início”.10 Sendo assim, de que que maneira Formas de voltar para casa permite uma reflexão sobre a curadoria como prática artística? Se concordarmos com a afirmação de FRASER (2005) que não há um fora da instituição, observamos que os espaços independentes desempenham um papel muito importante: o de propor questionamentos e novas formas de circulação para a arte. O envolvimento direto dos artistas com questões expositivas, ou seja, com as convenções de apresentação e exibição (display) difundidas pelas instituições (noções de ergonomia, trabalhos pendurados à altura do olho do observador, entre outras) pode criar diferentes possibilidades de inserções para os trabalhos, tanto nos espaços expositivos, quanto em ações para além de museus e galerias, e em publicações e sites. A discussão sobre o apagamento entre as atuações do curador e do artista traz à tona noções de autoria e processo criativo, o que acarretaria na compreensão da atividade curatorial na contemporaneidade como produção colaborativa. Além disso, exposições desse tipo servem de laboratório para testar novas ideias, lógica que se difere dos interesses mercadológicos das galerias de venda. Não há a preocupação com um trabalho “comercialmente pronto”, uma produção consistente de objetos prêt-à-porter (os objetos sobre a mesa de Haroldo Saboia, compreendidos pelo artista como um work-in-progress, possivelmente encontrariam dificuldade de serem mostrados em uma galeria comercial). O artista tem controle sobre a forma como irá apresentar o trabalho, decidindo sobre o texto de apresentação, o posicionamento das obras, o fluxo dos visitantes, e outras questões tão caras ao pensamento curatorial contemporâneo. Como comenta TREZZI (2010, p.01): “o que podemos chamar de era dos curadores demanda que redefinamos a prática curatorial como arte ela mesma, com sua própria estrutura e linguagem”. É assim que, compreendendo a exposição como produtora de sentidos, onde é possível construir e reconstruir significados para as obras, os artistas passaram a atuar diretamente nos modos de exibição de seus trabalhos. Outra questão importante, é que sem se vincular plenamente ao âmbito institucional - já que a atuação de curadores e espaços independentes depende muitas vezes de patrocínios públicos ou privados - atuar dentro do espectro das grandes instituições é essencial, pois abre espaço para que a crítica seja testada e ensaiada. Por fim, quando os artistas mencionados se conheceram em São Paulo em uma oficina sobre viagem e paisagem, não havia como imaginar que desde ali já haviam criado um vínculo. De alguma maneira, assim como a experiência vivida é um ponto sem retorno, já estavam ligados 10

OBRIST, 2014, p.32-33.


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em seus processos artísticos, na forma como se interessam pelo registro como obra, na impermanência de suas ações pelos espaços que percorrem, e nos relicários que constroem com suas memórias. Nesse sentido, boa parte de um projeto curatorial já estava definido quando o grupo fez o convite à equipe da Sala ao Lado para realizar a exposição. A colaboração se tornou mais um elemento dentro desse processo: gerenciar a exposição, procurar soluções expográficas para os projetos artísticos, e concordando com Harald Szeemann, “o curador deve ser flexível: às vezes é criado, assistente, coordenador, e alguns casos inventor”11. É assim que partimos da premissa que a curadoria possa se situar também como uma ação colaborativa entre artistas, gerando alternativas de concepção e diálogos em arte contemporânea.

11

SZEEMANN, Harald. In: OBRIST, 2010, p.130.


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BIBLIOGRAFIA

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PANEK, BERNADETTE. MALLARMÉ, MAGRITTE, BROODTHAERS: JOGOS ENTRE PALAVRA, IMAGEM E OBJETO. REVISTA ARS, V.4, N8.UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO: USP, 2006. DISPONÍVEL EM:< HTTP://WWW. REVISTAS.USP.BR/ARS/ARTICLE/VIEW/2977> ACESSO EM 27 DE AGOSTO DE 2014 [ARTIGO] SMITH, Terry. “Thinking Contemporary Curating”. Nova Iorque: Independent Curators International, 2012. SZEEMANN, Harald. In: OBRIST, Hans Ulrich. “Uma breve história da curadoria”. São Paulo: BEI Comunicação, 2010. TREZZI, Nicola. “The art of curating – A constellation of curated exhibitions”. Flash Art, n 271, Março-Abril de 2010. Disponível em: <http://www.flashartonline.com/interno.php?%20 pagina =articolo_det&id_art=542&det=ok&title=THE-ART-OF-CURATING> Acesso em 27 de agosto de 2014 [revista online].


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A web participativa não dialógica nos espaços da arte contemporânea no Brasil. David Ruiz Torres (PGHA-UGR)

Resumo No início do século XXI estamos imersos na sociedade da informação, em que as Tecnologias da Informação e Comunicação, tem conseguido se estabelecer em diferentes áreas de nossa vida diária. Neste trabalho é abordado o papel dos museus brasileiros neste contexto, especialmente no que diz respeito às ferramentas da Web 2.0 ou web participativa. As possibilidades de estabelecimento de um canal comunicativo pluridirecional entre essas instituições, os artistas, e o público através da rede, resultaram em diversas práticas que falam de um museu social. No entanto, o ideal ainda está longe de se tornar uma realidade onde esta presença na rede dos museus atende a valores que muitas vezes esquecem a potencialidade do meio, assim como o papel colaborativo e ativo dos usuários na discussão das artes.

Palavras-chave: museu, web 2.0, redes sociais, ciberespaço

Abstract In the early twenty-first century we are immersed in the information society, in which the Information and Communication Technologies, has managed to settle in different areas of our daily life. This paper addressed the role of Brazilian museums in this context, especially with regard to Web 2.0 tools or participatory web. The possibilities of establishing a communication channel pluridirectional between these institutions, artists, and the public through the network, resulted in several practices that speak of a social museum. However, the ideal is still far from becoming a reality where this presence in the museums network meets values that often overlook the potential of the medium, as well as collaborative and active role of users in the arts discussion.

Keywords: museum, web 2.0, social networks, cyberspace


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Introdução

Os fluxos de informação em rede na contemporaneidade já podem ser percebidos na fruição da arte na atualidade. Cada vez mais, museus e espaços expositivos tem feito uso das ferramentas tecnológicas como um meio de circulação e mediação para interatuar com os artistas e o público, possibilitando uma percepção da e sobre a obra totalmente diferente. Aqui se estabelece uma nova maneira de entender o museu no ciberespaço como articulador das múltiplas interações que se produzem na discussão das artes. Assim, o desenvolvimento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) nas últimas décadas levou à nomeação da nova era que estamos vivendo, e que responde ao nome de Era da Informação. Por definição, podemos dizer que este é um período em que o fluxo de informações tornou-se mais rápido do que o movimento físico, começando a ser usado a partir da década de 1990. Este novo período começou na segunda metade do século XIX, com a invenção do telefone e do telégrafo, embora o momento de eclosão veio, bem mais tarde, associado com o surgimento da Internet global e o desenvolvimento do meio digital no final do século XX, quando todas as informações (texto, imagem, áudio, vídeo ...) foram codificadas em sistema binário, se falando de uma verdadeira revolução digital que tornou possível a veiculação plena da informação. No entanto, esta nova dinâmica não é inteiramente nova, senão que já vem sendo gestada na história da humanidade. De acordo com Pierre Lévy “... É a partir do desenvolvimento das tecnologias da inteligência (a linguagem, a construção dos artefatos, a escrita, a impressão de textos, a criação de computadores etc.) que chegamos hoje à cultura digital, e que esta não é apenas uma evolução das máquinas, mas antes, uma evolução humana” (2010, p. 56). Essas tecnologias da inteligência entraram no século XXI como uma revolução da informação. Graças à expansão da Internet, novos meios de interação entre as pessoas conseguiram romper radicalmente a relação entre espaço físico e espaço social, tradicionalmente concebidos, tornando a localização física cartesiana muito menos significativa para as nossas relações sociais. O sistema digital coloca-se como uma das chaves no surgimento desses novos meios de comunicação, e resultou em um aumento da interação entre pessoas de todo o mundo, podendo-se falar de uma comunidade global – questão que terá um forte impacto nos modos de produção e fruição da arte na contemporaneidade. O ciberespaço integra-se ao pensamento estético atual, no qual o usuário/fruidor não se limita à fisicalidade de sua percepção.


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Portanto, a presença do usuário/fruidor no ciberespaço contém uma características na forma como a informação é transmitida/percebida, resultando no desenvolvimento da chamada cibercultura. Deste modo, o "saber digital" como Martine Xiberras (2010) nos apresenta, levou a uma nova forma de acesso ao conhecimento através do nosso computador ou dispositivo eletrônico pessoal, possibilitando a obtenção de um conhecimento mais amplo e mais diversificado, além de mais velocidade e imediatismo que são intrínsecos às características dos meios mencionados anteriormente. Mas, não se esqueça que neste acesso global do conhecimento, os constrangimentos sociais e culturais também estão presentes, e que o conhecimento será associado com a posse de um determinado dispositivo eletrônico e uma conexão à Internet. Isto significa que, em termos de aldeia global existe também o conceito de exclusão digital, e, por conseguinte, ao conhecimento. Por outro lado, também falamos de informação em um nível quantitativo, pois as vantagens oferecidas para a divulgação e consumo da informação levaram a que a Internet seja uma grande enciclopédia de conhecimento, ou, no nosso caso, o maior museu e espaço para a compartilha da arte até hoje visto – se considerarmos o volume de obras e “visitas virtuais” disponíveis na atualidade por respeitáveis instituições museográficas -. Evidencia-se um crescimento que não tem fim, pois, como Xiberras afirma, "as grandes instituições detentoras e produtoras do saber, bibliotecas, universidades, museus, etc., começaram um longo e lento trabalho de escaneamento de todas as obras" (2010, p. 256). Ação em curso que pretende criar um acervo digital com forte tendência inclusiva, no sentido de acessibilidade global. Uma nova revolução da informação.

A participação no saber digital, a web 2.0

As novas possibilidades abertas pelos meios digitais e pela internet, foram os protagonistas do nosso tempo, o que leva a poder afirmar por alguns que, desde a invenção da imprensa por Gutenberg, não tem acontecido progressos significativos até o advento da informação digital. Além de comparações, devemos ter em mente que a nossa sociedade pode ser entendida como uma sociedade do conhecimento, e que, aparentemente, a informação é cada vez mais acessível. Mas não consiste uma informação simplesmente para ser consumida pelo usuário, pois uma das características de meios digitais e a cibercultura é o papel colaborativo do usuário.


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Assim, a partir de um estágio anterior, quando a sociedade era dominada pela cultura de massas (mass media), em que a televisão ou rádio, se projetavam sobre a sociedade em um único canal unidirecional, no qual os usuários agiam apenas como receptores e consumidores passivos de informações; a nova dinâmica, a partir dos anos 80 do século passado, com o advento dos computadores domésticos, levou ao surgimento do usuário como parte do ciberespaço, e, portanto, o advento da cibercultura. Lucia Santaella diz: "Mudanças profundas foram provocadas pela extensão e desenvolvimento das hiper-redes multimídia de comunicação interpessoal. Cada um pode tornar-se produtor, criador, compositor, montador, apresentados, difusor de seus próprios produtos" (2003, p. 82). Esta nova dinâmica no papel do usuário e processamento da informação, é representada por uma nova maneira de entender a World Wide Web, com a implementação da chamada web participativa, também conhecida como Web 2.0 (um termo cunhado pela empresa O'Reilly Media, em 2004), que surge a partir da década de 2000 como um paradigma nesta forma de ciberespaço colaborativo. Agora, o modelo de participação da Web 2.0, não oferece produtos para o internauta, mas que o usuário representa o principal produtor de conteúdos, aproveitando seu desejo de compartilhar a experiência e interesses, de dialogar e de assumir um papel protagonista na rede. Algumas das ferramentas que permitem a nova interação são os blogs, wikis, redes sociais, folksonomia (tagging), e todos os sistemas que permitem compartilhar fotos, vídeo, áudio, apresentações ou software na rede. A existência dessas ferramentas está em consonância com a essência da Web 2.0, que não só pretende oferecer alguns conteúdos para os usuários, mas que prevê-se que sejam eles mesmos os que geram, modificam e comunicam-lhos. Assim, é preciso destacar que as principais instituições museográficas do mundo já estão se adaptando a esta nova forma de mediação e percepção estéticas, ampliando as ferramentas e os modos de interação entre o público e suas obras. Isso teria uma maior incidência hoje, graças à expansão dos dispositivos portáteis, como smartphones ou tablets, que aumentam exponencialmente as conexões e interação dentro da rede, e por enquanto com a instituição cultural.

Museus 2.0, o museu social


280

Como mencionamos anteriormente, as instituições museográficas que são tradicionalmente fonte de informação e conhecimento estético, tem tomado partido da cultura digital e as oportunidades que ela oferece começando a se gestar o denominado "cibermuseu". Hoje em dia, é possível ter acesso a os fundos de uma biblioteca que está localizada a milhares de quilômetros de nossa cidade; ou, no caso das universidades, ter conhecimento das pesquisas que estão sendo realizadas graças às publicações on-line, mostrando os frutos do trabalho de investigação nestes centros. Os museus não estão fora desta nova dinâmica, e ainda que são uma das áreas que defende a conservação e preservação das artes e da cultura, também têm sido capazes de se adaptar às mudanças ao longo do tempo, com o interesse na divulgação e conhecimento, funções também inerentes a esses espaços conforme a definição do ICOM1. Como Maria Luisa Bellido afirma: [...] as fortes mutações operadas na sociedade mediática resultaram na transformação dos nossos museus pelo surgimento das novas ferramentas tecnológicas, e também no desenvolvimento de novos perfis para essas instituições. A mudança mais significativa é uma consequência da aparição de um novo âmbito para as relações sociais e culturais (2001, p. 237, tradução nossa). Com base nestes novos perfis, os museus foram integrados na rede e permitiram ter acesso as suas coleções e oferecer uma visão mais próxima, superando os limites físicos destas instituições e alcançando lugares recônditos do planeta através da Internet, reunindo esforços e conseguindo a globalização dos objetos de arte. Mas essa ação, através dos acervos digitais ou as "visitas virtuais", é só uma pequena representação do que o ciberespaço pode oferecer; pois alem de construir de fato uma base de dados sem limites, ou um reflexo da instituição como uma "copia virtual" na Internet, as possibilidades do novo meio e, especialmente da web 2.0, permitem o desenvolvimento de novas formas de encontro entre os atores da prática da arte, assim como a identidade colaborativa dos usuários. O surgimento da Web 2.0, permitiu aos museus usar novas ferramentas em rede e se adaptar às novas práticas para abordar a um público maior; e se instalar no novo meio com uma

1

De acordo com os estatutos do ICOM aprovados na 22ª Conferência Geral em Viena (Áustria), em 2007: "Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e aberto ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe o patrimônio material e imaterial da humanidade, para fins de estudo, educação e recreação".


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linguagem menos institucional e uma imagem mais próxima ao usuário2. Se bem que a presença de museus através do site corporativo tinha sido um espaço para a consulta e o conhecimento, o uso das tecnologias 2.0 possibilitou a interação com os conteúdos do usuário/fruidor, e a participação pluridirecional no conhecimento e discussão da arte. De outro lado, o grau de envolvimento que supõe cada uma dessas ferramentas também difere pela sua natureza e o conteúdo multimídia que é compartilhado, assim: Em primeiro lugar, dentro do próprio site do museu, principalmente através de blogs e, em menor medida, através de fóruns e wikis. Em segundo lugar, em repositórios externos para compartilhar materiais audiovisuais: vídeos em YouTube, fotos em Flickr, áudio em iTunes ou apresentações em SlideShare. E, em terceiro lugar, nas redes sociais, principalmente através de Facebook e Twitter (Río, 2011, p. 114, tradução nossa). Por conseguinte, as plataformas nas quais os espaços de exposição se expandiram pela rede na última década são numerosas, e deve-se adicionar outras similares que, embora não têm a popularidade das mencionadas, também têm sido utilizadas por museus (Google+, Issuu, Vimeo, Tumblr, Instagram...); ou em outros casos, pela recente eclosão e implantação dentro do cenário da web participativa. Por exemplo, o caso da plataforma para compartilhamento de imagens Pinterest, que já está presente em museus como o Museu Getty (Los Angeles, Califórnia) ou o Instituto Smithsonian (Washington DC). Também novas e inovadoras propostas de compartilhamento de vídeo estão conseguindo acolhida dentro do âmbito dos museus; como por exemplo Vine, uma plataforma que da mesma forma que Twitter, permite publicar e compartilhar vídeos com uma duração de seis segundos. O MOMA3, em Nova York ou o Museu Britânico4 em Londres, já tem um perfil em Vine e dezenas de milhares de seguidores.

Museus do Brasil na Web 2.0

O Brasil é um dos países com maior acesso à Internet, porém não tem a mesma performance no que se refere ao uso dessas tecnologias de interação e acessibilidade nos espaços

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Embora a invenção da Internet foi voltada principalmente para o trabalho em rede pelos pesquisadores, o fato é que hoje se expandiu até limites insuspeitados, onde a presença de qualquer ente na rede é essencial, para tomar parte na comunidade de usuários. 3 https://vine.co/u/926217262833217536 4 https://vine.co/guggenheim


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museográficos. No enquanto, e com uma visão geral, podemos estabelecer que o uso das diferentes ferramentas 2.0 e expansão em espaços de exposição no Brasil, tem começado há muito tempo e aparecem propostas muito interessantes que igualmente situam ao caso brasileiro no contexto internacional da prática do museu 2.0. Em primeiro lugar podemos nos referir aos blogs que frente a fóruns e wikis, sem uma presença tão notável na prática museológica, sim encontra uma representação significativa nos museus brasileiros. Estes se caracterizam por constituir uma "bitácula digital" que tem conseguido ter uma grande popularidade, como parte do próprio website do museu. Nesses são postados diferentes artigos com notícias e informações sobre eventos relacionados com o museu, fora da rígida estrutura do site corporativo, e pudendo ser utilizados de uma forma intuitivita sem precisar grandes conhecimentos de informática; além disso, a maioria dos servidores para hospedar o blog (Blogger, Tumblr, WordPress, UOL Blogs ...) são gratuitos nas suas versões básicas. Estas razões são as que levaram muitos espaços que não têm seu próprio site institucional, à elaboração de um blog que executa as funções do mesmo. Este é o caso dos blogs do Museu de Arte Moderna de Resende5 (RJ) e do Museu de Arte de Belém / MABE6 (PA), que mostram toda a atividade sobre exposições, notícias, novidades e informações de contato. No entanto, em ambos casos, as atualizações do blog tem sido esquecidas, mesmo que continuem assiduamente nos perfis de Facebook dos mesmos, pelo que podemos extrair uma tendência ascendente no uso das redes sociais em detrimento do blog. O Museu de Arte de Mato Grosso7 (Cuiabá, MT), é um dos exemplos vigentes e atualizado que contem postagens sobre as exposições e atividades da instituição. Além das funções do blog, atua como um site, onde é possível encontrar a história do museu, links para vídeos sobre ele, assim como a política de visitação e contato. Por seu lado, o blog do Museu de Arte Moderna de São Paulo8, torna-se igualmente no espaço web da instituição com o acesso à informação sobre a coleção, cursos, recursos educacionais, espaços, agenda, etc. E quanto ao blog, é destacável o uso de tagging ou folksonomía -que é o nome dado à indexação colaborativa por médio de etiquetas simples o palavras-chaves num espaço de nomes plano, sem jerarquias nem relações de parentesco predeterminadas-. Assim, o usuário pode facilmente encontrar as postagens sobre um conteúdo ou tópico específico usando os links associados à cada etiqueta. 5

http://mamresende.blogspot.com.br/ http://mabelem.blogspot.com.br/ 7 http://museudeartemt.blogspot.com.br/ 8 http://mam.org.br/blog/ 6


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As chamadas "redes sociais" são a ferramenta 2.0 com maior incidência, e tem se erigido como uma parte integrante da nossa sociedade, tanto em relação à vida profissional como à cotidiana ou pessoal. Os museus têm utilizado o potencial desta ferramenta para se aproximar ao público e aumentar a divulgação e número de visitas. Por essa razão, não é de estranhar que muitas dessas instituições já tenham em seu quadro de funcionários a figura do community manager, um profissional que é responsável pela manutenção e estratégias que devem ser desenvolvidas em relação à comunidade de usuários dessas mídias sociais9. As mais conhecidas redes sociais são Facebook, Twitter, e, em menor medida, Google+, nas quais os usuários criam um perfil como parte de uma rede social de conhecidos e interesses, e podem publicar posts, além de compartilhar álbuns de fotos e vídeos. Especialmente no Twitter, os posts ou tweets são limitadas a 140 caracteres pelo que a informação, na maioria dos casos acompanhada de um link, consegue ser mais precisa. Em geral, os conteúdos que os museus postam nessas redes sociais são do tipo: notificações (alertas e lembretes de programação do museu físico), promoções (concursos, produtos da loja on-line, publicações, dia de entrada livre, atualizações no website, etc.), difusão (abordagem das coleções artísticas e documentais, através de imagens, textos, áudios ou vídeos), ou convites para colaborar em projetos museográficos (Río, 2011). Alguns exemplos notáveis no Brasil, poderiam ser o MASP - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand10 e o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul11 (Porto Alegre, RS), que tem postagens que mostram assiduamente cada uma das obras que fazem parte do acervo ou da exposição temporária, ou os aniversários de figuras importantes no contexto da história da arte. Também, no caso do Museu do Rio Grande do Sul, encontramos os posts "Dicas contemporânea MACRS", que dá acesso a um conjunto de chamadas, exposições, publicações e eventos sobre a arte contemporânea nacional e internacional. Por outro lado, convém saber que o Brasil possui o segundo maior número de usuários no Twitter (Semiocast, 2012), e, ainda que com uma presença menor que no Facebook12, muitos museus incluem também esta rede social para a divulgação dos seus acervos e exposições. Assim, vários museus brasileiros se aderiram à iniciativa global anual #MuseumWeek 2015,

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Principalmente o trabalho do community manager teve sua emergência com o desenvolvimento significativo de redes sociais como o Facebook ou Twitter e plataformas para o compartilhamento de conteúdo multimídia, como Youtube ou Instagram, mas também abarca outras mídias sociais, como os blogs. 10 https://www.facebook.com/maspmuseu 11 https://www.facebook.com/contemporanears 12 Conforme as informações sobre Brasil conteúdas no site Museum Analytics, a maioria dos espaços expositivos aqui mostrados tem um número mais elevado de usuários em Facebook do que em Twitter, sendo uma diferencia exponencial em alguns casos como a Pinacoteca do Estado ou o Museu da Imagem e do Som, ambos em São Paulo: http://www.museumanalytics.org/country/brazil


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sendo o país da América Latina com o maior número de participantes. A ideia consiste em publicar tweets durante os sete dias da semana sobre um tema diferente em relação ao museu (souvenires, arquitetura, lugares favoritos...), e seguido pelo hasthtag correspondente. Referimo-nos também as plataformas para compartilhar arquivos multimídia que nos últimos anos têm tido uma grande presença em museus, especialmente os relacionados com vídeo e fotos, e, em menor medida, as que compartilham publicações e slides. Instagram é a plataforma que possui mais popularidade para compartilhar imagens nos museus brasileiros, como o Museu de Arte do Rio13; além de ter algumas vantagens como que podem ser compartilhadas a traves de redes sociais, e filtros digitais que permitem transformar as fotografias. Por seu lado, Flickr é um dos expoentes do marcado social o folksonomy, e permite utilizar Copyright o licenças abertas como Creative Commons para as imagens que são publicadas nesta plataforma que conta entre os seus adeptos com o Museu de Arte da Bahia14 (Salvador, BA). Muitos museus apresentam seu próprio canal de YouTube para compartilhar diferentes vídeos promocionais relativos às exposições temporárias, notícias, atividades e cursos educativos. Assim, o canal do Museu de Arte Moderna de São Paulo15 publicou as palestras das últimas edições do seminário "Transmuseo", ou as videoguias em libras (língua brasileira de sinais) desenvolvidas pela entidade. Da mesma forma o canal de Youtube do Instituto Inhotim16 (MG), apresenta entrevistas com os artistas cujas obras fazem parte do acervo de arte contemporânea da instituição. Em menor escala, outros museus preferem a plataforma Vimeo para hospedar seus conteúdos audiovisuais, como o Museu de Arte Moderna da Bahia17; e também podemos encontrar casos de utilização de novos recursos como Vine, onde o referido Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM18, tem um perfil com micro-vídeos promovendo exposições ou algumas obras do acervo. Finalmente, as editoras dos museus também se beneficiaram das ferramentas da Web 2.0, permitindo compartilhar na rede e gratuitamente, as publicações da instituição através de plataformas como Issuu, na qual o referido Museu de Arte Moderna da Bahia19 já tem hospedados os números da Revista Contorno, ou os Panfletos Sanitários para divulgação.

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https://instagram.com/museudeartedorio/ https://www.flickr.com/photos/bahiamam/ 15 https://www.youtube.com/user/MAMoficial 16 https://www.youtube.com/user/InstitutoInhotim 17 https://vimeo.com/bahiamam 18 https://vine.co/u/926188704530317312 19 http://issuu.com/bahiamam/docs 14


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Conclusões

Como já comentávamos no início deste texto, o surgimento da Internet e das mídias digitais tem fornecido aos museus novos âmbitos de atuação nos que se projetar e difundir suas coleções globalmente além dos limites físicos do museu, significando a "morte da distância". Mas, o trabalho por estas instituições não teria sentido sem a existência dos internautas ou público cibernético, que em maior ou menor grau são considerados como público potencial. Estes usuários, também fizeram gradualmente a sua abordagem ao sistema através de diferentes métodos que têm permitido o acesso à rede de redes e ao uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), como parte integrante da nossa vida cotidiana e da emergência do que é conhecido como a sociedade da informação. No Brasil, o Programa Sociedade da Informação do Governo Federal, elaborou o chamado Livro Verde (Takahashi, 2000) e o Livro Branco (Ministério da Ciência e Tecnologia, 2003), um estudo que dá as diretrizes para incentivar a presença de sociedade brasileira no contexto das TICs. Como bem expõe o texto, suas intenções passam por: "contribuir para a inclusão social de todos os brasileiros na nova sociedade e, ao mesmo tempo, contribuir para que a economia do País tenha condições de competir no mercado global" (Takahashi, 2000: 10). No entanto, a tendência destas propostas se concentra em fornecer uma gama de equipamentos e financiamentos que permitem disponibilizar as tecnologias, mas carecem de uma parte essencial para o desenvolvimento de tal inclusão que é parte a educação digital. Ou seja, é preciso que o indivíduo tenha condições de extrair as informações necessárias no e do meio, e construir com elas uma ferramenta válida para o desenvolvimento do campo profissional, do campo perceptivo, ou do aprendizado em si. Assim, encontramos uma realidade na qual [...] os projetos de inclusão digital estão apresentados na fase da conectividade, e o potencial cognitivo e inteligente dos cidadãos conectados não se apresenta valorizado [...] De pouco adianta dar noção de informática se ao ser inserido na rede o indivíduo só consegue utilizar o correio eletrônico. Estando assim, subutilizada a sua capacidade de produzir, transformar e receber outras informações que sejam úteis ao seu dia a dia e ao seu posicionamento como cidadão (Santos y Carvalho, 2009, p. 53).


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Essa afirmativa apresenta uma situação que contrasta com os princípios da Web participativa ou Web 2.0 que definimos no início do nosso texto, e que deveria conduzir-nos desde uma sociedade da informação em que nos encontramos, na prática, a uma sociedade do conhecimento na sua dimensão ideal. Por isso, é fundamental o desenvolvimento de estratégias de capacitação do usuário para que de fato a relação seja significativa. Esta tendência também pode ser traduzida no âmbito museístico, porque, apesar do potencial oferecido pelas novas ferramentas da web, o fato é que a comunicação com o público continua sendo unidirecional. Assim, até certo ponto, os museus estão se adaptando às novas dinâmicas sociais como um veículo de promoção para atrair e fidelizar visitantes, mas que pouco parecem se importar com a participação efetiva e participativa dos usuários. Como se fora uma nova moda, a presença dos museus na rede pode ser entendida como uma prática que tenta evitar outras formas de exclusão digital, pois a não existência na rede seria um risco por causa da falta de difusão e visibilidade pelos usuários da Internet. Como Nuria Rodríguez diz: Para evitar as novas modalidades de exclusão, os museus devem estar presentes em todos os ambientes sociais do sistema-rede, devem gerar conteúdos em todos os momentos, interagem constantemente ... É isso que é chamado de socialização dos discursos do museu, discursos sociais que servem para alimentar os benefícios dos oligopólios que controlam as infraestruturas tecnológicas que ocorrem na interação e socialização (2013, p. 155, tradução nossa). E é que, enquanto o mundo cibernético surgiu como um espaço aparentemente possível de democratização, onde o acesso e a divulgação de informações deveria ser a sua tarefa principal, a verdade é que no desenvolvimento da web 2.0 e a futura web 3.0 - ou web semântica -, um aplicativo ou rede social será melhor quanto mais usuários fizerem uso deles. Neste futuro próximo da web, não prima-se que o usuário possa trazer os conteúdos para ser parte dela, senão que o importante é conhecer os seus dados para associar conteúdos de interesse, especialmente quando os novos dispositivos portáteis geram automaticamente essas informações com o uso do app mais básico. Assim, é possível dizer que não há valor no volume, aqui é dada mais prioridade ao quantitativo do que qualitativo.


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Juan Martín Prada formulou o conceito de sistema-rede, em que se sintetiza o "reconhecimento da primazia da conectividade e dos interesses econômicos inerentes nela, sobre suas próprias possibilidades comunicativas e relacionais" (2012, p. 25, tradução nossa). Isso parece ser facilmente constatável no caso dos museus, onde a importância da sua presença nas redes sociais e plataformas para compartilhar conteúdo audiovisual, é contabilizado não pela interação ou comentários dos internautas, mas simplesmente pelo número de seguidores ou assinaturas ao perfil. O não aproveitamento do potencial da Web 2.0 é algo latente em cada uma das ferramentas mencionadas no texto, especialmente em blogs ou redes sociais, cuja tipologia está mais aberta ao inicio de um debate sincronizado para cada um dos usuários. No entanto, esta participação é reduzida a breves apostilas desprovidos de conteúdo crítico, e que se limitam a elogiar ou comentar brevemente os conteúdos sem gerar nenhum tipo de fórum de discussão. Isto igualmente está relacionado com a falta de uma educação digital tanto do lado dos museus como no que diz respeito aos usuários, que permita a possibilidade de participar nos projetos museográficos e atividades que acontecem nestes espaços expositivos, ou estabelecer debates e críticas da arte contemporânea, que enriqueceriam muito a experiência cultural e a relação entre os espaços expositivos, os artistas, as obras e o público. Esta experiência é referida por Martine Xiberras quando fala da cibercultura, e especialmente em sua descrição dos "coletivos inteligentes" que representam uma cultura comum, "um “húmus” compartilhado sobre o qual vem enraizar-se o refletir e o agir junto, a possibilidade de coletivos inteligentes" (2010, p. 264). Assim, apesar de uma presença significativa dos museus brasileiros na rede, a realidade parece ser similar à tendência geral global, pois eles ainda resistem em integrar os conteúdos produzidos pelos usuários, ou qualquer tipo de sugestão ou opinião quanto ao trabalho da instituição, pois isto contrasta com a tradição destes espaços como fonte e autoridade de conhecimento e opinião pública (Souza e Alves, 2012, p. 7). Embora, venturosamente, existem exemplos a respeito, onde é evidente como a web participativa pode ser adequada para as práticas sociais do museu, uma vez que representam uma abordagem para o interesse público, e às interações e opiniões do mesmo em relação ao objeto da arte. Alguns exemplos de cocuradoria já aconteceram, como a exibição Democracy no festival Design Event (2009), no norte da Inglaterra. Aqui, convidou-se ao público a votar através de Facebook, fóruns ou blogs, aqueles trabalhos dos designers e artistas que foram hospedados


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na web, proporcionando uma oportunidade aberta a participar na exposição final (Wolfson, 2009). Também foi destacável, o projeto Fill The Gap20 relacionado ao Luce Foundation Center, o depósito publico do Smithsonian American Art Museum (Washington, DC). Quando qualquer uma das obras era emprestada temporariamente, através da página de Flickr, informava-se das dimensões do espaço livre, e convidava-se aos usuários a escolher uma nova obra para ocupar o lugar dela, consultando o acervo digital do museu. Para concluir, podemos ver ainda, nos museus do nosso tempo, aquelas instituições tipo "mausoléu" criticadas pela avant-garde no início do século XX, que mostram reticências no desenvolvimento do discurso colaborativo que possibilitam as novas tecnologias. Ainda sobrevive aquela imagem da caverna de Platão, que tem sido associada com a estética do virtual, na qual o ciberespaço não consegue ser mais do que um reflexo da realidade, sem opção de ter uma validade e uma entidade própria. O novo meio propor um novo âmbito para o colóquio das artes, no qual o cibermuseo seria um modelo de ensaio para arquitetar novas relações culturais que não existem na instituição tradicional. Uma simples olhada em nossa sociedade atual, nos mostra como o humano ciborg está cada vez mais presente em nossas vidas diárias, e anuncia novas dinâmicas sociais em um presente não muito distante. Referências  BELLIDO, María Luisa. Arte, museos y nuevas tecnologías. Gijón: Trea, 2001.  LÉVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.  MARTÍN, Juan. Prácticas artísticas e Internet en la época de las redes sociales. Madrid: Akal, 2012.  MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Projeto Casa Brasil. Brasília: MCT, 2006.  PEDRO, Alexandra Raquel. Os Museus portugueses e a Web 2.0. Ciência da Informação, Brasília, v. 39, n. 2, agosto, 2010.  RÍO, José Nicolás del. Museos y redes sociales, más allá de la promoción. Redmarka: revista académica de marketing aplicado, A Coruña, Universidade da Coruña: Unidad de Investigación en Marketing Aplicado / Centro de Estudios en Comunicación, Información y Desarrollo (CIECID), n. 7, pp. 111-123, novembro, 2011.  RODRIGUEZ, Nuria. El museo y su problematización digital: epistemologías en transición. Em: María Luisa Bellido (coord.), Arte y museos del siglo XXI: entre los nuevos ámbitos y las inserciones tecnológicas. Barcelona: UOC, 2013, p. 137-159. 20

https://www.flickr.com/photos/americanartmuseum/sets/72157613328866883/


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 SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 2003.  SANTOS, Placida Leopoldina Ventura Amorim da Costa, e CARVALHO, Angela Maria Grossi de. Sociedade da informação: avanços e retrocessos no acesso e no uso da informação. Informacao & Sociedade-Estudos, v.19, n.1, 2009, p. 45-55.  SEMIOCAST. Netherlands

Brazil most

becomes

active

2nd

country.

country 2012.

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online

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no

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http://semiocast.com/en/publications/2012_01_31_Brazil_becomes_2nd_country_on_ Twitter_superseds_Japan.  SOUZA, Ivana Carolina; ALVES, Lynn. Museus virtuais e web 2.0: conversas contemporâneas. Anais do Simposio em tecnologias digitais e sociabilidade Simsocial 2012, Vol. 1, 2012. Texto online no site: http://gitsufba.net/anais/simsocial2012/  TAKAHASHI, T. (org.). Livro verde da Sociedade da Informação no Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000.  XIBERRAS, Martine. Internautas: inteligências coletivas na cibercultura. Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 17, n. 3, p. 253-265, setembro/dezembro, 2010.  WOLFSON, Bailee. Desing Event 2009: The Democracy Exhibit. 2009. Disponivél em: http://www.coolhunting.com/culture/-design-event-t.


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O filósofo, o palhaço e o fim Artigo dramático. José Ailton Arnaud, Wladelene Lima (PPGA-UFPA)

Este artigo objetiva instigar a reflexão sobre um tema caro a todos que têm interesse pelos desdobramentos da cultura na pós-modernidade, o “fim da arte”. O filósofo estadunidense Arthur Danto explicitou mudanças na forma de a crítica se posicionar sobre a arte no século XX, em que narrativas mestras feitas historicamente pela filosofia já não dão conta de definir “por que algo é uma obra de arte”. Nesse sentido, apresentamos um texto construído sob a base da poética dramatúrgica, tal qual “A República” de Platão, para conduzir o leitor pelos contextos históricos envoltos no tema, tais como: o descredenciamento da arte abordado por personagens/pensadores, como Platão, Aristóteles, Hegel e Kant. O palhaço e o filósofo são os personagens centrais que têm a missão de tocar leitores e espectadores a fim de trazê-los para o debate e envolvê-los nessa trama construída por séculos. Palavras-chave: Arte; Danto; descredenciamento; filosofia; fim da arte. This article aims to instigate the reflection on a relevant theme to all who have interest in the developments of culture in post-modernity, the "end of art". The American philosopher Arthur Danto explained changes in the way the critical poses itself on the art in the twentieth century, in which master narratives historically made by philosophy no longer can define "why something is a work of art." In this sense, we present a text built on the basis of the dramaturgical poetic, as is "The Republic" by Platão, to lead the reader through historical contexts wrapped in the subject, such as the art disqualification approached by characters/thinkers such as Platão, Aristóteles, Hegel and Kant. The clown and the philosopher are the central characters that have the mission to touch readers and viewers in order to bring them to the debate and involve them in this network built for centuries. Key words: Art; Danto; disqualification; philosophy; end of art. A poética e a dramaturgia

O artigo que agora se inicia, quer ser reconhecido como um exercício de mise in abyme – um abismo dentro de outro abismo – por isso, se intitula como artigo dramático, reivindicando a si, uma dimensão poética, a começar pela forma que se apresenta, sabedor que, por direito, o poético deveria caber a todo conteúdo reflexo em arte. Enunciar pensamentos filosóficos em forma de diálogos não é coisa original no mundo ocidental. Já estamos a muito, bem enfezados com os diálogos antipoéticos de Platão. Porém, transver tempo e espaço, pensamento poético e poesia pensante, o pensado e o praticado, na forma de pequenos diálogos entre personagens tão abismais com o filósofo e o palhaço, é


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brincar de pensamento espiralado. É fingir que não sabe, que o eterno retorno não é o do mesmo; é o da diferença na repetição; é o do repetir até encontrar o diferente. Estamos sim, repetindo velhas formas, na perspectiva de encontrar algo que mereça menos interrogações e mais exclamações, como nos provoca o poeta Alberto Pucheu (2003) em seus fragmentos de indiscernibilidade. Como ele, queremos um pouco de espanto, falar como quem está espantado com aquilo que todo mundo já ouviu, já leu tantas vezes em páginas fotocopiadas, praticamente, em todas as salas de aula, em todos os cantos desse país. Queremos, albertinamente, escrever como quem vê pela primeira vez a palavra; como quem tem o seu primeiro encontro com o mágico, o lúdico, o utópico. Ser puro espanto! O corpus do artigo quer ser dramático, como síntese de um trajeto de agenciamentos de artistas-pesquisadores na exploração da arte da pesquisa em artes. Que comece o drama!

Cena 1: Onde a filosofia se faz

(A luz vai iluminando aos poucos o cenário, com muitos livros espalhados pelo chão e em estantes. Vê-se os dois personagens sentados um de cada lado do palco, divididos por uma parede central. Eles falam ouvindo-se um ao outro). FILÓSOFO – Pensamento! PALHAÇO – Magia! FILÓSOFO – Racionalidade! PALHAÇO – Encantamento! FILÓSOFO – Filosofia! PALHAÇO – Arte! FILÓSOFO – Arte?! O que é a Arte? PALHAÇO – Recapitulando... antecedendo a pergunta, vem a resposta. Antes de cristo, muito antes, eis que surge a Arte. Poderosa e embriagante, ela surge para ocupar um vácuo entre o homem e a natureza. O divino. Já sabemos o que é arte então?! Ainda não. O ser humano evoluiu, a arte evoluiu, o mundo evoluiu. Mas em todo canto ela estava lá, em todas as sociedades, atuando ora acoplada à religião, à política, à economia, quase nunca


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sozinha. O fato é, e ninguém pode negar, que a história do ser humano começou a ser contada pelos rabiscos deixados nas paredes das cavernas, arte. E assim foram se definindo as coisas. O que é arte afinal? FILÓSOFO – As coisas e suas definições, heranças deixadas pelo velho mestre. Sócrates. Suas ideias o levaram a morte na Grécia na Era ainda antes de Cristo e se propagam até os dias de hoje, assim como, a de seu amigo e discípulo, Platão. Junta-se a estes outro grande da Grécia, Aristóteles, que juntos influenciaram grande parte do pensamento ocidental. Segundo Pitágoras distinguiu, existem três espécies de homens: os que se deslocam com o intuito de comprar e vender (inferiores); os competidores (heróis); e, acima destes, os que simplesmente veem. Assim são (estes somos nós) os filósofos, que amam a sabedoria e que atuam por amor a esta. As coisas estão postas para os homens, tais quais para os animais. É preciso a reflexão. É preciso implodir as questões mais profundas, para que seja visto de perto o âmago das coisas. Filosofia é a ginástica do pensamento. Deve-se conhecer tudo o que é passível de conhecimento (ALVES, 2008, p. 4). Cabe a nós apurar o conhecimento. E não se trata de oratória, de um dizer vazio. Foi Sócrates que fez o alerta. Era preciso parar de pensar sobre a origem do universo e passar a olhar as questões da ética e da condição humana. PALHAÇO – A condição humana estava presente na poesia, bem antes da Grécia. Nos cânticos, em versos de povos como os hindus e persas (SCHELING, 2001). A poética, Aristóteles, Grécia, 300 anos antes de Cristo (Palhaço encontra o livro). A epopeia e a poesia trágica não tratam de condição humana, de ética e de moral? FILÓSOFO – A República, Platão, século IV a.C. (Filósofo acha o livro, o abre e lê uma página) "A idéia (sic) do bem representa o limite extremo e a custo discernível do mundo inteligível, mas quando compreendida se impõe a razão como a causa universal de tudo o que é bom e belo" (PLATÃO, 2006, p. 47). Porém, meu caro, nossos sentidos sozinhos não dão conta do mundo inteligível. O olfato, paladar, visão, audição e tato não podem explicar as representações dos objetos e sua essência. Neste mundo sensível, o que vemos são apenas sombras e nos contentamos em acreditar ser a verdade. O que vemos e vivemos é uma cópia. PALHAÇO – E a Arte é... FILÓSOFO – A arte é a cópia da cópia. Um simulacro! A poesia então deve sucumbir a filosofia, pois deseduca, não passa de uma imitação da imitação. (abre o livro novamente)


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“Quanto mais poéticas, menos devem chegar aos ouvidos de crianças e de homens que devem ser livres e recear a escravidão bem mais que a morte” (PLATÃO, 1997, p.76). PALHAÇO – A filosofia tem os seus mistérios. Para Aristóteles, discípulo de Platão, a mimises sempre esteve presente entre os gregos (abre o livro novamente), “a epopéia e a tragédia, e também a comédia, a poesia ditirâmbica e, em sua maior parte, a aulética e a citarística, todas vêm a ser, tomadas em conjunto, imitações” (ARISTÓTELES apud BARRIVIERA, 2006, p. 19). Porém, discordando de seu mestre, a imitação detinha de características pedagógicas, sim, e benéficas ao homem, uma vez que uma composição narrativa promovia identificações entre o indivíduo e o personagem, causando efeitos educativos, curativos e por vezes de purificação, por meio da catarse.

Cena 2: A música

(O filósofo levanta-se, vai até a geladeira, tira uma garrafa de vinho, serve-se e começa a beber) PALHAÇO – (lendo o livro novamente)

A algumas almas sucede serem tomadas de forte emoção. [...] Sob influência dessas emoções, alguns são possuídos, e nós os vemos [...], quando fazem uso de melodias que colocam a alma fora de si, restabelecidos como se tivessem recebido tratamento medicinal e purgação. [...] Da mesma forma, as melodias práticas, proporcionam prazer inofensivo aos homens (ARISTÓTELES apud MACIEL p. 18).

FILÓSOFO – A música (lendo o livro novamente). “A razão aliada à música. Só ela, quando entranhada na alma, se mantém toda a vida como defensora da virtude” (Platão apud RIBEIRO, 2001, p. 7). Ora (enquanto fala, procura um vinil na estante), para o corpo, temos a ginástica e, para a alma, a música (Platão apud RIBEIRO, 2001, p. 6). A música, esta arte sim tem valor educativo, pode alcançar o íntimo da alma, moldando-a para o bem ou para o mal, além de atrair as boas virtudes e coragem (RIBEIRO, 2001).

(Localiza o vinil e o coloca no toca disco e canta junto a música) Filosofia Autor: Noel Rosa Intérprete: Chico Buarque


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O mundo me condena, e ninguém tem pena Falando sempre mal do meu nome Deixando de saber se eu vou morrer de sede Ou se vou morrer de fome Mas a filosofia hoje me auxilia A viver indiferente assim Nesta prontidão sem fim Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim Não me incomodo que você me diga Que a sociedade é minha inimiga Pois cantando neste mundo Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo Quanto a você da aristocracia Que tem dinheiro, mas não compra alegria Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente Que cultiva hipocrisia (Do outro lado, o Palhaço pega um violão e começa tocar. Canta de forma contundente) A dança das borboletas Autor: Alceu Valença As borboletas estão voando A dança louca das borboletas Quem vai voar não quer dançar só quer voar, avoar Quem vai voar não quer dançar só quer voar, avoar E as borboletas estão girando Estão virando a sua cabeça Quem vai girar, não quer cair só quer girar, não caia!


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Quem vai girar não quer cair só quer girar, não caia! E as borboletas estão invadindo os apartamentos, cinemas e bares Esgotos e rios e lagos e mares Em um rodopio de arrepiar Derrubam janelas e portas de vidro Escadas rolantes e nas chaminés Se sentam e pousam em meio à fumaça De um arco-íris, se sabe o que é Se sabe o que é... Se sabe o que é... Se sabe o que é... Se sabe o que é... E as borboletas estão invadindo os apartamentos, cinemas e bares Esgotos e rios e lagos e mares Em um rodopio de arrepiar Derrubam janelas e portas de vidro Escadas rolantes e nas chaminés Se sentam e pousam em meio à fumaça De um arco-íris, se sabe o que é Se sabe o que é... Se sabe o que é... Se sabe o que é... Se sabe o que é...

Cena 3: O estado da arte

(Os dois atores desfazem os personagens e modificam o cenário, enquanto falam o texto) ATOR/PALHAÇO – A própria dialética deu origem a uma luta dissimulada que há muito vem acontecendo e ao mesmo tempo nunca existiu. ATOR/FILÓSOFO – Arte e filosofia. Caminhando juntas entre as ideias e separadas por muito tempo entre a prática e a reflexão, entre o real e as definições.


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ATOR/PALHAÇO – Tanto a arte quanto a filosofia priorizam ressaltar as experiências da vida, buscando estimular um aprofundamento sobre nós mesmos e as coisas com as quais convivemos no mundo. ATOR/FILÓSOFO – A estética está para o artista, assim como para o filósofo. ATOR/PALHAÇO – Quem faz a estética? O artista produtor de seu tempo? Este ser mutável, perceptivo e intuitivo? ATOR/FILÓSOFO – Ou o filósofo, ser argumentativo, lógico e vive em busca incessante da sabedoria. ATOR/PALHAÇO – Ou o artista, ser que potencializa e materializa a imaginação. ATOR/FILÓSOFO – Ou o filósofo que privilegia a razão. ATOR/PALHAÇO – Difícil de concluir aqui (deixa em dúvida se está falando do tema discutido ou da arrumação do cenário). ATOR/FILÓSOFO – Para auxiliar no entendimento, esclarecemos: estética, estuda o julgamento e a percepção do que é considerado belo, a produção das emoções pelos fenômenos estéticos, bem como: as diferentes formas de arte e da técnica artística; a ideia de obra de arte e de criação; a relação entre matérias e formas nas artes. Por outro lado, a estética também pode ocupar-se do sublime, ou da privação da beleza, ou seja, o que pode ser considerado feio, ou até mesmo ridículo1. ATOR/PALHAÇO – Resumindo, a estética é a “ciência do belo e, mais precisamente, do belo artístico” (HEGEL apud LOBO, 2003, p. 143) e ocupa-se do estudo da arte do artista e, segundo esse entendimento, o filósofo é que tem este ofício. Então, para falar do estado da arte, recorremos aos filósofos. Inúmeros deles se ocuparam em tratar da estética, do belo, do feio, do gosto... ATOR/FILÓSOFO – Dentre tantos e tantas concepções, alguns se destacaram com ideias ora avançadas, ora inovadoras, ora simplesmente questionadoras.

CENA 3.1: O ESTADO EMBRIAGANTE DA ARTE (Ao terminarem a arrumação do cenário, está montada uma estrutura de um bar, com uma mesa, bebidas e luz colorida. Os dois atores saem de cena. Ao fundo veem-se duas entradas 1

Definição retirada do site Wikipédia propositalmente.


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de cena, em cada uma delas acendem-se placas luminosas, como as que indicam os banheiros. Em uma lê-se “Ceticistas” e em outra “Idealistas”. Entra trilha sonora ambientando o bar. Um ator sai da porta dos “Ceticistas” e senta-se a mesa. Serve-se uma bebida e acende um cachimbo. Outro ator sai da porta idealistas, senta-se do outro da lado da mesa e serve-se uma taça de vinho. Ao centro da mesa está um objeto artístico abstrato) KANT – O belo. O que é isto que tanto nos inquieta a pensar sobre? O que define o belo? HEGEL – Que tal começarmos pelas sensações que a arte provoca. Cada um de nós somos provocados pelo belo desde que nascemos, que causa sensações como o agrado, admiração, temor, compaixão... KANT – Um bom começo. Afinal os conteúdos dependem da experiência vivida pelo sujeito, o objeto em si não gera conhecimento. O belo é então ajuizado pelos sentimentos subjetivos, não lógicos. HEGEL – O homem tende a objetivar o espírito e o faz por meio a arte. Eis ai o cerne do belo. KANT – O belo e seus fenômenos são captados pelos sentidos por meio da intuição, permitindo assim o juízo estético, o gosto. “Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante um comprazimento ou descomprazimento independente de todo interesse. O objeto de um tal comprazimento chama-se belo” (KANT, 2005, p.1). HEGEL – Pensando na beleza como fenômeno, esta “só pode se exprimir na forma, porque ela só é exterior através do idealismo objetivo do ser vivente e se oferece à nossa intuição e contemplação sensíveis (HEGEL apud GUEDES, 2012, p. 79). Assim sendo, a aparência do objeto artístico é fundamental para a essência dele, pois a verdade não se revelaria, se não se tornasse aparente e visível. KANT – Não exatamente na forma, pois os fenômenos exteriores não são assim percebidos imediatamente a partir da aparência, e, sim, são frutos das percepções dadas por ela. “A existência de todos os objetos no sentido externo é duvidosa. [...] esta incerteza é denominada ‘idealidade dos fenômenos externos’, sendo o ‘idealismo’ a doutrina desta idealidade” (MUTLAQ, 2014, p. 309).


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HEGEL – Estamos falando do belo artístico, somente este. Um recorte necessário, contudo, nos é claro que o belo artístico é superior ao belo natural. Por isso, o termo estética não dá conta, melhor seria chamar para nossa ciência, filosofia da arte, mais precisamente, filosofia da bela arte. Assim, excluímos de imediato o belo natural (HEGEL, 2001, p. 27). KANT – Ao citar o belo natural, é preciso tratar das categorias da beleza, tais quais: “A beleza livre (...) e a beleza simplesmente aderente (...). A primeira não pressupõe nenhum conceito do que o objeto deva ser; a segunda pressupõe um tal conceito e a perfeição do objeto segundo o mesmo” (KANT, 2005, p. 75). As belezas naturais, como as flores, ou mesmo desenhos livres que nos pareçam figuras não significam exatamente alguma coisa, mesmo assim nos agradam, ou seja, são dotados de uma beleza. HEGEL – A arte é superior ao belo natural pois tem à sua disposição não só as referências da natureza, mas também as múltiplas possibilidades da “imaginação criadora que pode ainda, além disso, manifestar-se em produções próprias inesgotáveis” (HEGEL, 2001, p.31). A arte é oriunda do espírito e o belo natural é desprovido de espírito. Para compreender melhor, percebamos que a beleza artística nos é apresentada, através dos sentidos, das sensações, da intuição e da imaginação, portanto, distingue-se do pensamento comum, e deve ser tratada de forma distinta do pensamento científico. KANT – Mas percebamos ainda que “se a questão é se algo é belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um importa ou sequer possa importar algo da existência da coisa, e sim como a ajuizamos na simples contemplação” (KANT, 2005, p. 49). Para que haja um processo pleno de juízo de gosto, deve-se colocar completamente indiferente a existência do objeto, com desinteresse mesmo. Aí percebemos então como se processa o fenômeno de forma intuitiva, a exemplo das folhas verdes e alvas que se destacam nas copas das árvores, neste caso, a cor verde pertence a sensação objetiva, é uma cor, já o agrado ou desagrado provocada por ela pertence a sensação subjetiva. HEGEL – A arte e suas obras, decorrentes do espírito e geradas por ele, são elas próprias de natureza espiritual (HEGEL, 2001, p.37). O absoluto é o espírito, o sujeito autoconsciente. KANT – O prazer subjetivo é desprovido do sentido de conhecimento, o que vale é a experiência estética. HEGEL – A beleza é


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A expressão máxima do Ideal, uma tentativa de transpor a realidade dura e cruel da vida cotidiana e ao mesmo tempo projetar para si mesmo exemplos a serem seguidos. Parece uma ideia antiga, mas é assim a premissa dos idealistas. Mas as coisas são mutáveis, e a arte também não é eterna. A arte não é mais a melhor forma de expressão da verdade dos homens, sendo assim, ela foi superada pelo cristianismo e pela filosofia na sua função de tornar o espírito consciente. “Já não vemos nela qualquer coisa que não poderia ser ultrapassada” (HEGEL apud SOBRINHO, 2006, p. 8).

A arte está fadada ao fim, à morte.

Cena 4: O fim do começo (Projeções são feitas em tela transparente. As imagens projetadas são ilustrativas a cada momento do texto, em uma edição com ares de vídeo arte). NARRADOR – A Reprodutibilidade na arte da início a um novo tempo, ou novos tempos. A xilogravura e a litografia reinventaram a forma de expressar a vida cotidiana. Logo foram superadas pela fotografia que, por sua vez, propiciou o advento do cinema (trechos de filmes de Charles Chaplin e Mikey Mouse da década de 20). Foi uma questão de testar até que os cineastas descobrissem exatamente quantos quadros por segundo deveriam passar pelo orifício para nos dar algo ao equivalente ao movimento tal como é realmente percebido (DANTO, 2014, p. 127). Estas expressões artísticas representam bem as mudanças ocasionadas na forma de fazer, consumir e refletir sobra a arte. O avanço da reprodutibilidade técnica e da massificação da arte são fatores a se considerar agora. A fonte. Obra de Marcel Duchamp que reflete os novos paradigmas que se apresentam, mostrando claramente que a arte é uma atividade intelectual, conceitual. “Duchamp, sozinho, demonstrou que é inteiramente possível algo ser arte sem ter qualquer relação com o gosto, bom ou ruim. Assim ele pôs um fim naquele período do pensamento e da prática estética com o ‘Padrão do Gosto’” (DANTO apud GUEDES, 2012 p. 77). A arte definitivamente está em um novo patamar, onde não há limites para sua produção, onde se faz presente um profundo pluralismo. Conceitos antes estabelecidos, já não valem mais. Não há escolas, ou vanguardas, ou normas, ou técnicas prevalecentes. A exemplo, “a reprodutibilidade técnica e a massificação são inconciliáveis com a noção de ‘gênio’, que aparece ainda como indispensável à concepção


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‘clássica’ da arte” (VATTIMO apud SOARES, 2013, p. 41). Vivemos um período de grande e fértil liberdade artística, com certa desordem informativa instalada, onde há uma pulverização de tudo isso ao mesmo tempo, onde “cada caso é um caso, cada obra, uma obra, que define, tão automaticamente quanto possível, as normas de sua própria leitura” (DANTO, 2006, entrevista). A partir do momento em que qualquer objeto pode se tornar uma obra de arte, não há limites para sua forma ou aparência. Os meios e suportes também se multiplicam a cada instante. Ocorre um fenômeno de perda da aura da arte como a conhecíamos até então, em que princípios como a durabilidade e a materialidade dão lugar a transitoriedade e a efemeridade, respondendo em parte a necessidade de consumo de novidades própria da contemporaneidade.

Com efeito, os conteúdos divulgados pelos media assumem um caráter de precariedade e superficialidade que choca os preceitos da estética moderna, ainda fundada no ideal da obra de arte como “monumentum aere perennius” e da experiência estética como experiência que envolve o sujeito autenticamente e profundamente. Estabilidade e perenidade da obra, profundidade e autenticidade da experiência artística são algo que, certamente, não se pode mais esperar na experiência estética da contemporaneidade, dominada pelos mass media (SOARES, 2013, p.41).

Em um movimento de resistência, a estética moderna procura espaço em áreas artísticas que ainda sustentem alguns dos princípios da “essência da arte (originalidade, criatividade, gênio, etc)” (VATTIMO apud SOARES, 2013, p. 41). O design, apesar de fazer parte do contexto plural da contemporaneidade, ainda é um ramo da arte que faz um resgate estético moderno por meio da otimização dos objetos, harmonização e equilíbrio. Contudo, é cada vez mais evidente que os ideais da “reprodutibilidade técnica e da massificação são inconciliáveis com as definições tradicionais da Estética” (VATTIMO apud SOARES, 2013, p.1). “Na pós-modernidade, não há espaço para ‘uma’ verdade filosófica da arte, para a essência excludente do que não é essencialmente arte. Não há espaço para a ‘narrativa redescoberta, divulgação ou revelação’ da ‘verdadeira arte’” (SOARES, 2013, p.38). O fim da modernidade pode ser apontado então a partir do ano de 1964, quando Andy Warhol expõe sua Brillo Box. Assim, temos o fim do começo e o começo do fim.

Cena 4.1: O começo do fim


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(Acendem se as luzes em penumbra. No cenário, há uma lona no chão em formato de picadeiro e duas cadeiras ao centro. Os personagens do início do espetáculo retornam a cena, desta vez com os intérpretes invertidos. Sentam-se). FILÓSOFO – As coisas mudaram? PALHAÇO – Mudaram. E a arte mudou. FILÓSOFO – Mudou? PALHAÇO – O pluralismo atual da produção artística requer uma “revisão radical na forma de se refletir sobre a arte e no modo de se lidar com ela institucionalmente” (SOARES, 2013, p. 36). Os aspectos analisados nas obras de arte anteriormente tornaram-se irrelevantes a partir das caixas de Andy Warhol. Há um vazio de definições e a história da arte chegou ao seu fim. FILÓSOFO – Parece um pouco drástico falar que a história da arte terminou. PALHAÇO – A história da arte não foi interrompida, mas acabada, no sentido de que passou a ter uma espécie de autoconsciência convertendo-se, de certo modo, em sua própria filosofia (DANTO, 2005, p.26). O que acabou foi o velho jeito de olhar a arte, com as velhas “narrativas mestras” que deixavam fora da história muitas práticas artísticas. FILÓSOFO – Hegel já havia anunciado a “morte da arte”... PALHAÇO – “O “fim da arte” não significa o fim das produções artísticas. O que está em questão não é a “morte da arte”, mas o fim dos paradigmas que construíram a história da arte até aqui. FILÓSOFO – Então o que vem a seguir? PALHAÇO – Qualquer que seja a arte que venha a seguir não precisará do benefício legitimador da história da arte. “O que havia chegado ao fim era a narrativa e não o tema da narrativa” (DANTO, 2005, p.5). Vamos pensar no que vem depois do fim da arte (O palhaço levanta-se e fica agitado). Vivemos uma era pós-arte que dará origem há alguma coisa diferente, uma coisa que ainda não compreendemos. FILÓSOFO – A estética tradicional não tem como responder as questões artísticas da pós-modernidade. “Agora o problema filosófico é explicar porque são obras de arte” (DANTO, 2006, p. 40).


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PALHAÇO – Hegel acreditava que a arte não mais encontrava as necessidades espirituais da humanidade. Somente a filosofia poderia encontrá-las. Minha visão é a oposta. Por causa de seu pluralismo radical, a arte é capaz de encontrar nossas necessidades espirituais de beleza - pense em arte feminista, arte gay ou no multiculturalismo. Mas a filosofia perdeu sua capacidade de fazer algo por alguém. Ninguém pode pensar como Hegel hoje em dia (DANTO, 2006. Entrevista).

FILÓSOFO – As artes ainda podem “ser pós-historicamente produzidas, por assim dizer, no rescaldo de uma vitalidade desaparecida” (DANTO, 2014, p. 122). PALHAÇO – Mas agora nada “está fora do conhecimento, nem opaco à luz da intuição cognitiva” (DANTO, 2014, p. 150). (Luz geral se apaga e fica somente um foco sobre o Palhaço. Este despe-se totalmente, enquanto fala o texto) PALHAÇO – Como diria Marx, você pode ser um abstracionista de manhã, um fotorrealista à tarde, um minimalista mínimo à noite. Ou você pode cortar bonecas de papel ou fazer o que mais lhe aprover (Revela uma pequena faca). “A idade do pluralismo está conosco (...) [esfaqueia-se]. A liberdade termina em sua própria realização” (DANTO, 2005, p. 151 e 152). (O Palhaço cai ao chão. O foco se apaga. Acendem-se as luzes em penumbra e revela o Filósofo a olhar para o corpo estendido ao chão. Luzes apagam-se totalmente.) - FIM DO DRAMA – Quem provoca o espanto, não sai espanto simplesmente, sai saciado, porém sofrendo de agorafobia – uma fobia por tudo que só responde ao agora; que não provoca o DEVIR.


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Paradoxos entre arte e política nos Provos: a reinvenção da estética no cotidiano holandês. Flavio Lima (PPGD-UFPE)

RESUMO Este artigo pretende compreender em que medida as manifestações vinculadas ao movimento Provo foi capaz de produzir no cerne do cotidiano, uma experiência estética de oposição ao automatismo conformista, na Amsterdã dos anos 1960. Buscou-se, de igual modo, a partir das formas de eficácia adjacentes do campo da arte, posicionar a estética enquanto disciplina capaz de abarcar possíveis mediações existentes entre o sensível e o inteligível. Evocando-se contribuições de autores como Rancière e Guarnaccia, o estudo procurou dialogar com elementos chave que compuseram este momento histórico e a relação com o esfacelamento da tríade artista-obraespectador, no limiar do ambiente contracultural. Palavras-chave: Provos, contracultura, arte política, eficácia estética, cotidiano.

ABSTRACT This article aims to understand the extent to which manifestations linked to Provo movement was able to produce at the heart of everyday life, an aesthetic experience of opposition to conformist automatism, in Amsterdam in 1960. Was sought, likewise, from the forms of adjacent efficacy of the art field, position the aesthetics as a discipline can encompass possible existing mediations between the sensible and the intelligible. For this, together with the contributions of authors such as Jacques Rancière (2012) and Matteo Guarnaccia (2010), the study sought dialogue with key elements that comprised this conflict and its relation to the breakdown of the triad artist-work-spectator on the threshold of countercultural environment. Keywords: Provos, counterculture, political art, aesthetic efficacy, daily life.

Introdução O provável resultado mais evidente quando se fala do lugar de origem da contracultura, aponta para o Sunshine State, na Califórnia, e ignora os venturosos pioneiros holandeses, cujas atividades anarquistas e tribais anteciparam Diggers, Yippies e Situacionistas. Às ideias dos Provos faltou – além do imenso aparato midiático norteamericano – certo amplificador fundamental, representado pela música pop. No universo anglo-saxão, o movimento pacifista e alternativo pode contar com grupos ou cantores de musica folk para difusão de mensagens: nada parecido aconteceu na Holanda, do ponto de vista de “exportação” da expressividade musical. Camada a dentro no cotidiano, elemento indispensável para uma análise das teorias sobre a transformação das interfaces de arte neste momento histórico, os Provos encontraram um lugar autêntico, com certo grau de pioneirismo. No tangente a propostas de transformação do objeto e espaço, comumente atribuído às inserções de Duchamp, Internacional Situacionista ou Fluxus, Guarnaccia (2010) revela que:


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(...) Amsterdam foi a primeira "zona liberada" do planeta. A primeira na qual as ideias da Nova Consciência fincaram raízes sólidas, os cabelos compridos e os vestidos excêntricos foram aceitos normalmente. Foi ali que as bandeiras negras da anarquia reapareceram nas ruas, e dessa vez não era para seguir o funeral de um velho militante. O primeiro lugar em que a mistura entre poesia, drogas e musica pop conseguiu dar vida a um movimento contracultural gigante. E tudo isso antes do maio francês (...). (GUARNACCIA, 2010, p.06)

Ainda assim, diferentemente do supracitado maio francês, que objetivava levar a imaginação ao poder, o Provo utilizou a imaginação contra o poder. Home (1962) destaca que os Provos angariaram boa quantidade adeptos na juventude holandesa e dinamarquesa de sua época pelo fato de não se utilizarem de uma linguagem política convencional, ao contrário, satirizá-la. Suas raízes híbridas mesclavam arte e ativismo, de maneira a favorecer o surgimento de certo grau inovativo em ambos, reinventando o próprio fazer político. Suas criações, portanto, dispuseram-se tão entrelaçadas ao cotidiano, que continua sendo uma complexa tarefa distinguir o que é arte, em sentido limitado, do que é ativismo. Dos ensinamentos dadaístas, de modo mais ou menos consciente, os Provos tiraram alguns ensinamentos úteis quanto ao uso dos símbolos: “(...) a indubitável influência Dada no movimento pode ser reconhecida na obsessão de querer arrombar os significados que sustentam a ordem estabelecida das coisas, e na fé no poder mágico da arte”. (GUARNACCIA, 2010, p.14). Seja em seu reduto antifumo, o famoso e incendiário Templo K, nas ruas de Amsterdã, ou em seu blasfêmico programa eleitoral, os inúmeros Planos Brancos (que nada têm de conotação racial, preconceituosa ou purista), sintetizaram um estreitamento do fazer arte de forma a considerar-se a insanidade dentro da política do cotidiano, sem afastar-se do descompromisso em seduzir os jovens holandeses. Segundo Guarnaccia (2010), a forma artística que ganha instantaneamente a simpatia dos círculos intelectuais e boêmios, e que servira como elemento dinâmico, catalisador da transformação, era a última novidade proveniente dos EUA: o happening (embora esta nomenclatura ainda não tivesse sido forjada àquela época). Eram (...) “verdadeiras sessões terapêuticas selvagens e de massa, que modificam inexoravelmente a percepção da realidade, um processo criativo capaz de desenvolver uma consciência coletiva. Um modelo de desprogramação social”. (GUARNACCIA, 2010, p. 31). O uso imaginativo da linguagem artística atingiu, no modus operandi desencadeado pelos Provos, o ponto onde outras formas de conversões sociais entraram em confronto com a autoridade vigente. Aqui, ganhou ares de delinquência juvenil non sense em maleáveis happenings e acarretou uma reconfiguração do comportamento paradoxal. As ofensivas para fundir arte e vida casual são parte integrante do patrimônio das vanguardas históricas do século XX. Deste modo, para este estudo, fez-se de extrema importância uma revisão bibliográfica que pudesse abranger diferentes visões do fazer arte no cotidiano. Na tentativa de sintetizar as ideias levantadas pelos autores que tratam do tema. Para melhor visualização das consequências de atividades artísticas no cotidiano, optou-se por descrever, de forma sintética, dois importantes feitos Provos, aos quais, posteriormente, couberam análises que partem de conceitos das formas de eficácia da arte, com especial atenção aos conceitos formulados por Rancière (2010).


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ARTE E POLÍTICA NA AMSTERDÃ DOS ANOS 1960 Politicamente, à época dos Provos, imperava na Holanda um paternalismo sufocante e impermeável às mudanças, que “(...) era representado por um solido compromisso com as diferentes polaridades religiosas, econômicas e sociais”. (GUARNACCIA, 2010, p.23). Havia uma particular distribuição de todos os postos da vida pública - desde a administração até os meios de comunicação de massa - entre as quatro forças principais do país: Capital, Sindicato, Católicos e Protestantes, sobre as quais se apoiava a sociedade holandesa. A vontade de repolitizar a arte manifestou-se nos Provos em estratégias, das quais, certamente, os situacionistas enfurecidos zombaram por uma suposta ridícula moderação sublúdica de seus intelectuais. Essa diversidade não traduziu apenas a variedade dos meios escolhidos para atingir o mesmo fim. Ao passo que reflete uma incerteza mais fundamental deste fim em vista reconfigurou o terreno onde repousa o borrão entre a arte e a política. Contudo, práticas divergentes têm um ponto em comum: geralmente consideram ponto pacífico certo modelo de eficácia. (RANCIÈRE, 2012, p.52). Rencière (2012) indica que a arte é considerada política porque mostra os estigmas da dominação, porque ridiculariza os ícones reinantes ou porque sai de seus lugares próprios para transformar-se em prática social, etc. No entanto, afirma ainda que, ao cabo de um bom século de suposta crítica da tradição mimética, é forçoso constatar que essa tradição continua dominante até nas formas que se querem artística e politicamente subversivas. (RANCIÈRE, 2012, p.52). As produções artísticas perdem funcionalidade, saem da rede de conexões que lhes dava uma destinação antevendo seus efeitos; são propostas num espaço-tempo neutralizado, oferecidas igualmente a um olhar que está separado de qualquer prolongamento sensório motor definido. Para Rancière (2012), o resultado não é a incorporação de um saber de uma virtude ou de um hábitus. Ao contrário, é a dissociação de certo corpo de experiência. Há uma estética da política no sentido de que os atos de subjetivação política redefinem o que é visível, o que se pode fazer dele e que sujeitos são capazes de fazê-lo. Há uma política da estética no sentido de que as novas formas de circulação da palavra, de exposição do visível e de posições de afeto determinam capacidades novas, em ruptura com a antiga configuração do possível. Para Rancière (2012), a “política da arte” é, assim, feita do entrelaçamento de três lógicas: a lógica das formas da experiência estética, a do trabalho ficcional e a das estratégias metapolíticas. O que continua perto é o modelo de arte que deve suprimir-se a si mesma, transformando o expectador em ator, do desempenho arte para fazer dela um gesta na rua, ou anula dentro do próprio museu a separação entre arte e vida. O que se opõe então à pedagogia. Essa polaridade ética entre duas pedagogias “(...) define o círculo no qual ainda hoje está frequentemente encerrada boa parte da reflexão sobre política da arte”. (RANCIÈRE, 2012, p.57). As formas da experiência estética e os modos de ficção criam uma paisagem inédita do visível, formas novas de individualidades e conexões, ritmos diferentes de apreensão do que é dado, escalas nova. Não o fazem da maneira específica da atividade política, que cria formas de enunciação coletiva (nós). Mas formam o tecido no qual se recortam as formas de construção de objetos e as possibilidades de enunciação subjetiva própria à ação dos coletivos políticos. Enquanto a política propriamente dita consiste na produção de sujeitos que dão voz aos anônimos, “(...) a política própria à arte no regime estético consiste na elaboração do mundo sensível do anônimo,


308 dos modos do isso e do eu, do qual emergem os mundos próprios do nós político”. (RANCIÈRE, 2012, p.65). Para o autor, é como se a arte, operando uma mediação entre as pessoas e o mundo, acabasse fornecendo a possibilidade de vínculo imediato com ele, não obscurecida pela abstração conceitual, lógica. A experiência estética nos Provos parece apontar para uma transcendência, uma ultrapassagem daquilo que os sentidos podem perceber e que a razão pode pensar, com alguma dose de diversão. Nesse quadro, a função social precípua da arte é a de “fazer-se o eco e o reflexo da experiência comum, dos grandes eventos e ideias do seu povo, da sua classe e do seu tempo”. (FISCHER, 1987, p.51).

ESTÉTICA RELACIONAL E A REINVENÇÃO DO COTIDIANO PROVOCATIVO A dimensão coletiva da arte, no Provos relaciona-se com o traço de universalidade da experiência que cada um pode ter dela. O caráter único da construção da obra, sua falta de determinação social imediata, parece ser uma radicalização da estrutura funcional a que todas as pessoas estão submetidas no sistema. Este grupo representa um dos aspectos do último tipo de reformismo produzido pelo moderno capitalismo: o reformismo da vida cotidiana. As práticas dos Provos estão creditadas no poder de mudar a vida cotidiana apenas por meio de alguma melhora bem selecionada. No entanto, é por meio dessa banalidade, tomada enquanto casual, que o “provotariado” pode deparar-se com formas de driblar parte do mecanismo central do produto da apatia de seus contemporâneos. A racionalidade que vigorava no cotidiano holandês era a semelhante àquela voltada para a instrumentalização da vida, tendendo a ocultar os diversos sofrimentos perpetrados pela e na sociedade administrada. Na busca pela manutenção dos interesses do capital, essa “(...) racionalidade absolutizada (...)” (ADORNO, 1982, p. 139) esquece o ser humano e, nesse sentido, converte-se em irracionalidade. Bourriaud estabelece bases para uma possível compreensão do fazer artístico, ao caracterizá-lo como um meio de contato com o seu processo de manufatura. (BOURRIAUD, 2006, p. 49). Esse processo consiste em fazer com que todo o trabalho, que na realidade do mercado somente é mediado por sua funcionalidade externa, seja absorvido pela unidade das estratégias do grupo que, mesmo em sua suprema falta de utilidade, acabam possuindo valor em si e para si mesmo. Agindo apenas no especifico, acabaram por aceitar a totalidade: o conteúdo universal estético não seria apenas alcançado pela extrema individualização (na qual a arte moderna recusa-se a uma comunicação social direta, para alcançar outra, por assim dizer, sublimada). Confrontados com a poética do cotidiano, evidencia-se uma lógica particular de representação e circularidade nos chamados Planos Brancos dos Provos. Dois deles, em particular, chama a atenção devido ao grau de inovação e ousadia: o primeiro – Plano das Bicicletas Brancas –, por estabelecer um confronto com os glóbulos que circulavam pelo centro mágico, como era chamada Amsterdã e o segundo – Plano Eleitoral, que consistia numa arriscada manobra que transformaria as ruas de Amsterdam num palco de comédias (GUARNACCIA, 2010, p.42):

AS BICICLETAS PINTADAS DE BRANCO Segundo Guarnaccia (2012), nos anos 1960, lutar contra o automóvel era algo inédito, uma blasfêmia contra "as maravilhas do progresso". Em pleno boom automobilístico, os Provos têm a clarividência de recusar o culto às quatro rodas e de propor a bicicleta como uma espécie de instrumento tribal: seria o


309 primeiro meio de transporte coletivo gratuito ou, em outros termos, a bicicleta Provo atua como uma espécie de reencarnação do cavalinho de pau dos dadaístas. Para os jovens deste grupo, a bicicleta era considerada um veículo igualitário, propiciador de intimidades. Afirmavam que (...) se os povos précolombianos ignoravam a roda para os deslocamentos, só a utilizando para os brinquedos e se os tibetanos a concebiam exclusivamente para seus instrumentos de oração, a bicicleta é a síntese esplendida das utilizações possíveis da roda: jogo, transporte e oração. (GUARNACCIA, 2010, p.45). Sem duvida, a crítica antiautomobilistica dos Provos deve muito às intuições das mudanças sociais provocadas pela automatização do trabalho. Seu plano consistia em distribuir bicicletas por toda a cidade para a utilização coletiva. O primeiro plano de bicicletas brancas foi lançado no Provokatie nº 5, jornal publicado pelos Provos, contendo a seguinte mensagem: “Cidadãos de Amsterdam! Basta com o asfáltico terror da classe média motorizada! Todo dia, as massas oferecem novas vítimas em sacrifício ao último padrão a quem se desdobram: a auto-ridade. O sufocante monóxido de carbono é seu incenso. A visão de milhares de automóveis infecta ruas e canais. O plano Provo das bicicletas brancas nos libertará deste monstro. Provo lança a bicicleta branca de propriedade comum. (...) A bicicleta branca está sempre aberta. A bicicleta branca é o primeiro meio de transporte coletivo gratuito. (1965, apud Guarnaccia, 2010).

Estes e outros feitos se devem, em grande parte, aos esforços de uma enigmática figura, a quem Guarnaccia (2010) descreve como, um “duende extravagante e exibicionista, que respondia pelo nome de Robert Jasper Grootveld”. Segundo Stewart Home (1962), “O Mago” e seus sócios (dentre os quais é possível encontrar Bart Huges e o ex-situacionista Constant) tinham os pés fincados em ideias anarcocomunistas e criativas, em ensandecidas operações de cunho dadaísta, com interpretações próprias e magistrais.

O PLANO ELEITORAL DO “PROVOTARIADO” Com inspirações anarquistas, muitos consideram qualquer vinculação com a política institucional pela candidatura uma autoblasfêmia, fato que, segundo Guarnaccia (2010), aparentemente rebaixaria o Provo de movimento de rua à força partidária. Ao mesmo tempo, nas ruas, os happenings continuavam reprimidos violentamente pela polícia, a presença de um Provo na Câmara de Vereadores não modificou de forma consistente a turbulenta cena política de Amsterdam. O fato de seu vereador apresentar-se na sessão de abertura completamente vestido de branco e com mãos e rosto pintados de branco, sugere certo compromisso com o viés performático, a fim de introduzi-lo no contexto banalizado pela política institucional. Desde os aplausos recebidos diariamente por uma (...) “pequena multidão que observa o vereador Provo ir trabalhar de pés descalços” (...) (GUARNACCIA, 2010, p.80), até o fato de que ele, performaticamente, dá inicio a suas intervenções arrotando, demonstra sua posição de presençaadvertencia, em confronto com os outros eleitos.


310 Para Guarnaccia (2010) essa postura seria uma evidência de que os Provos não estariam interessados no poder, não o querem e não sabem o que fazer com ele. Ao contrário, objetivavam dar poder à imaginação para, assim, esvaziá-lo. Enquanto isso, nas ruas, happenings e choques continuam imperturbáveis e reprimidos pela policia. A mimese presente nas ações dos Provos também enfatiza parte da vontade de dar à arte da política um objetivo que não seja apenas a produção de elos sociais, mas a subversão destes elos bem determinados, “(...) prescritos na forma de instituições e decisões dos dominantes (...)”. (RANCIÈRE, 2012, p.71).

OS PROVOS E AS FORMAS DE EFICÁCIA EM SUAS AÇÕES Há três formas de eficácia definidas por Rancière (2012): a representativa, que como, a própria nomenclatura sugere, quer produzir efeitos através representações, a lógica estética, na qual os efeitos são produzidos pela suspensão destes fins representativos e, por fim, a lógica ética, que sugere que formas artísticas e políticas se relacionem diretamente. Rancière (2012) afirma que a arte ativista imita e antecipa seu próprio efeito, arriscando-se a tornar-se a paródia da eficácia que reivindica. No entanto, é neste ponto que os Provos demonstraram o quanto foram sensíveis ao problema inerente à política da arte enquanto ação direta contra a realidade da dominação: a paródia como crítica consiste me diminuir a carga política que recai sobre a arte, pois reduz o choque entre elementos heterogêneos à distância da alegoria. Em contrapartida, a paródia da crítica feita pelos Provos ataca o suposto pivô do modelo, a consciência espectadora dos jovens em Amsterdã, e se propõem a eliminar a distância entre arte produtora de dispositivos visuais e a transformação das relações sociais. Essa prerrogativa pode ser mais bem compreendida a seguir, no fragmento de um jornal produzido pelo grupo, em 1965: “(...) Somos Provo... por que, então? Não e certamente para nos entediarmos. (...) Porque este mundo esta cheio, atolado de exércitos, Estados, multidões de policiais e espiões, cavalos de batalha, muros da vergonha, bases de mísseis, rampas militares, quartéis, mortos de fome, histeria religiosa, burocracias e campos de extermínio... Nos não somos tão ingênuos a ponto de acreditar que possamos transformar este mundo, num piscar de olhos, num lugar ideal. Todos os reformadores, inclusive os anarquistas, esqueceram de levar em conta as pessoas, o "fator humano", como se costuma dizer.”.(1965, apud Guarnaccia, 2010).

Para Adorno (1982), a arte torna-se social no momento em que adota uma postura eminentemente antagônica e autônoma em relação à sociedade administrada (capitalista). Tornando-se puras em si mesmas, completamente estruturadas segundo a sua lei imanente, as ações dos Provos afrontariam uma sociedade baseada na troca total, onde tudo existe enquanto meio; é uma negação determinada de uma sociedade determinada. Os dispositivos de arte destes planos se apresentam diretamente como propostas de relações sociais. O trabalho de arte teria superado a antiga produção de objetos, como suas bicicletas brancas, somente para contemplação: “(...) agora produz diretamente relações com o mundo, portanto, formas ativas de comunidade”. (RANCIÉRE, 2012, p. 69).


311 É possível arriscar-se a enunciar o paradoxo da relação entre arte e política nos Provos: arte e política têm a ver uma com a outra no sentido das operações de reconfiguração da experiência comum do sensível. Assim, o happening pode ser considerado como uma das fagulhas que desencadeariam a poética do grupo. Se a experiência estética toca a política, é porque também se define como experiência de dissenso, oposta à tradição mimética ou ética das produções artísticas com fins sociais. A arte provocativa participa do que lhe é contrário e sua eficácia estética significaria propriamente a interrupção de qualquer relação direta entre a produção das formas da arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado. Estas afirmações ficam mais evidentes na medida em que Rancière (2012) a considera que a eficácia de um dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos e apresenta-se, neste caso, um conflito de vários regimes de sensorialidade. Por este motivo, no regime da separação estética, a arte acaba por tocar na política. Política, por sua vez não é considerada aqui como “(...) exercício de poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não é definido pelas leis e instituições”. (RANCIERE, 2012, p.60). A arte política, como atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns, rompe a evidência sensível da ordem “natural” que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à privada, votando-se, sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Como produto essencialmente humano, a arte dos Provos não é uma produção automática; é, sim, um produto humano complexo, para o qual são solicitadas as qualidades dos interatores enquanto tais. Em primeiro lugar, a elaboração de certa compreensão do mundo e a abstração necessária para tomá-la como conteúdo de suas ações políticas. Em segundo lugar, a capacidade de criar, que envolve três ações básicas: projetar na mente as ações, buscar os meios mais verdadeiros e significativos para a sua elaboração, concretizar o planejado num processo altamente dinâmico que, em seu decorrer (ou seja, no movimento da própria obra em seu vir-a-ser). Estes elementos não apenas puderam determinar transformações no plano original da ação, como também nas maneiras de ser, pensar e criar dos artistas em seu diálogo com a criação coletiva de abordagem do viver urbano de Amsterdã.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os artistas, assim como os pesquisadores, constroem a cena em que a manifestação e o efeito de suas competências são expostos, tornados incertos, nos termos (...) do idioma novo que traduz uma nova aventura intelectual. (RANCIÈRE, 2012, p.25). O efeito do idioma não pode ser antecipado. Este estudo buscou compreender que elementos a arte deu à ação coletiva (...) contra as forças da dominação que ela mesma toma como alvo (RANCIÈRE, 2012, p.74). De forma semelhante, procurou observar os momentos nos quais a saída desta mesma arte para fora de seus habituais lugares assumiu ares maiores que a pura demonstração simbólica. Ficou constatado que nas ações provocativas configurou-se um cenário favorável para que os jovens desempenhassem o papel de intérpretes ativos, que elaborassem sua própria tradução, para, enfim, apropriar-se da história e fazer dela a sua própria. Sendo uma comunidade emancipada, eram compostos por narradores e tradutores que incorporam suas “funções”.


312 Com isso, os Provos abriram passagens possíveis pra novas formas de subjetivação política. Mas nenhuma parece ter sido capaz de evitar a ruptura estética que separa os efeitos das intenções e veda qualquer via larga para uma realidade que estaria do outro lado das palavras e das imagens de suas publicações. Em Rancière, (2012), a arte crítica é aquela que admite que seu efeito político passe pela distância estética. O autor compreende que esse efeito não pode ser garantido, que ele comporta uma parcela de “indecidível”. Ainda segundo ele, haveriam duas maneiras de trabalhar e pensar esse “indecidível”: a primeira considera um estado do mundo no qual os opostos se equivalem gerando oportunidade para um novo virtuosismo da arte, e a segunda, reconhece aí o entrelaçamento de várias políticas, confere figuras novas, explora suas tensões, desloca o equilíbrio do que é possível e a distribuição das capacidades entre os envolvidos no processo. Para os cânones revolucionários, Provo deve ser considerado um elemento reformista. Mas permanece o fato de que as possibilidades de “Zonas Autônomas Temporárias” naquele país seguem como algo muito surpreendente. Também surpreendente certo respeito de que gozam na Holanda as minorias e as ideias mais heterogêneas: os Provos foram - e continuam sendo - um dos mais influentes precursores deste processo, pois, segundo Guarnaccia (2010):

(...) eles compreenderam que, no mundo moderno, o instrumento de luta mais temível já não é a dinamite, mas a imaginação. Com a imaginação, é possível arrebentar os planos de controle social, expor o verdadeiro rosto da benévola sociedade de consumo, cutucar e ridicularizar o poder, reivindicando o direito de todo ser humano a gerenciar a própria vida. Um único artigo nos jornais vale milhares de manifestantes pelas ruas. (...) Com eles, o que era uma subcultura tornase, pela primeira vez, contracultura. Sua guerrilha místicoartistica e exemplar, propondo uma doce ideia de gestão da vida cotidiana. (GUARNACCIA, 2010, p.43)

Em 17 de marco de 1967 sai o décimo quinto e ultimo numero do jornal Provo. Em 13 de maio do mesmo ano, os Provos, (...) "cansados de bancar a entidade oficial de provocação" (...) (GUARNACCIA, 2010, p.93), dissolvem-se. Desse modo, estabeleceram o novo modelo de ação que será repetido por muitos grupos contraculturais: o da “morte e transfiguração". Desaparecer para não se tornar previsível e depois reaparecer em outros lugares, sob outras formas possíveis de poética.


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REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor Wiesengrund. Teoria Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982. _____.Teoria da Cultura de Massa. Introdução, Comentários e Seleção de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. _____. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. BOURRIAUD, N. Estética relacional. Tradução de Cecília Beceyro e Sérgio Delgado. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. 9. ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p.51 e 57-58. HOME, S. Assalto à Cultura: utopia subversão guerrilha na (anti)arte do século XX. Trad. de Cris Siqueira, São Paulo, Conrad Editora. 1999. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. _____. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed 34, 2005. ROZSAK, Theodore. A Contracultura. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1969. Revista Provo, os 15 números publicados. 1965/ 1967. Amsterdam. THOMPSON, John. Ideologia e Cultura Moderna: Teoria Social Crítica na Área dos Meios de Comunicação de Massa. Petrópolis: Vozes, 1995. TROMBETA, Gerson Luís. A Racionalidade Artística como Contraponto À Racionalidade Instrumental. Revista Filosofia e Ciências Humanas. Passo Fundo, Ano 11, Nº. 01, Janeiro/Julho de 1995, p. 77-89.


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Aproximações entre livro-poema e site-specific. Priscilla Guimarães Martins (PPGA-UFES)

Resumo Este artigo apresenta uma análise da dimensão espaço-temporal do livro-poema, filiado à tipologia de livros de artistas, de modo a ampliar sua compreensão e destacar a relevância dessas produções no contexto da arte brasileira dos anos 1950 e 1960, em diálogo com as teorias e práticas em ocorrência simultânea no cenário artístico internacional. O empreendimento do livro-poema assume como central diversos preceitos em pauta naquele período, convergindo com o conceito de site-specificity e marcando uma posição intermediária na transição entre o moderno e o contemporâneo na arte produzida no Brasil. Revisá-lo é uma forma de retomar questões ainda pertinentes na contemporaneidade, visto que os livros de artista continuam a representar um segmento expressivo da produção artística atual. Palavras-chave: livro de artista; poesia concreta; site-specific.

Abstract This paper presents an analysis of the space-temporal dimension of the book-poem, affiliated to the artist’s books typology, to broaden their understanding and emphasize the relevance of these productions in the context of Brazilian art from the 1950s and 1960s, in dialogue with the theories and practices in simultaneous occurrence in the international art scene. The book-poem project takes as central many precepts in question at that time, converging with the concept of site-specificity and marking an intermediate position in the transition from the modern to the contemporary in the art produced in Brazil. To review it is a way to recover still relevant issues in contemporary times, as the artist's books continue to represent a significant segment of the current artistic production. Keywords: artist’s book; concrete poetry; site-specific.

As décadas de 1950 e 1960 são emblemáticas na reestruturação do estatuto do objeto de arte, através da revisão de paradigmas modernos como autenticidade, autonomia e exclusividade do objeto artístico, especialmente a partir da problematização de linguagens tradicionais como a pintura e a escultura. A produção nacional estabeleceria um diálogo até


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então sem precedentes com as produções internacionais do mesmo período, destacando-se o protagonismo dos artistas brasileiros no debate crítico frente às produções americanas e européias do mesmo período, quando lá se desdobrava o minimalismo e ganhavam impulso as proposições da arte conceitual. Aqui, ganhavam força os postulados da arte e da poesia concretas, que desembocariam no neoconcretismo e cujos artistas e obras ainda repercutem e geram debates relevantes na contemporaneidade. Nesse contexto, o crítico de arte Guy Brett afirma que “apesar da inadequação do rótulo, deve-se admitir que o Brasil produziu uma forma única de ‘conceitualismo’ – lúdico, político, sensual e intrincadamente relacionado com a poesia visual em seu emprego de palavras”1. Na poesia, a operação mallarmesiana de uso do espaço em branco da página como elemento poético contribuiu para a concepção da poesia e do livro como formas dotadas de plasticidade. Na arte, seria definitivo o gesto duchampiano na emancipação do objeto artístico para além das categorias artísticas clássicas e da noção de arte como campo discursivo. Na corrente dessas revoluções, poetas e artistas estabeleceriam um diálogo bastante íntimo de modo a impulsionarem reciprocamente seus campos de atuação em direção a superação dos arquétipos tradicionais já em exaustão, encerrando formalmente o ciclo do modernismo a partir do segundo pós-guerra. De acordo com o artista Ronaldo Brito, a arte cada vez mais deixava de ser caracterizada por critérios estéticos definidos a priori e os artistas percebiam que o processo de institucionalização da arte, com o qual o modernismo buscava incessantemente romper, tornara-se inevitável, levando-os a teorizar sobre seus próprios trabalhos e a buscar novos modos de circulação e debate para a arte. [...] a produção se especifica, analisa com detalhes cada um de seus momentos, é atravessada por uma série de exigências técnicas que põem em suspenso o próprio conceito de arte como era e ainda é entendido. E aqui a técnica deixa de ser meio expressivo do sujeito. Ao contrário, passa a ser necessidade objetiva de os artistas dominarem uma racionalidade profunda e generalizada para acompanhar as determinações do sistema cultural. Necessidade de investigar o seu campo de atuação no nível da consciência crítica. Numa certa medida, não é mais a arte que permite a História da Arte e sim o inverso - a História da Arte, esta construção a posteriori, infiltra-se na produção e parece mesmo determiná-la.2

1 2

ABERTO fechado: caixa e livro na arte brasileira. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. Catálogo de exposição, p. 33.

BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo: o novo e o outro novo. In: BRITO, Ronaldo; LIMA, Sueli de (Org.). Experiência Crítica. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2005, p. 74-88, p. 80.


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Os anos 1960 são marcados também – com mais expressividade na produção americana, mas com repercussão no Brasil e no mundo – pela emergência da crítica institucional, prática que apareceria no trabalho de diversos artistas preocupados em expor “as estruturas e lógicas dos museus e galerias de arte”3. A artista Andrea Fraser comenta a passagem do entendimento de instituição da arte como lugares ou indivíduos específicos para a de um campo social mais abrangente, “que não inclui só museu ou mesmo só os sites de produção, distribuição e recepção da arte, mas todo o campo da arte como universo social”, ampliando a noção de lugar da arte de forma a: [...] abarcar todos os sites nos quais a arte é apresentada – de museus e galerias a gabinetes corporativos e casas de colecionadores, e até mesmo espaços públicos quando neles há arte instalada. Também inclui os sites de produção da arte, ateliês, assim como escritórios, e os sites de produção do discurso artístico: revistas de arte, catálogos, colunas direcionadas à arte na imprensa popular, simpósios, conferências e aulas.4 Na sequência dos postulados do minimalismo, da crítica institucional e da arte conceitual, emerge o conceito de site-specificity que inicialmente designava a adequação da obra a um espaço físico específico, real e intransponível. Segundo a curadora e pesquisadora Miwon Kwon, o trabalho site-specific “focava no estabelecimento de uma relação inextricável, indivisível entre o trabalho e sua localização, e demandava a presença física do espectador para completar o trabalho”5. No entanto, essa noção seria reformulada também na medida em que se expandiam os limites institucionais da arte para além dos espaços físicos tradicionais como museus e galerias. Desse modo, a concepção de site passaria a abranger também toda a dimensão sociocultural, política e econômica dessas instituições, reafirmando o campo da arte como espaço discursivo e profundamente ideológico. A crítica e historiadora de arte Glória Ferreira destaca a “relevância do lugar de apresentação ou inscrição do trabalho”, a partir dos anos 1960, como “indissociável da linguagem que o constitui”, incluindo os escritos de artistas como “um traço definidor (...) na busca da especificidade de uma situação – espacial, poética, política, etc”6. A confluência

3

FRASER, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. In: Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro: ano 9, vol. 2, n. 13, dez. 2008, p.181. 4

Ibid., p. 182.

5

KWON, Miwon. Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. In: Revista Arte&Ensaios, n. 17. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, dez. 2008, p. 167. FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2. ed., 2012, p. 19.


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dessas tendências reestruturaria a práxis artística, assim como seus objetos, e deflagraria a inserção da palavra (discurso) como parte constitutiva da materialidade da obra, que por sua vez, enfrentava um processo crescente de desmaterialização. Concomitantemente, a busca por novos espaços de circulação e debate da arte acarretou a expansão dos limites institucionais tradicionais, incorporando todos os sites físicos ou discursivos nos quais a arte é produzida e consumida. Nesse contexto, ganham importância publicações independentes que facilitam a veiculação dos escritos de artistas para além das chancelas críticas e editoriais de museus, galerias e grandes veículos de comunicação. O cenário é favorável para o aumento de interesse dos artistas por formatos e mídias que facilitem a veiculação de seus discursos, como cartazes, jornais, revistas, catálogos e livros.

Publicações de artistas Informada pelas vanguardas artísticas históricas, a palavra ganharia dimensão visual, tornando-se material e icônica, sinalizando um movimento crescente de articulação da prática visual com a prática discursiva por parte dos artistas. “A presença do signo verbal no campo visual, observada nas colagens e fotomontagens, adquire, assim, uma nova dimensão, na qual são reatualizadas questões introduzidas por Duchamp”7. O artista assume para si o duplo papel de criador e crítico da obra, ao mesmo tempo em que o texto alcança, em alguns casos, a condição de objeto artístico. De acordo com o artista Ricardo Basbaum é possível identificar uma importante diferenciação no que concerne aos escritos de artistas no momento de transição entre o moderno e o contemporâneo: “o artista moderno adota, basicamente, o manifesto como principal modalidade discursiva – que se soma as obras mas não se confunde com elas”8, já para o artista contemporâneo, “a palavra migra para dentro da obra” 9. É sintomático, portanto, que nos anos 1950 seja formulada a teoria da poesia concreta brasileira e que, na década seguinte, ocorra, ainda nas palavras de Basbaum: A proliferação, a partir dos anos 60, de textos de artistas (textos teóricos, ensaios, proposições, aforismos, depoimentos, etc.), a multiplicação de experiências com meios audiovisuais – gerando o 7

Ibid., p. 10.

8

BASBAUM, Ricardo. Migração das palavras para a imagem. In: Revista Gávea, Rio de Janeiro, n. 13, set. 1995, p. 381.

9

Ibid., p. 382.


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cinema de artista e a videoarte – e a crescente utilização da palavra como parte da materialidade da obra – ora um elemento a mais ao lado de outros estímulos visuais, ora trabalhada em sua espessura material ou contextual10 Ainda sobre a relevância das publicações de artistas no contexto da arte contemporânea, Guy Brett destaca, no catálogo da exposição de sua curadoria Aberto fechado: caixa e livro na arte brasileira em 2012, a “predileção dos artistas brasileiros, durante um longo período que se estendeu desde o final dos anos 1950 até o novo milênio, pelos formatos de ‘caixa’ e de ‘livro’”11 e prossegue: O fenômeno se fundamenta em um fascinante paradoxo. Por que – no momento em que os artistas brasileiros de vanguarda se empenhavam em projetar a arte para fora das galerias e dos museus, para situações da vida cotidiana – eles estavam tão interessados nesses veículos restritos e contidos em sua ligação com a biblioteca e o arquivo? Talvez estivessem atraídos pela própria razão do paradoxo envolvido, pela ironia a ser extraída do abismo entre o vazio calmo e manejável da página ou receptáculo, facilmente ao alcance da mão, e a incontrolável realidade circundante, seja ela o cosmos, a natureza ou a cidade.12 Nota-se, portanto, que paralelamente à tomada de posição do artista contemporâneo em relação ao seu campo de atuação, à redefinição do site do objeto de arte e à valorização do discurso como prática artística, ocorre a incorporação da palavra como materialidade da obra e a valorização do livro como forma de arte. No Brasil, essa corrente influenciaria e seria influenciada por uma forte reformulação no campo da poesia. A poesia concreta do grupo Noigandres13 faria uso da palavra como matéria ao expor poemas em cartazes ao lado de pinturas na I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 195614 (figura 1). Os livros-poemas surgiriam como prática representativa na produção dos poetas/artistas Wlademir Dias-Pino e Ferreira Gullar, além de aparecerem reincidentemente em trabalhos de artistas como Lygia Clark e Lygia Pape. Por ações independentes, a arte postal ganharia repercussão a partir do 10

Ibid., p. 382.

11

ABERTO fechado: caixa e livro na arte brasileira. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. Catálogo de exposição, p. 33, p. 11. 12

Ibid., p. 11.

13

O grupo Noigandres seria formado pelos poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari (responsáveis pela elaboração teórica inicial do movimento) e Ronaldo Azeredo. 14

A exposição aconteceu em dezembro de 1956 no MAM, em São Paulo, e em fevereiro de 1957 no MEC, Rio de Janeiro. Em 2006 foi remontada no MAM-SP em comemoração aos 50 anos da mostra original com o título Concreta ’56: a raiz da forma. Ver: A 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta. In: MENDONÇA, Antônio Sérgio; SÁ, Álvaro de. Poesia de Vanguarda no Brasil: de Oswald de Andrade ao Poema Visual. Rio de Janeiro: Antares, 1983, p.101-109.


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final dos anos 1960, tendo destaque a produção do artista Paulo Bruscky e o desenvolvimento do movimento poema/processo, através do qual artistas e poetas de todo país publicavam e distribuíam textos e poemas em pequenas publicações. Essa intensa movimentação tanto colocaria em questão o livro enquanto veículo legítimo para a poesia, impulsionando alguns poetas/artistas a explorarem novos meios, como, em contrapartida, evidenciaria o livro como parte significante da leitura e não mero suporte sem expressão sígnica. Segundo o poeta e crítico Álvaro de Sá15, seria possível classificar a poesia concreta brasileira em três vertentes: (1) a “simbólico-metafísica”, representada por Ferreira Gullar e que desembocaria no neoconcretismo; (2) a “de rigor estrutural”, integrada pelo grupo Noigandres e seus continuadores, que traria “como segunda reação a poesia práxis”; (3) a “de linguagem matemática, apresentada por Wlademir Dias-Pino, precursora do poema/processo”16. Embora no primeiro momento esses poetas tenham concordado em relação aos princípios definidores da poética que então teorizavam, expondo seus trabalhos em conjunto na mostra de 1956, já se notavam algumas das divergências conceituais e estéticas que, mais tarde, motivariam o rompimento de Dias-Pino e Ferreira Gullar com o grupo Noigandres.

Vertentes da poesia concreta Os poetas concretos destacariam o verbal e o visual como elementos indissociáveis na construção de sentido e buscariam ressignificar a leitura através da exploração simultânea das três dimensões materiais da palavra: verbal, vocal e visual (poesia verbivocovisual), utilizando-se de signos verbais e não-verbais. Para tanto, lançariam mão de recursos linguísticos, fonéticos e gráficos como elementos semânticos internos ao poema e cuja sintaxe relacional e fragmentária pretendia romper com a estrutura imóvel do verso na poesia tradicional. Para além da metáfora, figura essencialmente poética, a palavra seria potencializada pela atomização de seus elementos sonoros e visuais, ampliando as possibilidades de associações e significados. O poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma área linguística específica – ‘verbivocovisual’ – 15 16

SÁ, Álvaro de. Vanguarda: produto de comunicação. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 92.

Em outra versão do mesmo texto, publicada no livro Poesia de Vanguarda no Brasil (MENDONÇA; SÁ, 1983, p. 135), há uma variação na denominação das vertentes descritas por Álvaro de Sá: (1) a “fenomenológica” e (3) a “espacional”. Aqui foi mantida a grafia da primeira versão.


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que participa das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das virtualidades da palavra.17

Figura 1: Tensão, poema de Augusto de Campos, 1956. Já para Dias-Pino, em nada interessaria a oralidade do poema, e radicaliza: “Um poema escrito é antes de tudo visual e não sonoro, ele não é um instrumento musical. A poesia silenciosa, a poesia espacional é contra o herói”18. O poeta adotaria o livro de modo radical e autorreferente, propondo o esvaziamento de conteúdos literários em favor de uma interface informacional para o poema. A partir disso, fundamentaria a distinção entre poema-livro e livro-poema ao defender que, no poema-livro, o suporte estaria subordinado ao poema que, desse modo, poderia ser veiculado através de outros meios — prática reincidente nas produções do grupo Noigandres, mais interessado em resolver a superfície da página (poesia em cartaz). Já o livro-poema não poderia perder as particularidades físicas e (tipo)gráficas do objeto livro para instaurar um processo específico de fruição do poema a partir da exploração simultânea da totalidade do livro. Existe o poema-objeto dos dadaístas. Os nossos, são objetos-poemas. É a diferença entre poema-livro e livro-poema. O Inferno de Dante é um poema-livro. A condição de poesia-poema (um longo poema) é que impôs um todo ao livro, no caso de Dante. Já no livro-poema é a expressão do próprio material usado no livro: a paginação, a página em branco, as permutações de folhas, o ato de virar as páginas, a transparência do papel, o corte, os cantos, etc.19 17

CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Plano-piloto para poesia concreta. In: Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006, p. 215. 18 19

DIAS-PINO, Wlademir. Processo: Linguagem e Comunicação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO. Departamento de Letras (Org.). Wlademir Dias-Pino: a separação entre inscrever e escrever. Cuiabá: Edições do Meio, 1982. Catálogo de exposição.


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Figura 2: A Ave, livro-poema de Wlademir Dias-Pino, 1956.

A partir da formulação do livro-poema, que teria como principais exemplares os livros A Ave (1956) (figura 2) e Solida (1962), Dias-Pino operaria a substituição da palavra por códigos imagéticos formalmente análogos à pintura concreta, ao mesmo tempo em que faria as páginas do livro avançarem sobre o espaço em gesto escultórico, evidenciando a tridimensionalidade do códice e evocando a participação (cri)ativa do leitor. Philadelpho Menezes destaca a influência que Dias-Pino teria sofrido “mais diretamente que os outros fundadores da poesia concreta, dos postulados matemáticos que informam a arte concreta”, de modo que ele optaria “pelo uso das combinações estatísticas, de gráficos matemáticos e estruturas plásticas cambiáveis em substituição ao jogo de palavras”20. Por sua vez, Ferreira Gullar exploraria em sua poesia “o espaço como dado empírico e simbólico”21, de modo que a existência do signo dependeria essencialmente da ação do leitor, que deveria lhe conferir expressividade e significado. Gullar realizaria experimentações com o livro-poema, no entanto, segundo o próprio artista, esses experimentos logo apresentariam “uma concepção bem diferente dos anteriores”, por não exibirem a “estrutura de um livro e sim a de um objeto novo, manuseável”22. Em o formigueiro (1954) (figura 3), Gullar promove a espacialização do poema nas páginas e ao longo de todo o corpo do livro, com palavras “que vão sendo explicitadas por um processo que lembra o dos anúncios luminosos, onde várias 20

MENEZES, Philadelpho. Poética e Visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea. Campinas: Unicamp, 1991, p. 27. 21

Ibid., p. 57.

22

GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 37.


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palavras que ocupam o mesmo lugar no espaço são mostradas uma de cada vez, acendendo e apagando”23.

Figura 3: O formigueiro, poema de Ferreira Gullar, 1954.

Mais adiante, como “consequência natural do livro-poema”24, Gullar realizaria poemas espaciais construídos em madeira, como Lembra (1954) e Pássaro (1954) (figura 4). Em contrapartida plástica ao manifesto neoconcreto (1959) e à teoria do não-objeto (1959), elaboraria o Poema Enterrado (1960), que consistia em uma sala no subsolo da casa do artista Hélio Oiticica, onde havia uma sequência de cubos inseridos dentro de outros cubos cuja manipulação revelaria uma única palavra: “rejuvenesça”. Embora esse trabalho nunca tenha chegado a ser exposto ao público, devido a uma inundação no porão na véspera de sua abertura, ficou o registro do projeto de sua instalação. Em sua concepção, o poema requisitaria a participação corporal do leitor, que deveria penetrar na sala-poema — em oposição à participação estritamente visual (poesia-cartaz) ou manual (livro-poema) como na obra dos demais artistas/poetas concretos. O não-objeto não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente

23

Ibid., p. 75.

24

Ibid., p. 47.


323

perceptível, que se dá à percepção sem deixar resto. Uma pura aparência.25

Figura 4: Pássaro, poema espacial de Ferreira Gullar, 1954.

A experiência plástica de Gullar, embora tenha partido de uma revisão da unidade poesia/livro, logo se estenderia para uma investigação em torno do não-objeto e seria interrompida já no início dos anos 1960 pelo artista, que se dedicaria então à militância política na área da cultura durante todo o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Suas formulações, no entanto, desenhariam a proposta básica do neoconcretismo, que seria levada adiante nas obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark, alcançando grande repercussão internacional e marcando, possivelmente, o início da arte contemporânea no Brasil. Ronaldo Brito afirma que “é um fato histórico que o neoconcretismo foi o último movimento plástico de tendência construtiva no país, e que, inevitavelmente, encerrou um ciclo.”26 Nota-se, portanto, que dentro da vanguarda poética concretista seriam elaboradas diferentes abordagens da poesia visual e da utilização do livro como forma do poema. No entanto, Dias-Pino seria o mais interessado em problematizar o livro sem apartar-se indistintamente do formato códice-referente. Seus livros-poemas extrapolam o postulado verbivocovisual da poesia Noigandres e encontram pontos de contato com a fenomenologia

25 26

Ibid., p. 90.

BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 1999, p. 55.


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resgatada pela proposta neoconcretista, transitando na fronteira entre ambas as vertentes da vanguarda (concreta e neoconcreta). A Ave seria considerada por diversos estudiosos27 como precursora da categoria de livro de artista no Brasil e no mundo, vindo a influenciar diversos artistas a partir do final dos anos 1950 a promoverem experimentações com este formato.

Site-specificity do livro-poema Naturalmente, seria possível buscar antecedentes do livro de artista em práticas tão remotas como os livros manuscritos iluminados do período medieval ou os cadernos de Leonardo Da Vinci que datam do final do século XV. No entanto, o entendimento do livro como linguagem artística se daria especialmente a partir do final da década de 1950, com a ampliação da noção de arte para além das categorias tradicionais e com as experimentações da poesia visual conjugadas às neovanguardas artísticas. Os postulados da poesia concreta, ao fundirem texto e imagem em composições poéticas, abririam caminho para se repensar os meios adequados para veiculação da poesia, evidenciando para alguns artistas a especificidade do livro e, para outros, ampliando as possibilidades de publicação do poema para além dele. Os livros de artista ganhariam espaço principalmente dentro do neoconcretismo e permeariam a produção plástica de diversos artistas nas décadas seguintes, se estendendo até a atualidade como parte expressiva da prática contemporânea brasileira. Embora seja bastante numerosa essa produção, não são equivalentes os estudos e análises realizadas sobre o assunto. É interessante observar, ainda, as particularidades do livro-poema em relação ao livro de artista em geral, sendo aquele antecessor deste, e, nesse sentido, a obra de Dias-Pino merece destaque. Como é exemplar em seu trabalho, o livro-poema assume a isomorfia espaço-temporal do objeto livro como elemento constituinte e inextricável da experimentação e do significado do poema. Forma (livro) e conteúdo (poema) integram a unidade da obra de modo efetivamente indivisível. Tem como característica “a fisicalidade do suporte interpenetrada com o poema, apresentando-se como corpo físico, de tal maneira que o poema somente existe porque existe o livro como objeto”28. Nesse sentido, seu procedimento revela convergências com a noção original de site-specificity, na medida em que é intraduzível para outro meio, 27 28

Dentre eles Augusto de Campos, Álvaro de Sá, Moacy Cirne, Ulises Carrión e Paulo Silveira.

PLAZA, Julio. O livro como forma de arte (Parte I: O livro artístico). In: Revista Arte em São Paulo, n. 6. São Paulo: edição de Luis Paulo Baravelli, abr. 1982.


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sendo concebido desde o início a partir das demandas específicas do site de inscrição da obra (poema) previamente estabelecido – o livro.

Figura 6: Solida, livro-poema de Wlademir Dias-Pino,1962.

Dias-Pino transfere o espaço gráfico da poesia na planaridade da página para a estrutura espaço-temporal do livro como um todo, reestruturando sua condição linguística e caracterizando-o como meio insubstituível à determinadas produções artísticas. Partindo de um fluxo verbal-tipográfico característico da poesia concreta, o poema ganha plasticidade, chegando a abdicar da palavra para substituí-la por outros códigos visuais e ocupar o espaço através de esculturas dobráveis de papel (figura 6). Nesse movimento, Dias-Pino problematiza a palavra ao exibir tanto seu caráter imagético quanto sua convencionalidade, arbitrada pelo código alfabético. O livro é tomado não apenas como suporte de inscrição do poema, mas como espaço de circulação da obra que conjuga em si o discurso do artista. Para além da dimensão material, está em jogo, de maneira intencional e política, toda a problemática do livro como objeto carregado de história e simbolismo: desde a opção por este formato ao aproveitamento de seu volume como matéria dotada de plasticidade, que deflagra modos de manuseio e de


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circulação específicos e que, uma vez inserido no contexto da arte, funciona também como espaço expositivo autônomo. O livro-poema se propõe como site discursivo, não apenas por eleger um meio expositivo alternativo aos tradicionais ou por solicitar a participação ativa do leitor na manipulação/construção da obra. Na revisão do binário livro-poema, está implícito o deslocamento de alguns conceitos-chaves caros aos campos da poesia e da arte e que derivam de um posicionamento ideológico latente. É central a oposição estabelecida por Dias-Pino entre os termos poesia e poema, no sentido de que a poesia estaria encadeada à língua e, dessa forma, restrita ao domínio do código alfabético — “O alfabeto é o instrumento mais cruel de dominação que o homem já criou”29. Já o poema consistiria em um problema de linguagem e, portanto, autônomo. Seguindo essa mesma lógica, emerge a oposição entre comunicação e informação, de modo que a comunicação pressuporia a arbitrariedade de um código comum (alfabeto) entre todos os indivíduos para que se efetivasse e, por isso, tornaria-se necessariamente excludente. Já a informação prescindiria de códigos pré-existentes, devido à sua natureza didática, e incitaria a participação crítica do receptor, em consonância com a disciplina artística. Somam-se aos livros de artista, as publicações artísticas veiculadas através de catálogos e revistas que se multiplicaram nas ultimas décadas, facilitadas pelas novas tecnologias de edição e reprodução gráficas, assim como as publicações online. Amplia-se, com isso, o campo discursivo da arte para além dos espaços institucionais tradicionais, integrando-a ao cotidiano de um número crescente de pessoas. Os artistas mais interessados em trabalhar com questões que tangenciam e expandem esses limites críticos tendem a incorporar conceitos e ideias como matéria de suas obras, de tal modo que se mesclam a elas e tiram partido do formato no qual se apresentam, convertendo as mídias utilizadas em espaços de exibição e participação do expectador/leitor com a obra. Nesse sentido, o livro se mostra como site propício à experimentação e tem espaço cativo na criação plástica de inúmeros artistas, parecendo não se esgotarem as possibilidades de repensá-lo e apresentá-lo como objeto único e aberto a novas proposições.

29

DIAS-PINO, Wlademir. Carta aberta. In: Revista Dasartes, ano 1, n. 5, 2009.


327

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329

Tragédia na arte: uma proposta de arte postal. Adriana Tiago Lopes (PPGA-UFES)

RESUMO: Este trabalho é um relato de experiência de um projeto pedagógico realizado na escola estadual Coronel Gomes de Oliveira, situada no município de Anchieta/ES. O projeto tinha por objetivo proporcionar aos alunos do Ensino Médio uma maior valorização da disciplina de arte, tendo como experiência a Arte Contemporânea. Decidimos fazer uso da arte postal e a fim de ampliar as possíveis discussões e o leque de possibilidades de produção, o tema escolhido foi tragédia.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Arte, Proposta Triangular, Arte Contemporânea, Arte Postal, Tragédia.

ABSTRACT: This work is an experience report of an educational project carried out in the state school Colonel Gomes de Oliveira, in the municipality of Anchieta / ES. The project aimed to provide high school students a greater appreciation of the art of discipline, with the experience contemporary art. We decided to make use of the mail art and to expand the possible discussions and the range of production possibilities, the theme was tragedy

KEYWORDS: Art Education, Triangular proposal, Contemporary Art, Mail Art, Tragedy

1.

Introdução Este trabalho é um relato de experiência referente a um projeto desenvolvido durante o

segundo semestre de 2014, com as turmas de Ensino Médio da Escola Estadual “Coronel Gomes de Oliveira”, localizada no município de Anchieta/ES. Vale ressaltar que também foram realizadas entrevistas com os envolvidos, antes e depois dos trabalhos, a fim de avaliarmos se os resultados propostos foram alcançados.


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Fizemos uso de entrevista não estruturada por acreditarmos que esta possibilita uma coleta mais espontânea, fornecendo importantes contribuições. O assunto escolhido para a realização do projeto foi Tragédia e Comédia. Primeiro, por se tratar de um tema presente basicamente nos cotidianos das pessoas, principalmente, por meio de jornais, revistas, filmes, livros, etc. Segundo, porque o objetivo principal do projeto era a valorização da disciplina de artes na escola, portanto fazia-se necessário a abordagem de um assunto de fácil acesso dos educandos. Neste relato escolhemos inserir apenas os trabalhos que contemplaram a Tragédia como tema, apesar do projeto ter abarcado também a comédia. Para que fique claro, a comédia foi trabalhada de forma mais teatral, com apresentações dos próprios alunos, num grande evento que culminou com a finalização dos trabalhos. Já a tragédia, ficou por conta de outras linguagens artísticas, com diversas atividades que tiveram como preocupação inserir a arte contemporânea no cotidiano dos envolvidos – trabalhar com arte contemporânea foi uma escolha que se deu a partir das entrevistas realizadas antes do início do projeto. Diagnosticamos que os alunos não haviam estudado conteúdos referente a história da arte contemporânea. A idéia de trabalhar o tema tragédia com arte postal surgiu juntamente com o desejo de proporcionar aos alunos muito mais do que o conhecimento teórico sobre o assunto. Era necessário oportunizar a experiência de uma produção de arte contemporânea, possibilitando a interação entre os colegas de sala e da escola como um todo. Outro fator importante foi o baixo custo financeiro que essa experiência requeria, afinal, estávamos numa escola pública, cuja clientela possui os mais variados perfis. O tema também é importante por permitir o trabalho com a metodologia Triangular de Ana Mae Barbosa, auxiliando-os na aquisição de uma educação estética bem estruturada e enriquecimento cultural. Essa metodologia propõe que os conteúdos da disciplina de artes sejam ministrados sob três aspectos: contextualização histórica, apreciação estética e fazer artístico. Começamos pela apresentação da idéia aos alunos e uma pequena explanação sobre o que seria desenvolvido com eles. Depois optamos por mostrar algumas obras de arte postal, dos mais variados artistas, o que permitiu sintetizar de forma clara o contexto histórico e o desenrolar dessa prática, fomos esclarecendo as dúvidas durante as aulas expositivas e permitimos um contato com o conteúdo através de slides projetados por um aparelho data-


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show e o uso da internet com os celulares dos próprios alunos. Desenvolvemos um trabalho de construção do conhecimento que pudesse servir de base para a produção final feita por eles. Depois de termos esclarecido de maneira satisfatória, não havendo dúvidas, partimos para a construção dos envelopes – que deveriam transmitir a visão pessoal do aluno sobre as mais variadas formas de tragédias, fossem elas cotidianas, literárias, pessoais, etc. Esperamos que este trabalho possa levar a uma reflexão sobre a situação atual do ensino de Arte e que ele possa contribuir para sua melhora, incorporando novas idéias e práticas ao cotidiano escolar.

2.

O lugar da Arte na escola. Quando cheguei à escola Coronel Gomes de Oliveira, no segundo semestre de 2013,

percebi que a disciplina de artes era tratada como um componente curricular inferior, por parte dos alunos. Eles cumpriam as atividades apenas para ganharem nota e não por entenderem o quão importante a arte é para a formação deles enquanto sujeitos. Outro problema diagnosticado era a deficiência de conhecimento acerca das produções artísticas da contemporaneidade. Realizamos entrevistas com os alunos a fim de diagnosticar o que já sabiam e o que ainda deveriam aprender. Eles possuíam conhecimentos sobre a história da arte antiga e medieval, mas quase não sabiam sobre arte moderna e contemporânea, resultado que se mostrou como um grande desafio pedagógico. Nos anos de 1960, as obras de arte ainda eram percebidas sob o ponto de vista de duas amplas categorias: pintura e escultura. Desafiar esse duopólio foi tarefa das colagens cubistas, performances futuristas, eventos dadaístas e, sobretudo, a fotografia. Entretanto, ainda persistia a noção de que a arte compreende os produtos do esforço criativo humano, chamados pintura e escultura. (ARCHER, 2001, p.1) Depois de 1960, surgiu uma grande incerteza acerca desse sistema de classificação, que já não era mais satisfatório. Sem dúvida muitos artistas ainda pintam e outros “ainda fazem aquilo que a tradição se referia como escultura, mas essas práticas agora ocorrem num espectro muito mais amplo de atividades”. (ARCHER, 2001, p. 1) Percebemos que os alunos envolvidos no projeto ainda possuíam uma visão totalmente condizente com esse duopólio (pintura – escultura). Os envolvidos acreditavam que a arte limitava-se a quadros expostos em paredes:


332 Arte é um quadro bonito que a gente coloca na parede da nossa casa para enfeitar, decorar. Eu gosto daqueles quadros de cavalo, sabe? Aqueles cavalos correndo, eu acho tão bonito! Eu queria aprender a pintar esses quadros. (Luana Teles. Entrevistada em: 28 set. 2014)

Percebemos pelo depoimento acima, que a aluna definiu a arte como pintura. Essa visão limitada deve-se ao pouco conhecimento acerca da grande variedade de linguagens que a arte contemporânea abarca. Artista pra mim é um pintor de quadros. O cara tem que ser muito fera pra pintar, é muito difícil! Como que eles conseguem usar aquelas cores todas? E tem quadro que parece foto, você já viu? (risos) (Alana Boldrini. Entrevistada em: 28 set. 2014)

Mais uma vez, pelas palavras da aluna, percebemos que a pintura permanece sendo um grande exemplo, senão o único, de arte na vivência desses alunos. Seria preciso propor uma atividade diferenciada, a fim de desconstruir esse pensamento.

3. Arte Postal A arte postal também é conhecida como Arte Correio (Mail Art), Arte por Correspondência ou Arte a Domicílio. É um movimento onde os artistas substituem as galerias e os museus por envelopes/ telegramas/ postais/ cartas/ selos/ faxes etc. Que são seus suportes. Os materiais utilizados para a confecção de arte postal são os mais variados como: carimbos, colagens, idéias, textos visuais, propostas, Xerox, poesia sonora, desenhos, etc. Depois de pronto, o trabalho é enviado para outro artista, via correios e, depois de passar pelas mãos de diversas pessoas, retorna ao transmissor, tornando-se como uma espécie de trabalho Bumerangue. (BRUSCKY, 2006, p 375) A história da arte postal no Brasil está ligada a uma época em que a comunicação, apesar da multiplicação dos meios, tornou-se difícil. Era a época da Ditadura Militar e a arte postal foi considerada uma nova forma de expressão dos artistas. Mas seu início foi conturbado e difícil. A “I Exposição Internacional de Arte Correio” no Brasil foi realizada no Recife, em 1975, organizada por Paulo Bruscky e Ypiranga Filho. Existiram dificuldades com a censura que fechou, minutos após a inauguração, a “II Exposição Internacional de Arte Correio” realizada no dia 27 de agosto de 1976, no hall do edifício sede dos Correios do Recife (Brasil). Os


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artistas Paulo Bruscky e Daniel Santiago foram presos e os trabalhos recolhido, levados para a Polícia Federal. Outros países da América Latina praticaram os mesmos atos contra artistascorreio, que foram presos e tiveram seus trabalhos confiscados. (BRUSCKY, 2006, p 376) O início dessa prática no mundo ainda é motivo de discussão, pois há que se levar em conta uma série de produções que podem sim ter contribuído para tornar a idéia concreta, tais como: Os trabalhos de DUCHAMP, as experiências dos futuristas e dadaístas, os cartões postais dos radioamadores (QSL), o telegrama de Rauschmberg, folon, as cartas desenhadas de Van Gogh paea seu irmão Theo, os poemas postais de Vicente do Rego Monteiro, datados de 1956, de Apollinaire com seus cartões-postais com caligramas e de Mallarmé (que escreveu em envelopes os endereços dos destinatários em quadras poéticas que contavam com a boa vontade dos empregados dos Correios para decifrar seus enigmas poéticos), a Mail art surgiu na década de 1960 (através do grupo Fluxus e só veio a tomar impulso a partir de 1970). (BRUSCKY, 2006, p 377)

Esclarecida toda a história da Arte Postal, iniciamos com a apreciação de algumas imagens de obras de vários artistas, a fim de que os alunos pudessem compreender na prática como eles deveriam criar seus trabalhos. Para complementar as orientações, fez-se necessário explicar a origem do gênero Tragédia, na Grécia Antiga. Para isso utilizamos uma aula expositiva e tivemos contato com alguns autores gregos como: Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. As histórias foram apresentadas de forma resumida por conta do tempo limitado, contávamos com apenas uma aula por semana em cada turma. A proposta é que os alunos dessem conta de produzir arte postal que expressasse suas idéias particulares de tragédias, levando em consideração suas vivências pessoais. E os resultados foram os mais variados. Os resultados foram surpreendentes. Eles empregaram diferentes definições de tragédia, demonstradas nas obras: distúrbios alimentares como Bulimia e Anorexia, a agitação política que paira sobre nosso país, o Nazismo, as Guerras, Falta de liberdade religiosa, pobreza, consumismo exagerado, preconceitos, etc. Conforme podemos perceber na figura 1. Todos os alunos participaram da proposta e a grande maioria se entusiasmou com a prática. Tivemos um número aproximado de 300 obras de arte postal no turno Matutino, o único envolvido no projeto. E foi possível perceber que o envolvimento deles não se deu por conta da nota, mas porque a proposta despertou um interesse real.


334

Figura 1: Envelope com Arte Postal. Foto da autora. Produzida em 29. Set. 2014. Fonte: Acervo pessoal

Para a troca dos postais não pudemos recorrer aos Correios, sobretudo por conta da origem dos alunos do turno Matutino. A grande maioria mora na zona rural do município de Anchieta, e obrigá-los a se deslocar para a cidade, a fim de postar os envelopes pelo correio, seria dispendioso. Então, resolvemos esse problema trocando os envelopes de forma aleatória. É importante pedir que os alunos os identifiquem para que possam recebê-los ao final de todo o processo, e para que fique caracterizado o conceito de trabalho bumerangue, já descrito acima. A troca dos postais seguiu uma espécie de rodízio entre as salas, de forma que as contribuições pudessem ocorrer de forma mais livre. É importante ressaltar que os alunos só puderam identificar os colaboradores depois da exposição, quando conversaram entre si – normalmente os artistas postais já sabem de antemão a quem enviarão seus trabalhos, entretanto, aqui na escola, tivemos de adaptá-lo à realidade encontrada. Ao final, fizemos uma exposição com os trabalhos a fim de que todos pudessem apreciar as obras coletivas e identificar suas contribuições nas obras dos colegas e as recebidas nas suas, conforme pode ser observado na figura 2.


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Figura 2: Mural de Arte Postal. Foto da autora. Produzida em 29. Set. 2014. Fonte: Acervo pessoal

4. Resultados alcançados Consideramos que o projeto atingiu seu objetivo quando das entrevistas realizadas após a finalização dos trabalhos. O pensamento inicial dos alunos foi modificado com a prática de arte postal. Eu achei muito legal essa atividade! Fiquei surpresa quando recebi meu envelope de volta. Tudo tava diferente! Fizeram coisas que eu nem tinha pensado em fazer. Eu gostei do resultado! Fico imaginando quem escreveu cada frase, cada desenho. Foi muito legal! (Alexia Andrade. Entrevistada em: 28 set. 2014)

Sobre o duopólio pintura/escultura acreditamos que também foi quebrado, pois a grande maioria dos alunos percebeu que a arte contemporânea possui muitas práticas, que ela é democrática, que os artistas hoje podem utilizar os mais diferentes materiais e deixar a criatividade fluir. Eu achava que artes era só quadro. Aquelas esculturas bonitas do Davi que a gente vê nos livros. Mas essa atividade me fez perceber que hoje a arte pode ser tudo. Basta você ter uma idéia criativa e colocar em prática. Eu nunca imaginava que um envelope podia ser uma obra de arte (risos). Mas eu gostei sim, isso faz eu me sentir artista sabe, claro que eu não ganhei dinheiro nenhum com isso, ganhei foi a nota pra passar de ano (risos). Mas eu gostei de saber que eu tenho essa possibilidade, se eu quiser ser artista eu posso ser. Porque antes eu achava que não podia porque eu não sei pintar, mas eu agora sei que se eu quiser eu posso ser. (Leandro Oliveira. Entrevistado em: 28 set. 2014)


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Um dos resultados mais interessantes obtidos com esse projeto é o fato dos envolvidos terem percebido que a arte contemporânea está bem perto de nós, que há inúmeras possibilidades de criação e uma grande variedade de materiais a serem explorados e que a arte não pode ser limitada a apenas duas linguagens. Outro ponto interessante, que vale ser ressaltado, é a mudança da postura dos discentes em relação à disciplina de Artes. Eles foram capazes de perceber o quanto a arte pode contribuir para seu enriquecimento cultural e formação acadêmica. Não são raras sugestões para a realização de trabalhos que contemples seus fazeres artísticos. Percebemos, a partir daí, que a disciplina passou a ser valorizada enquanto componente curricular importante.

5. Metodologia Ensinar o aluno do Ensino Médio sobre os períodos históricos e movimentos artísticos contemporâneos é muito importante, mas não foi o objetivo principal dessa atividade, essas informações, serviram para enriquecer e dar maior bagagem e qualidade ao nosso trabalho. O desenvolvimento da composição do aluno foi baseado nas obras apresentadas, ou seja, houve interferência do material sugerido com desenhos e idéias Foi interessante desenvolver essa atividade em grupo, permitindo a integração e interação entre o grupo e também com a arte Contemporânea. A metodologia que norteou nosso trabalho foi a Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa pautada em três aspectos: Apreciação estética, contextualização histórica e fazer artístico. Seguimos esses passos durante todo o desenrolar de nossa proposta. As obras foram projetadas por um aparelho do tipo data-show, em primeiro momento, e em seguida a contextualização foi feita. Posteriormente, após a apreciação visual de todos os alunos, partimos para a prática. Essa escolha se deu pela simplicidade da temática e pela aproximação com o cotidiano deles. Vejamos a aplicação do projeto passo a passo: 1° passo = Contextualizar a prática da Arte Postal no Brasil e no Mundo. Para esta aula utilizamos o data-show da escola, que projetou algumas obras pontuais para complementar essa contextualização 2° passo = Apreciamos obras de artistas variados; discutimos com os alunos sobre as cores, os sentimentos e as mensagens expressas nas obras – Apreciação Estética.


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3° passo = Discutimos a origem da Tragédia na Grécia antiga e proporcionamos o contato com histórias clássicas escritas por autores como Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Para isso, dividimos a turma em grupos e cada um apresentou uma história resumida. 4° Passo = Partimos para as confecções dos trabalhos que tiveram como eixo norteador a tragédia. Foi pedido que os alunos expressassem suas visões pessoais sobre as tragédias do mundo. 5º Passo = Foi necessário organizar as trocas dos trabalhos, como numa espécie de rodízio, com três rodadas (cada trabalho passou pelas mãos de três alunos diferentes, antes de voltar para as mãos do aluno/remetente). 6º Passo = Criamos uma exposição na escola para a apreciação de todos – culminância do projeto.

6. Conclusão Com a realização deste projeto tivemos mais uma demonstração de que a produção de conhecimentos como atividade docente não significa que o professor realize a soma das atividades de ensino e fazer artístico, mas possibilita pensar o ensino como processo permanente de investigação e de descobertas individuais e coletivas. Os alunos puderam construir um material que permitiu o desenvolvimento da criatividade, a relação com fatos do cotidiano (como quando desenharam sobre bulimia, política), ou seja, se tornaram sujeitos na busca pelo conhecimento e pela expressividade artística. Essa experiência possibilitou uma reflexão a respeito das práticas do ensino de Arte no cotidiano, demonstrando que muitas vezes o professor contempla certos conteúdos em detrimento de outros. Dessa forma, a construção do conhecimento e da criatividade se dá de forma limitada. Para que este processo seja efetivo é necessário que o aluno incorpore conhecimentos variados, de forma ativa, compreensiva e construtiva. É necessário que o aluno tenha liberdade de criar, de se expressar e que receba atenção após suas criações. Esta atividade com arte postal não foi apenas um passa-tempo, foi muito mais do que isso. Significou a realidade do aluno, a expressividade de seu mundo. Essa experiência demonstrou que o professor deve ser aquele que valoriza as produções de seus alunos, não importando sua faixa etária. Também é preciso que ele (o aluno) seja estimulado e que as aulas tenham um caráter democrático, permitindo a expressividade e esclarecendo as


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curiosidades dos alunos. A metodologia Triangular de Ana Mae Barbosa é a melhor escolha para alcançar esse conhecimento significativo, essa liberdade criativa. Além disso, destacamos que o trabalho com projetos deve ser uma prática no cotidiano escolar. Existem várias formas de explorar essa forma de trabalho e muitas são as gratificações. Esse tipo de trabalho também rompe com a idéia de escola e ensino como meros reprodutores de saberes, idéias e valores produzidos em outras esferas. A pedagogia de projetos possibilita pensar o saber como algo que está sempre em construção, que tem relações com o presente, sem descartar as teorias e conhecimentos produzidos. O professor valoriza e articula o trabalho pedagógico com os múltiplos saberes produzidos e reconcilia ação e conhecimento. Assim, o aluno deixa de ser um sujeito passivo e passa a atuar diretamente na construção do conhecimento; pois os projetos implicam a busca, o contato com materiais diversos, democratizando o acesso a arte. O projeto de Arte propicia a educação para a cidadania. Dessa forma podemos nos livrar da lógica e especulação do mercado e dos produtores de materiais didáticos descartáveis. Através dele podemos despertar o desejo, o gosto, a imaginação e a curiosidade pelo desenvolvimento do saber artístico.


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Referências ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BRUSCKY, Paulo. Arte Correio e a grande rede: hoje, a arte é este comunicado. In: COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória (ORGS) Escritos de Artistas. Anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006 COLA, César Pereira.Prática de Ensino I. Vitória: UFES, Núcleo de Educação Aberta e a Distância, 2011.


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Litografia com nanquim: novas possibilidades sobre a pedra calcária litográfica. Thiago Arruda (PPGA-UFES)

Resumo: O estudo apresentado faz parte de uma investigação sobre técnicas e materiais que desenvolvo como parte do programa de estudos do laboratório de gravura na Universidade Federal do Espírito Santo, mais especificamente na área de concentração de litografia. O estudo converge para uma investigação que consiste em analisar alternativas e a viabilidade para a prática e o ensino da litografia, em consonância com o estudo e esforços voltados para a gravura de baixa-toxicidade.

Palavra chave: litografia, gravura, atóxica, nanquim, pedra calcária.

Lithography China ink: new possibilities of limestone lithographic

Abstract: The present study is part of an investigation into techniques and materials that develop as part of the engraving laboratory studies program at the Federal University of Espirito Santo, specifically in lithography concentration area. The study converges to an investigation that consists in analyzing alternatives and the viability for the practice and teaching of lithography, in line with the researches and focused efforts on to the engravings of low toxicity.

Keywords: lithography, etching, atoxic, China ink, limestone.

Esse relato parte da investigação que desenvolvo na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), no Centro de Artes mais especificamente no laboratório de litografia desde


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meados do ano de 2013. O espaço dedicado exclusivamente para pesquisa e produção da litografia, aproxima um dialogo entre a pesquisa acadêmica e a produção, investigação e poética pessoal. Nesse ambiente busquei por intermédio de pesquisa e experimentação, dirigindo a atenção do estudo, para as práticas que tangem a gravura atóxica ou de baixa toxicidade. Ao mesmo tempo, buscava uma forma que proporcionasse de forma ampla, uma prática mais acessível para trabalhar o desenho na litografia, para tanto investigando a viabilidade de materiais alternativos para sua prática. A exemplo do cenário local que carece de um mercado próprio e especializado não só para as artes gráficas mas para praticamente todas as micro esferas das artes plásticas. Especialmente podemos citar o caso da litografia, aonde encontramos uma serie de dificuldade e precariedade no mercado nacional em disponibilizar todo tipo de produtos apropriados para sua prática. Ainda, a investigação objetivou construir uma alternativa que pudesse contribuir para o ensino da disciplina, assim como fortalecer a ações e presença dos grupos de pesquisa que coexiste naquele ambiente ao tempo que fomenta novas possibilidades, o interesse pelo estudo e pesquisa artística aliada a prática e acesso dentro da Universidade. A pesquisa apresentada surge por intermédio da ação de dois grupos distintos que atuam dentro do Departamento de Artes do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, o LABGRAV e o Grupo Célula de Gravura. Os grupos compartilham de um dialogo muito próximo assim como de membros envolvidos. Contudo, possuem suas nuanças. O LABGRAV é um grupo coordenado pelo professor Fernando Gomez, um dos professores que ligado às artes gráficas dentro do Departamento, o grupo consistes em alunos de graduação, pós-graduação, ex-alunos e pessoas interessadas na vivencia dos processos artístico de reprodutibilidade. O grupo coordenado pelo professor pesquisa as diferentes áreas da gravura, desde materiais a pesquisa imagética individual, do mesmo modo, com interesse especial pelos processos alternativos e de baixa toxicidade. Com bons resultados, o LABGRAV conta com temas de monografias voltados a essas pesquisas bem como comporta publicações e exposições nacionais e internacionais diversas. Já o Grupo Célula de Gravura, é um grupo formado no final do ano de 2012, por ocasião de um curso de especialização ministrado pelo artista plástico Edgar Fonseca. O grupo converge para estudantes de graduação, pós-graduação e ex-alunos, contudo o Célula de Gravura não integra um projeto oficializado na Universidade e tem sua pesquisa voltado exclusivamente para a prática e pesquisa da litografia, o Grupo tem como orientadora ‘eleita’ a professora da disciplina Nelma Pezzin. O Célula de Gravura em seu pouco tempo de


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atividade já participou consecutivamente dos principais eventos das artes gráficas do Brasil, o SP Estampa, assim como de exposições locais e internacionais. Esse estudo parte do cenário acima descrito como fontes, como membro de ambos os grupos entendo a contribuição integral das duas frentes na construção dessa pesquisa. O ateliê de litografia é o único espaço no Estado do Espírito Santo que oferece condições, bem como maquinário e instrumentos voltados para a produção litográfica, utilizando a pedra calcária. Cada membro do Grupo Célula de Gravura inclina sua pesquisa imagética pessoal, aliado a pesquisa e observação dos processos gerados pela litografia. O domínio da técnica incorpora um desafio vivenciado durante a produção de cada imagem, o aprendizado individual soma-se a uma rede de troca de informações, tão valiosa ao gravurista. O objetivo do grupo foca-se em, manter o ateliê de litografia produzindo e gerando novos artistas gráficos, proporcionar uma imersão na litografia a fim de gerar uma produção de qualidade e excelência, fazendo desse ateliê uma referencia nacional. Ao tempo de oferecer a comunidade acadêmica, por meios das pesquisas realizadas nesse espaço, novas possibilidades de produção dentro do ateliê, bem como técnicas alternativas que colaborem no ensino formal e informal na arte educação. Em um breve panorama histórico da litografia: A litografia surgiu em 1796, em Munique, pelo checo Alois Senefelder, o processo sem duvida revolucionou a sociedade da época, bem como as artes gráficas. Caracterizava-se por uma tecnologia mais rápida, barata e mais eficiente do que as outras técnicas gráficas que haviam se desenvolvido até então. A litografia origina toda a imprensa moderna do século XX. A invenção abriu novos caminhos para a produção artística como significa também um enorme passo na evolução da impressão de caráter comercial. O processo se define basicamente, por uma reação química, baseia-se na repulsa recíproca da gordura e da água, sobre a superfície da pedra calcária preparada que, posteriormente é desenha-se com instrumentos como tuche, lápis e crayons litográficos todos tem em sua composição a gordura como principio ativo. Observamos ainda que, desde o desenvolvimento da técnica ao primeiro tratado publicado pelo próprio Senefelder em 1818 que em resumo consiste em: As pedras planas eram desenhadas ou escritas com uma tinta pastosa composta por cera, sabão e negro de fumo, após o que as gravava com uma solução nítrica, responsável por “queimar”, leia-se fixar, a gordura que se configura como sendo a imagem desenhada, na pedra calcária; o ácido não atacava as partes escritas, que estavam


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protegidas pela tinta, mas somente as zonas a descoberto; e; deste modo obtinha um ligeiro alto relevo, que entintava com um rolo de borracha maciço e de grande dureza, procurando não sujar as zonas não impressoras, após o que procedia à impressão. Desde então o processo litográfico mantem seus mesmos atributos básicos, do processo de gravação a reprodução da imagem final. Atentamos ainda que, ao fixamos uma linha cronológica da litografia às novas tecnologias, a exemplo das novas tecnologias que surgiram a parti do processo litográfico encontraremos propostas desenvolvidas pelo próprio Senefelder, que progrediu em diferentes suportes como chapas metálicas, a exemplo do offset. A litografia contemporânea já parte para suportes como a folha de polímeros, além de métodos alternativos que vem sendo desenvolvidos e de baixo curso com a litografia de cozinha. Miramos assim, um desdobramento desse cosmo mutável, porém, que permanecer fundamentados nas especificardes e singularidades de sua gênese. No cenário da Arte Contemporâneo, a gravura destaca-se como uma forma de arte multifacetada, na qual coexiste uma série de tecnologias antigas e novas, que se complementam e que paralelamente, a revisitação ou resgate de técnicas já ultrapassadas da gravura1, constroem novos diálogos. Essa alternância, as micronarrativas entre passado e presente, é capaz de produzir novas formas e possibilidades dentro de um universo singular, numa época de reprodução em série, a gravura resiste como processo artístico em meio a novas mídias de reprodução, porém, como uma ação controlada e poética. Para melhor entender a investigação exposta aqui, precisamos apurar como, de um modo bem simples, se estabelece o processo litográfico: a litografia entendida como uma plano gravura2, que utiliza a pedra calcária litográfica3 como matriz, que processa as narrativas até a geração dos múltiplos, na qual , através de um processo físico-químicos são instigados propriedades de atração e repulsão entre nesse esquema entre dois elementos: a água e a gordura. Vale a pena citar que, o processo litográfico contemporâneo converge para novos materiais, entretanto, não negando o emprego das pedras calcárias, a exemplo dessa pesquisa, a litografia contemporânea atóxica posiciona-se para a utilização da folha de polímero pré-emulsionada confeccionadas através do processo industrial, como matriz.

1

Alvarez, Fernando Gómez. Gravura: uma introdução. Vitória: NEAD/UFES, 2011. Pág. 13.

2

COSTELLA, Antônio. Introdução à gravura e à sua história. São Paulo: ed. Mantiqueira; 1984. Pág. 91.

3

Também conhecidas como pedra calcária, pedra litográfica, pedra calcária litográfica, pedra calcária Baviera.


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Embora acolhamos esses novos meios, atentamos para o fato que, no Brasil não temos no mercado nacional nenhuma empresa especializada para venda desse material, nos distanciando desse modo dessas novas tendências e produtos, o que vem a afirmar mais a importância desse tipo de pesquisa iniciada dentro de espaços académicos, que voltam para a comunidade estudantil. Assim, nesse sistema plural que desenvolvi minha pesquisa, intercambiando materiais e técnicas, partindo de uma necessidade poética inicial, e do mesmo modo, desenvolvendo alternativas e adaptabilidades, tão precioso aos gravuristas, foi encontrado potencialidades para um novo processo de gravação da imagem na pedra calcária litográfica. Na pesquisa desenvolvida empregamos um tipo especifico de tinta nanquim4, disponível para venda no mercado nacional, e de acesso relativamente fácil. O beneficiamento desse material para a gravura consiste na sua composição química, esse possui uma resina acrílica, atóxica, que, originalmente foi desenvolvido para se fixa a folha de poliéster. Remanejando a natureza dos seus meios, de forma á potencializar a resina acrílica empregada nesse material, tornando-o mais consistente. Posteriormente esse foi submetido a testes consecutivos, empregando sobre a pedra calcária litográfica, devidamente preparada, tal como procede, encaramos um processo laborioso aonde obtivemos um resultado positivo: a imagem e sua constituição genética de linhas, hachuras, pontos e mancha consegui ser gravada na pedra. Para validar o processo de gravação da imagem optamos por duas frentes de fixagem5 o primeiro que vamos classificar como direto, aonde consideramos o processo de gravação projetando o nanquim como sendo material gorduroso, típico da litografia e o processo indireto no qual a imagem é construída com alguma substância não gordurosa, a exemplo da técnica de transferência, aonde é necessário o processo de viragem 6. Foi observado que em ambos os casos o nanquim emulsionado funcionou perfeitamente. Tecnicamente a imagem obteve um grau de acabamento exemplar, se comportando melhor do que o esperado. Ainda observamos uma vantagem, ante os meios tradicionais: A gravação com nanquim não é preciso, mas recomendável, a utilização do pó de breu que é

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Nesse estudo foi utilizada a tinta Nankin profissional, modelo TNF – 20, da marca Trident.

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O termo fixagem é usado na litografia para designar o processo de gravação química da imagem na matriz, no caso a pedra calcaria. No processo utilizamos goma arábica na proporção 75% para 25% de goma e água e ácido nítrico(PA) na proporção aritmética de 2 à 6 gotas para 15 ml. 6

Viragem, nome técnico que é utilizado para descrever o processo que substituí por meio de uma pré-aplicação de solução de ácido nítrico e goma arábica, o material inerte(toner ou no caso nanquim) por material gorduroso.


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uma substancia (resina) que fica inerte no ar e é extremamente toxica, bem como do talco industrial, que pode causar irritação nas vias aéreas superiores. No que tange o processo de reprodução da imagem final, gravada, concluímos que atende a todas as expectativas, somente a técnica da aguada que se mostrou um pouco indócil. O processo usando nanquim possibilita o emprego de diferentes ferramentas como bico de pena de forma bem fluida, pulverização, pincelada, pontilhismo, texturas, etc. Do mesmo modo, consideramos que esteticamente as linhas possuem um preto profundo e de diferentes calibres, que seria muito difícil de obter um resultado semelhante no processo utilizando os materiais com base gordurosa. Em ressalva aos resultados apresentados, indicamos que o processo de viragem seja feito com cautela utilizando, inicialmente, um solvente mais forte7. Já o processo de gravação, eventualmente mexer o nanquim para que sua emulsão não seja sedimentada no fundo do recipiente, também é salutar trabalhar com uma folhar de papel e um pequeno copo com água para prevenir eventuais entupimentos do pico de pena no processo de produção da imagem. A viragem deve ser feita com um intervalo de tempo mínimo de 4 horas, apenar da composição consistente do nanquim, o contato com a goma arábica, que garante a fixação, devido a sua característica líquida pode ativar o nanquim é dificultar o processo de viragem. Ainda vale se atentar que essas recomendações têm suas variantes, desde o tipo de composição da pedra calcária (entre sua proporção de calcário e ferro) bem como clima, e tack da tinta, ente outros. Dentre os meios utilizados, a investigação entende que a litografia com nanquim proporciona, como possibilidade expressiva e poética, um desenho mais firme e encorpado. Diferentemente do tuche a litografia com nanquim é capaz de produzir linhas de um negro intenso e consistente. Sobre a técnica de raspagem o produto responde muito bem, não oferecendo nenhum tipo de entreva. A etapa de impressão não apresentou nenhum entrave, em verdade foi visto que a litografia com nanquim se administra mais facilmente o processo de impressão, as primeiras tentativas que normalmente são consideradas testes, foram impressas diretamente como provas de impressão, o resultado notoriamente, se apresenta como imagem pronta para a impressão da série. A espessura da pedra deve ser de pelo menos 5 centímetros, para evitar rachaduras. O papel(ou outro material) é colocado sobre a pedra, de maneira alinhada. Usa-se

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Sugerimos usar o Thinner inicialmente em seguida a água rás, mas previnamos que esse material sugere uma toxicidade maior e seu uso dependerá da quantidade de nanquim utilizado.


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uma prensa manual própria para a litografia, à pedra é colocada sobre a superfície plana da prensa que desliza sob a pressão de uma trave chamada ratora. Gira-se a manivela com cuidado para que a ratora não ultrapasse o limite da pedra, causando um acidente, devido a forte pressão. O desenho será impresso de maneira espelhada no papel, assim como nas outras modalidades da gravura. A litografia permite tirar muitas cópias da mesma matriz. Depois de tiradas as cópias desejadas, a pedra está pronta para ser limpa e reutilizada. Recomendamos que antes de se eliminar o desenho por meio da granitagem8, a imagem deve ser limpa com solvente, retirando todo o resquício de tinta retido das entintagens que possa ter ficado preso a pedra. Esse processo é importante, pois, facilita a limpeza da pedra e diminui consideravelmente a possibilidade do processo gerar “fantasmas” na pedra. Analisando economicamente, há uma queda de acentuada dos valores, em contrapartida ao tuche. O nanquim tem um valor 89% menor do que esse material, e que também não temos ocorrência com facilidade em casas especializadas do ramo. Do mesmo modo, também foi analisada a efemeridade em conjunto com os materiais e suplemento da litografia clássica objetivou confrontar e promoves uma integração desses materiais na composição imagética na litográfica. Satisfatoriamente constatamos que os processos não se anulam, mas dialogam de forma harmonia respeitando suas propriedade e singularidades. Para tanto, foi empregado o nanquim emulsionado bem como o material especifico para produção litográfica de base gordurosa na mesma matriz. No teste foi utilizada uma pedra litográfica granitada com os respectivos grãos 60, 80, 120, 180 e 220, optou pela granulometria do pós de carborundum. Como último processo a ser testado com a litografia de nanquim, apuramos a técnica de maneira negra, nome emprestado da gravura em metal, aonde se trabalha a imagem do negativo (imagem completamente negra) para o positivo, ou seja, extraindo matéria da pedra, com alguma ferramenta capaz de produzir cortes, linhas de modo a descamar a pedra até conseguir a imagem desejada. A imagem comportou-se do mesmo modo que a linha do desenho, um negro intenso e chapado. A utilização da tinta nanquim com base emulsionada9 como processo na produção da litografia tradicional10, a pesquisa consegui constitui um diálogo entre os campos da 8

Processo no qual se apaga a imagem em uma pedra por meio da fricção entre a pedra calcária e pó abrasivo. Assim preparando a pedra para ser reutilizada. 9 Copolímero Acrílico em Emulsão, faixa de concentração 12% - 16%.


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experiência e das poéticas no processo de construção de um discurso das artes plástica, tendo na utilização desse material uma potencialidade e alternativa para a construção da imagem sobre a pedra calcária. Sobretudo incorpora a experiências e a práticas, dentro de um processo de investigação de materiais suas propriedades e particularidades realizadas dentro da Universidade, esse estudo vem a fortalecer a importância e valor da pesquisa dentro dessa instituição, expande o alcance da gravura como potencia artística. Em uma avaliação mais intimista com os processos, podemos definir algumas diferenças dentro das singularidades de cada meio: a litografia usando a base gordurosa e o processo desenvolvido com a litografia de nanquim. A litografia clássica, usando material de base gordurosa, proporciona uma imagem que oferece uma polissemia de texturas e profundidades muito ricas, ao passo que não foi possível reproduzir esse mesmo universo utilizando o nanquim emulsionado. Em contra partida, o nanquim oferece a possibilidade de trabalhar os aspectos fundamentais do desenho com grande proficiência: o ponto, a linha e a mancha. Aspectos que mesmo com grande aparato técnico dificilmente seria capaz de reproduzir os resultados alcançados. Como parte do processo de pesquisa, desenvolvi uma poética própria na composição das imagens que se valeram de uma poética particular, aonde se distingue nitidamente os meios às nuanças de criação da imagem (figura 01).

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Esse estudo compreenderá a litografia e/ou a litografia tradicional, como sendo uma plano gravura, entendendo que suas características e aspectos, os quais se utiliza a pedra calcaria como matriz, aonde se trabalha fim de gerar um trabalho gráfico/artístico capaz de gerar múltiplos.


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Figura 01: Pedra litográfica calcária, granitagem com grão de carborundum 200°, desenho com nanquim emulsionado, tiragem posterior 10 cópias. Observa-se linhas, pontos e manchas, anos 2014. Arquivo pessoal.

Pensar a gravura no, contexto artístico, demanda o enfrentamento da ambivalência de sua gênese entre nós, nos termos a tradição moderna enraizada nas nossas práticas. Buscar ampliar as vivências e possibilidades dessa linguagem configura-se como um exercício diário e empolgante de extremos. Confortar sua trajetória histórica situa-se ao interesse em firmar-se no campo artístico como uma linguagem cuja especificidade ancora-se na artesania autoral de matrizes, reforçando sua identidade como instrumento de criação artística parte de uma intimidade e cumplicidade dos meios. Em outra ponta, emergem experiências e práticas que se ajustam na reconsideração conceitual de seus fins e meios. O processo é de mão dupla, a expansão estética irradiasse potencializasse; em outra reflexão, confiamos que essa investigação possa favorecer diretamente o ensino dessa instituição. O estudo apresentado aqui é inédito, a revisão bibliográfica não encontrou nenhuma passagem que compete com o estudo apresentado. Ao mesmo tempo, ao apresentar resultados positivos que confere a viabilidade de utilização de um material de menor curto e de acesso simplificado.


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Esse relato também entende o processo de experiência como possibilidades nos territórios de ensino em especial, os territórios de ensino/aprendizagem e de formação (ateliês e escolas de arte), polos de irradiação, nos quais se potencializa a gravura em sua vontade experimental e ou em sua tradição. Da mesma forma, valoriza a protocooperação entre os nichos de formação e pesquisa, sejam instituições, grupos ou agremiações. Esse artigo reserva um caráter inédito no seu cerne, ao mesmo tempo em que busca explorar novas possibilidades dentro de uma linguagem estética já consolidada e que dentro das artes gráficas, não se acha estudos referentes a esse processo. Ainda, projetamos nossos esforços de modo que essa pesquisa seja capaz de instigar a reflexão sobre os territórios e as zonas autônomas da gravura, fomentando sua prática e pensamento sobre seus processos singularidades e história, na construção de um frescor artístico, como ponto de partida e meio no processo plástico. Estabelecendo diálogos entre as zonas de pesquisa, produção e criação.


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Referência Bibliográfica

Alvarez, Fernando Gómez. Gravura: uma introdução. Vitória: NEAD/UFES, 2011. COSTELLA, Antônio. Introdução à gravura e à sua história. São Paulo: ed. Mantiqueira; 1984. FERREIRA, Orlando da Costa. Imagem e letra. Introdução a bibliologia brasileira. A imagem gravada. São Paulo: Edusp, 1994.

Site: < http://tamarind.unm.edu/>, acessado em 29 de abril de2015, as 23h12min.


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Tomie Ohtake: simplesmente pintura. Ricardo José de Campos (PPGA-UFES)

RESUMO Este artigo aborda a obra de Tomie Ohtake (1913-2015), limitando-se ao conjunto de suas pinturas a partir de 1959 até ao final década seguinte. Para tanto, recorre ao crítico de arte Paulo Herkenhoff, a fenomenologia de Merleau-Ponty, bem como a outros teóricos na medida em que se relacionam com a arte abstrata em seu contexto histórico, nos fornecendo uma melhor e mais abrangente visualização de sua obra. Palavras-chave: Tomie Ohtake. Pintura. Olhos vendados. Expressão. ABSTRACT This paper discusses the work of Tomie Ohtake (1913-2015), limited to the set of his paintings from 1959 to the end of the next decade. For both, refers to the art critic Paulo Herkenhoff, the phenomenology of Merleau-Ponty as well as other theoretical insofar as they relate to abstract art in its historical context, in providing a better and more comprehensive view of his work. Keywords: Tomie Ohtake. Painting. Blindfolded. Expression. Introdução Falar de pintura sobre o “velho” suporte da tela, executada com pincel e tinta, figurativa ou abstrata, pode parecer hoje um retrocesso a paradigmas da arte ultrapassados, tendo já desde a década de 1960, virado a página do modernismo chegando até a arte contemporânea. Mas teriam se esgotado todas as formas de expressão deste meio na era pósmoderna, como poderíamos talvez denominar nosso tempo histórico presente? Tomie Ohtake, no entanto, seguiu pintando sobre tela, o mesmo suporte, durante mais de meio século, desde 1952 até 2015, expressando sua arte sem perda de vitalidade e sempre em pesquisa contínua. Tentar abordar toda a obra da artista classificando-a ou separando-a por blocos de períodos distintos é um procedimento que certamente não faria jus a todas as nuances, interconecções e sutilezas de seu universo pessoal, como também incluí-la em algum “ismo” não iria responder ou mesmo resolver a algumas questões. Desta feita, neste artigo procederemos a analise de alguns poucos aspectos de sua obra, detendo-nos apenas a produção pictórica do período que começa com a virada da década de cinqüenta, indo até final


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dos anos sessenta, selecionando aqui a imagem de duas telas deste conjunto, no intuito de desvendar linguagens, conceitos, pistas que nos revelem ao menos parte da criação de Tomie. Percorrendo os espaços dos dois salões no segundo piso do Instituto que leva seu nome, onde aconteceu à exposição “Tomie Ohtake - Gesto e Razão Geométrica” (novembro de 2013 a fevereiro 2014) encontramos uma significativa parte do extenso universo pessoal da artista, em sua maior parte pinturas. Tomie parece estar acima de qualquer definição, difícil seria classificá-la como parte de alguma escola específica, limitação desnecessária, mesmo porque sempre se manteve a parte e desconfortável diante destas bandeiras. Críticos seguem tentado explicá-la elaborando teses e conceitos que nos apontam sinais sobre, quem sabe, versos de sua poesia visual, o que já nos traz a melhor das traduções. Esta exposição comemorativa do seu centenário realizada em São Paulo reuniu cerca de 80 trabalhos, pinturas em sua maioria, e teve como curador Paulo Herkenhoff, profundo estudioso de Ohtake, sobre cuja obra vem construindo um discurso coerente e sólido onde perscruta com propriedade e profundidade sua complexa e singular arte. Tendo a oportunidade de visitarmos a mostra, em dezembro de 2013, voltando nosso olhar para sua produção pictórica, e numa tentativa frustrada de estabelecer alguns parâmetros para classificá-la, percebemos com clareza que no conjunto da obra, sua linguagem passa por uma livre transformação após curto período inicial figurativo, que transita do abstracionismo geométrico ao informalismo, ou abstracionismo lírico, passando a seguir pelas “pinturas cegas”, voltando a rumar para uma geometria mais rígida, partindo então para formas circulares com influências do enzo, o circulo imperfeito no zen budismo, chegando às espacialidades cósmicas, e finalmente ao monocromatismo dos seus últimos trabalhos. Poucos foram os comentários da artista a respeito de sua própria obra, comedida em sua fala, algumas muito reveladoras, como nos apresentam vídeos e entrevistas a alguns de nossos críticos de arte, cineastas, e jornalistas e estudiosos, de forma que na nossa experiência direta com suas criações, nos colocamos frente a uma obra literalmente sem título, como a mesma o é na realidade desde o início, fato este que esta em total consonância com a proposta da artista. Sua economia plástica e poder de síntese são características que nos chama de pronto a atenção, a pureza e o refinamento da composição nos provocam uma vontade de desvelar algo mais profundo, uma obra livre de ruídos imagéticos talvez, livre do desnecessário e do dispensável.


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Olhos vendados As pinturas de uma série realizada entre 1959 e 1962, cujo total é estimado em cerca de quarenta exemplares, tornaram-se uma singularidade na história da arte brasileira. Embora até a nossa década não houvesse sido feita nenhuma mostra que reunisse este conjunto específico, apenas recentemente em 2011 foi apresentada pela primeira vez no Instituto Tomie Ohtake, a exposição individual com o título de “Pinturas cegas”, termo cunhado pelo crítico e curador da mesma, Paulo Herkenhoff. Na ocasião de sua reedição no ano seguinte, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, foi elaborado um catálogo com texto bastante aprofundado pelo mesmo crítico, sendo 30 telas desta série apresentadas ao grande público. Neste ensaio da obra de Ohtake denominado “Tomie Ohtake: Pinturas cegas ou o osso do olho (o não ver na história da arte brasileira)”, o crítico estrutura a sua discussão de modo a investigar diferentes conceitos e possibilidades de leituras, abordagens que contextualizam sua pintura com o presente. Cada tópico proposto por Herkenhoff certamente abre caminhos para que estas questões possam ser ainda mais aprofundadas. Trabalhar sob o estado de não ver, sob a condição de cegueira, foi esta a proposta e o método ao qual se submeteu a artista, pois as pinturas foram deliberadamente realizadas com os olhos cobertos por uma venda. Para Denis Diderot, citado pelo crítico, ver não é necessariamente compreender o mundo, em se tratando de percepção visual. Já em Santo Agostinho encontramos o conceito de que o olhar é ludibriado e entrega-se ao ilusório sem mesmo perceber que o verdadeiro esta além deste olhar, é o inacessível, por isso a visão é um sentido extremamente frágil no intento de conhecer. A cegueira auto-imposta de Ohtake é uma atitude experimental do fazer e do compreender. Uma pintura cega, porém, pode carregar consigo vestígios da ação do chamado “inconsciente ótico” do pintor, o que no caso comprometeria a experiência, conforme cita Rosalind Krauss, salvo no caso de o mesmo se tratar de um cego de nascença. Contudo, em se tratando de Tomie, suas pinturas (Figura 1) ao refletirem sua experiência pessoal, transmitem a nossa percepção que seu “inconsciente ótico” é diferenciado por ser despojado e não dependente de formas, conforme relata a artista: “Nasci numa casa abstrata. O ambiente era bem limpo, bem simples, somente um objeto e uma flor. Esta atmosfera estimulava o pensamento abstrato, a experiência profunda” (HERKENHOFF, 2012, p. 61).


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Figura 1- Sem Título 1960 - óleo sobre tela 74,7 x 100 cm, coleção Gilberto Chateaubriand- MAM RJ. Fonte: HERKENHOFF, 2012, p. 19.

Tomie vai entrar em contato com a filosofia zen onde busca respostas, não como argumento teórico para elaboração de algum manifesto textual, mas como orientação do agir e do fazer, fixando “seu foco na relação entre valores e procedimentos zens e a constituição do signo pictórico em seu processo de constituição da imagem” (HERKENHOFF, 2012, p. 77). Conforme nos relata o crítico, para tanto, ela lerá intensamente dos clássicos da literatura zen a Daisetz Teitaro Suzuki, o qual teve um papel fundamental na disseminação desta filosofia no ocidente. E curiosamente, a grande influência e incentivo neste projeto foi Mario Pedrosa, que então retornara de um longo período no Japão. A utilização das vendas nos olhos durante o fazer da sua pintura teve assim “o sentido de realizar uma ação pictórica no limite da percepção”, como também a intenção de pintar sem “demarcar território” nem mesmo produzir qualquer tipo de figuração que remeta a algum significado, e ainda na realização da experiência, a consciência do fenômeno da passagem de tempo, atestando assim uma atitude zen. O fator tempo estará sempre muito presente em sua arte, já que “[...] O quadro não é uma coisa, mas um momento; podia ser antes, podia ser depois”, disse a artista, e como nos esclarece o crítico seu imperativo é o tempo, pois Tomie “se propõe à pura transiência do ato para além de seu registro físico na superfície”, o seu quadro “é só campo e continuum” e “se há necessariamente um ponto de partida da pintura, no entanto não existe um ponto de chegada” (HERKENHOFF, 2012, p. 77).


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“Eu nunca pintei com o emocional. O gesto era bem mais calmo, caía sempre sobre a tela e seguia uma direção que era mais mental”, nos revela a artista. Este distanciamento emocional, este certo não envolvimento característico com a ação, como também a escolha pelo lado mais mental é um dado relevante e significativo para a leitura de sua obra, na qual o vazio também se faz presente, não como “ausência de matéria pictórica”, como nos esclarece o crítico, mas através deste “não olhar absoluto”. A valorização do vazio como parte da obra é algo que se pode perceber em suas pinturas, elemento zen inseparável (HERKENHOFF, 2012, p. 77). A discussão do crítico que se segue, aprofunda mais a questão quando busca uma referência no filósofo Merleau-Ponty em O olho e o espírito. Nesta obra, escrita em 1960, o filósofo volta a explorar o fenômeno da visão e sua relação com a pintura, analisando o caso de Cézanne. Merleau-Ponty (2004, p. 34) esclarece que a visão não é de certo modo do “pensamento ou da presença em si: é um meio que me é dado estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, no fim do qual eu me fecho sobre mim próprio”. Tomie faz esta experiência como um meio propício para deixar fluir sua pintura, livre das obstruções do olhar, da ilusão do visível que a tira de seu pensamento interior, de poder estar presente em si mesma. Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão. Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça voltada para outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 23).

A venda, no caso de Tomie provoca também uma sensação desconcertante, onde o referencial da trajetória do pincel sobre a tela é rompido em algum momento, fazendo com que a apreensão do todo da composição em andamento fique comprometida, provocando um descontrole de referência, desta feita provoca justamente a não interferência da razão, quebrando o processo do projetar e do planejar. Não há então um plano a priori, a não ser a definição prévia da paleta de cores a ser usada em cada uma das telas, de forma que o resultado final estará condicionado a esta escolha cromática inicial. Ao examinar a pintura de ação norte americana, Argan (2008, p. 530-531) contrapõe a atitude de Pollock frente ao credo daquela sociedade puritana de então cuja máxima seria “existe-se para fazer”, ao que o artista teria por verdadeiro: “faz-se para existir, é preciso fazer a existência”. E completando sua argumentação diz que “antes da ação, não há nada: não um


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sujeito e um objeto, não um espaço onde se mova, um tempo em que se dure”. Tomie parte do zero para fazer e trazer a existência sua “pintura cega” e a partir de seu primeiro movimento o tempo surge, nada existe antes de sua ação no espaço, ação esta que como nos diz o autor, deve deixar certa margem ao acaso, porque a existência necessita exercitar liberdade em relação à lógica e suas leis, deve saber lidar com todas as situações e eventos imprevistos da vida. O pincel de Tomie percorre cegamente a superfície da tela num mover imaginativo que reserva espaço à casualidade do existir, não se utiliza da razão fazendo um projeto, semelhante à forma como o faziam os expressionistas abstratos, mas lança-se na ação do pintar como se lança para a existência. A diferença aqui entre o movimento realizado por Tomie e o de Pollock é uma questão de ritmo, citando novamente Argan que nos diz que “[...] Tudo se resume em encontrar o ritmo próprio e não perdê-lo, aconteça o que acontecer”. Sobre este proposital abandono de controle da obra, nos faz lembrar o automatismo surrealista, onde se pretende “libertar o controle consciente sobre os procedimentos de composição”, conforme nos esclarece Harisson (in: STANKOS, 2000, p. 146) que “para os surrealistas, automatismo significava qualquer procedimento empregado como um meio para evitar o controle sobre a composição [...]. Para Pollock, o automatismo era mais característica de um dado ritmo mantido em toda a pintura”. A relação corporal da artista com a pintura nesta fase, a espontaneidade gestual da sua pincelada e total liberdade de improvisação são traços marcantes e dignos de nota. Em Pollock o gesto tem ritmo acelerado e impetuoso, em Tomie parece render-se ao fluir tranqüilo e gracioso dos movimentos, entregando-se a uma consciência sem necessidade de controle total, a gestos dirigidos por uma mente não afetada por estados emocionais extremos, em estado contemplativo. O ritmo de Tomie é marcado por uma cadencia calma e contemplativa, não neurótica, a lentidão segura de seus gestos diferencia-a muito dos padrões ocidentais (OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 23), não se teatraliza em exagerados movimentos, mas encontra correspondência a uma concentração mental equilibrada que a direciona no espaço-tempo na construção do seu campo pictórico. Aqui podemos nos referir a outro artista da “action painting”, no intuito de estabelecer estas aproximações com paradigmas da pintura na arte moderna. Como sabemos, o expressionismo abstrato foi uma denominação dada a artistas que nem sempre eram totalmente expressionistas e nem caracteristicamente abstratos, como no caso de Barnett


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Newman e Willem de Kooning respectivamente. Na abordagem de Argan, Mark Rothko é analisado entre outras questões sob a ótica da ação, o que nos faz pensar neste caso em certa sintonia rítmica com a obra de Tomie. A pintura vai sendo realizada com uma ação contínua construída por gestos firmes, mas não dramáticos, na experiência de um tempo que passa sem pressa, num compasso tranqüilo. Pode parecer deslocado falar em pintura de ação, a propósito de Rothko, um contemplativo com pupilas dilatadas, de gesto lento e leve que não deixa traços. No entanto, nem todos os gestos são ditados pela neurose: o de Rothko é calmo, cadenciado, uniforme, como o gesto do artesão que pinta uma parede, dando uma, duas, três demãos até que a superfície atinja certo grau de densidade e transparência, e onde havia um plano rígido e impenetrável agora há uma veladura que deixa passar a luz, ou mesmo emana-a através da cor. A ação não é projetada nem arremessada; realiza-se por meio de uma gradual acumulação e refinamento da experiência, enquanto ela se faz (ARGAN, 2008, p. 531).

Ao discutir a perspectiva neurofisiológica da percepção, Merleau-Ponty reflete sobre os processos sensório-motores, enfatizando a experiência corpórea do sujeito na construção do conhecimento: “Não é o sujeito epistemológico que efetua a síntese, é o corpo; quando sai de sua dispersão, se ordena, se dirige por todos os meios para um termo único de seu movimento, e quando, pelo fenômeno da sinergia, uma intenção única se concebe nele” (MERLEAU-PONTY, 1999,

p. 312). Diferente da concepção cartesiana que afirma a

dualidade entre corpo e alma, para Merleau-Ponty (1999, p.193) “a consciência é o ser para a coisa por intermédio do corpo”. O movimento corporal na sua explanação adquire importância epistemológica, pois: “um movimento é apreendido quando o corpo o compreendeu, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu mundo” e ainda esclarece que “mover seu corpo é visar às coisas através dele, é deixá-lo corresponder à solicitação, que se exerce sobre ele sem nenhuma representação”. Desta maneira, na fenomenologia merleaupontiana a apreensão do conhecimento ou a percepção do mundo se faz “com o corpo” por meio da sua própria existência, em um mundo que é temporal e espacial, e não apenas pelo corpo ou pela mente. É por meu corpo que compreendo o outro, assim como é por meu corpo que percebo “coisas”. Assim “compreendido”, o sentido do gesto não está atrás dele, ele se confunde com a estrutura do mundo que o gesto desenha e que por minha conta eu retomo, ele se expõe no próprio gesto [...] (MERLEAUPONTY, 1999. p. 253).

Tomie faz das pinturas cegas uma experiência fenomenológica e epistemológica. Até aonde meu corpo, meu gesto conhece a respeito de mim mesmo, do outro e do mundo? Como


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se da no espaço o meu movimento? Como conhecer o gesto de minhas mãos aos correr o pincel sobre a tela? Meu movimento será apreendido e meu corpo compreenderá a si mesmo com o artifício da venda. Outro aspecto da obra de Tomie que gostaríamos de nos referir, diz respeito à escolha feita pela indefinição nominal, pois já desde o começo rejeita dar títulos às suas obras. É um curioso e importante recurso estratégico usado pela artista para não submeter o observador, o outro, a leituras arbitrárias de sua obra a partir de sugestões verbais. Como diz: “Não coloco título na obra porque a pessoa fica muito impressionada e fica pensando no título e não na obra” (HERKENHOFF, 2009, p. 113). Relembrando Harold Rosenberg quando cita que “o lugar da literatura foi tomado pela retórica dos conceitos abstratos” e ainda sua descrição metafórica de que a arte contemporânea se assemelha a um centauro metade composta por materiais e metade por palavras, Herkenhoff elucida o porquê de Tomie não fazer uso da parola, pois em sua problemática pessoal este recurso não complementaria nem poderia ajudar a compreensão de sua obra (HERKENHOFF, 2012, p. 57). À época das “pinturas cegas” vários artistas brasileiros, sobretudo os concretistas, fizeram uso de uma extrema complexidade na nominação de suas produções. Títulos com sentidos vagos, indicativos de gênero, explicativos de problemas semióticos. Ohtake entendeu que estes títulos forçavam interpretações, verbalizavam idéias e conceitos diversos, denotavam problemas matemáticos e gestálticos. Não pretendia que sua obra fosse definida por meio da força da palavra (HERKENHOFF, 2012, p. 80), pela conotação e denotação de um título, ou que a nomenclatura despertasse e estendesse outros níveis de significações e intenções, usurpando a força da obra em si mesma. Rejeita então referências adicionais externas a própria pintura e às operações do próprio pintar. Esta mudez harmoniza-se e complementa-se com a cegueira, num binômio perfeito, como pintar cegamente uma pintura inominada. Pintar é produzir pintura sem nome, isto é, não se relacionar com a instância fonética da comunicação, mas definir-se pela justaposição antinômica entre cegueira e visão como tensão semiológica. [...] Portanto, cegueira e inominação são componentes ativos do visível nesta Tomie Ohtake. Se nenhuma obra cega de Ohtake tem título é porque isso corresponde ao arremate do não significado em reiteração da assimbologia do inominável. Pintar aqui é a eliminação de qualquer associação sintagmática verbal na enunciação da pintura. A pintura cega quer apenas enunciar-se a si mesma e exclusivamente em sua condição de pintura (HERKENHOFF, 2012, p. 59).


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Nas palavras da própria artista: “Quando fiz esta série de olhos fechados, buscava retirar a cor e a forma para encontrar o osso da pintura”, e complementando, o crítico nos diz que “o osso não é algo fisicamente estruturante, mas é aquilo que explora a força sutil e paradoxal de tomar conhecimento da impercepção (HERKENHOFF, 2012, p. 79). Geometria expressiva Por volta de 1962 percebe-se em suas pinturas uma nova fase na qual as áreas passam a ser mais delimitadas e as formas tornam-se retangulares e quadradas, tendendo a uma geometrização onde a demarcação de seus contornos é visivelmente caracterizada pelo traço manual e irregular. Estas grandes massas geométricas provocam uma relação tanto de equilíbrio como de desequilíbrio com o fundo e entre si. Inúmeras camadas de tinta formam as massas planas de cores, que, porém não são chapadas, mas apresentam nuances de tons, manchas e também texturas no seu preenchimento. Aqui aparece claramente uma das grandes questões em Ohtake, a maneira como o racionalismo da construção geométrica dialoga com a sensibilidade orgânica de sua pincelada gestual, onde a dialética de sua pesquisa da forma se realiza. A precisão e perfeição da razão da forma geométrica em sintonia com a imprecisão das formas livres e a imperfeição intencional da pincelada. Esta orientação progressivamente aparece nestes trabalhos, onde o estudo das relações forma-cor substitui a imaterialidade e certa aleatoriedade da fase anterior, reveladas claramente nas “pinturas cegas”. Isto fica evidenciado nesta mostra de Herkenhoff, como o próprio título sintetiza: “Tomie Ohtake Gesto e Razão Geométrica”. Algumas aproximações com a obra de Mark Rothko nesta fase, um dos grandes expoentes do expressionismo abstrato, já foram observadas e valem aqui serem consideradas, a própria artista revela à época como sendo um dos artistas por quem tem admiração. Comparando a obra “Sem título (violeta, preto, laranja, e amarelo sobre branco e vermelho) 1949”, do pintor russo naturalizado norte-americano, com uma de suas pinturas desta fase, de 1964 (Figura 2), nota-se claramente afinidades entre as duas poéticas. Em Tomie, uma delicada linha que deixa vazar o fundo da composição separa os volumes geométricos, diferente de Rothko, onde os mesmos se fundem criando uma nuance, uma gradação tonal esfumaçada. Rothko é um dos artistas que admiro bastante. Alguns trabalhos meus, da década de 1960, chegaram a cruzar com os dele. No caso dele, o encontro das cores se dá de uma forma em que uma cor repousa sobre a outra. No meu caso, elas criam uma ruptura, aparecendo então uma linha. Essa é a diferença fundamental: a cor do Rothko se espalha por cima da outra, enquanto a


360 minha recorta uma superfície da cor existente e nesse vazado ponho uma outra cor (ALMEIDA, 2006, p. 27).

Figura 2 - Sem Título 1964- óleo sobre tela 120 x 100 cm, coleção particular. Fonte: OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 38.

Podemos observar que nesta fase Tomie emprega uma gama cromática reduzida, com predominância de apenas duas ou três cores. Esta economia cromática e formal já se torna uma marca da artista, que também explora a matéria pictórica mais carregada e densa, vezes provocando texturas craqueladas e rugosas, como também seu oposto, camadas transparentes de tinta diluída. A repetição é outra característica presente nestas obras, onde propõe uma relação de distinção cromática e se percebe a diferença de peso entre os elementos, a sensação de harmonia e equilíbrio relativos. Sabemos que Rothko na sua maturidade artística abandona tudo que possa restar de referência a imagens reconhecíveis, trabalhando com justaposição de retângulos diversos em campos de cores. Sua tela acima referida (de 2,07 metros por 1,67 metros) é um exemplar que demonstra perfeitamente a pesquisa pictórica que realizava então, que se alinhava com a teoria iniciada por Hoffmann, a seguir desenvolvida e defendida por Greenberg no expressionismo abstrato. A tela vai funcionar como um cenário cromático, como um campo visual, onde a cor é toda preenchida e saturada atraindo o espectador para dentro deste campo. A escala ou dimensão ampliada da tela é outro dado relevante, pois pretende ter relação direta com o observador, daí


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o motivo de pintar grandes quadros. “Um quadro de Rothko nao é uma superfcie, é um ambiente [...]. Seu objetivo é, de fato, envolver, ambientar o espectador, abrir um espaço para sua imaginação. (ARGAN, 2008, p. 531). A série de pinturas que Tomie produz entre os anos de 1962 a 1968 aproximadamente, as quais também fizeram parte desta exposição em São Paulo, apresentam características marcantes, pelo que podemos fazer algumas aproximações com Rothko nestes aspectos acima discutidos. Apesar de a artista ter feito a partir de 1954 uma opção pelo abstracionismo, no entanto ela não se detém em questões teóricas relativas aos debates que se sucederam no abstracionismo lírico da escola de Paris nem mesmo no discurso do expressionismo abstrato, ou “pintura americana” da escola de Nova York, como tampouco se envolve nos debates da arte concreta. Seguindo um caminho muito singular, não se identifica com o tachismo, que poderia quem sabe atraí-la, como o fez com outros artistas de origem nipônica, mas “adota uma perspectiva analítica da pintura enquanto poética de materialidade, espaço e cor” (OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 18). Sua linguagem se situa no contexto de problemáticas e paradigmas da pintura a partir da emancipação do figurativo e anedótico, do uso da pincelada que abandona o detalhe realista e da conquista da planaridade em detrimento da profundidade perspectiva e se aprofunda nos campos de cores. Nesta série, tem-se exatamente a experiência da espacialidade e envolvimento do campo da superfície pictórica, onde se é transportado para dentro, vezes mergulhando o olhar nas transparências das suas cores, vezes detendo-se ou sendo impedido pelas camadas mais carregadas de pigmento, conforme aponta Herkenhoff (2000, p. 24). Na análise do crítico, a arte de Ohtake, assim como a de Valentim e Schendel aqui no Brasil, e a de Rothko, Kandinsky, Malevitch, Mondrian e Newman, têm uma perspectiva onde a “pintura não figurativa se alimenta de relações com a metafísica”. O crítico nos relata que uma vez tendo sido indagado se deveria ser construído um museu para sua obra, Rothko respondeu em tom enfático: “No, a chapel!” (OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 32), tal era seu forte sentimento de contemplação, transportando a arte para o espaço meditativo de uma capela. A procura pela essência, pela síntese, evidenciada na poética de Tomie que trabalha cada detalhe com cuidado e tratamento quase que ritualístico, elaborando meticulosamente a pincelada num tempo que parece suspenso, como o que experimentado no silencio sublime de um templo, nos remete a esta aproximação à metafísica. Sua poética é ocidental e também oriental, a primeira devido às escolhas da artista por estar inserida e coparticipante do contexto cultural do país no qual escolheu viver, e de outro lado, pela formação japonesa


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vivenciada e certamente assimilada. A respeito da sua obra, declara: “[...] é ocidental, porém sofre grande influência japonesa, reflexo de minha formação. Essa influência se verifica na procura da síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa. Na poesia haicai, por exemplo, fala-se do mundo em 17 sílabas” (OHTAKE; ARRUDA, 2000, p. 35). Sobre as diferenças entre as duas culturas, oriental e ocidental, Suzuki (1992, p. 82) nos esclarece que “o Leste é sintético em seu método de raciocínio, não se preocupa tanto com a elaboração das particularidades quanto com uma apreensão compreensiva do todo, e isso intuitivamente. Por isso, a mente oriental, se assumirmos a sua existência, é necessariamente vaga e indefinida”. A filosofia zen esta presente na pintura oriental, como na arte do sumi-ê, por meio do conceito de que o artista deve se expressar com o que há de essencial em si mesmo, de uma forma sintética e o mais simples possível, como também única e singular, pois é da simplicidade do espírito zen que “[...] provém sua vitalidade, liberdade e originalidade” (SUZUKI, 1992, p. 83). O simples em Ohtake se expressa na síntese da complexidade. Questionada sobre sua tendência de com o tempo ter passado a ser mais econômica na cor, Tomie responde justificando esta escolha em virtude da almejada profundidade: “Exatamente, por isso fica mais difícil, para combinação de cor, ‘dois’ ou três, máximo três, ‘né’? Muito difícil! Pintura também, duas cores ou três cores só. ‘Meu’ idéia é assim mesmo. Simples não é só simples, não! Mas profundidade que tem que ter, ‘né’?” (ITAÚ CULTURAL, 2014). CONCLUSÃO A obra de Tomie pode ser lida a partir da perspectiva da fenomenologia, da filosofia zen budista, abordando aspectos como a percepção, a materialidade, a espacialidade, ou a temporalidade. Uma análise feita do ponto de vista historicista talvez nos provoque a inseri-la dentro de correntes como o abstracionismo ageométrico, a geometria sensível, ou sob a influência de elementos de parte do expressionismo abstrato, ligada a um ou outro artista. O movimento dinâmico do gesto preenche o espaço com uma presença matérica de formas que surgem como síntese de potências complexas, sementes que encerram configurações inexploradas, mas que, ao se manifestarem, assumem contornos moldados na improbabilidade e incerteza da criação. O espaço, o vazio, o corpo, o gesto, a cor, a forma, o tempo, a pintura é a configuração desta realidade. A trajetória de Tomie Ohtake reflete o espírito inquieto do artista na busca de sua linguagem, na construção de sua singularidade, na vivência de seu próprio tempo presente.


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Sempre expandindo suas fronteiras, enveredando por novas pesquisas que constroem e desconstroem suas referências, mas não perdem o fio condutor de seu gesto característico e de suas impressões matéricas, e, diria, imatéricas. Outras abordagens seriam possíveis sobre este recorte temporal do todo de sua obra escrita pelo seu pincel, na tentativa de extrair alguma leitura e descrever a impressão que pode imprimir em nosso espírito a sua pintura, esta explanação não esgota com certeza nossa discussão. Em seu longo percurso, chegando a uma exposição de pinturas inéditas em 2013, ano de seu centenário, e neste ano com uma individual, póstuma, com suas ultimas obras realizadas nos dois últimos anos, aos 101 e 102 anos de idade, chega até os dias de hoje com uma pintura certamente contemporânea, dialogando coerentemente com o agora, agindo como que na resistência da pintura, do mesmo óleo sobre tela ou acrílico sobre tela, que se renova e se reinventa em suas mãos. Seu jogo entre perfeição e imperfeição é visto como uma verdadeira poesia que fala da arte da vida. Simplicidade e elevação, o pouco com profundidade, provocando-nos a desvelar seu universo. A sua pintura não tem nome, sua pintura é cega, é um campo de cores, ela é simplesmente pintura.


364 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ALMEIDA, Miguel de. Tomie Ohtake. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006, 110 p. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna - do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 709 p. HARRISON, Charles. Expressionismo abstrato. In: STANKOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zarrar, 2000, 306 p. OHTAKE, Tomie; ARRUDA, Vitoria (Coord.). Exposição Retrospectiva Tomie Ohtake. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2000. 88 p., il. color. HERKENHOFF, Paulo. Pinturas Cegas- Tomie Ohtake. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2012. 128 p., il. color. ITAÚ CULTURAL. Tomie Ohtake. 2014. Vídeo (transcrição nossa). Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/index_temp.cfm?cd_pagina=2844&id=001449&titulo=Tomie %20Ohtake&auto=undefined> Acesso em 28 abr. 2015. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins fontes, 1999, 662 p. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, 192 p. SUZUKI, Daisetzu Teitaro. Introdução ao Zen-Budismo. São Paulo: Editora Pensamento, 1992.


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Sintonia Concretista em O Vampiro da Cinemateca, de Jairo Ferreira. Jonathan Estevam Marinho (PPGIS-UFSCar)

Neste trabalho pretende-se analisar alguns aspectos conceituais e estéticos presentes no filme O Vampiro da Cinemateca (1977) do cineasta e crítico Jairo Ferreira. Para tanto, pretende-se primeiramente pontuar algumas particularidades presente na história da artes concreta européia e brasileira. A perspectiva desse recorte é traçar uma sintonia entre o cinema experimental de Jairo Ferreira e o concretismo. Palavras-chave: Concretismo. Jairo Ferreira. Cinema.

In this paper we intend to analyze some conceptual and aesthetic aspects present in the film The Vampire Movie Memorabilia (1977) by filmmaker and critic Jairo Ferreira. Therefore, first-rate intends to present some peculiarities in the history of European and Brazilian concrete arts. The prospect of this cut is to draw a line between experimental film Jairo Ferreira and concretism. Keywords: Concretism. Jairo Ferreira. Film.

INTRODUÇÃO Jairo Ferreira foi um dos cineastas paulistanos integrantes do grupo chamado Boca do Lixo1, cuja as associações remetem ao Cinema Marginal, que por sua vez é classificado como um movimento de vanguarda do cinema brasileiro. Além de seu trabalho como realizador, Jairo foi jornalista e crítico de cinema nos jornais São Paulo Shimbun2, Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde.3 Além disso também publicou o livro Cinema de Invenção (Editora Limiar, 2000), em que aborda, de forma crítica e poética, principalmente os trabalhos dos cineastas cujos traços experimentais eram mais notórios. Em seu livro Cinema de Invenção, no capítulo Sintonia Experimental, Ferreira dedica-se a descrever uma compacta genealogia do experimental no cinema mundial e nacional, apontando assim várias possibilidades de conexões de ideias, intenções e provocações existentes entre diversos cineastas, teóricos e artistas em geral. No subcapítulo Paideuma, 1

Resumidamente, o termo refere-se à localidade do bairro da Santa Ifigênia, próximo a Estação da Luz e Júlio Prestes. Os cineastas que freqüentavam essa região buscavam viabilizar seus projetos fílmicos por meio das produtoras e distribuidoras audiovisuais que ali residiam. Para uma descrição mais detalhada, ver: GAMO, Alessandro. Vozes da Boca. Campinas: Tese de doutorado, IA/Unicamp, 2006. 2 Jornal da comunidade japonesa do bairro da Liberdade. 3 Para um melhor entendimento da vida e obra de Jairo Ferreira, ver o trabalho de dissertação do professor e pesquisador Renato Coelho: O cinema e a crítica de Jairo Ferreira. SBU Digital UNICAMP, Campinas, 2013.


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Ferreira coloca duas questões que serão fundamentais para este artigo. A primeira é uma observação acerca da primeira cena do filme O Anjo Nasceu (Júlio Bressane, 1969), cuja imagem é nada mais que um ponto preto e o som é uma música experimental, de autoria de Guilherme Vaz. Ferreira aponta tal circunstancia como um momento em que a linguagem audiovisual está “carregada de significado até o máximo grau possível”. A segunda afirmação é colocada quase que como um aforismo: "No experimental de nosso cinema importa mais o significante e menos o significado. Mais como se diz e menos o que diz” (FERREIRA, 2000, p27). Essas duas sentenças nos colocam diante de uma questão semiológica, especificamente intersemiológica, intimamente ligadas às reflexões de Ezra Pound, conforme citado pelo próprio Jairo. Várias são as tentativas de se formalizar uma “sintaxe cinematográfica”, porém, dentro do ponto de vista de Ferreira, tais teóricos recaem na obviedade dos fatos: “a significação cinematográfica resulta de um encadeamento particular dos elementos semióticos, um encadeamento que é próprio do cinema” (FERREIRA, 2000, p27). Desta forma, Ferreira parte para os princípios poundianos4, já que os julga essenciais, não para análise, mas como auxílio para o artista no processo criativo experimental ou inventivo. É nesse ponto que Ferreira propõe a correlação entre os conceitos literários de Pound e o cinema de invenção. A partir do livro ABC da literatura (POUND, 1977) elencaremos especificamente dois aspectos da poesia, sobre os quais nos debruçaremos posteriormente: a abordagem materialista/científica e o conceito ditchen/condensare. Portanto, para este trabalho, nossa via de entendimento do cinema inventivo de Jairo Ferreira reside sob esses dois aspectos, na medida em que se relacionam com o concretismo. Apresentaremos, então, algumas das principais discussões pertencente as artes concretas (pintura, música e poesia), buscando selecionar os principais elementos e particularidades que possam estar em sintonia com o novo processo narrativo proposto em O Vampiro da Cinemateca.

1. Abstração e intenção não-representativa na pintura

Para se falar de concretismo é necessário antes falar de abstracionismo. A abstração nas artes visuais surgiu na pintura por volta do final da década de 1910 e tinha como principal objetivo libertar o sujeito da representação, permitindo a expressão intelectual, emotiva e sensitiva, por meio puramente das técnicas expressivas inerentes à cor e forma. Assim, muitos pintores pertencentes a movimentos de vanguarda da época, almeijavam, a priori, uma pintura que se tornasse autônoma e independente da obrigatoriedade da figuração da realidade. Esses artistas referiam-se à música como um modelo de arte ideal para, a partir daí, repensar seus trabalhos e até criar novos tipos de formas artísticas. Van Doesburg5, um dos fundadores concretismo na Europa, coloca que a questão epistemológica da abstração nas artes, até o final dos anos 1920, não fora satisfatoriamente 4

Ferreira cita especificamente o livro ABC da Literatura (tradução de Augusto de Campos). Em algumas literaturas, considera-se Doesburg como um pré-concretista e neoplasticista. Contudo, consideramos para esse trabalho as mesmas classificações dada por Cocchiarale e Geiger. 5


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convincente. Basicamente a tensão existente no pensamento abstrato das artes residia, segundo Doesburg e seus companheiros, na contradição conceitual entre os termos abstração e intenção não-representativa. Na introdução ao problema, no primeiro e único número da revista Art Concret, Van Doesburg e os primeiros concretistas avaliam a trajetória inicial do abstracionismo, sobretudo a sua vertente geométrica, considerando que: “(...) Na busca da pureza, os artistas foram obrigados a abstrair as formas naturais que escondiam os elementos plásticos, a destruir as formas-natureza e a substituí-las pelas formas-arte” (DOESBURG, 1930 apud. CANONGIA, 1977, p.42). A questão central a qual os concretistas insistiam em refutar é a de que as tais formas-arte não se desvinculam da natureza, uma vez que são frutos do imaginário humano. Desprender a arte da representação sugeria criar a pintura-coisa, concreta em sua especificidade, assim como qualquer outro objeto pertencente à realidade. E essa concretude exclusiva da obra definia-se a partir de uma plástica essencial. Todas essas questões são preocupações inerentes ao concretismo, como sublinham redundantemente seus criadores em 1930: Pintura concreta e não abstrata pois que nada é mais concreto, mais real que uma linha, uma cor, uma superfície (...) Uma mulher, uma árvore, uma vaca são concretos no estado natural, mas no estado de pintura são abstratos, ilusórios, vagos, especulativos, ao passo que um plano é um plano, uma linha é uma linha, nem mais nem menos (DOESBURG, 1930 apud. CANONGIA, 1977, p.42).

2. Música concreta: inversão conceitual

A música concreta tem suas raízes (ou referências) no cinema e no rádio, porém sua denominação é proveniente das artes visuais. Quando, em 1948, Pierre Schaeffer cunhou o termo "música concreta", sua intenção era a de: (...) assinalar uma 'inversão' no sentido do trabalho musical. Ao invés de anotar idéias musicais pelos símbolos do solfejo e confiar a sua realização concreta a instrumentos conhecidos, tratava-se de recolher o concreto sonoro, donde quer que proviesse, e de abstrair-lhe os valores musicais que contivesse em potência (SCHAEFFER, 1993, pag. 33). Schaeffer busca estabelecer um paralelo com a pintura, no sentido conceitual. Ele observa que, se a pintura figurativa inicialmente fora baseada em modelos do mundo exterior, a pintura não-figurativa baseava-se em ideias abstratas. Inversamente, a música era antes apresentada sem referências diretamente exteriores, partindo de preceitos abstratos (sentimentos, sensações e/ou emoções), mas posteriormente passou a ser figurativa/concreta, pela possibilidade técnica de manipular os sons ou ruídos naturais, e a partir deles conceber uma nova estética sonora.


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Schaeffer exibiu, nesse mesmo ano, suas/as primeiras peças musicais concretas, tendo como peça icônica o Étude aux Chemins de Fer (Estudo para Ferrovias). Nela encontramos uma rica e complexa montagem/edição de sons, elaborada a partir da gravação dos ruídos emitidos por um trem, que percorre uma estrada de ferro. A manipulação posterior às captações deram sentido a uma nova estética no campo musical, revelando uma arte sonora que questionava todo o tradicionalismo e formalismo musical.

3. Dissidências no contexto brasileiro: a inventividade da poesia concreta

A partir de 1948, no Rio de Janeiro e em São Paulo, começaram a se formar os primeiros núcleos de artistas visuais abstratos brasileiros. Mário Pedrosa foi um dos representantes do grupo abstrato-concreto carioca. Em São Paulo, Waldemar Cordeiro fundou o Art Club, a sede, por assim dizer, dos artistas abstrato-concretos paulistanos. Na capital paulista, a sedimentação do abstracionismo foi favorecida pela criação de importantes institutos que se mostraram abertos às novas tendências estéticas européias e norte-americanas, a exemplo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1947, o Museu de Arte Moderna (MAM-SP).6 Embora ambos os núcleos brasileiros tenham mostrado profundo interesse pelo concretismo europeu, seus respectivos desdobramentos caracterizaram diferenças que os distinguiam claramente, ainda nesse inicio da década de 1950. Com a publicação do Manifesto Ruptura7, pelo grupo de mesmo nome, em 1952, e posteriormente com a I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, essa dissidência auto-proclamada por ambos os grupos ficou assim polarizada: de um lado, os paulistanos que se diziam os fiéis representantes da tradição concretista européia; do outro lado, o grupo Frente8, liderado por Ivan Serpa, dotado de uma abordagem mais humanista e fenomenológica, dando posteriormente origem ao Neoconcretismo. Os desdobramentos do grupo Ruptura ganham um caráter inovador com a poesia concreta, por meio da adesão dos poetas Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, que almejavam uma profunda renovação da linguagem poética a partir dos efeitos estéticos resultantes de novas formas de disposição geométrica dos poemas no papel. As revistas Noigandres (1952-1962) e Invenção (1962 -1967) foram, segundo Omar Khouri, importantes veículos de disseminação das novas práticas poéticas (KHOURI, 2006). Na ocasião da 4ª edição da Noigandres, em 1958, foi publicado o Manifesto da Poesia Concreta (Com o subtítulo: Plano Piloto Para Poesia Concreta). Ali, os irmãos Campos e Décio 6

Suas atividades foram iniciadas em 1949, com a exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo (MASP), e a Bienal Internacional de São Paulo (MAM-SP), cuja primeira edição realizou-se em 1951.Também cumpriu papel decisivo na renovação do campo cultural paulista, naquela época, a presença de artistas recém-chegados do exterior, como o próprio Waldemar Cordeiro. Para a formação do Grupo Ruptura (anteriormente Art Club), teve grande importância a exposição de Max Bill, realizada no MASP, em 1950. 7 O grupo era, inicialmente, formado por Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Luís Sacilotto, Lothar Charroux, Kazmer Fejer, Anatol Wladslaw e Leopoldo Haar, com a adesão posterior de Hermelino Fiaminghi, Judith Lauand e Maurício Nogueira Lima. 8 Inicialmente, conforme já citado, o grupo carioca iniciou-se com Mário Pedrosa, Ivan Serpa, AbrahanPalatnik e Almir Mavignier. Posteriormente, fizeram parte do grupo Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim, TheonSpanudis, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica.


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Pignatari deixam claro seu toque inventivo e de criação de "formas novas de princípios novos" (Manifesto Ruptura, 1952, apud CANONGIA, 1987, p. 29). Conforme citamos inicialmente, Pound coloca dois pontos importantes dentro das discussões criticas da poesia, que aqui iremos contextualizá-los no âmbito do concretismo. A abordagem materialista ou cientificista, como coloca este autor, diz respeito a atenção que deve ser dada a materialidade da referida arte, no caso a poesia literária. A linguagem falada e a escrita realizam-se no domínio sonoro e visual, respectivamente. O método adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, exame cuidadoso e direto da matéria e contínua comparação de uma "Lâmina" ou espécime com outra. (...) Para começar do começo, vocês provavelmente sabem que há uma linguagem falada e uma linguagem escrita, e que há duas espécies de linguagem escrita, uma baseada no som e outra na vista (POUND, 2006, pag. 23-26). A revolução formal praticada pela poesia concreta se dá especialmente nessa esfera, na relação analógica9 (ou não-linear) das palavras, ou mesmo sílabas, e como essa disposição visual e sonora pode gerar várias interpretações. A aproximação com as artes pictóricas, sobretudo às abstrato-concretas, vai ao encontro desta ideia de examinar minuciosamente os elementos e as forças relacionais internas à obra. Nessa perspectiva, há uma superação da forma verso, no sentido tradicional do emprego da rima, métrica e ritmo. O segundo aspecto poundiano é advindo da etimologia da palavra "poesia", na língua alemã, quando traduzida para o italiano, traz a palavra "condensar": ditchen = condensare. Segundo Pound, o termo sugere a ideia de síntese ou condensação, e é a partir daí que ele refere-se a aqueles poemas (obras) cujos elementos sígnicos possuem alto grau de harmonia em si e entre eles, a ponto de propiciar uma grande variedades de significados. Neste enfoque, temos que a poesia concreta busca elevar-se a um estado de símbolo gráfico ou ideogrâmico (Figura 1).

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Usamos aqui a palavra analogia no sentido "de processo cognitivo de transferência de informação ou significado de um sujeito particular (fonte) para outro sujeito particular (alvo), e também pode significar uma expressão linguística, correspondendo a este processo, igualmente conhecido por comparação." Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Analogia


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FIGURA 7. BEBA COCA COLA, DÉCIO PIGNATARI, 1957. FONTE: HTTP://WWW.POESIACONCRETA.COM/POEMA/BEBA.HTML

4. A Nova Música no Brasil

Foi a partir dos anos de 1950 que os primeiros compositores brasileiros tomaram contato com a música concreta, instalando-se em Paris e participando do Groupe de Recherche Musicale, junto à equipe de Schaeffer (PALOMBINI, 2013). Segundo Vilholes, o compositor e Maestro Hans-Joachim Keollreutter foi a figura mais importante do cenário brasileiro. Keollreutter, junto ao também músico Ernst Mahle, foram pioneiros na difusão da nova música, centrandose basicamente na Escola Livre de Música da Pró-Arte10, fundada em 1952, no Rio de Janeiro e em São Paulo. (VILHOLES, 2011) Nas conferências ministradas ao longo dessa década, na tentativa repassar as experiências de suas visitas ao velho continente, Keollreutter e Ernst Mahle acabam por ser um dos primeiros introdutores das ideias concretas no Brasil. Nas palavras do próprio Keollreutter, seu entendimento acerca da música concreta: Música concreta. Música sem contraponto, sem harmonia, sem tema e imitação, sem tonalidade e cadência. O princípio da música concreta consiste no fato de que é possível produzir e isolar materiais sonoros elementares, transformá-los integralmente e compô-los de acordo com uma técnica, cujos recursos se encontram hoje á disposição da 10

A Fundação desta escola foi na verdade feita por "Theodoro Heuberger, jovem empreendedor alemão no campo das artes, residente no Brasil desde 1924". Idem, Ibdem, pág. 28-29.


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invenção musical (KEOLLREUTTER, 1952 apud VILHOLES, 2011).11 Segundo o professor e pesquisador Carlos Palombini, a proposta de reformulação estética colocadas por Schaeffer, ao estabelecer novos parâmetros, reduzem o fazer musical a uma condição quase primitiva. Perspectiva essa que dialoga com o mito fundador do modernismo brasileiro, a antropofagia, na medida em que "o primitivismo aparece como signo de deglutição crítica do outro, o moderno e civilizado" (PALOMBINI, 2013, p. 21).

5. Diálogos analógicos em O Vampiro da Cinemateca

Nossa abordagem, na qual segue ao encontro do cinema de invenção de Jairo ferreira, parte então das colocações anteriormente abordadas. Contudo é importante frisar que Jairo Ferreira tenha realizado O Vampiro em meados da década de 1970, porém as reverberações dessa movimentação artística, conforme citamos anteriormente, ainda ressoavam fortemente, e se misturavam as novas correntes da arte brasileira, a exemplo da Nova Objetividade Brasileira.12 Gostaríamos de esclarecer que não é o intuito deste artigo discutir as questões inerentes a esse desdobramento artístico citado no parágrafo anterior. Mas julgamos importante citar/situar que, em meio a toda essa pluralidade artística, havia um fenômeno chamado Tropicalismo. Embora o termo seja proveniente de Oiticica, o lançamento do disco Tropicália (1968), que uniu vários artistas populares como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes e etc., imortalizou iconicamente um período onde o popular (ou o pop) misturava-se ao erudito, o regional ao estrangeiro. O que nos vale aqui sublinhar é a sintonia extrema que havia ali, nas diversos segmentos da produção artístico-cultural, tal como descreve Caetano em seu livro Verdade Tropical: (...) A clareza com que Augusto (de Campos) via o panorama da MPB de então se mostra mais surpreendente quando penso que a impressão de distância que o tom do seu artigo me dava, correspondia a uma condição real: ele não apenas era um poeta de formação erudita como também - em parte por causa da natureza e amplitude dessa erudição, mas sobretudo pela radicalidade do experimento poético a que se dedicava desde os anos 50 - estava à margem tanto das correntes dominantes da intelectualidade brasileira quanto do mundanismo dos ambientes artístico-jornalísticos onde se discutia ou fazia música popular. (VELOSO, 1997, p.0146).

11

Publicado sob o título Um Novo Mundo Sonoro, em 7/8/1952, no jornal Diário de S. Paulo, seção Música, 8. Entende-se por esse termo o movimento artístico decorrente da exposição de artes plásticas no Museu de Arte Moderna em 1967. Este evento reuniu vários artistas, tanto aqueles vinculados às vanguardas da década anterior (Concretismo e Neoconcretismo), como também os da chamada Nova Figuração, movimento então recém-surgido no país, em prol também do retorno ao figurativismo. Este evento teve a participação de: Hélio Oiticica, Lygia Clark, Rubens Gerchman, Lygia Pape, Mário Pedrosa, Carlos Vergara, Sérgio Ferro, Nelson Leirner, Glauco Rodrigues, Mário Pedrosa, Flávio Império, Waldemar Cordeiro, entre outros. 12


372

O Vampiro da Cinemateca foi realizado entre 1975-1977 e, embora sendo um longametragem e filmado totalmente em Super-8, tal filme é destituído de uma narrativa linear ou clássica. O caráter fragmentário, poético e anárquico do filme confere-lhe um ar experimental, tanto pela (re)apropriação "vampiresca" (Figura 2) e antropofágica de outras obras cinematográficas, quanto pelas encenações performáticas do próprio autor e demais artistas da Boca do Lixo.

FIGURA 2. FRAME DE O VAMPIRO DA CINEMATECA, 1977. FONTE: HTTPS://WWW.YOUTUBE.COM/WATCH?V=IGF5X1RAN-Q Não obstante, Jairo naquele momento experimentou uma ferramenta que lhe proporcionava maior liberdade/mobilidade: o formato sonoro Super-8. O Advento do som neste filme deulhe maior capacidade expressiva para experimentação, pelas facilidades na manipulação das bandas sonoras e visuais (PANNACCI, 2013, p. 73). Embora Ferreira tenha roteirazado tal filme, isso só ocorreu posteriormente às filmagens. Jairo tinha boa parte do material ja gravado, de forma aleatoria. Ou seja, a montagem foi que pode dar forma a todo material ja captado, conforme o próprio autor afirma: Bem, eu não tive ideia de fazer um filme, não. Eu parti do fato de que existia uma câmara e as ideias vieram depois. Tanto é que não era para ser um filme e terminou sendo, não é? Eu comecei a filmar de uma forma desconexa, e tal, juntando material pra ver o que iria dar. (...) O processo foi o seguinte: eu comecei a filmar juntando elementos que, aparentemente, eu não via como pudessem ser colocados em um contexto geral. Era uma colagem. Por superposição de material, o negócio estava tão caótico que eu falei: “Bem, vamos ver se eu


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consigo dar uma estrutura a essa colagem”(FERREIRA, 1977 apud PANNACCI, 2013, p. 75)13. Conforme abordamos no item 3, as forças relacionais que emanam dos fragmentos (cenas) isolados tal como são apresentados, requerem do espectador formas não-usuais de leitura. É necessário primeiramente examinar cada trecho (fílmico), cuidadosamente, assim como as "lâminas" citadas por Pound. E posteriormente compara-las umas com as outras, conforme são apresentadas ao longo do tempo. A partir daí se estabelece sentidos gerais e/ou particulares. Em O Vampiro da Cinemateca, Jairo apresenta recorrentemente essas questões, porém no horizonte da linguagem audiovisual. A montagem talvez seja o principal aspecto não-linear deste filme, porém é por ela mesma que ele cria sua "estrutura-conteúdo" fragmentária, informando como a obra está construída. Como exemplo, Jairo subverte as imagens capturadas de filmes ja consagrados, como as de O Cidadão Kane (Orson Welles, 1941), por contrapolas à músicas ou sons/narrações diferentes do filme original. Assim, ele estabelece, neste caso, uma relação de igualdade entre a figura ambiciosa do personagem Charles Foster Kane e a do político brasileiro Ademar de Barros, por sua vez significado, na banda sonora, pelo jingle musical da campanha deste mesmo estadista. Essa resignificação que se dá na relação imagem-som acontece em diversos momentos do longa-metragem, principalmente na referência mor, o filme de José Mojica14: Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967). A característica ou o modo fastasmagórico, apresentados recorretemente, parecem dar a tonalidade geral em O Vampiro. O trabalho com o timbre na locução de voz, no momento da apresentação do filme, apresentando-se distorcido (provavelmente processado/desacelerado, utilizando o efeito pitch dow) recitando a frase de abertura "O Vampiro da Cinemateca. Uma estranha aventura de Jairo Ferreira", tal como as práticas concretas de manipulação sonora asseguram ainda mais o caráter fantasmal desssa obra. No Limite, o conceito de poesia ditchen/condensare, verbete que, segundo Pound, sugere a ideia de condensação, no aspecto dos signos e dos significados, é perceptível tanto na obra como um todo, como em vários momentos do filme. O Vampiro da Cinemateca revela-se como um estudo metalinguístico, antropofágico e de profunda reflexão sobre o cinema enquanto arte. Jairo consegue, em uma única obra, reunir vários elementos que, em sintonia com outros tantos artistas e movimentos de vanguarda, citados aqui, também exploraram sua ferramenta/instrumento incansavelmente.

13

Pannacci detalha a seguinte nota: "Atenção, câmera, ação: Super-8 in Cinema em Close-up nº 76, 1977. Entrevista com Jairo Ferreira; na revista não há qualquer informação sobre a identidade do entrevistador." 14 Também conhecido como Zé do Caixão.


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A realidade fotográfica ou a fotografia do real? Sandro de Souza Novaes (PPGA-UFES)

Resumo No texto que se segue fazemos um breve histórico, concordante com o olhar do filósofo Tcheco, naturalizado brasileiro, Vilém Flusser, sobre o aparecimento das imagens técnicas a partir da fotografia, que, através das etapas de desenvolvimento de seus conceitos e aparelhos geradores de cópias do mundo real, possibilitou a criação da imagem em movimento e deu origem ao vídeo. Prosseguimos então, analisando, baseados na produção teórica de Hito Steyerl, a entrada das obras videográficas - em especial a produção documental, nas práticas artísticas contemporâneas, comentando sobre os trabalhos “Lixo extraordinário” de Vik Muniz e “Z32” de Avi Mograbi e ressaltando algumas modificações basilares na percepção da realidade que vieram atreladas a essa fusão.

Palavras chave: fotografia, imagem técnica, documentário, arte visual

Abstract This text present a brief history, consistent with the view of the Czech / Brazilian philosopher Vilém Flusser about the birth of the technical images since the advent of photography, which, through the development stages of its concepts and apparatus generators of real-world's copies, enabled the creation of the moving image: the video. Proceed, then, analyzing- based on the theoretical work of Hito Steyerl -, the entry of videographic works - especially the documentary production in contemporary artistic practices, commenting the works "Lixo extraordinário" and "Z32" from the artists: Vik Muniz and Avi Mograbi, highlighting some basic changes in the perception of reality that came linked to this merger.

Keywords: photography, Technical image, documentary, visual art


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As imagens técnicas (da fotografia ao vídeo) A representação mimética do mundo e as suas relações com a realidade, vem sendo discutida há centenas de anos através das práticas artísticas, até ser quase que deixada de lado, e por um momento foi, pelos pintores franceses na segunda metade do Sec. XIX, quando esses buscavam alternativas de se desvencilhar de uma imposição classicista / academicista. Essa quebra foi reforçada com o surgimento e o rápido aprimoramento das novas técnicas de reprodução da realidade: as imagens técnicas. Imagens técnicas são imagens geradas por aparelhos, dentre muitas, pode-se dizer que a fotografia foi e ainda é a mais importante, criada por Niepce em 1826 (fig. 01), essa passou a ser considerada o melhor e mais fiel modelo de representação do mundo, obrigando as práticas pictóricas a se reinventarem, focarem nos seus próprios meios e características

Fig. 1: Fotografia Point de vue du Gras (1826) - Joseph Nicéphore Niépce. 20 x 25cm.


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Os novos meios de produção que utilizam a tecnologia em favor da criação artística (destacando a fotografia e o vídeo) possibilitam um enriquecimento dos estudos processuais da experiência do trabalho de arte. Elevando assim, as possibilidades de criação para uma nova dimensão descontinuada espaço-temporalmente. O vídeo, derivado direto da fotografia, acarretou um profundo impacto sobre a arte e os meios de comunicação de massas em meados do século. Este, pode-se dizer, contribuiu potencialmente para essa citada desmaterialização da obra de arte com a promoção da imagem não palpável e efêmera, além dos conflitos Benjaminianos sobre a facilidade da reprodução, atualizando e embasando ainda mais as questões a respeito do assunto que já vinham sendo discutidas. Seguindo a linha de raciocínio do filósofo da imagem Vilem Flusser, entramos, com o advento da fotografia, na era pós histórica da humanidade que ruma para um completamente desconhecido futuro, estamos vivendo a era da revolução cultural das imagens, que de simples representações do mundo: desenhos, pinturas, e esculturas, migraram para as imagens técnicas: o instantâneo fotográfico e a desmaterialização da imagem televisiva, de vídeo, que ainda mantém uma aproximação com o real, e rumam em direção às imagens sintéticas criadas por códigos, derivadas de uma ciência aplicada que possibilitou aparato tecnológico para produzi-las e que incorporam uma nova capacidade de imaginar o mundo.

Destarte vai surgir zona imaginária nova entre o homem e seus conceitos, através da qual o homem vai poder imaginar os seus conceitos [...] o universo das imagens técnicas (fotos, filmes, vídeos, imagens sintetizadas por computador), vai se densificando [...] (FLUSSER,1996 , 67)

Todos esses novos meios de criação de imagem foram incluídos nos processos de criação pelos artistas, que, cada vez mais, tornaram-se capazes de provocar e ao mesmo tempo enriquecer suas práticas, libertando-se da obrigatoriedade de seguir um padrão esteticista nas obras realizadas.


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Os aparelhos tornaram-se, com o passar do tempo, mais acessíveis e portáteis, o que facilitou a dispersão dessas imagens, e retirou das mãos das grandes empresas essa hegemonia sobre a representação. A partir de então quase qualquer pessoa poderia munir-se de um dispositivo de produção de imagem e produzir as suas próprias. Essa nova era, de captação e tradução simultânea da realidade possibilita mudanças e novas aplicações nas artes, tais como: vídeo performance, manipulação de imagens, montagens, teleconferências

e

documentários

que

foram

rapidamente

assimiladas

pela

arte

contemporânea. A união entre a arte e o vídeo, nasceu em uma época de profundas modificações políticas e críticas, o que acarretou diretamente no contexto dos resultados obtidos por essa práticas nos seus primórdios, grande exemplo dessa situação são as vídeo performances do grupo Fluxus, formado por artistas, escritores, cineastas e músicos, que davam prosseguimento às ideias Duchampianas de que o espectador além de completar a obra de arte, torna-se parte dela, com sua participação direta no evento.

Fig. 2 Still do vídeo Semiotics of the Kitchen, (1975 ) de Martha Rosler.


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Segundo Michel Rush, em meados dos anos 50 e 60 os artistas começaram, de maneira mais independente, a fazer filmes, a maioria deles trabalhava com outros meios e acabaram migrando para o vídeo, o que trouxe para essa prática questionamentos referentes às práticas as quais os mesmos estavam inseridos anteriormente, como as questões relativas à pintura: cor, composição, tonalidades, etc. Assim como haviam também os que iniciaram sua prática artística, já através do vídeo.

O fervor pela experimentação cinematográfica atingiu o clímax nos anos 50 – 60, primeiro nos Estados Unidos e, depois, na França. Em 1923 a Eastman Kodak company produziu um filme de 16 mm para amadores, mas mesmo ele era caríssimo para artistas mais independentes. Em meados do século, quando o seu uso tornou-se mais comum, artistas, embora ainda em numero relativamente pequeno começaram a fazer filmes. (RUSH, 2013, p21).

A câmera passa a ser uma extensão do corpo e assim, cria uma relação de dependência e completude, estabelecendo então, uma nova esfera de atuação entre o corpo e a máquina a partir dessa junção. O artista que produz a imagem e o observador que a recebe inauguram um novo lugar, onde o filme, gera uma ligação de significado e sentidos, uma ponte conceitual que interliga-os, conferindo novas possibilidades de apreensão da obra.

A produção videográfica da verdade

Dentre todas as formas, meios e técnicas de produção artística que englobam a utilização do vídeo, o documentário passou a ser considerado um dos mais importantes, principalmente se pensarmos no contexto contemporâneo de discussões sócio-políticas, dentro do ambiente da arte. Da segunda metade do sec. XX em diante, os artistas vem apropriando-se de técnicas e conceitos característicos da produção documental, antes voltada somente para áreas de comunicação, investigação e jornalismo. Alguns artistas de vanguarda desde o início do século passado já haviam adotado o vídeo como parte de suas experimentações visuais, mas,


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como citado acima, a partir dos anos 50 e 60 as artes apropriaram-se das novas tecnologias possibilitando assim, uma expansão dentro das suas possibilidades de concepção. A partir dessa conexão que aproximou meios e técnicas foi possível o desenvolvimento de uma área específica, dentro do âmbito artístico, entre vídeo-arte, cinema, telejornalismo, fotografia, texto, todas as possíveis formas de registro que pressupõem um comprometimento direto com a verdade. Alguns trabalhos produzidos sob o rótulo dessa arte documental passaram a adotar características que aludiam a uma possível realidade do mundo, enquanto que outros trabalhos, em contraposição, seguiam uma forma experimental, possibilitando leituras mais subjetivas, segundo Hito Steyerl em La política de la verdad:

Las obras didáticas y realistas se alternan com producciones documentales más reflexivas y experimentales, com arreglos visuales que se reflejan em lá organización de los documentos y en las subjetividades asi generadas. (Steyerl, 2004). Dessa forma passamos compreender a história do documentário como uma tentativa de esboçar estratégias de abordagem capazes de produzir imagens verdadeiras atreladas a uma confiança em uma imagem que em último caso seria passível de coincidência com o próprio mundo real.

Isso porque os vídeos documentários são conhecidos como uma prática cinematográfica atrelados e ou na maioria da vezes envolvidos com uma ideia de comprometimento com o real, com a verdade. Essa hipotética ligação, acarreta assim, uma responsabilidade político/social como representação direta do mundo. Mas, essa suposta verdade correspondente gera um problema: as imagens documentais não são, em sua maioria, uma representação direta do mundo com forte apelo politico/social como parecem ser, elas se baseiam nos padrões realistas que supõem um ligação direta entre a imagem e o objeto como nos mostra Steyerl:

Las formas documentales no son uma representación sencilla y transparente de los sucesos políticos y de las condiciones sociales,


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como muchos casos usos contemporáneos de los estilos documentales dan a entender. (Steyerl, 2004).

A autora cita Michel Foucault em seu livro “Vigiar e punir”, no qual fala de uma política da verdade, termo que indica uma ordem social da verdade capaz de produzir e decidir sobre ela, e que está indispensavelmente acoplada às relações de poder. Esse poder e o conhecimento se confundem na organização e na produção de determinados fatos e de suas interpretações, lançando mão de técnicas e procedimentos de produção, que expõem, supostamente, sem deixar dúvidas, a verdade, para produzirem uma verdade aparente, uma pseudo-realidade. Nos vídeos documentais essas técnicas são: testemunhos, depoimentos, filmagens trêmulas, som ambiente, etc; todo tipo de convenções que faça o espectador, por associação direta, acreditar que o que ele observa tenha uma ligação direta com o mundo que ele conhece, vive, e observa.

FIg. 3. Gravação de documentário – exemplificação das técnicas de produção da verdade


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Quando os artistas começaram a apropriarem-se das formas documentais eles herdaram, com essa produção, alguns problemas já bastante conhecidos pelos cineastas da verdade, das formas documentais, por serem conhecidas e ou usadas como possibilidade de expor a verdade, de colocar em cheque os acontecimentos sem censuras. Segundo Steyerl (2004, p.x), “Esse tipo de produção é diretamente atrelada a relações de poder político e social, e consequentemente com os principais complexos de poder e conhecimento da lei, da ciência e do jornalismo”. Irremediavelmente as instituições de poder estão no controle das formas de produção da verdade, cabe a arte, desmistificar essa relação, evitando a adequação à essas regras supra citadas, a arte deve quebrar essa relação do poder que domina e determina a verdade, lançando mão das possibilidades que o gênero dispõe e usar as técnicas de produção de modo que permita a subversão dos valores impostos. Segundo Foucault:

“toda forma de exercer o poder que se encontra disperso por toda a sociedade constitui uma governamentabilidade, um governo é construído baseado no entendimento dos processos que envolvem uma população e a utilização de recursos técnicos para suas ações.” (Foucault, ver ano)

As formas documentais podem adquirir funções de governamentabilidade a partir do momento que as imagens produzidas dessa forma se relacionam historicamente com as tecnologias aplicadas para impor a ordem; o controle: vigilância, normalização, investigações, estudos de casos e outras técnicas utilizadas por instituições como a polícia por exemplo. Dessa forma, essa produção de uma verdade documental pode ser denominada como uma documentalidade, a partir do momento em que ela se entrelaça com as formas de governamentabilidade. Essa documentalidade expõe uma infiltração de uma política da verdade documental, ou seja, traz em si, na sua essência, questões diretamente ligadas à formações políticas, sociais, e epistemológicas. Ela pode ser enxergada como uma intercessão, um ponto fundamental que transforma em política de governo uma verdade documental e que também pode tornar uma verdade documental em uma política governamental. O que acaba acarretando é uma herança dessas


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formas de controle para o ambiente artístico, a partir do momento que os artistas começam a trabalhar com essas formas documentais dentro dos ambientes expositivos, característicos da instituição arte.

A documentação da realidade nas artes visuais A partir dos anos 90 uma produção significativa de trabalhos artísticos produzidos sob o suporte de vídeo passaram a circular em galerias, salões, exposições, festivais e museus. Esses artistas utilizam da forma documental, dos vídeos-documentários para experimentar novos formatos e traçar estratégias narrativas que resultam da relação direta do vídeo (herdado da fotografia) da representação direta do real; do político/social; do mundo. Contudo, essa produção de determinados grupos de artistas dentro do âmbito artístico contemporâneo, aparentemente, não pretende fazer a ligação com o real como pretende a produção do cinema documentário, esses artistas, hoje, discutem essa produção como uma subversão das tradições, norteando novas experiências, fazendo com que essa produção do documentário dentro da arte contemporânea seja deslocada do seu lugar comum de traduzir experiências diretamente conectadas com o mundo e com a verdade. Dentro do campo das artes visuais, na contemporaneidade, as formas de trabalhos que seguem a lógica das técnicas documentais, reivindicam uma certa autenticidade que tenta garantir que as obras façam um link direto com o campo político, com uma realidade social. Os mecanismos formais empregados muitas vezes são sociais e realistas e tratam de se manterem o mais transparentes e verdadeiros possível. Ela busca pela exposição da autenticidade.


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Fig. 4: Still do filme Lixo Extraordinário (2010), de Vik Muniz.

O documentário Lixo extraordinário, do artista brasileiro Vik Muniz ajuda a ilustrar essa ideia de um trabalho documental que está inserido no ambiente da arte e que neste caso, é feito para descrever uma verdade da política, um certo genuíno do social. Steyerl lembra que:

“o perigo dessas formas sócio realistas que frequentemente expõem (e exploram) as misérias da globalização, permite que as informações aparentemente neutras sobre os problemas sociais e políticos criem um certo voyeurismo do sofrimento, incluindo um sistema de visão panóptica, o qual gera uma posição de vigilância e impotência para o espectador”.(Steryerl, 2004, p. x)

Em contrapartida, do outro lado da coisa, existe outro modo de produzir documentário, mais instigante, melhor estudada que percebe que as técnicas, os meios e as ferramentas usadas na produção das formas documentais, podem ser subvertidas dessa documentalidade e aplicadas numa questão de construção do conhecimento social.


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Nestas obras não existe intenção alguma de descrever a verdade da política mas sim questionar e mudar a política da verdade na qual sua representação se baseia.

Fig. 5: Still do filme Z32 (2008), de Avi Mograbi.

Em Z32 Um soldado israelita conta para Avi Mograbi como matou a sangue frio um inocente durante uma operação de guerra. Exemplo de uma forma documental reflexiva, onde o autor subverte as formas documentais para gerar epistemologicamente uma leitura subjetiva, simplesmente inserindo uma máscara no soldado, generalizando, retirando a identidade do assassino e colocando, empiricamente, seu rosto verdadeiro em qualquer um que assista ao trabalho. Como quem diz: “ - Pode ser você!” As próprias formações visuais e epistemológicas do documentário se definem como funções políticas, mas com as formas documentais reflexivas que contrapõe as formas acima citadas, também existe o perigo de gerar uma espécie de reflexividade ociosa que pode retirar toda a questão ética tratada na obra e gerar um comodismo por parte do observador que torna-se passível diante do que vê. Como visto, é possível, por meio da arte, em certas situações o rompimento da imagem documental com as políticas de poder e o conhecimento. Essa verdade não pode ser produzida, nem calculada, não é objetiva, nem universal. Partindo desse pensamento chegamos à conclusão que é possível afirmar que um documentário pode ser verdadeiro


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principalmente por não estar relacionado com uma governamentabilidade que policíia a verdade retratada na obra. As articulações e técnicas de produção documentais não podem ser totalmente controladas, e ou domesticadas pelos discursos dominantes, pode-se produzir uma verdade, mas, através de uma subversão de valores, e técnicas que conectam epistemologicamente, artista e observador que passam a desfrutar de uma verdade sensivelmente real.


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As fotografias de Moyra Davey como objeto teórico e ato de reinvenção do meio. Marianna Pedrini Bernabé (PPGA-UFES)

Resumo: Este texto busca reunir condições teóricas e reflexivas para investigar uma série de trabalhos fotográficos produzidos pela artista canadense Moyra Davey de 2009 a 2014. Para isso, são consultadas referências tradicionais da literatura produzida sobre a fotografia, como A Câmara Clara de Roland Barthes, Sobre Fotografia de Susan Sontag e Pequena História da Fotografia de Walter Bejamin; assim como um recente ensaio que realiza uma análise de trabalhos artísticos ocidentais pós-conceituais, Reinventing the Medium de Rosalind Krauss. Palavras-chave: Moyra Davey, fotografia, arte pós-conceitual. Abstract: This text aims to bring together theoretical and reflective conditions to investigate photographic works series produced by the Canadian artist Moyra Davey from 2009 to 2014. Thereunto, traditional references about photography are consulted as Camera Lucida by Roland Barthes, About Photography by Susan Sontag and Short History of Photography by Walter Benjamin; as well as Reinventing the Medium by Rosalind Krauss, a recent essay that develops an analysis of western post-conceptual artwork. Keywords: Moyra Davey, photography, post-conceptual art.

Em uma entrevista concedida a Kunsthalle Basel1, Davey afirma que decidiu se tornar artista aos doze anos de idade. Segundo ela, suas fortes dificuldades de expressão verbal fomentaram uma necessidade de se expressar visualmente – e, mais tarde, de superar essa debilidade através da escrita. Esse desejo fora levado consigo até a faculdade de artes onde, após uma pausa de dois anos, decidiu finalmente que utilizaria a câmera fotográfica para a realização de seus trabalhos. A artista ainda exibe algumas imagens executadas durante sua juventude, onde se predominam retratos (de amigos, namorados, familiares) e autorretratos, e até mesmo realiza apropriações desse antigo material em projetos recentes (Les Godesses, 2011), mas sua produção visual se inicia mais consistentemente após a finalização de seu MFA na

1

DAVEY, Moyra. Apud. SZYMCZYK, Adam. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews Moyra Davey. P. 150. Disponível em: http://murrayguy.com/wpcontent/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (acesso em 30 de março).


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Universidade da Califórnia em San Diego, quando a artista decide abordar um dos temas que se tornariam mais paradigmáticos dentro do corpo de seu trabalho: o dinheiro. Este tema esteve presente em diferentes épocas de sua produção visual e literária. Ainda em 1988, quando a artista finaliza seu curso de mestrado e passa a residir em Nova Iorque, ela produz um filme em super 8 chamado Hell Notes; elabora fotografias em close-up da moeda americana, onde são retratadas ilustrações de pessoas, carros e desenhos lineares nas notas de dólares americanos (Banknotes, 1989), assim como fotografa cem perfis de Abraham Lincoln de cem diferentes moedas de 1 centavo de dólar (Copperheads, 1989-1990) (Figuras 3 e 4). Esta última série foi exibida variadas vezes logo após sua finalização, e depois novamente exposta, segundo a artista, em 1993 e 2010 – coincidentemente, de acordo com ela, no auge das crises econômicas. Em 2013, ela retoma essa mesma série e produz mais uma centena de perfis de Abraham Lincoln. Entretanto, seu trabalho fotográfico neste ponto, já havia enfrentado uma importante torcedura, onde a artista passa a intervir na superfície da imagem fotográfica através da escrita, colagem de selos e dobra, e envia-a a diferentes destinatários. O trabalho, após tais intervenções e envio, é exibido ao final desse processo com as marcas do deslocamento. Em 2014, na elaboração de um vídeo em HD de trinta minutos (My Saints, 2014), Davey reproduz uma cena do filme Suzanne’s Career (Érich Rohmer, 1963), que aborda igualmente a temática do dinheiro. Neste trecho, um dos personagens do longa, Bertrand, que mantém suas economias guardadas entre as páginas de um livro – ironicamente, um romance cujo título é Diário de um ladrão, de Jean Genet – é furtado por um dos outros personagens do filme após negar sucessivos empréstimos a seus amigos e mentir, dizendo que não tinha dinheiro. A cena escolhida por Davey é a do personagem procurando desesperadoramente e sem sucesso as notas guardadas entre as páginas do volume. Tal cena também busca reproduzir um excerto da própria narrativa de Genet, quando ele menciona ter furtado o dinheiro de um colega que estava guardado entre as páginas de um livro. Quando a vítima descobre o desaparecimento e se põe a revirar seus pertences, Genet afirma tê-lo observado sossegadamente e saboreado a angústia dominar sua face e comportamento.


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Além disso, Davey também leva essa discussão sobre o dinheiro para um ensaio publicado em 2014, o livro Burn the Diaries, no qual é revelado o seu interesse por Jean Genet e onde são descritas as cenas do Suzanne’s Career e Diário de um Ladrão. A leitura e escrita são temas também extensivamente trabalhados pela artista em seus projetos visuais e literários. No início da década de noventa, Davey inicia uma documentação de bancas de jornais (Newsstands, 1994), mencionadas na introdução desta pesquisa, onde ela afirma efetuar a extensão de um projeto de documentação de manchetes de jornais e onde se verifica a forte influência que o fotógrafo francês Eugéne Atget (principalmente suas bancas de jornais fotografadas em Paris) tem sobre o seu trabalho visual. De 1996 a 1999 ela desenvolve uma série fotográfica intitulada Books, onde aparecem conjuntos de lombadas de livros, prateleiras abarrotadas de volumes, dicionários descomunais etc. E em um trabalho que se inicia em 2011 e que ela intitula de Subway Writers, a artista fotografa pessoas anônimas dentro de vagões de metrô em Manhattan operando tarefas que envolvem a escrita à mão: crianças fazendo o dever de casa, mulheres fazendo contas, estudantes desenvolvendo revirando páginas e textos etc. Outra importante proposta desenvolvida pela artista envolvendo a leitura e escrita é o Les Goddesses (2011), vídeo HD de sessenta e um minutos que fora exibido na Whitney Bienal de 2012, em que Davey aparece dentro de seu apartamento recitando um de seus textos, The wet and the Dry, com a ajuda de um microfone e fones de ouvido. A narração se ocupa da vida de três mulheres do século XIX, filhas de Mary Wollstonecraft: Fanny Imlay, Mary Wollstonecraft Godwin (mais tarde, Mary Wollstonecraft Shelley, a mãe do Frankestein) e Claire Claremont, sua meia irmã. As três irmãs, que recebiam como apelido “les goddesses” de um amigo da família (nome que também intitula o vídeo), foram trágica e romanticamente envolvidas com o poeta Percy Bysshe Shelley, um dos problemas desenvolvidos na narrativa. A autora, assim, sobrepõe relatos de experiências pessoais e acrescenta fotografias da sua juventude com a intenção de criar conexões - extremamente subjetivas e com tom supersticioso - entre sua vida e a das quatro personagens. Um dos pontos centrais desenvolvidos durante o vídeo com a ajuda dessas sobreposições - que além de biográficas, são também temporais - é a perspectiva atual que envolve um compartilhamento de informações sobre a vida privada e, ao mesmo passo, a necessidade também contemporânea do mantimento da privacidade. Se, ao fim do vídeo, temos acesso visual aos cômodos de sua casa, assim como a alguns dados de sua biografia, ela mantém um tom de distanciamento ao


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nos negar imagens que criem noções de intimidade e nos oferece informações confusas e pouco precisas. Outro de seus trabalhos envolvendo a leitura e escrita é o ensaio The Problem of Reading, em que a artista tem como objeto de investigação a natureza e os problemas que envolvem o processo de leitura. Para isso ela recorre às estratégias pontuadas por Georges Perec, Harold Bloom, Virginia Woolf, Ítalo Calvino, Oscar Wilde, Jorge Luis Borges, Frans Proust, Gregg Bordowitz e Frans Kafka. Um outro tema muito desenvolvido dentro do corpo de sua obra é a documentação de interiores, onde se apresenta uma clara preocupação com questões práticas da vida doméstica. Um de seus primeiros trabalhos que apresentam tais assuntos é uma série de fotografias (dentre elas: Long Life Cool White, Pilon, Glad e Nachamiki) realizadas em 1999, nas quais são apresentadas cenas de caótica desorganização doméstica: lâmpadas fluorescentes encardidas em primeiro plano diante de um fundo com uma mesa e prateleira abarrotadas de livros; superfícies lotadas de embalagens de alimentos, garrafas e quinquilharias; uma geladeira antiga com o topo tomado por caixas; prateleiras com eletrônicos obsoletos e danificados etc. Tal tema também se encontra presente em sua coletânea Mother Reader – Ensencial Writings on Motherhood, onde Davey comenta variados problemas que afetam as mulheres artistas e escritoras quando estas lidam com a gestação e a criação dos filhos. A sujeira e desorganização são um dos temas abordados pela artista através de sua seleção de ensaios. Um outro trabalho que deixa muito evidente o interesse da artista pelos emblemas domésticos é a série fotográfica 16 Photographs from Paris (2009), onde ela apresenta uma Paris quase que totalmente contida dentro de interiores. Abundam fotografias de restos de bebidas e comidas em cafés, mesas desorganizadas assinalando momentos de trabalho e | ou estudo, uma pilha de jornais empoeirados etc. As poucas imagens executadas em ambientes abertos, assinalam uma aproximação exacerbada e que enquadra itens de caráter intimista: lápides de cemitérios com cartas, flores, presentes e fotografias em homenagem a falecidos. A artista também demostra um significativo interesse, bem esmiuçado em sua narrativa Notes on Photography & Accident, na ideia da casualidade (accident) como a força vital (lifeblood) do ato e imagem fotográfica, tentando encontrar meios de dialogar tal noção com as últimas tendências na fotografia contemporânea.


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Para isso, ela recorre a diferentes autores que elaboram um estudo da natureza da foto amparados por dados históricos, reflexões que visam definir esse meio dentro de uma especificidade, ou estudos a partir de sua condição pressupostamente referencial. Dentre esses autores por ela discutidos estão Walter Benjamin, Susan Sontag e Roland Barthes. Em A Câmara Clara de Barthes, o que chama a atenção de Davey e que a instiga a ponto empregar tal ideia na defesa da noção da casualidade como elemento intrínseco da imagem fotográfica, é a definição do punctum, que segundo o escritor é (...) picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere).2

Em oposição ao punctum está o studium, descrito pelo autor como uma espécie de interesse médio que determinada composição fotográfica exerce sobre ele quando esta possui uma característica ou particularidade relacionada a questões e conhecimentos da cultura moral e política da qual ele é oriundo. O punctum, pelo contrário, é descrito como o elemento inesperado e desconcertante que intriga e fere o observador de uma forma única, particular e que, portanto, não pode ser mediado por conhecimentos e valores precedentes. Já na narrativa de Benjamin, Pequena História da Fotografia, a artista resgata uma parte de um excerto onde o autor comenta a natureza contingente do ato fotográfico: Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muitos extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás. 3

O aqui e agora representam o momento do clique, aquilo que o observador sente a necessidade irresistível de descobrir com a intenção de desvelar o lugar onde a imagem fora executada, lugar que não mais existe mas que incita o observador a procurar desvendá-lo. Por fim, Davey também elenca uma citação de Sontag sobre as convicções do fotógrafo sobre o ato de captura da imagem: “Most photographers have always had na almost supersticious confidence in the lucky accident”4.

2

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984. P. 45-46. BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. P. 94. Disponível em: https://seminariostecmidi.files.wordpress.com/2012/02/benjamin-walter-pequena-historia-da-fotografia.pdf (Acesso em 30 de março). 4 SONTAG, Susan. Apud. DAVEY, Moyra. Notes on photography & accident. P. 1. (Acesso em 30 de março). 3


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A questão que consequentemente vem à tona é não apenas como essa casualidade, que artista vê como elemento fundamental do suporte com o qual trabalha, se caracteriza dentro de suas propostas fotográficas, mas o porquê de se trazer esse aspecto (e não outros) como elemento preponderante para discutir suas imagens. Pois é importante ressaltar que a narrativa Notes on Photography & Accident não fora publicada isoladamente como uma série de pareceres sobre a fotografia contemporânea de maneira genérica, e sim como parte de um catálogo que documentava uma de suas exposições individuais5. Sobre isso, logo na primeira página de seu ensaio, após as citações, Davey afirma: The notion of accident has had many meanings, from “decisive moment” to “photographing to see what something will look like photographed” (…). 6

Suas duas interpretações da palavra apontam, sobretudo, para as noções de impermanência, contingência e uma constante mutabilidade da matéria e/ou da visualidade desta que, dependendo da perspectiva ou postura do fotógrafo, podem ser captadas ou apreendidas num momento decisivo que passa diante de seus olhos ou descoberta/desveladas através de um olhar inquieto e investigativo dele sobre a realidade aparente. A artista parece oscilar conscientemente entre essas duas alternativas de exposição do casual. Se em uma fotografia de sua série The White of Your Eyes (for Bill Horringan) (2010) (Figura 1) a lente registra um disco de vinil em movimento numa vitrola cujo braço afasta a agulha de sua superfície (indicando que, no momento de captura da imagem, uma canção terminara), em outros casos, como em toda a sua série Copperheads (trabalhos que se iniciam em 1990) (Figuras 3 e 4) a câmera se aproxima violentamente de seu motivo, as moedas de um centavo de dólar, tornando não só evidente como quase palpáveis (o apelo sensorial aqui é inegável) o desgaste e sujeira em suas faces.

5

A exposição Long Life Cool White, realizada The Fogg Art Museum, Harvard University, Cambridge, MA. DAVEY, Moyra. Notes on Photography & Accident. Nova Iorque: 2007. P. 1. Disponível em: http://74.220.219.113/~murraygu/wpcontent/uploads/2012/02/Davey_Notes_on_Photography__Accident.pdf (Acesso 30 de março). 6


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FIGURA 1 - DETALHE - THE WHITE OF YOUR EYES (FOR BILL HORRINGAN), MOYRA DAVEY, 2010. IMPRESSÃO FOTOGRÁFICA, FITA ADESIVA, SELO, TINTA, 30 X 40 CM CADA. KUNSTHALLE BASEL, BASEL, SUÍÇA.

Em uma entrevista concedida a Kunsthalle Basel em 2010, Davey afirma haver realizado o uso de um microscópio para efetuar tais imagens que, segundo ela, são realizadas “in the most forensic, controlled method available (...)”7, o que reforça ainda mais uma noção de pesquisa microscópica e investigativa do cotidiano. Por outro lado, o vinil em movimento acima prato giratório da vitrola, assim como o braço desta afastando-se, apresentam o registro de um evento que se lança aos olhos do transeunte (ou do flanêur8) deixando-se capturar durante um ínfimo instante. Em 2007, como citado, parte de seu trabalho sofre grandes transformações em seu processo construtivo: num projeto realizado em sua galeria em Toronto, Goodwater, as fotografias passam a ser tratadas como postais ou envelopes de cartas (dobradas, fixadas com fita adesiva, portando selos e informações manuscritas, e realizando deslocamentos geográficos). 7

DAVEY, Moyra. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews Moyra Davey. Basel: Sternberg Press, 2010. P. 141. Disponível em: http://murrayguy.com/wpcontent/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (Acesso em 30 de Março). 8 Ela se define como “a flâneuse who never leaves her apartment.” DAVEY, Moyra. apud. WEISBERG, Jessica. Can self-exposure be private? Disponível em: http://www.newyorker.com/culture/culture-desk/can-selfexposure-be-private (Acesso em 30 de Março).


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Sobre essa experiência, ela afirma (em uma entrevista realizada em 2010 para a Kunsthalle Basel): (...) I loved the process so much – treating the photograph as a piece of paper to be folded, written on, and taped, as opposed to the kid-gloves approach to the fine print that must at all costs remain unblemished and end up in a frame – that I decided to repeat it (…) The process is about (…) the accretion of time and wear on the object, returning the photograph to its status as paper, the liberation of leaving some things up to chance, and the idea of an exchange with a specific person. 9

Estas séries específicas do seu trabalho, assim como seus atuais desdobramentos são, a meu ver, suas mais intrigantes propostas, pois produzem uma forte adequação e equivalência entre o preponderante motivo fotografado (a casualidade), a sua materialidade e experiências constitutivas e, por fim, seu modo de exibição. Como a artista afirma, a fotografia regressa a seu estatuto de papel quando dobrado e, assim como a carta e o postal, vira superfície da escrita, fita, cola, selo e passa pelos correios deixando possibilidade para a intervenção do acaso, guarda as marcas dos deslocamentos e propõe uma espécie de intercâmbio. Apresenta ainda um meio alternativo de exibição, fora do espaço institucional, e quando o faz dentro deste espaço procura por um tratamento diferenciado do trabalho fotográfico ao optar por não isolá-lo dentro de molduras e fixá-los diretamente às paredes (Figura 2).

9

DAVEY, Moyra. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews Moyra Davey. Basel: Sternberg Press, 2010. P. 146. Disponível em: http://murrayguy.com/wpcontent/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (Acesso em 30 de Março).


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FIGURA 2 - THE WHITE OF YOUR EYES (FOR BILL HORRINGAN), 2010. 24 FOTOGRAFIAS, FITA, SELO, TINTA. 30 X 45 CM CADA. VISTA DA INSTALAÇÃO, KUNSTHALLE BASEL, BASEL, SUÍÇA.

Assim sendo, Davey seleciona a noção de casualidade como fulcral dentro de seu desenvolvimento teórico porque esta está inequivocamente presente em seu trabalho visual. Entretanto, este não é o único aspecto sobressalente de sua proposta plástica. Seu trabalho se constrói, igualmente, a partir de um estudo sobre as convenções imagéticas que determinam o ato de captura da imagem. Suas fotografias ilustram cenas – bancas de revistas, restos de comida em mesas de cafés, superfícies empoeiradas, pilhas de jornal, botões antigos, aparelhos eletrônicos obsoletos, moedas de um centavo etc. – onde se desdobra uma fluidez, nitidez, apelo tátil e caráter nebuloso pouco compatíveis com as designações e descrições tradicionais do termo. Roland Barthes, por exemplo, em seu clássico livro A Câmara Clara10, afirma sobre a natureza da superfície fotográfica: Tal foto, com efeito, jamais se distingue de seu referente (do que ela representa), ou pelo menos não se distingue dele de imediato ou para todo o mundo (o que é feito por qualquer outra imagem, sobrecarregada, desde o início e por estatuto, com o modo com o objeto é simulado) (...) Por natureza, a Fotografia (é preciso por comodidade aceitar esse universal, que por enquanto apenas remete à repetição incansável da contingência)

10

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A., 1984. 185 p.


397 tem algo de tautológico: intransigentemente.11

um

cachimbo,

nela,

é

sempre

um

cachimbo,

Em oposição à afirmação de Barthes, em muitas das fotografias de Davey a foto se distingue de imediato do referente retratado. A aproximação violenta que a lente da câmera faz com alguns de seus motivos (os exemplos das moedas de um centavo de dólar com os perfis de Abraham Lincoln são paradigmáticos – Figuras 3 e 4) faz com que a associação à algum referencial só se torne possível depois do primeiro olhar. E ainda que esse fator seja notável durante um segundo exame, não consegue subordinar outros aspectos da composição fotográfica a seus desígnios.

Figura 3 e Figura 4 – Copperhead nº 30 e Copperhead nº 48, 1990. C-prints, 61X47,5 cm.

Elas possuem algo de fragmentário, nebuloso, abstrato que impedem ao observador a realização de uma aproximação mnemônica ou afetiva, ao mesmo passo que impelem uma nitidez e tatilidade abruptas. E é exatamente por isso que suas imagens (que vão muito além dos rápidos exemplos acima) não conseguem ser abordadas de modo completo através da historiografia tradicional, ainda que tão bem quistas por Davey. Tais trabalhos necessitam de um diálogo que consiga absorver esses aspectos tão pouco comuns às reflexões “ortodoxas” a

11

Ibid. P. 14-15.


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respeito da imagem fotográfica e devido a esse motivo optei por recorrer às análises de Rosalind Krauss. Krauss elabora, em seu Reinventing the Medium12, uma reflexão a respeito da imagem fotográfica que a retira de seu invólucro referencial e específico, e a discute como elemento constitutivo de um processo laboral que a situa, em termos teóricos, em diálogo com questões relativas ao seu caráter técnico, instrumental e à sua condição de obsolescência. Esse meio (medium), como bem explicita Krauss, não faz referências aos “tipos” de arte já solapados através da crítica conceitual (pintura, escultura, desenho, arquitetura etc.), mas ao meio como uma série de convenções derivadas (mas não idênticas) das condições materiais de dado aparato técnico. Em outras palavras, o medium é, dentro deste contexto, uma espécie de produto de um instrumento (já em processo de obsolescência) apropriado pelo artista e cujo uso se torna alargado para diferentes possibilidades. Neste ponto, umas das características que Krauss, ainda em Reinventing the Medium, levanta quando analisa o trabalho do artista irlandês James Coleman – dentro de uma proposta em que ele faz a exibição de séries de fotografias através de uma fita de slides cujo prosseguimento se dá através do uso de um timer – é a sua elaboração de um meio que evoca uma colisão paradoxal entre a imobilidade e o movimento. Coincidentemente, percebo de maneira similar, dentro das propostas de Davey, a elaboração de um medium que toca as noções de imobilidade e movimento, mas de maneira completamente distinta. No seu caso, a obsolescência se revela, por exemplo, no uso da câmera analógica assim como no uso do serviço postal, enquanto sua atualidade se mostra presente na fluidez e qualidade enigmática de suas composições – que herdam características do filme e vídeo, e não se apresentam como figurativas (apesar de retratar objetos plenamente reconhecíveis). Concluindo, os trabalhos de Moyra Davey vão além das associações à casualidade e contingência – analisados pela artista e justificados através de uma crítica fotográfica tradicional – e carregam aspectos remanescentes da arte conceitual (assim como de propostas conceitualistas) ao tratar o ato fotográfico como parte de um processo crítico que visa construir um trabalho visual através da desconstrução de uma ideia convencional da imagem fotográfica (tornando a fotografia um objeto teórico) e, além disso, elaboram um reexame de 12

KRAUSS, Rosalind. Reinventing the medium. P. 289-305. http://art.buffalo.edu/coursenotes/art314/krauss.pdf (Acesso em 30 de abril 2015).

Disponível

em:


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um instrumento obsoleto através de novos empregos e propõem um alargamento de seu uso dentro do mundo contemporâneo ao produzir questões de relevância para a arte atual (um ato, portanto, de reinvenção do meio).

Referências: BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira S.A., 1984. BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. P. 94. Disponível em: https://seminariostecmidi.files.wordpress.com/2012/02/benjamin-walter-pequena-historia-dafotografia.pdf (Acesso em 30 de março). DAVEY, Moyra. Accidents among the slow things: Adam Szymczyk interviews Moyra Davey. Basel: Sternberg Press, 2010. Disponível em: http://murrayguy.com/wpcontent/uploads/2013/03/SpeakerReceiver_MD_AS_Interview.pdf (Acesso em 30 de Março). DAVEY, Moyra. apud. WEISBERG, Jessica. Can self-exposure be private? Disponível em: http://www.newyorker.com/culture/culture-desk/can-self-exposure-be-private (Acesso em 30 de Março). DAVEY, Moyra. Notes on Photography & Accident. Nova Iorque: 2007. Disponível em: http://74.220.219.113/~murraygu/wpcontent/uploads/2012/02/Davey_Notes_on_Photography __Accident.pdf (Acesso 30 de março). KRAUSS, Rosalind. Reinventing the medium. P. 289-305. Disponível em: http://art.buffalo.edu/coursenotes/art314/krauss.pdf (Acesso em 30 de abril 2015).


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Nossa paisagem sonora: Sons de todos os lados. Hendy Anna Oliveira (DTAM-UFES)

Resumo Leitura interpretativa dos conceitos básicos apresentados pelo autor Murray Schafer no livro “A Afinação do Mundo”, a respeito da diversidade das materialidades da Paisagem Sonora, da música aos diversos ambientes, do ruído e da poluição sonora. Revisar a bibliografia sobre os conceitos de objeto sonoro daí, a importância do trabalho deste autor para conceituar os aspectos constituintes do áudio nas mídias atuais passando pelo aspecto trágico oriundo da poluição sonora na contemporaneidade a partir da perspectiva de Nietzsche. Palavras-chave: Paisagem sonora; ruído; escuta; poluição.

Abstract Interpretative reading of the basic concepts presented by the author Murray Schafer in the book "The World Tuning", about the diversity of materiality landscape, music to different environments, noise and noise pollution. To review the literature on the concepts of sound object there, the importance of the work by this author to conceptualize the constituent aspects of the current audio media through the tragic aspect arising from the noise in the contemporary world from the perspective of Nietzsche . Keywords: landscape; noise; listening ; pollution.

Introdução

“Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar. Caso ela se mova de modo a oscilar mais que dezesseis vezes por segundo esse movimento é visto como som. O mundo, então, está cheio de sons. Ouça”. (O Ouvido pensante – Murray Schafer)

Diversos compositores e autores trataram a música como algo relacionado com o meio ambiente e o ouvinte. Dentre eles, Luigi Russolo (A arte do Ruído: manifesto futurista, 1913), John Cage (4’33”, 1952 – Silence, 1961), Pierre Schaeffer (Tratado dos Objetos Musicais, 1966). Murray Schafer (A Afinação do Mundo, 2001) pesquisou, de modo particular, por


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meio de investigações e registros sobre os sons do ambiente, nomeados por ele de soundscape (paisagem sonora). Dessa forma, apresentaremos, a seguir, alguns de seus conceitos.

A paisagem sonora é um termo que tem origem na palavra inglesa "soundscape" cunhado pelo compositor canadiano Raymond Murray Schafer e que se caracteriza pelo estudo e análise do universo sonoro que nos rodeia, e que tem vindo a ganhar terreno em diversas áreas de estudo, nomeadamente nos estudos urbanos, musicais, médicos e literários. Observamos ainda que paisagem sonora pode ser qualquer campo de estudo acústico: uma composição musical, um programa de rádio ou a um ambiente acústico. Todavia, formular uma impressão exata de uma paisagem sonora é mais difícil do que a de uma paisagem visual. Não existe nada em sonografia que corresponda à impressão instantânea que a fotografia consegue criar. Com uma câmera, é possível detectar os fatos relevantes de um panorama visual e criar uma impressão imediatamente evidente. O microfone não opera desta maneira. Ele faz uma amostragem de pormenores e nos fornece uma impressão semelhante à de um close, mas nada que corresponda a uma fotografia aérea.

Os sons, desde sempre, modelam ambientes, determinando ações e estratégias de convívio. Colocamo-nos a pensar a escuta, relacionando-a com o avanço da tecnologia, bem como o poder. Imaginamos nossos ouvidos como envolvidos numa teia sonora, produzindo afetos, intensidades, sensações, potencias e despotencias que independem da vontade ou intenção do sujeito que escuta. E nesse terreno que pretendemos trabalhar para pensar a condição da escuta. Quanto mais familiar é um ambiente sonoro, menos discernível ele é para nossa escuta, pois estamos condicionados a escutá-lo de uma determinada maneira. Para Schafer, “o hábito que adquirimos de identificar tão facilmente tanto as fontes sonoras como os sons diversos que elas emitem, mascara nossa aprendizagem”. (SCHAFER, 2001, p. 336). Todos os sons fazem parte de um campo contínuo de possibilidades, que pertence ao domínio compreensivo da música. Temos a nova orquestra: o universo sonoro, e os músicos, qualquer um ou coisa que soe. Quanto aos ruídos, temos quatro significados atribuídos à palavra ruído conforme os tempos: som indesejado, som não musical, som que fere o aparelho auditivo e distúrbio na


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comunicação. Não obstante, o que se entende por ruído hoje não é o mesmo que outras épocas. Quando pensamos numa arqueologia do ruído, é possível rastrear diferenças e variações em seus conceitos, bem como em nossa maneira de o perceber. Ruído ou silêncio são atributos dados ao sonoro que, em princípio, não são bons ou maus. Pensemos para além de tais categorizações, para além do bem e do mal, como diria Nietzsche, para não cairmos em julgamentos morais e estéticos, como em certos momentos o pensamento de Murray Schafer parece beirar, seja pelo pensamento ecológico, jurídico ou higienista.

Traçando um paralelo com as representações apolíneas e dionisíacas de Nietzsche observamos que uma paisagem sonora consiste em objetos ouvidos e não em objetos vistos. Para além da percepção auditiva, estão notação e fotografia dos sons, que, por ser salientes, apresentam certos problemas. Dessa forma, enquanto qualquer pessoa tem alguma experiência na leitura de mapas e muitos podem extrair informações significativas de outros diagramas da paisagem visual, como plantas arquitetônicas ou mapas executados por geógrafos, poucos conseguem ler elaboradíssimas cartas utilizadas pelos foneticistas, engenheiros acústicos ou músicos. Dar uma imagem totalmente convincente de uma paisagem sonora requer habilidade e paciência extraordinárias: seria necessário fazer milhares de gravações e dezenas de milhares de medições, e um novo modo de descrição teria que ser inventado.

Neste mesmo contexto, P. Schaeffer, 1966, sinaliza que o caminho da música foi contrário ao tomado pela pintura. “Inversamente, a música se desenvolveu primeiro sem o mundo exterior, só remetia a ‘valores’ musicais abstratos, se faz ‘concreta’, ‘figurativa’ poderíamos dizer, quando utiliza ‘objetos sonoros’ extraídos diretamente do ‘mundo exterior’ dos sons naturais e dos ruídos”, comparando as transformações da escuta, a partir das ferramentas de gravação, ao advento da fotografia ao olhar; nesse processo, a fotografia priva a fluidez da visão e promove uma fixação do objeto, colocando-nos, a partir do enquadre, a ver o que não se via. Pelo enquadre da foto, somos dispensados de ver o resto, nossa atenção se fixa sobre algo que se quis tornar visível. Com o microfone, assim como na fotografia, a escuta passou a ter um enquadre, e se encontra emoldurada num regime sonoro proposto”. Diante disso constamos em Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco como impulsos artísticos que andam juntos e em flagrante contraposição à medida que expressam a arte do figurador plástico, que remete a Apolo, e a arte não figurada da música que segue Dioniso. Há, no mundo helênico, uma disposição em sentido inverso, em termos de origens e objetivos, entre


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a arte proveniente do artista plástico e a resultante do músico. Trata-se da remissão a dois impulsos distintos que, embora “caminhem lado a lado”, estão, via de regra, em aberta oposição que incita a produções sempre novas. Contudo, coexistem sempre na qualidade de opostos. A luta entre os dois simboliza a produção de algo, pois a cada luta travada algo novo é criado. É a partir da relação e da alternância de influência desses dois opostos que se evidencia a produção artística.

Outra questão importante se encontra posição desvantajosa quando se trata de documentos históricos para nosso objeto histórico. Sobre isto OBICI, 2006, assinala: Embora dispomos de muitas fotos tiradas em épocas diferentes e, antes delas, de desenhos e mapas que nos mostram como um determinado cenário se modificou com o passar dos anos, precisamos fazer inferências no tocante às mudanças sobrevindas na paisagem sonora. Podemos saber exatamente quantos edifícios foram construídos numa determinada área ao longo de uma década ou qual foi o crescimento da população, mas não sabemos dizer em quantos decibéis o nível de ruído ambiental pode ter aumentado em um período de tempo comparável. Mais do que isso: os sons podem ser alterados ou desaparecer e merecer apenas parcos comentários, mesmo por parte do mais sensível dos historiadores. Assim, embora possamos utilizar modernas técnicas de gravação e análise no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para fundamentar as perspectivas históricas teremos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos. (OBICI, 2006, p. 20)

Assim, a paisagem sonora é um campo de interações mesmo quando particularizada dentro dos componentes de seus eventos sonoros. Determinar o modo pelo qual os sons se afetam e modificam (e a nós mesmos) em situação de campo é tarefa muito difícil do que separar sons individuais em um laboratório, mas esse é um novo e importante tema com que se defronta o pesquisador da paisagem sonora.

Aspectos da paisagem sonora Uma paisagem sonora é composta pelos diferentes sons que compõe um determinado ambiente, sejam esses sons de origem natural, humana, industrial ou tecnológica. O seu estudo, enquadra-se no âmbito da Ecologia Acústica. O que o analista da paisagem sonora precisa fazer, primeiramente, é descobrir seus aspectos significativos, aqueles sons que são importantes por causa da sua individualidade, quantidade ou preponderância. Finalmente, algum sistema de classificação genérica terá que ser delineado. Inicialmente, precisamos delinear os principais temas da paisagem sonora: sons


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fundamentais, sinais e marcas sonoras. A estes poderíamos acrescentar os sons arquétipos, aqueles misteriosos sons antigos, não raros imbuídos de oportuno simbolismo, que herdamos da Alta Antiguidade ou da Pré-História. O som fundamental, ou seja, um som básico de ancoragem de um ambiente (como os sons da água, do vento, dos pássaros, insetos e outros animais, sons que muitas vezes não são ouvidos conscientemente), como se fosse a “tonalidade” musical do ambiente, em torno da qual o material à sua volta pode “modular”; o sinal, ou seja, um som destacado, ouvido conscientemente, para o qual a atenção é direcionada (Ex.: “avisos acústicos”, como sinos, apitos, buzinas, sirenes); a marca sonora, um som característico de um determinado lugar e que seja particularmente notado pelo povo daquele local. Som fundamental é um termo musical. É a nota que identifica a escala ou tonalidade de uma determinada composição. É a âncora ou som básico, e, embora o material possa modular à sua volta, obscurecendo a sua importância, é em referência a esse ponto que tudo mais assume o seu significado especial. Os sons fundamentais não precisam ser ouvidos conscientemente; eles são entreouvidos, mas não podem ser examinados, já que se tornam hábitos auditivos, a respeito deles mesmos. O psicólogo da percepção visual fala de “figura” e “fundo”. A figura é vista, enquanto o fundo só existe para dar a figura seu contorno e sua massa. Mas a figura não pode existir sem o fundo; subtraia-se o fundo, e a figura se tornará sem forma, inexistente. Assim, ainda que os sons fundamentais nem sempre possam ser ouvidos conscientemente, o fato de eles estarem ubiquamente ali sugerem a possibilidade de uma influência profunda e penetrante em nosso comportamento e estados de espírito. Os sons fundamentais de um determinado espaço são importantes porque nos ajudam a delinear o caráter dos homens que vivem no meio deles. A figura corresponde ao sinal ou marca sonora. O fundo corresponde aos sons do ambiente à sua volta e o campo, ao lugar onde todos os sons ocorrem, a paisagem sonora. Os sons fundamentais de uma paisagem ainda, são os sons criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Muitos desses sons podem encerrar um significado arquétipo, isto é, podem ter-se imprimido tão profundamente nas pessoas que os ouvem que a vida sem eles seria sentida como um claro empobrecimento, podendo mesmo afetar o comportamento e o estilo de vida de uma sociedade.


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Por sua vez, os sinais são sons destacados, ouvidos conscientemente. Nos termos da psicologia, são mais figuras que fundos. Qualquer som pode ser ouvido conscientemente e, desse modo, qualquer som pode tornar-se uma figura ou um sinal: sinos, apitos, buzinas e sirenes. Estes especificamente precisam ouvidos porque são recursos de avisos acústicos. Finalmente, o termo marca sonora se refere a um som da comunidade que seja único ou que possua determinadas qualidades que o tornem especialmente significativo ou notado por um determinado povo. Uma vez identificada a marca sonora, é necessário protegê-la porque as marcas sonoras tornam única a vida acústica da comunidade . Diferentes tipos de paisagens sonoras  A paisagem sonora natural  Sons da vida  A paisagem sonora rural  Do vilarejo à cidade A paisagem sonora pós-industrial  A revolução industrial  A revolução elétrica

A música muda-se para dentro das salas de concerto quando já não pode ser ouvida efetivamente do lado de fora. Ali, por detrás das paredes acolchoadas, a audição concentrada torna-se possível. Isso equivale a dizer que o quarteto de cordas e o pandemônio urbano são historicamente contemporâneos. As paisagens de Haendel e Haydn são tão ricas em pormenores quanto as pinturas de Brueghel e, como elas, cuidadosamente estruturadas. Michelangelo criticava os pintores flamencos por não conseguirem exercer a seleção em seus temas; em vez de focalizarem uma coisa, eles incluíam tudo o que viam. Na verdade, estas composições criam uma característica semelhante, pois são quadros de ângulos externos; o compositor observa a paisagem a distância. A natureza executa e ele se encarrega dos serviços de secretaria.


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Somente nas paisagens da era romântica é que os compositores introduzem na cor da natureza sua própria personalidade ou estados de espírito. Os eventos naturais são, então, criados para se sincronizar ou competir ironicamente com os estados de espírito do artista... Schubert com frequência fez a paisagem executar para ele. Em uma canção como Der Lindenbaum [O Limoeiro], de Die Winterreise [Viagem de inverno], os estados de espírito do poeta-compositor estimulam a árvore, fazendo seus galhos se moverem branda (no verão) ou violentamente (no inverno), enquanto os pensamentos diurnos e noturnos se distinguem pelas tonalidades maior e menor. Em Dichterliebe, de Schumann, a paisagem mantém suas alegres cores de verão, enquanto a alegria do poeta se transforma em dor, uma situação amargamente irônica que é plenamente explorada nos contrastes entre o cantor e o pianista. No decorrer da história da música ocidental, os sons da natureza (particularmente do vento e da água) tem sido frequente e adequadamente transmitidos, assim como sinos, pássaros, armas de fogo e trompas de caça. Na verdade o grande revolucionário da nova era foi o experimentador Luigi Russolo 1, que inventou uma orquestra de ruídos, formada por objetos que zumbiam e uivavam e outras quinquilharias, calculadas para introduzir o homem moderno no potencial musical do novo mundo que surgia. Em seu manifesto A arte do ruído (L’arte dei rumori), de 1913, temos: RUSSOLO (1986) nos dá um exemplo de paisagem sonora moderna:

Atravessemos uma grande capital moderna, com nossos ouvidos mais atentos que os olhos. Nós nos deliciaremos em distinguir os redemoinhos de água, de ar ou de gás nos tubos metálicos dos motores que resfolegam e pulsam com uma indiscutível animalidade, o palpitar das válvulas, o vai e vem dos êmbolos, os rangidos das serras mecânicas, o andar dos trens sobre os trilhos, o estalar dos chicotes, o agitar das cortinas e das bandeiras. Nós nos divertiremos ao orquestrar juntos, em nossa imaginação, o estampido dos portões das lojas, as portas batidas, o sussurro e o ruído de passos das multidões, os diversos alaridos das estações, das ferrovias, das fiações, das tipografias, das centrais e das ferrovias subterrâneas (RUSSOLO, 1986, p. 26).


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Poluição Sonora!! É necessário documentar aspectos importantes dos sons, observar suas diferenças, semelhanças e tendências, colecionar sons ameaçados de extinção, estudar os efeitos dos novos sons antes que eles fossem colocados indiscriminadamente no ambiente, estudar o rico simbolismo dos sons e os padrões do comportamento humano em diferentes ambientes sonoros, com o fim de aplicar conhecimento ao planejamento de futuros ambientes. Desse modo, os sons que compõem a vida humana veiculam as práticas sociais que os conformam e na composição da vida urbana, não se trata mais de um concerto da natureza (Schafer, 2001:212), pois revela os encontros fortuitos na rua, os rituais cotidianos de compras de alimentos para a casa, os itinerários dos habitantes que percorrem as ruas da casa para o trabalho e vice-versa, as expressões religiosas de diversos tipos, a sociabilidade dos bares e das calçadas, a vida cotidiana no bairro, entre muitos outros, e são aspectos que podem ser etnografados para se pensar as feições que a crise assume no contexto das modernas sociedades complexas. A composição de vozes e trânsito, dos sons de passos e risadas, das sonoridades dos utensílios técnicos: celulares, caixas-registradoras, o barulho do ar condicionado, televisão, rádio, etc, remetem à complexidade do ambiente urbano em termos de suas expressões sonoras.

A paisagem sonora do mundo urbano contemporâneo tem sido apontada por muitos estudiosos das condições ambientais nas grandes cidades como a responsável pelo stress, a irritação e o desgaste físico e emocional de seus habitantes, cada vez mais submetidos à pressão da artificialidade tecnológica do seu ambiente psicosocial. Neste sentido é que as sonoridades da vida urbana advindas das profundas mudanças culturais das sociedades ocidentais, marcadas pelo rápido crescimento urbano e industrial, a movimentação demográfica e as novas tecnologias podem ser enfocadas como parte dos estudos sobre o fenômeno da tragédia da cultura apontado por G. Simmel, em fins do século XIX. Se os sons da rua antes se caracterizavam pelos “moedores de melodias” (Tinhorão, 2005), do realejo, dos afiadores de faca, dos vendedores de picolé, dos pregões dos mercados públicos, dos apitos das fabricas, dos sinos das igrejas, as serenatas e as bandas militares, latidos de cachorros, hoje, junta-se a alguns deles uma paisagem sonora outra, a dos “ruídos” como a dos telefones celulares, das buzinas e de travadas de pneus de carros, de tiros e de gritos, de motores de ônibus, ruídos de betoneiras, buzinas de ambulância e carros de policia, das músicas dos bares e casas de shows, dos aviões e helicópteros, dos estádios de futebol, etc. (BARROSO, ROCHA e VEDANA, 2008)

Com o passar do tempo observamos que a paisagem sonora ocidental torna-se muito poluída. A crescente quantidade de motores elétricos, sejam os presentes nas residências como os presentes do lado externo, favorecem este cenário cada vez mais ruidoso e preocupante. A


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evolução da humanidade fez com que a paisagem sonora natural fosse gradativamente se transformando em paisagens sonoras artificiais ou tecnológicas. Os sons naturais estão se tornando cada vez mais não-naturais e substituídos por sons feitos à máquina. A Revolução Industrial contribuiu decisivamente para esta transformação. E também durante a década de 70, com a intensificação do tráfego das metrópoles e o surgimento do "heavy metal". McLuhan, 1966, aponta que o microfone e o alto-falante tornaram-se órgãos estendidos do ouvido levando a percepção dos sons a pontos improváveis para épocas anteriores. Já o telefone, por sua vez, inaugurou outra forma de escuta: alem de possibilidades de comunicação, até o momento inexplorada, com a presença de um som cuja fonte emissora não é visível, foi inventado por Alexandre Graham Bell do Electrical Speech Machine, datada de 1876, e para algumas pessoas, foi o mais importante equipamento sonoro a causar transformações nos vínculos que o homem mantém com o som.

Uma das ironias do homem ocidental e que ele nunca se preocupa com a possibilidade de que uma nova invenção se constitua em ameaça a sua vida. E assim tem sido, do alfabeto ao automóvel. O homem ocidental tem sido continuamente remodelado por uma lenta explosão tecnológica que se estende por mais de 2.500 anos. A partir do telefone, no entanto, ele começa a viver uma implosão. (MCLUHAN, 1969, p. 303)

Os estudos de paisagem sonora estão diretamente ligados aos estudos de Ecologia Acústica, e esta, compõe-se de inúmeros tipos de sons: agradáveis, desagradáveis, ruidosos, alegres, tristes, etc. Entretanto ela mostra-se subjetiva, no sentido de que a sua definição é resultante da experiência individual de cada um. A ideia de paisagem sonora se refere ao ambiente acústico natural, consistindo de sons naturais, como vocalizações de animais e sons do clima assim como de outros elementos naturais; sons ambientais criados por humanos, por meio de composição musical, sound design, além das demais atividades humanas comuns como conversação, trabalho e sons de origem mecânica resultantes do uso de tecnologia industrial. Portanto a paisagem sonora mundial deve ser considerada uma imensa composição musical soando incessantemente à nossa volta. Somos simultaneamente seu público, seus executantes, e seus compositores. Schafer sinaliza, que pelo fato de a produção sonora ser, em grande parte, uma questão subjetiva do homem moderno, a paisagem sonora contemporânea é notável por seu hedonismo dinâmico, aponta o fim da poluição sonora por duas vias: limpeza de ouvidos ou por um colapso mundial de energia. Sem energia, o mundo industrial pararia e,


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consequentemente, boa quantidade das máquinas, responsáveis pela produção sonora, que compõe os ambientes, silenciariam. Muitos sons presentes hoje sumiriam com tal colapso, voltaríamos a viver num estado pré-revolução industrial, que pareceria quase uma volta a paisagem sonora remota, um desejo pessoal do autor em se ver livre do mundo sonoro das máquinas. A outra estratégia toma a forma de uma mudança na postura da escuta, uma intenção induzida aos ouvidos que busca encarar o mundo colocando os ouvidos atentos a paisagem sonora. Desse modo, defende a limpeza de ouvidos como estratégia para a sensibilização e mudança de atitude para com a poluição sonora.

Bibliografia: AZEREDO, Vania Dutra de. Nietzsche e os Gregos. São Paulo: Hypnos, n 21, 2º sem, p. 273287, 2008. BARROSO, Priscila Farfan; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; e VEDANA, Viviane. O Sentido do trágico na paisagem sonora do mundo urbano contemporâneo. Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, Porto Seguro, BA, 2008. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. SP: Cultrix, 1969. OBICI, Giuliano. Condição da escuta: mídias e territórios sonoros. 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. RUSSOLO, Luigi. The art of noises. New York: Pendragon Press, 1986. SANTOS, Fátima Carneiro dos. Por uma escuta nômade: a música dos sons da rua. São Paulo: Educ: Fapesp, 2004. SCHAEFFER, Pierre. Traité dês objets musicaux. Paris: Seuil, 1966. SCHAFER, Murray. The tuning of the world. Toronto: The Canadian Publishers, 1977. _____________ Lê paysage sonore. Paris: J. C. Lattès, 1979. _____________ O ouvido pensante. Trad. Marisa Fonterrada et alii. São Paulo: EDUNESP, 1991. _______________. A Afinação do Mundo. São Paulo, Editora Unesp, 2001. SEINCMAN, E. “Tradição, vanguarda, na música futurista italiana”. In: Revista da USP, n. 9 (março-abril). São Paulo: Edusp, 1991.


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