PROCLAMAÇÃO DA COZINHA BRASILEIRA

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PROCLAMAÇÃO DA COZINHA BRASILEIRA COMO PARTE DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NO IMPÉRIO BRASILEIRO 1822-1889

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Ate ahi o sábio autor. E’ assim que os melhores descrevem na Europa as nossas cousas. Será, pois, de admirar que Europa esteja tão bem informada o nosso respeito? Não haverá algum patriota que se anime a enviar ao Sr.L.Figuier uma lata de farinha de Suruhy, para que possa reformar um pouco o juízo acerca deste produto? Em todo o caso o informante deve ter comido em meses singulares para conhecer tão bem a nossa farinha, o nosso pirão e a nossa feijoada. 1

Nosso dever e outro; nosso fim tem mais alcance; e uma vez que demos o titulo „nacional“ a nossa obra, julgamos ter contrahido um compromisso solemne, qual o de apresentarmos uma cozinha em tudo Brazileira, isto e: indicarmos os meios por que se preparão no paiz as carnes dos inúmeros mamíferos que povoa suas matas e percorrem seus campos; aves que habitão seus climas diversos; peixes que suculão seus rios e mares; reptis que se deslizão por baixo de suas gigantescas florestas, e finalmente immensos vegetaes e raízes que a natureza com mão liberal e pródiga, espontaneamente derramou sobre seu solo abençoado; mamíferos, aves, peixes, reptis, plantas e raízes inteiramente differentes dos da Europa, em sabor, aspecto, forma e virtude, e, por conseguinte exigem preparações peculiares, adubos e acepipes especiaes, que somente se encontrão no lugar em que abundão aquellas substancias, e que são reclamados pela natureza, pelos costumes e ocupações dos seus habitantes2.

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Extraído de A Província de Minas, Ouro Preto, de 30.11.1879. Retirado do livro Cozinheiro Nacional ou colleccão das melhores receitas das cozinhas brasileira e europeas, 3. Ed. Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 1884. 2

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1. Sumário 1. Sumário..................................................................................................................................3 2. Introdução..............................................................................................................................6 2.1 Estrutura do trabalho.............................................................................................................7 2.2 Nível da pesquisa................................................................................................................10 2.3 Tipos de fontes...................................................................................................................18 2.4 Metodologia e avaliação.....................................................................................................21 3. Identidade, Império Brasileiro e Alimentação.................................................................23 3.1 Identidade............................................................................................................................23 3.1.1 Formas de identidade.......................................................................................................23 3.1.2 Identidade e alimentação..................................................................................................29 3.2 História do Império Brasileiro............................................................................................32 3.2.1 Desenvolvimento político................................................................................................32 3.2.2 Desenvolvimentos sociais e formação da identidade social............................................38 3.3 Alimentação.......................................................................................................................45 3.3.1 Alimentação e estratificação social..................................................................................45 3.3.2 Cozinha: regional e nacional............................................................................................48 3.3.3 Estrutura de longa duração...............................................................................................52 3.3.4 Aspectos gerais sobre alimentação..................................................................................54 4. Alimentação no Brasil.........................................................................................................65 4.1 Brasil das regiões................................................................................................................65 4.1.1 Região Norte...................................................................................................................66 4.1.2 Região Nordeste..............................................................................................................74 4.1.3 Região centro-oeste..........................................................................................................88 4.1.4 Região sudeste..................................................................................................................93 4.1.5 Região sul.......................................................................................................................108 4.2 Cozinha colonial ..............................................................................................................113 4.2.1 Imperialismo ecológico e base indígena........................................................................113 4.2.2 Fusão de técnica e sabor.................................................................................................117 4.4.3 percepção diferenciada das várias realidades alimentares.............................................120 4.3 Cozinha portuguesa..........................................................................................................121 4.3.1 Influência na cozinha brasileira.....................................................................................121 4.3.2 Desenvolvimento da cozinha portuguesa.......................................................................122 4.3.3 Literatura culinária.........................................................................................................126 3


5. A Cozinha no Império Brasileiro..................................................................................129 5.1 Alimentação do povo....................................................................................................129 5.1.1 População livre..............................................................................................................131 5.1.2 População escrava..........................................................................................................132 5.1.3 População indígena........................................................................................................134 5.2 A cozinha da alta sociedade.............................................................................................134 5.2.1 Influência européia........................................................................................................135 5.2.2 Influências regionais versus metrópole.........................................................................137 5.2.3 Recepções festivas........................................................................................................139 5.2.4 Livros de receitas..........................................................................................................142 5.2.5 Cozinha e alimentação em jornais................................................................................147 5.3 Literatura culinária............................................................................................................153 6. Os livros de culinária do Império....................................................................................154 6.1 Cozinheiro Imperial..........................................................................................................155 6.1.2 Prefácio..........................................................................................................................157 6.1.3 Guia do Criado e Dicionário dos Termos Technicos da Cozinha.................................171 6.2 Doceira brasileira............................................................................................................173 6.2.1 Prefácio.........................................................................................................................173 6.2.2 Receitas..........................................................................................................................175 6.3 Doceira domestica.............................................................................................................178 6.3.1 Prefácio.........................................................................................................................178 6.3.2 Receitas..........................................................................................................................179 6.4 Cozinheiro Nacional.........................................................................................................180 6.4.1 prefácio...........................................................................................................................181 6.4.2 Receitas.......................................................................................................................184 6.5 Doceiro nacional..............................................................................................................196 6.6 O porco, Charcuteiro nacional.........................................................................................197 6.7 Dicionario do Doceiro Brasileiro......................................................................................198 7. Cozinha Brasileira – Conclusões.....................................................................................199 7.1 Proclamação da cozinha brasileira...................................................................................199 7.1.1 O objeto da proclamação...............................................................................................201 7.1.2 Criador da proclamação.................................................................................................204 7.2 Realidade da cozinha brasileira........................................................................................205 7.2.1 Estruturas fundamentais da alimentação no Brasil.......................................................205 4


7.2.2 Hegemonia do Açúcar....................................................................................................208

7.2.3 Identidades e alimentação no Império Brasileiro...........................................................210

8. Fontes e Bibliografia.........................................................................................................213

8.1.1.Jornais e Revistas.........................................................................................................217

8.1.2.Cadernos de Receitas e Anotacoes.............................................................................218

8.1.3 Cardapios......................................................................................................................219

8.2 Literatura.........................................................................................................................220

8.3 Periódica..........................................................................................................................244

8.4 Internet.............................................................................................................................251

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2. Introdução

No prefácio do livro Cozinheiro Nacional se encontra o verdadeiro ponto de partida para a proclamação e o surgimento do fenômeno cozinha brasileira. É fenômeno na medida em que a construção cultural “cozinha nacional”, como um conceito imaginado, até hoje se encontra fortemente ancorada no imaginário das pessoas. Ele tornou-se parte da construção do fenômeno nação e é assim como este aceito de forma geral. Este fenômeno é complementado pelo aspecto da cozinha regional que como parte do complexo geral alimentação, é tratado de forma popular em programas de televisão e livros de culinária. Entretanto, raramente se questiona o fenômeno como tal e da mesma forma pouco se tematiza a sua instrumentalização. Unicamente na literatura técnica da pesquisa acadêmica sobre alimentação é que se constata tratar-se claramente de uma construção cultural oriunda de determinados fatos históricos e foi instrumentalizada pelas elites que dominavam o discurso. A alimentação se presta bem para este questionamento, já que ela tem efeito duradouro sobre a construção da identidade e, conforme pesquisas mais recentes, pode perfeitamente ser equiparada ao importante fator língua. Assim sendo, a ingestão diária de alimentos determina tanto a identidade individual, como também as identidades grupais. O surgimento das cozinhas nacionais deve, com isso, ser entendido como parte do processo de formação da identidade nacional. Este processo é, contudo, uma construção cultural de inspiraҫão política, já que com a proclamação de uma cozinha tipicamente regional na maioria das vezes, apenas alguns alimentos são colocados no contexto nacional. Isso corresponde, na verdade, de certa forma, à alimentação em um determinado país, no entanto, ela representa muito mais a alimentação das elites sociais do que o grande número de pratos caracteristicamente regionais no âmbito do complexo cultural cozinha. É importante definir o conceito de cozinha utilizado neste trabalho, já que esta compreende na língua alemã tanto o lugar do preparo prático dos alimentos como diz respeito também ao complexo cultural cozinha. O complexo cozinha, examinado neste trabalho, contém os elementos de toda a cadeia alimentar, desde o plantio dos ingredientes, do processamento, transporte, e da conservação até o preparo prático de pratos, consumidos como refeições. Sobre esse complexo têm efeito os aspectos da avaliação humano-sensorial no âmbito do sabor e da simbologia, determinantes espaciais e climáticas, socioculturais, psicoantropológicas, religiosas, econômicas e políticas cominfluências reciprocas. Este estudo não pode oferecer ainda um quadro absolutamente completo de toda alimentação, bem como de 6


todas as especialidades regionais no Brasil, mas sim pretende propiciar uma base confiável para a pesquisa subseqüente. O presente trabalho pretende, neste sentido, ser uma colaboração para mostrar como se deram os processos que conduzem à proclamação de uma suposta cozinha típica e reconstruir a relação com a realidade do Brasil no século XIX. Além disso, deve ser mostrada a importância da alimentação como parte dos processos de formação da identidade nacional. O exemplo brasileiro presta-se muito bem a isso. Dentro das extensas fronteiras do Brasil existe uma multiplicidade de regiões com características muito distintas e, por isso, pode-se falar em cozinhas regionais, que se caracterizam por desenvolvimentos, hábitos, e produtos regionais. No decorrer da história, o Brasil se desenvolveu como um país de imigrantes e pessoas de todos os continentes foram para lá. Na época da escravidão foram, além disso, deportadas milhões de pessoas da África para o Brasil. Todas essas pessoas traziam consigo suas tradições culinárias e complementaram a culinária indígena. Além do mais, o Brasil, com o desenvolvimento de colônia para império independente, que durou duas gerações passou por um desenvolvimento histórico global único. Estes fatores são a raiz do presente trabalho, que trata da importância da alimentação como a parte mais importante do abrangente processo da formação da identidade nacional, com base no exemplo do Império Brasileiro. Úteis para a conclusão deste trabalho e para a compreensão das fontes de pesquisa foram, além do estudo da História Ibero e Lationamericana, bem como da Etnologia, os conhecimentos sobre técnicas de cozinha e o conhecimento técnico de culinária adquiridos no curso de formação de cozinheiro e os dez anos de experiência na área da gastronomia.

2.1. Estrutura do trabalho

O tema de minha dissertação trata da instrumentalização da alimentação e da construção de uma cozinha em relação ao processo de formação da identidade nacional no Império Brasileiro. Esses processos tinham sua expressão fundamental na utilização do meio “livro de culinária”, que representava o único sustentáculo para a proclamação de uma cozinha. O ponto de partida para esse desenvolvimento foi assim o ano de 1840, quando surgiu o Cozinheiro Imperial, primeiro livro de culinária impresso no Brasil. No mesmo ano, com a nomeação do jovem Pedro II para ser o imperador do Brasil, começou o terceiro período na história do Império Brasileiro, chamado na historiografia de Segundo Reinado. O período de regência de Pedro II e o Império Brasileiro terminaram com a Proclamação da República em 7


15.11.1889. Assim sendo, o período de pesquisa relevante no tocante à proclamação da cozinha brasileira é determinado com a publicação de um livro de culinária até o final do império. No entanto, para a compreensão destes acontecimentos e desenvolvimentos, o contexto geral deve primeiro ser exposto, já que no âmbito deste trabalho diferentes formas de abordagem foram unidas. Esta tarefa é preenchida pelos capítulos três e quatro. A discussão das formas de abordagem fundamentais serve para o terceiro capítulo Identidade, Império Brasileiro e Alimentação. Este capítulo se baseia na literatura de pesquisa sobre os respectivos contextos temáticos e deve uni-los como resumo. Aqui são discutidos os diversos conceitos científicos relativos à noҫão de identidade e apresentadas as relevantes formas de identidade existentes, e, sobretudo esclarecida a importância decisiva da alimentação para a formação da identidade. Como segundo contexto, esquematiza-se o desenvolvimento histórico do Império Brasileiro, dividido em história política do Império e também nos desenvolvimentos sociais e nos processos que levaram à formação de uma identidade nacional. A parte seguinte ocupa-se dos aspectos culturais e históricos da alimentação. Para isso, divide-se este amplo campo em quatro subcapítulos. Primeiro, são tematizados os efeitos e também a importância da alimentação. Na conclusão, discute-se o conceito cultural de cozinha com base nos aspectos geográficos - nacional e regional. Como terceiro subcapítulo, Estruturas de longa duração, são apresentadas importantes considerações para a compreensão da alimentação com relação à percepção do tempo, e, ao final, faz-se uma ligeira abordagem dos aspectos gerais da alimentação para a compreensão do contexto .

Também o quarto capítulo Alimentação no Brasil mostra-se fundamental para a compreensão geral do presente trabalho, e, da mesma forma, é considerado um capítulo contextual. Neste ponto, deve-se realizar primeiramente uma ligação espacial com o objeto de pesquisa, o Brasil. Como um dos maiores países, o Brasil, que está sob condições naturais heterogêneas, teve a respectiva alimentação regional influenciada de forma duradoura. Para se chegar a um entendimento do que poderia ser afinal uma cozinha brasileira, é imprescindível se ocupar das regiões do Brasil. Partindo-se das cinco grandes regiões, prosegue-se, então, com uma descrição de cada região relativamente a suas circunstâncias naturais e aos desenvolvimentos regionais históricos culturais, bem como sobre sua alimentação e culinária. Na seqüência desta ligação espacial trata-se ainda o contexto histórico no âmbito do período colonial como América portuguesa no tocante à alimentação e à culinária. No subcapítulo Cozinha Colonial, esquematiza-se primeiramente a influência da colonização portuguesa bem 8


como da alimentação indígena. A partir daí então demonstra-se a fusão de técnicas e sabores de muitas outras etnias que participavam deste processo. Na conclusão deve ser representada a diferenciação necessária das diferentes realidades alimentícias dentro das diferentes categorias. Segue-se, então, com o subcapítulo A cozinha portuguesa. Após a apresentação de importantes aspectos da influência da alimentação brasileira através da cozinha portuguesa e de hábitos alimentares devem ser apresentados os desenvolvimentos históricos e culturais dentro da cozinha portuguesa, que também influenciaram os processos no Brasil. Levando-se em consideração a importância do meio livro de culinária, e, sobretudo, no tocante à influência na cozinha brasileira, discute-se ainda a história da literatura culinária portuguesa até o século XIX.

O quinto capítulo, A cozinha no Império Brasileiro, reconstrói a cozinha contemporânea e a alimentação Este capítulo é importante para levar a um entendimento no tocante à autenticidade da literatura culinária. Para isso, foram utilizadas tanto literatura primária como literatura secundária como fonte de pesquisa. O capítulo se divide em dois subcapítulos, orientados pelas diferentes alimentações no âmbito da estratificação social. O primeiro capítulo trata da alimentação do povo e diferencia a população livre, escrava, e a população indígena. O segundo subcapítulo, A cozinha da Alta Sociedade, trata das influências européias e das diferentes alimentações da elite regional frente ao desenvolvimento na metrópole. Partindo-se daqui, os próximos subcapítulos tratam das fontes que podem ser classificadas por escritos da elite e que têm importância para a reconstrução da cozinha brasileira. Estas são os cardápios, que foram analisados no capítulo Recepções Festivas. A este contexto pertencem ainda os livros de receitas escritos à mão, que também foram tratados de forma especial, e artigos de jornal e de revistas, que se ocupavam com alimentação e cozinha. Como subcapítulo especial, são expostos, ainda, aspectos gerais referentes à literatura culinária. No sexto capítulo, Os Livros de Culinária do Império, serão examinados os sete livros de culinária publicados na época do Império Brasileiro. Especial importância é atribuída neste sentido ao primeiro livro de culinária Cozinheiro Imperial e ao livro de culinária Cozinheiro Nacional. Este último tinha a pretensão de postular a cozinha brasileira. Estes dois livros fundamentais, já que eram os únicos que tinham característica “salgada”, serão então analisados de forma abrangente. Em contraposição a estes, estão os quatro livros de receitas doces, Doceira Brasileira, Doceira Domestica, Doceiro Nacional, bem como Dicionário do 9


Doceiro Brasileiro. O fato de existirem dos sete livros de culinária ao todo quatro que tematizam os doces pode ser interpretado com um indício da prevalência do doce na alimentação brasileira, que será tratado de forma especial nas conclusões. O livro O Porco, que, na verdade, apresenta também receitas internacionais “salgadas”, representa uma exceção, já que ele de fato era uma introdução sobre a criação de porcos e de pequenos animais. Os livros serão correspondentemente examinados de acordo com o prefácio e as receitas culinárias e, neste ponto, serão estabelecidas as especificidades bem como os princípios para a postulação de uma cozinha brasileira com base em pratos tipicamente brasileiros. O sétimo capítulo, em seu conteúdo conclusivo, Cozinha Brasileira – Conclusão, divide-se em três subcapítulos. Primeiramente é discutida a proclamação da cozinha brasileira. Esta se orienta em questionamentos simples, porém sobremaneira relevantes: o que foi proclamado? bem como quem problamou? Em contrapartida, está então o subcapítulo Realidade da Cozinha Brasileira. Este se subdivide novamente em três princípios, que, por um lado, constatam algumas universalidades no âmbito da cozinha brasileira, especialmente o papel do açúcar é tratado neste contexto. Por outro lado, no capítulo Identidades e Alimentação no Império Brasileiro, deve-se analisar consequentemente o papel e a instrumentalização da alimentação para a construção de identidades. Complementando, no oitavo capítulo, Glossário, serão explicados relevantes conceitos técnicos portugueses e verbetes tipicamente brasileiros.

2.2 Nível da pesquisa internacional

No tocante à representação do nível da pesquisa internacional não há como deixar de fazer uma observação diferenciada, já que ao longo desta dissertação diferentes disciplinas foram abordadas. Em virtude da complexidade que resulta da tematização de princípios individuais em cada respectiva disciplina, devem ser apresentadas aqui apenas os desenvolvimentos e trabalhos mais importantes. Deve-se mencionar, entretanto, ainda neste contexto, que os trabalhos utilizados mostram princípios interdisciplinares, e, por isso, tornam difícil uma delimitação clara, sobretudo, no tocante ao estágio da pesquisa sobre história da alimentação. A pesquisa sobre identidade é tematizada em diversas áreas e se diferencia nas representações das variadas formas de identidades. Importante para esta dissertaҫão foram trabalhos sobre identidade cultural, identidade nacional, bem como sobre o contexto da alimentação e 10


identidade. Exemplos mencionáveis destas áreas temáticas com transições fluídas seriam os livros de Stuart Hall Rassismus und kulturelle Identität , Bernhard Giesen (Hrsg.) Nationale und kulturelle Identität, bem como Gerhard Neumann, Hans Jürgen Teuteberg, Alois Wierlacher Kulturthema Essen, Band 1 & 2. Essen und kulturelle Identität. Trabalhos relevantes sobre o surgimento e a instrumentalização da identidade nacional orientados pelo contexto europeu são entre outros os livros M.Einfalt, J. Jurt, D. Mollenhauer, E Pelzer (Hrsg) Konstrukte nationaler Identität: Deutschland, Frankreich und Grossbritanien (19.und 20. Jahrhundert) e Markus Koch Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung. No que se refere ao estágio da pesquisa no exemplo brasileiro devem aqui ser mencionados os trabalhos de Renato Ortiz Cultura brasileira e identidade nacional, Fabio Lucas Expressões da identidade Brasileira, e uma obra atual do historiador Carlos Reis As Identidades do Brasil, De Varnhagen a FHC. A relação da alimentação e nação no contexto da identidade é, na maioria das vezes, observada separadamente na forma da ligação dos dois aspectos como alimentação e identidade, ou nação e identidade. Não existia ainda, na atualidade, um estudo especializado sobre a alternância da alimentação, identidade, e formação da nação. Os primeiros princípios de uma síntese deste complexo de temas foram alcançados, sobretudo, por Eva Barlösius. Com o seu livro publicado Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, ela forneceu um fundamento teórico importante que trata a alimentação ao lado de outros aspectos no âmbito de sua representação geral também com relação à formação da identidade e das nações e se refere quanto a isso aos exemplos europeus.

O nível da pesquisa internacional sobre formação da nação foi sem dúvida enriquecido de forma duradoura com o livro de Benedict Anderson Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreiche Konzepts. O conceito da construção de uma nação como sociedade imaginada, baseada principalmente pelo meio “escrita”, tratado por ele sob a perspectiva histórica. Entretanto, ele faz menção expressa ao papel especial do Império Brasileiro, na América Latina, de fato republicana, e a alimentação não é observada em sua obra. Pertencem, ainda à literatura fundamental das nações históricas e à pesquisa sobre o nacionalismo Eric Hobsbawm com o livro Nationen und Nationalismus e a obra de Ernest Gellner Nationalismus – Kutur und Macht. A instrumentalização da alimentação para a construção da identidade nacional irá tematizar o papel da alimentação, se muito, apenas em algumas únicas frases. 11


A historiografia sobre a história do Império Brasileiro é abrangente. Então, deve-se fazer menção aqui a apenas algumas das obras mais importantes como o livro de Adolfo Morales de los Rios Filho, O Rio de Janeiro Imperial, que documenta a importância e o desenvolvimento do Rio de Janeiro no período imperial. A obra de Ricardo Salles, Nostalgia imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado, trata a formação da identidade na segunda metade do Império. Um clássico da historiografia brasileira são os trabalhos de José Murilo de Carvalho, sobretudo a obra A construção da Ordem e Teatro de Sombras, que tematizam o desenvolvimento social e político no Império Brasileiro. Como um exemplo da literatura de pesq uisa internacional sobre o Império brasileiro vale a obra escrita por Roderick J. Barman Citizem Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, que mostra o desenvolvimento da segunda metade do Império Brasileiro com base na história e no desenvolvimento de Pedro II. Trabalhos atuais mencionáveis sobre a história do Império brasileiro são o livro organizado por István Jancsó Brasil: Formação do Estado e da nação e o livro publicado por Carlos Guilherme Mota, Viagem Incompleta, A Experiência Brasileira. O processo de formação e de identidade nacional é, assim, tratado em diferentes trabalhos, contudo, sem levar em consideração a história da alimentação. Nos últimos anos surgiram trabalhos que se ocupam com a história do desenvolvimento da agricultura, abastecimento e aspectos sócio-culturais. Deve-se destacar neste âmbito o livro de Mary del Priore e Renato Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, no qual se apresenta um panorama sobre o desenvolvimento do ambiente agrário. O contexto do abastecimento para as regiões de plantio de cana, voltadas para a exportação, é examinado no trabalho de B. J. Barickman, Um Contraponto Baiano, açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. A dependência da forma econômica de trabalho intensivo da plantação da cana de açúcar do abastecimento externo de alimentos por ele documentada se mostrou no âmbito da pesquisa aqui realizada também para outras áreas de forma de economia de trabalho intensivo e foi examinada até o momento com base em desenvolvimentos parciais. A história da alimentação brasileira parece aqui, no geral, ter sido deixada de lado e é tratada mais como uma área independente, do que como parte da história do Brasil em geral. A pesquisa internacional relativa à alimentação se divide em princípios sociológicos, antropológicos e históricos e liga essas áreas interdisciplinares necessariamente com outros focos escolhidos. Trabalhos mencionáveis da área de sociologia e antropologia são os trabalhos de Stephen Mennell: Sociology of Food, diet and Culture e All Manners of Food, 12


Eating and Taste in England and France from the Middle Ages to the Present. Aos clássicos desta área de pesquisa pertencem também a obra publicada por Jack Goody Cooking, cuisine and classe, que documenta o contexto da estratificação social e alimentação com base no exemplo africano. Também mencionável é o livro de Donna R. Gabaccia We are what we eat, Ethnick food and the making of americans, na qual a autora, com base no exemplo dos Estados Unidos, explica a ligação da alimentação e migração. No geral, a alimentação foi tematizada como importante princípio de conteúdo das diferentes correntes de pensamento da antropologia internacional. Desta forma existem tanto abordagens estruturalistas, materialistas, e princípios funcionalistas, que analisam a temática alimentação quase sempre com base em diferentes exemplos. Ainda não se fez uma análise sobre a importância da alimentação como parte do processo de formação da identidade nacional de colônias tornadas independentes na América Latina do século XIX. Como exemplo para o método histórico com perspectiva global poder-se-ia citar a edição em língua alemã de Jeffrey Pilcher, publicada em 2006, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte. Como trabalho interdisciplinar poder-se-ia citar o livro de Sidney W. Mintz Sweetness and power, The place of sugar in modern history, bem como os trabalhos do historiador da alimentação italiano Massimo Montanari, cuja obra atual surgiu em 2008 com em versão brasileira sob o título Comida como cultura. Atualmente, surgiu na pesquisa da alimentação um grande número de bons trabalhos. A representação da situação da pesquisa internacional e um comentário sobre os aspectos relevantes individuais valeria quase um próprio livro, de forma que aqui só deverá ser mencionada exemplarmente a obra de referência: Food, a culinary history, de J. L. Flandrin e M. Montanari. Pode-se constatar, no entanto, que a importância da alimentação para o surgimento das identidades nacionais no âmbito das pesquisas, com um foco na Europa, de fato a França é mencionada, contudo, raramente são citados exemplos históricos individuais, de forma especial. A América Latina quase não é abordada. Uma exceção representam os trabalhos de John C. Super e Thomas C. Wright: Food, Politics and Society in Latin América e John C. Super Food, conquest and colonization in 17th century Spanisch América, que surgiram nos anos 80 nos Estados Unidos. Aqui foram tematizados alguns aspectos da história da alimentação na América Latina e a importância da alimentação para o desenvolvimento político e social foi demonstrado, sem, contudo, que se mencionasse a ligação entre identidade e alimentação. Da mesma forma mencionável é o livro de Arnold J. Bauer, Goods, power, history: Latin America’s material culture. Com base em diferentes trabalhos de 13


pesquisa, o autor apresenta uma bem sucedida síntese sobre o desenvolvimento histórico da cultura material da América Latina que frequentemente se refere a aspectos da alimentação. De fato, A. J. Bauer aceita a cozinha nacional como um modelo cultural surgido naturalmente, sem analisar as origens, e foca sua representação na América de língua espanhola. Da mesma forma relevante é o trabalho de Annerose Menniger, Genuss im kulturellen Wandel, Tabak, Kaffee, Tee und Schokolade in Europa (16.-19 Jahrhundert), no qual a autora examina a influência e o desenvolvimento das formas de consumo européias e da troca de mercadorias com base no exemplo “objeto de prazer”. Entretanto, nesta dissertação a influência do alimento e das formas de consumo na Europa são analisadas de forma análoga, em combinação com a cultura alimentar no Brasil. No tocante ao nível da pesquisa internacional, a pesquisa sobre alimentação no Brasil é dominada pela Europa e os Estados Unidos, subinterpretada, razao pela qual merece uma observação mais próxima. Na literatura técnica brasileira, pode-se constatar duas épocas principais. O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre foi quem lançou a pedra fundamental para a observação da alimentação da perspectiva científica. Já em 1926, ele acentuou no Manifesto Regionalista, uma de suas primeiras publicações, a importância da alimentação no contexto da cultura e identidade de uma região. G. Freyre escreveu uma variedade de livros que se tornaram muito famosos sobre a sociedade brasileira, entre outros, Casa Grande e Senzala, O campo na cidade, Nordeste e Açúcar. Em sua obra mais famosa, Casa Grande e Senzala, a influência e o papel da alimentação são explicados em muitos aspectos de sua representação holística sobre a importância do sistema escravocrata para a sociedade brasileira. A pesquisa sobre a alimentação no Brasil passou por uma fase de florescimento nos anos 60 do século XX. A obra mais importante com suas 1000 páginas, História da Alimentação no Brasil, foi realizada por Luis Câmara Cascudo. Na abrangente descrição, trata-se do desenvolvimento cultural e histórico da alimentação no Brasil e também da alimentação indígena, das influências da colonização portuguesa como ponto principal, bem como o papel e o desenvolvimento da alimentação afrobrasileira sao tematizados. A importância da alimentação para a formação da identidade não é, entretanto, reconhecida por ele como tal. Nesta fase surgiram outros trabalhos relevantes que focalizaram uma observação mais regional relativa à alimentação e à culinária. Sobre Minas Gerais, o livro Feijão, angu e couve, de E. Frieiro, sobre a Bahia, A cozinha bahiana, de D. Brandão, sobre Goiás, A cozinha goiana, de B. Ortencio, sobre a alimentação no Rio de janeiro trata o livro Comidas, meu santo de G. Figueiredo. No início dos anos 70 14


foi publicado por O. Osvaldo o livro Cozinha Amazônica, concluindo assim a primeira alta fase da pesquisa brasileira sobre alimentação. Nos anos 80, P. de Aguiar, autor do livro Mandioca – pão do Brasil, B. Amorin, autor de Alimentação Brasileira, e, sobretudo, M. Souto Maior, que como diretor da Fundação Joaquim Nabuco, publicou entre outros os livros Comes e bebes do nordeste e Alimentação e Folclore, se ocuparam com a alimentação da perspectiva científica, formando uma transição para a alta fase atual da pesquisa sobre alimentação brasileira. Nos anos 90, Raul Lody, um antropólogo do Recife que deve ser visto na tradição de G. Freyre e M. Souto Maior, começou suas publicações sobre alimentação. Com uma variedade de publicações, como entre outras, Axé da Boca, Temas de Antropologia da Alimentação, Santo também come, e o mais atual, Brasil Bom de Boca, bem como sua atividade científica, é tido hoje como o maior especialista sobre a culinária brasileira. Ele enriqueceu de forma duradoura o nível da pesquisa principalmente no tocante à alimentação afrobrasileira, uma vez que, com base em diversos livros examinou a influência da importância da alimentação para a religião do candomblé. A sua contribuição foi determinante para a implementação do reconhecimento da alimentação como patrimônio imaterial cultural do Brasil, e foi ele quem introduziu este processo com a pesquisa sobre o acarajé em Salvador, na Bahia, que foi o primeiro alimento a ser reconhecido. O sociólogo brasileiro, Henrique Carneiro, publicou com Comida e Sociedade, uma história da alimentação, uma obra atual, que trata o desenvolvimento histórico da alimentação no Brasil por uma perspectiva sociológica e, neste contexto, pesquisa a subalimentação e doenças dela oriundas, e examina ainda o contexto geográfico das regiões e da alimentação, bem como tematiza além do mais, a ligação entre a alimentação e a identidade étnica e regional. Seu trabalho, no entanto, deve mais ser entendido no âmbito teórico com relação ao Brasil. Ele deixou de lado as fontes escritas na forma de livros de culinária e anotações de receitas e também não trabalhou a importância da alimentação para a identidade nacional. No campo da pesquisa da história da alimentação, com um foco nos doces, surgiram diversos artigos da historiadora Leila Algranti que abordam a raiz portuguesa da culinária doce brasileira e também pesquisaram o contexto dos mosteiros e conventos que está por trás desta tradição. Especialmente mencionáveis são os artigos: Os doces na culinária luso-brasileira: da cozinha dos conventos à cozinha da “casa brasileira”, séculos XVII a XIX, surgidos na revista portuguesa Anais de História de Além-Mar e o artigo A Hierarquia social e a Doçaria Luso-Brasileira, surgida na Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, no qual a instrumentalização dos doces para a representação da hierarquia social é pesquisada. Ela 15


influenciou de forma determinante no livro Delícias das Sinhás, história e receitas culinárias da segunda metade do século XX, que surgiu em Campinas em 2007. Ele se baseia em receitas de Campinas anotadas à mão e tematiza exclusivamente doces. No âmbito da pesquisa sobre história da alimentação atual no Brasil, devem ser mencionados os livros Arte de cozinha, Alimentação e dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVIIXIX), de Cristiana Couto e Farinha, feijão e carne seca, um tripé culinário no Brasil colonial. Em sua obra surgida em 2008, na qual ela comparou principalmente o livro Cozinheiro Imperial com os livros de culinária portuguesa, Cristiana Couto tematiza, com uma escrita popular e de forma curta, a transição da cozinha portuguesa para a cozinha brasileira. O seu interessante livro é, infelizmente, na análise das fontes, entretanto, um tanto quanto superficial, orientando-se em trabalhos do historiador da alimentação português José Saramago, além de abranger as fontes brasileiras existentes de forma incompleta. Além disso, ela não analisa a contribuição bem como a instrumentalização da alimentação para a formação da identidade. A cientista Paula Pinto e Silva examinou a base da alimentação colonial da perspectiva antropológica e colocou as estruturas de longa duração como, alimento, farinha, feijão e carne seca no foco principal do trabalho. O seu livro surgiu em 2008 e presta uma importante contribuição científica para a alimentação no Brasil durante o período colonial, todavia, mais uma vez sem estabelecer uma relação com a identidade. Da mesma forma, são relevantes os trabalhos do sociólogo brasileiro Carlos Alberto Dória que, em 2009, publicou os livros A Formação da Culinária Brasileira e A Culinária Materialista. Enquanto o primeiro livro mencionado representa um breve tratado sobre as influências portuguesas bem como o desenvolvimento da cozinha típica até o século XX e não analisa a verdadeira cozinha brasileira de forma crítica, o seu livro abrangente trata do surgimento das ligações de cultura material e alimentação de uma perspectiva geral e se refere esporadicamente a um contexto brasileiro sem perseguir aqui princípios inovativos. Nesta dissertação foram utilizados também livros de culinária atuais, sem levar em conta o surgimento de uma variedade de novas publicações nos últimos anos. Salta aos olhos o fato de os respectivos autores terem tentado construir um contexto histórico e cultural, o que, em grande parte, dentro das exigências populares, pode ser visto como alcançado. Neste contexto, deve-se mencionar a publicação de uma série de livros de culinária de vinte volumes no final de 2009. Sob o título Cozinha Regional Brasileira, surgiram os respectivos exemplares de coleção sobre todas as regiões do Brasil. Eles tratam o desenvolvimento histórico regional, utilizam produtos regionais e as técnicas, e comprovam, assim, fato, de que se pode falar em 16


um Brasil das regiões, bem como levam em consideracao a preferência atual pela temática. Neste contexto da popularidade, devem ser vistas também as atuais reedições dos dois clássicos da literatura culinária histórica Arte de Cozinha e Cozinheiro Nacional. O nível da pesquisa referente ao verdadeiro núcleo deste trabalho, a ligação entre alimentação e identidade, deixa, desta forma, de constatar uma grave lacuna, especialmente com relação à América Latina e mais precisamente ao Brasil. Da mesma forma, o nível da pesquisa internacional que se refere à ligação entre alimentação e formação da identidade nacional, no geral, está ainda no início. Existem algumas pesquisas sobre o contexto temático na Europa, sobretudo no tocante à culinária francesa, entretanto, pesquisas referentes a este desenvolvimento nas colônias, especialmente sobre a América Latina são muito raras. Deve-se ressaltar a exceção surgida no meio dos anos noventa, com a publicação do livro Que vivan los tamales, Food and the making of mexican identity de Jeffrey M Pilcher. O autor conseguiu com o seu livro um ordenamento da alimentação no desenvolvimento histórico e cultural desde o antigo período colonial até o México do século XX e mostra a instrumentalização da mesma para a formação da identidade. Pode-se perceber, em uma análise geral do nível da pesquisa internacional e também no Brasil, que existe um grande número de publicações atuais, que tratam de aspectos individuais respectivos. Isso se torna especialmente claro no grande número de publicações brasileiras no campo da pesquisa de alimentação. Contudo, ainda não foi feita uma ligação do complexo de temas sobre formação da identidade no Império do Brasil, do papel da alimentação, como também do verdadeiro surgimento de uma assim chamada cozinha brasileira, bem como sua instrumentalização no contexto do desenvolvimento histórico e político no Império. Respectivamente, esta lacuna na pesquisa deve ser superada com a presente dissertação. Deve-se ainda mencionar neste contexto a insuficiente pesquisa histórica da alimentação nas regiões de origem de escravos africanos, a fim de se realizar uma comparação com a alimentação afrobrasileira. A cozinha lusofônica africana atual é descrita em Hamilton, Os sabores da lusofonia, com base em receitas culinárias, e um método semelhante é utilizado no livro de Castelo-Branco, obra que já tem 20 anos, A Expansão Portuguesa e a culinária. A importância do arroz na alimentação da África ocidental é tratada por Carney, Black Rice, The African Origins of Rice Cultivation in the Américas e o Brasil é mencionada algumas vezes, apesar de esta pesquisa se concentrar nos estados do sul dos Estados Unidos. Nos idos de 1950, surgiu um estudo sobre a Culinária Yorubá, http://www.jsto.org/stable/1156465 (3.3.2009), Journal of the International African Institut, Vol. 21, No. 2 (Apr., 1951), pp. 125137, William Bascom, Yoruba Cooking, e sobre a importância da alimentação no processo da 17


formação do Estado africano apareceu a tese de Igor Cusack, African Cuisines: Recipes for Nation-Building (http://www.jsto.org/stable/1771831 (3.3.2009) Journal of African Cultural Studies, Vol. 13, No. 2 (Dec., 2000) pp.207-225). Também um clássico da sociologia da alimentação se refere ao exemplo africano através de J. Goody, Cooking, cuisine and class. Um estudo atual sobre alimentação na África ocidental foi realizado por Eno Blankson Ikpe, “Essen wie die Zivilisierten” Britische Kolonialherrschaft und die Nahrungssitten in Westafrika 1900-1989, em Teuteberg (Hrsg.), Die Revolution am Esstisch, Neue Studien zur Nahrungskutur im 19./20. Jahrhundert. No entanto, estudos correspondentes sobre história da alimentação nas colônias portuguesas na África e os mencionados princípios superam essa lacuna superficialmente.

2.3 Tipos de fontes

Nas pesquisas para este trabalho foram usadas e examinadas as mais diversas fontes. Deve-se mencionar aqui a dificuldade em se encontrar fontes, já que as mais importantes, como cadernos de receitas escritos à mão e também livros de receitas do período do Império em grande parte não serem mantidos em arquivos ou instituições públicas, mas sim em sua maioria se encontrarem em posse de particulares. Para o acesso a essas fontes foi preciso estabelecer contato com “amantes e conhecedores da cozinha brasileira”. Também se tentou, sem sucesso, localizar mais material de pesquisa através de um chamado em uma revista de culinária. Entretanto, a busca por fontes, em todo o Brasil, de Belém a Pelotas, foi afinal, bem sucedia. As fontes localizadas e utilizadas dos livros de culinária, coleções de receitas, cardápios e artigos de jornais, devem aumentar significativamente o nível tanto da pesquisa nacional como internacional. Foram também utilizadas neste trabalho fontes que não provinham apenas do Brasil, como, por exemplo, livros de culinária portuguesa contemporâneos. Devido à grande variação das fontes localizadas, serão mencionadas aqui apenas aquelas mais importantes. Deve-se mencionar, ainda, que métodos de pesquisa quantitativos relativos à alimentação no Brasil durante o Império não foram utilizados, já que material estatístico mensurável como contas de orçamentos familiares não foram disponibilizadas em quantidade suficiente. As fontes disponíveis, como fontes sobre o transporte de alimentos são significativas no tocante à produção regional e à troca de mercadorias. Entretanto, deve-se observar aqui um aspecto importante para a compreensão desta pesquisa. No conceito cultural de cozinha e da instrumentalização de pratos para a construção de uma identidade nacional, é decisivo o que foi feito dos ingredientes. 18


A informação de que um alimento foi transportado, ou até mesmo comprado, é irrelevante com relação à preparação do alimento. De um alimento pode-se preparar um grande número de pratos diferentes e estes denotam, de acordo com a forma de preparo, um contexto cultural. Por exemplo, do milho se fazia o bolo de influência portuguesa, a broa, uma cerveja indígena obtida através do cuspe, ou produzia-se a base da alimentação dos escravos, Angu. Por isso, as receitas são aqui a melhor e mais importante fonte de pesquisa. Uma importante fonte são os diversos relatórios de viagem do Brasil do século XIX. Os viajantes, com os mais variados motivos, viajaram em épocas diferentes todas as regiões do Brasil. Desta forma, com base em suas anotações eles permitiam reconstruir os respectivos hábitos alimentares no Brasil das regiões. Este fato contradiz a freqüente afirmação, de que muitos viajantes teriam copiado as afirmações dos outros. É imprescindível uma abordagem crítica com este tipo de fonte e assim estas mesmas fontes devem ser analisadas com certo conhecimento anterior, por exemplo, quando o viajante alemão escreve sobre o “trigo turco”, uma vez que a denominação “ trigo turco” era a antiga denominação alemã para milho. Fontes de materiais de revistas e jornais abrangem um amplo leque das mais diversas fontes. No Brasil do século XIX, havia uma diversidade grande de jornais locais. Estes surgiam em todas as partes do país e o número crescia constantemente ao final do império. Nestes se encontravam frequentemente anúncios de alimentos, anúncios de escravos, ofertas de trabalho e muitos artigos individuais, que se ocupavam da alimentação e da culinária. Nas revistas se encontravam artigos sobre alimentação, higiene, saúde, desenvolvimento de preço bem como primeiros conceitos de dieta. Ao contrário, raras eram as receitas culinárias em sentido próprio. Numa pesquisa abrangente em Minas Gerais, Rio de janeiro, São Paulo, São Luis, Porto Alegre, Fortaleza, Recife e Belém, este fenômeno, hoje tão comum, só pôde ser encontrado em duas revistas. Ambas apareceram nos anos oitenta do século XIX e abrangiam o mesmo público alvo que eram as mães de família e as donas de casa: A Revista Familiar, Periódico dedicado as Famílias de Belém e Revista Mãe da Família do Rio de janeiro. Estas publicaram algumas receitas culinárias, contudo, não foram mantidas em suas edições completas. Cardápios representam um outro tipo de fonte para a reconstrução da alimentação e da cozinha brasileira da elite. Estas fontes preciosas puderam ser vistas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Rio de janeiro. Os cardápios mais antigos encontrados datavam de 1858. A conclusão desta coleção é feita pelo cardápio do último baile do Império no dia 8.11.1889, na Ilha Fiscal, por ocasião da visita de um navio de bandeira chilena no Rio de janeiro. Escritas em grande parte em francês e impressas para uma determinada ocasião, elas 19


eram em parte trabalhadas com capricho artístico, o que demonstrava o estilo de vida elevado da classe alta brasileira. Especialmente interessante é a instrumentalização de alguns pratos, a fim de tentar produzir uma identificação com o Brasil. Receitas culinárias anotadas a mão foram, da mesma forma, utilizadas como fonte. Essas raridades se encontram até os dias de hoje quase exclusivamente em propriedade privada, e as do período imperial são extremamente raras. Por um feliz acaso foi possível localizar vários exemplares destas coleções particulares através de uma famosa cozinheira e autora de livros de culinária em Minas Gerais, que já há muitos anos tinha começado sua coleção e as disponibilizou para esta dissertação. Na viagem de pesquisa em Pernambuco e no Rio Grande do Sul pôde-se também ter acesso a outros cadernos de receitas. O mais interessante nestas fontes é a predominância de receitas doces nos livros de culinária, o que ainda será tematizado ao longo do trabalho. Importante tipo de fonte para a realizaҫão desta dissertação são, sem dúvida, os livros de culinária do período imperial. Ao longo das pesquisas foram utilizados sete livros de receitas em diferentes edições e pôde-se partir do princípio de que não existem outros. A comparação das diferentes edições mostrou-se providencial em virtude das transformações e complementações, principalmente do Cozinheiro Imperial. O acesso a esses livros de culinária também se mostrou, da mesma forma, complicado. Enquanto os livros de cozinha, Cozinheiro Imperial, na 7ª. Edição, e o Dicionário do Doceiro Brasileiro, na 3ª. Edição, foram digitalizados pela Fundação Joaquim Nabuco e disponibilizados na Internet, o acesso aos demais livros mostrou-se muito mais difícil.

O livro de culinária Cozinheiro Imperial, na 4ª. Edição, se encontra de posse da Library of Congress e, na 11ª Edição, de posse da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, bem como diferentes edições se encontram na posse de particulares. O livro de culinária, Cozinheiro Nacional, como edição original, encontra-se de posse de alguns amantes do Brasil e da Biblioteca Nacional Francesa. Mais complicado se mostrou, em contrapartida, o caso do livro de culinária, Doceira Domestica e Doceiro Nacional, que, na verdade foi, encontrado, mas, que no âmbito das pesquisas, se mostrou como obra extremamente rara. Quase que completamente excluído do acesso ao público e para pesquisa se mostrou, no entanto, o livro Doceira Brasileira, que, aparentemente, só existe ainda na posse da Bosch-GmbH em Stuttgart. Após a superação de várias barreiras que impediam o acesso a este livro, e apenas passando por desvios, foi possível, no entanto, ter acesso a este livro. 20


Uma outra fonte também muito informativa é representada pelos almanaques da época, dos quais alguns do Rio de janeiro e do Recife foram examinados exemplarmente no tocante à gastronomia e a indústria de alimentos. Uma fonte mista pode ser encontrada nos demais livros, de conselhos e introduções, que, de uma forma ou de outra, se ocupam com alimentação. Neste leque, devem ser vistos livros sobre escravidão e manutenção de trabalho escravo e da força de trabalho bem como livros de aconselhamento familiar, medicinal e dicionários de línguas indígenas. Pesquisas estatísticas sobre preҫo e consumo no período imperial, são, infelizmente, bem raras e incompletas, e não tendo sido, portanto, levadas em consideração.

2.4 Metodologia da pesquisa

A análise das mais diversas fontes foi realizada de forma diferenciada. A fonte mais importante, os livros de culinária, foi analisada primeiramente, levando em consideração o prefácio. O prefacio de um livro de culinária pretende introduzir o leito no contexto do conteúdo e, no âmbito dos prefácios das diferentes edições, as complementações foram tematizadas. Através da formulação e da relação do conteúdo na introdução, na maioria das vezes escrita pelo editor, mostra-se também a classificação do livro de culinária no contexto histórico. A importância do prefácio se mostra especialmente no exemplo do livro Cozinheiro Nacional, que equivale a um manifesto político. Os prefácios foram instrumentalizados para delimitação ou para complementação explícita da literatura culinária existente. O próximo princípio metodológico consiste na análise das receitas com relação aos ingredientes e às técnicas utilizadas, bem como à denominação de cada prato. Esta denominação tem, na cozinha um significado especial. No vocabulário de cozinha internacional isso resulta no conceito de “Garnitur”, que serve para uma determinada forma de preparar e de servir um determinado prato3. Nos livros de culinária, muitos pratos foram denominados de acordo com este contexto. Correspondendo isso, as receitas foram examinadas de acordo com esta denominação, especialmente quando estas tinham uma relação regional ou nacional com o Brasil. Neste contexto, os ingredientes e as técnicas de

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Por exemplo, existe o conceito clássico e a forma de preparo do Wiener Schnitzels (escalope à moda de Viena). Como Wiener Schnitzel deve-se entender um pedaço fino de carne da parte superior do bezerro, que é batida de forma larga, e então empanada e que deve ser servida com uma fatia de limão, sobre qual está uma sardinha enrolada com três alcaparras. Esses conceitos se transformaram hoje em dia na cozinha popular, de forma que frequentemente um bife de porco é servido à moda do Wiener Schnitzel.

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preparo tinham sua importância. Com base nos ingredientes e nas técnicas os pratos podem ser classificados de acordo com um determinado contexto. No tocante aos livros de culinária utiliza-se também o princípio metodológico da comparação das diferentes edições, até onde estas foram encontradas. Assim, com base na complementação pôde-se mostrar, um desenvolvimento culinário, especialmente no livro Cozinheiro Imperial. O mesmo princípio metodológico relativo aos nomes, ingrediente, e técnicas foi também aplicado no caso dos cadernos de receitas anotados à mão e no caso dos cardápios. O método de análise de uma variedade de outras fontes diversas se orientou no conteúdo por aspectos da alimentação, como, por exemplo, os relatórios de viagem. Neste aspecto, quase todos os relatórios mostraram que o viajante, independentemente de sua origem, da região viajada e de seu status social, abordou a temática da alimentação e dos hábitos alimentares. Da mesma forma, os almanaques foram examinados neste sentido. Esta fonte deve ser interpretada como um retrato do comércio de uma cidade e mostra, em comparação, os diferentes anos, interessantes desenvolvimentos, como, por exemplo, o desaparecimento de determinadas profissões, como o do abatedor de tartarugas, com a crescente extinção de uma determinada espécie. Entretanto, os almanaques devem ser vistos exclusivamente como um importante testemunho do desenvolvimento urbano numa metrópole. Através deles chegavase a uma relevante complementação da pesquisa e literatura existentes, que este tipo de fontes até o momento subestimou, apesar de, através delas, poder-se muito bem analisar o desenvolvimento urbano do Brasil. No geral, a análise metodológica das fontes não se orientou por material econômico histórico de fonte utilizável, mas sim pela premissa de abordar o material de fonte através do conceito cultural de cozinha. Neste sentido, fontes e literatura secundária foram percebidas da mesma forma em alimentos e pratos típicos de uma região no contexto do ambiente natural e da agricultura, bem como foram analisados relatórios de viagem, memoriais, cadernos de receitas escritos à mão e cardápios. Com estes princípios e metodologia históricos-cultural holísticos, orientados no material de fonte existente, deve ser realizada uma reconstrução da alimentação e da cozinha brasileira, a fim de comprovar uma instrumentalização política.

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3. Identidade, Império brasileiro e Alimentação 3.1 Identidade 3.1.1 Formas de identidade

O ser humano cria, para a sua orientação em seu meio ambiente, modelos de identificação que formam as diferentes identidades4. As identidades de uma pessoa baseiam-se em sua autopercepção e em sua socialização e estão, assim, submetidas a processos de modificação, por um lado, por meio de transformação individual, e, por outro, através de transformação no meio ambiente. Ao lado da identidade pessoal subjetiva5 existem formas sobrepostas de identidade coletiva que se baseiam no pertencimento a grupos de indivíduos que, consequentemente, se entrecruzam. O tipo mais difundido de identidade coletiva está no micronível da relação familiar. É também neste âmbito que ocorre a maior parte da socialização do indivíduo: na comunidade familiar e nos modelos sociais, nos valores e comportamentos nos quais a família está assentada. Este conhecimento cultural se baseia na integração da família em identidades coletivas maiores com características muito diferenciadas. Existem diferentes formas de identidade coletiva. Uma delas é a da relação geográfica6. A identidade local7 se manifesta numa identificação de influência regional do individuo com uma base cultural nítida na qual ele pode se orientar. Daí é que se forma, num próximo nível 4

“Como fato objetivo, identidade quer dizer a inequívoca determinação de um objeto ou ser que possibilita o seu reconhecimento no tempo e no espaço”.… Subjetivamente identidade é uma condição a respeito da qual a própria pessoa pode dar informação e cuja existência se expressa no uso correto do pronome pessoal “Eu”. A teoria do reconhecimento denomina essa condição também de “autoconsciência epistêmica”, cujo status especial foi constatado na frase de Descartes “Cogito, ergo sum”. Ver Fellmann, Kulturelle und personale Identität, pág. 31 em Neumann, Teuteberg. Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und kulturelle Identität. De modo geral, o conceito de identidade é tratado em muitas áreas de pesquisa e se mostra, por isso como um conceito complexo. No âmbito deste trabalho, entretanto, identidade deve ser entendida em relação à nação, sob a forma da identidade nacional e deve ser observada a função da alimentação como um meio capaz de criar identidade. Ver Liebsch, Identität und Habitus, em Korte, Schäfers, Einführung in Hauptbegriffe der Soziologie: ou Eickelpasch, Rademacher, Identität: Böhme, Identität in Wulf, (Hrsg.), Vom Menschen Handbuch historische Anthropologie. Ver sobre a utilização do conceito plural de identidade http://www.identityresearch.eu/theorie/Identitaet.pdf (28.1.2009), Forschungskonzept Identität, Weigl, Michael, Was bedeutet Identität? – Wie entsteht regionale Identität?, pág. 2: “Identidade é construída dependendo do contexto, apesar de essas “identidades múltiplas” não existirem paralelamente, mas estarem em um contexto geral que o indivíduo acredita fazer sentido.”. 5 Ver Fellmann, Kulturelle und personale Identität, pág. 28-33 sobre as funções e a obviedade da identidade pessoal em Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und kulturelle Identität”. 6 Ver Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und Kulturelle Identität, pág. 19, “À vinculação dominante de identidade cultural a espaços físicos, onde essas identidades teriam ocorrido definir-seiam como regional, nacional, ou transnacional, e está relacionada a um segundo fenômeno: a tentativa de uma abordagem cartográfica destes espaços.… Com isso fica claro que, o caráter fictício e conceitual de tais categorias de ordenamento espacial traz a lume a falta de precisão de conceitos como “Territorialidade” ou extraterritorialidade.”. 7 No sentido do método geográfico, este seria uma cidade ou uma aldeia, ou ainda um bairro.

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maior, a identidade regional8. A identidade regional, na maioria dos casos, se adequa ao conceito cientifico, parcialmente questionado, de identidade nacional9, no qual diferentes identidades regionais são reduzidas a uma identidade coletiva10. A respectiva identidade muda em sua valoração de acordo com a circunstância. Se no cotidiano se sobrepõem mais as identidades de “grupos pequenos”, no âmbito de ações que vão além das nações, (como, por exemplo, competições esportivas ou guerras), utiliza-se

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Ver http//www.identityresearch.eu/theorie/Identiaet.pdf (28.1.2009), Forschungskonzept Identität, Weigl, Michael, Was bedeutet Identität? – Wie entsteht regionale Identität? Pág. 4: “..., que identidades regionais também de fato expressem a região como o universo das pessoas e tenham que caracterizar para que possam funcionar. As pessoas têm que reencontrar o seu universo e as suas experiências deste universo nas ofertas de identidade, do contrário elas recusarão essa identidade. Neste contexto, deve ser, além disso, ressaltado que identidade coletiva permanece em última instância sempre um conceito individual. Como uma região é integrada na identidade pessoal de cada cidadão, depende de muitos fatores individuais.“ Ver quanto ao significado de região também Jansen, Borggräfe, Nation, Nationalität – Nationalismus, pág. 16”. 9 Sobre o conceito de identidade nacional existem atualmente muitos trabalhos de pesquisa. Justifica-se, pois questioná-lo cientificamente de forma fundamental, já que existem muitas subidentidades e identidades parciais. Ver Cox, Kulturgrenzen und nationale Identität, pág. 8: ““…, aos poucos vai se clareando a posição de que uma identidade nacional, primeiramente, forme uma construção ideológica com base em supostas características comuns como língua, cultura e religião, em segundo lugar, não se trate, no caso de identidade nacional, de forma alguma, de algo estático por natureza, mas, sim, muito mais que sua “realização’ ou “não-realização” só é condicionada por diferentes fatores histórico-políticos e socioeconômicos”. O conceito é observado de maneira crítica e não existe uma definição uniforme do que deve ser entendido como identidade nacional. Ver também Wilberg, Nationale Identität. Segundo o autor citado, o núcleo de todas as teorias da identidade é formado pela auto-reflexão da pessoa. “… Identidade coletiva e identidade nacional são mitos e ficções, com consequências concretas.”. Ver Schoibert, Jäger, (Hrsg.) Mythos Identität, Fiktion mit Folgen, pág. 5. Tentativa de uma definição em Wodak, Zur diskursiven Diskussion nationaler Identitäten, Pág. 69: “Identidade nacional é um complexo internalizado no traço da socialização de convicções e opiniões comuns ou semelhantes…, de posicionamentos e comportamentos comuns ou semelhantes…, bem como de disposições comportamentais comuns ou semelhantes, às quais contam, entre outras, inclusive, disposições solidárias ou exclusivas e limitadoras, mas em muitos casos linguisticas e etc…” Ver também Eisenstadt, Die Konstruktion nationaler Identitäten in vergleichender Perspektive, in Giesen (Hrsg.), Nationale und kulturelle Identität, pág. 21: “Sua ubiquidade (e o grande número de suas formas de realização) torna difícil oferecer uma formula palpável para esse processo de construção. Como consenso mínimo é válido que a construção da identidade nacional se apóie em uma base de combinações de primordiais (históricas, territoriais, ligúisticas, étnicas), respectivamente símbolos e limites políticos. Os fatores primordiais estão ligados, de variadas formas, a conceitos fornecedores de identidade, apesar de aqui não existir nenhum contexto igualmente natural entre eles e a diferenciação de identidades nacionais modernas”. Ver quanto a isso Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 22: “Três pontos são essenciais: Primeiramente, as ideologias oficiais dos Estados e movimentos não fornecem nenhuma referência concreta sobre o que passa pela cabeça até mesmo de seus cidadãos mais leais. Em segundo lugar, não existe nenhum motivo para a suposição de que, para a maioria das pessoas a identificação com a nação – até onde ela existir – exclua, ou seja, sempre e de qualquer forma superior a todas as outras identificações que formem um conhecimento da sociedade. De fato, ela se vincula sempre com identificações de outro tipo, mesmo se ela diante dessas for tida como primordial. E, em terceiro lugar, uma identificação nacional pode, com todas as suas extensões, mesmo em períodos muito curtos, se alterar ou transferir ao longo do tempo.” 10 Ver Celik, “Wir-Die-Ich”, pág. 193: “Neste sentido, nações são sempre pensáveis e realizáveis apenas em um nível simbólico lingüístico. São construções discursivas, relativamente estáveis, que são produtos da interação político social. A identificação com uma nação acompanha, na maioria das vezes, a aceitação dos argumentos sociais e culturais dominantes nos discursos de identidade nacional. Vale dizer: as estratégias e ofertas discursivas.” em Schobert, Jäger, (Hrsg.), Mythos Identität, Fiktion mit Folgen.

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a relação nacional de identidade. Especialmente o fator guerra tem e tinha um efeito sobre o surgimento de identidades nacionais bem como sobre o surgimento dos Estados nacionais11. Enquanto a formação da construção de identidade, especialmente no âmbito da família, mas também no âmbito da região, já há um contexto histórico longamente desenvolvido, o conceito da identidade nacional, bem como o do nacionalismo ou da nação é relativamente moderno12 . A pesquisa relativa a essa temática gera um consenso nesse ponto, bem como sobre a construção do conceito de nação13 e a instrumentalização do mesmo para o uso no poder político através da elite de um país14. Mas o conceito da identidade nacional como variante da identidade coletiva que o Estado Nacional15 construiu mentalmente nas pessoas e, 11

Ver Einfalt, Jurt, Nollenhauer, Pelzer, (Hrsg.), Konstrukte nationaler Identität: Deutschland, Frankreich und Grossbritanien (19. und 20. Jahrhundert), pág. 9/10. Ver também, Koch, Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung, pág., 34-35; Jansen, Borggräfe, Nation – Nationalität – Nationalismus, pág. 104-106. 12 Mas existia, sim, também um pensamento pré-nacional com relação a uma identidade coletiva territorial. Hobsbawn caracteriza isso como um protonacionalismo popular. Ver Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 59-66. No caso brasileiro, existiria o exemplo da Guerra de restauração no nordeste do Brasil, contra o domínio holandês no século XVII, que levou a um tipo de protonacionalismo, principalmente já que essa restauração foi iniciada sem a ajuda do poder colonial português. 13 Sob a rubrica “conceito de nação” deve servir como base, no âmbito desse trabalho, o modelo de definição de Benedict Anderson. Ver Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreichen Konzepts, pág. 15 – 16: “Ela é uma comunidade política imaginada. Imaginada como limitada e soberana. Imaginada ela é pelo fato de que os membros, mesmo da menor nação, não conhecerem, terem contato com ou apenas ouvirem falar dos outros, mas mesmo assim, na cabeça de cada um deles existir uma idéia de sua comunidade. Na realidade, todas as comunidades que são maiores do que o seu contato face-to-face da aldeia, são comunidades imaginadas. A nação é apresentada como limitada, por que até mesmo a maior delas, com talvez um bilhão de pessoas viva em limites determinados, além daqueles nos quais estão localizadas outras nações. Nenhuma nação se iguala à humanidade. A nação é apresentada como soberana porque o seu conceito surgiu em um momento em que o iluminismo e a revolução destruíram a legitimidade de impérios hierárquica e dinasticamente pensados como súditos de Deus”. 14 A pesquisa sobre o surgimento do fenômeno da nação já está hoje bastante adiantada. Ver o panorama atual em Jansen, Borggräfe, Nation – Nationalität – Nationalismus. Trabalhos fundamentais sobre a coletânea de temas são Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreiches Kanzepts; Hobsbawm, Nationen und Nationalismus; Gellner, Nationalismus – Kultur und Macht. O contexto da estabilização das relações de poder social está de fato no primeiro plano, mas tem, no entanto, também inúmeros efeitos colaterais. Ver Berke, Imperialismus e identidade nacional, pág. 17: “na verdade, não há muito que duvidar que a construção do nacional primariamente fosse uma técnica política de poder e domínio. Apesar disso, estaria errado entender a construção de sentido do moderno mito nacional como apenas e unicamente um aspecto da propaganda. Querer desmascarar a quimera do nacionalismo como pura tática de domínio, significaria negligenciar os componentes estruturais do poder, vale dizer, a sua maneira de atuação no processo de interação.”. 15 Uma equiparação tática do conceito de nação com o conceito de estado nacional parece ser legítima em um contexto temático, já que a identidade nacional é determinada pelas elites que dominam o sistema. Claro que no âmbito de interpretação do conceito de identidade nacional, é possível uma desvinculação do conceito de estado da nação. No caso em tela, do império brasileiro parece ser este o caso, já que a antiga identificação com o imperador se transformou em uma identificação com a nação, mas essa transformação de estado imperial mesma foi influenciada, por exemplo, pela utilização de conceitos como nacional ou pátria. O Estado instrumentalizou, assim a identidade nacional conforme os próprios interesses. Ver sobre a equiparação dos conceitos no contexto de identidade também Koch, Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung, pág. 58. Ver também Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 20: “Nação não é uma unidade originária ou uma unidade social imodificável. Ela pertence exclusivamente a uma jovem época histórica determinada. Ela é uma unidade social apenas na medida em que se refere a uma determinada forma do estado territorial, ao estado nacional, e não faz sentido falar em nação e nacionalidade se essa relação não tiver sido pensada também.”.

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por outro lado, com a qual se diferenciou um indivíduo do outro, é muito diversificada e a formação varia, em cada caso, com diferenciadas nuances16 temporais e locais. Como fator decisivo para o surgimento da identidade nacional se demonstrou o papel da comunicaçãocomo instância central de construção e intermediação17, sobretudo, de forma escrita18. Neste ponto, o fator de uma língua comum foi importante no âmbito da formação das nações como elemento comum. No exemplo das colônias americanas, o fator língua, entretanto, não se mostrou como muito importante já que os antigos senhores coloniais, dos quais se desejava se distinguir, utilizavam a mesma língua e com isso, língua não pode mais ser um elemento constitutivo como, por exemplo, no caso da fundação da nação do império alemão ou italiano19. Neste ponto, a idéia principal desta identidade coletiva também gira em torno do entendimento de nação, o que deve ser observado, sobretudo, no pensamento

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Ver, quanto a aspectos da identidade nacional, Koch, Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung, pág. 35: Nessa medida, a questão da identidade nacional possibilita, ao responder a pergunta “quem somos nós?”, um tipo de ponte entre a abstração da nação como idéia, o conceito de coletivo, resumido nesse a identidade individual. Ao lado das inúmeras possibilidades de se formar identidade pessoal, a identidade nacional aparece como uma consciência de grupo grande complementar, que, por meio do fato de ter sido percebida ou dividida por muitos, em sua determinação de conteúdo de cada indivíduo – se é que – oferecer um espaço de formação extremamente pequeno, mas, contudo, possuir a atratividade de responder a questão do pertencimento de um contexto social contínuo para o indivíduo. “Neste caso, ela tem efeito mais complementar à identidade individual que, com toda a obviedade e diferenciação do sistema total, é correlacionada, respectivamente, oferecida”. Ver também Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 23. 17 Ver Koch, Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung, pág. 11. Ver também Giesen (Hrsg.), Nationale und kulturelle Identität, pág. 12: “Neste âmbito (paradigma culturalistico da nação cultural) literatura e descrição histórica aparecem não mais como autocertificação da nação já anteriormente existente, mas sim como procedimentos nos quais apenas a identidade da sociedade é afirmada, descrita e criada.” A pesquisa fala aqui também da narração construtiva da identidade coletiva. Ver, neste contexto, com relação ao exemplo Brasil, Wink, Brasilien als “vorgestellte Gemeinschaft”?, eine kulturwissenschaftliche Untersuchung der Erzählung Brasiliens vom Reich zur Nation im lateinamerikanischen Kontrast. 18 Em relação especial à comunicação como base da escrita, que pôde criar uma idéia de uma comunidade dividida estava a construção do sistema de ensino. Ver, com relação a isso, por exemplo, Jansen, Borggräfe, Nation – Nationalität – Nationalismus, pág. 31: “Isso aconteceu, sobretudo, com a ajuda das instituições como escola e exército, cuja importância como correia transmissora para construção interna da nação, não pode ser subestimada”.; Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, pág. 49, ou Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 73-76 sobre a importância de uma forma de comunicação em comum. Isso se mostra também no surgimento de uma literatura nacional que através da tomada de consciência da nação também a influencia. Ver Giesen, Nationale und kulturelle Identiät, pág. 10, continuando, pág. 14: “A ascensão da nação como identidade coletiva da sociedade moderna é por isso inseparavelmente ligada com a disseminação de textos escritos e com a alfabetização de mais partes da população. Apenas ela possibilitaria aquela comunicação de amplitude social na qual a nação poderia se imaginar como público e ator.” Ver, também, Rodrigues–Moura, Von Wäldern, Städen und Grenzen. Narration und kulturelle Identitätsbildungsprozesse in Lateinamerika. 19 Ver, também, com relação ao significado da língua, Cox, (Hrsg.), Kulturgrenzen und Nationale Identität, pág. 9: “Línguas nacionais padrão são na maioria dos casos, uma construção artificial: o número de línguas aumenta conhecidamente com o número de estados e não o contrário.” Ver quanto à importância das línguas também Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 67-77. Ver, com relação à importância do desenvolvimento na América, Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreichen Konzepts, pág. 55-60, continuando, pág. 72-87 e pág. 133: é sempre um erro tratar línguas como certas ideologias nacionalistas costumam fazer: como símbolo do ser-nação como bandeiras, vestimentas, danças folclóricas e coisas do tipo. “A característica muito mais importante da língua é muito mais do que isto a sua capacidade, de produzir comunidades imaginadas, na medida em que permite criar certas solidariedades e torná-las efetivas.”

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contemporâneo da época e do respectivo desenvolvimento histórico20. A diretriz temporal está, conforme isso, no tempo moderno e modernidade como um critério da nação21, apesar de também uma lembrança compartilhada do passado servir como base para uma identidade comum. Além da comunicação, o passado compartilhado é muitas vezes a base mental mais importante de uma afinidade na forma de uma identificação com uma nação na forma de uma memória nacional. O conceito histórico foi utilizado em muitas construções de nações22. Neste contexto, formam um corte as revoluções francesa e a americana, que colocaram o fundamento intelectual para o conceito de nação como também do conceito de cidadão do Estado. Aqui estão, neste trabalho, o ponto de partida e também a ruptura do desenvolvimento. A historiografia se concentra principalmente em um modelo europeu, no qual a burguesia que surgia representava um papel importante na formação dos estados nacionais, na Europa. O desenvolvimento no exemplo brasileiro toma, no entanto, um outro caminho. Isso foi reconhecido por B. Anderson e ele faz várias vezes referência ao exemplo Brasil23, desviante dos outros vizinhos sul americanos. O conceito de nação serviu à união de uma sociedade cada vez mais diferenciada e foi, neste sentido, construído24 por grupos que a formavam. Por um lado, deve-se, assim, se manter a hierarquia social e a estratificação social, e, por outro, permitir-se uma ampla identificação. Nisso, a oferta de participação não se dirige a todos os grupos sociais, mas, sim, a pessoas que sejam leais ao conceito difundido. No exemplo brasileiro, escravos eram excluídos e também 20

Ver tentativa de reconstrução do pensamento contemporâneo sobre nação em Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 49-50. 21 Ver Koch, Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung, Zur Bedeutung der Moderne und dem Zusammenhang zu Nation und Nationalstaat, ver pág. 18-21. Ver também Jansen, Borggräfe, Nation Nationalität – Nationalismus, pág. 24, sobre nacionalismo como fenômeno moderno. 22 Ver entre outros Berke, Imperialismus und nationale Identiät, pág. 17. Ver também Giesen, Nationale und kulturelle Identiät, pág. 12: “neste âmbito (paradigma cultural da nação cultural), literatura e escrita histórica não aparecem mais como autogarantia cultural da nação anterior já existente, mas sim como procedimentos nos quais a identidade da sociedade é afirmada, descrita e construída”. 23 Ver Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreichen Konzepts, pág. 53. Ver, quanto à importância da revolução francesa, em Einfalt, Jurt, Mollehnauer, Pelzer (Hrsg.) Konstrukte nationaler Identität: Deutschland, Frankreich, und Grossbritanien (19. und 20 Jahrhundert), pág. 10; Jansen, Borggräfe, Nation – Nationalität – Nationalismus, pág. 10-12. Ver sobre a revolução francesa também Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 29 – 30. 24 Ver também Giesen, Kulturelle und nationale Identität, pág. 14: “Identidade nacional a parece então como uma base de um entendimento amplo da sociedade que, por um lado, não alcança o nível universal da razão e permite diferenças entre as sociedades, mas, por outro, inclui todos os sujeitos políticos nela. Com isso, o olhar se dirige ao grupo social que impulsiona a imaginação da comunidade nacional e se torna o sustentáculo histórico da consciência nacional. Essas foram, sobretudo, as classes e posições emergentes e mobilizadas, especialmente as diferentes facções da burguesia, que, juntamente com intelectuais e literatos, trabalharam a idéia de particularidade nacional e afinidade”. Ver também Eisenstadt, Die Konstruktion nationaler Identitäten in vergleichender Perspektive, in Giesen (Hrsg.), Nationale und kulturelle Identität, pág. 21: “... pode-se afirmar que a construção de identidade nacional (comparável com outros casos de construçao da identidade coletiva, no correr da história humana) é inaugurada e influenciada por certos sustentadores: “Jansen, Borggräfe, Nation – Nationalität, - Nationalismus, pág. 28-29”. Sobre os importantes protagonistas, no círculo do IHGB, no caso brasileiro, ver Reis, As Identidades do Brasil, De Varnhagen a FHC.

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a população indígena foi incorporada ao conceito literário contemporâneo, mais romantizada do que a sua participação foi pensada. Importante para a possibilidade da identificação com uma nação é simplesmente o reconhecimento da simbologia25. Exatamente no exemplo brasileiro, atribuiu-se ao Estado imperial, na forma de suas instituições, um papel dominante. A formação da identidade no Império Brasileiro foi ajustada ao imperador e ao império. Este processo se transformou definitivamente com a Guerra da Triplice Aliança, em uma formação explícita de identidade nacional26. Uma outra forma de formação de identidade ocorre pelas categorias e estratificação sociais, gênero e etnia27. A identificação do indivíduo com outras pessoas, segundo modelos, posição social, renda, e influência política é característica da identidade estratificada ou também da 25

Ver sobre isso Koch, Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung: pág. 41 “a explícita e involuntária destinação e assunção de identidade nacional, esta passividade imposta ao indivíduo no processo de formação de identidade torna quase que obrigatoriamente necessário não acoplar os elementos da identidade nacional a uma habilidade de interpretação a ser realizada pelas pessoas a incluir. Os elementos que formam a identidade deveriam ser evidentes e passar conteúdos ao grupo por ela focado sem ter que ser decifrados apenas através de um processo ativo de reconhecimento e valoração. Elementos como língua, em determinadas circunstâncias de pertencimento étnico, com eventuais particularidades culturais correspondem a este propósito e passam, com isso, a ser considerados um estímulo máximo” da formação da identidade nacional. Oferecem possibilidade de uma identificação ampla, diversos elementos que são aplicados conjuntamente. Ver Einfalt, Jurt, Mollenhauer, Pelzer (Hrsg.), Konstrukte nationaler Identität: Deutschland, Frankreich und Grossbritanien (19. 20. Jahrhundert), pág. 16: “Esta construção de identidade nacional” foi remetida a todos os elementos específicos e estruturalmente semelhantes, como citado no livro de Anne-Marie Thiesse La création des identités nationales: a construção de uma ampla continuidade histórica abrangente; heróis que incorporem valores nacionais, uma língua comum, monumentos culturais, locais de memória, paisagens típicas, certa mentalidade, símbolos estatais, - hinos, bandeiras, vestimentas típicas, pratos nacionais, figuras emblemáticas.”. 26 A relação intensa com o exemplo brasileiro seguirá no decorrer do trabalho e deve aqui ser apenas mostrada brevemente. Ver, contudo, no geral, com relação à transformação na legitimação de domínios dinásticos, Hobsbawm, Nationen und Nationalismus, pág. 102: “As garantias tradicionais da lealdade, da legitimidade dinástica, um encargo divino, um direito histórico, e a continuidade do domínio ou da união religiosa foram duradouramente enfraquecidas”. E, finalmente, todas essas legitimações tradicionais de autoridade estatal foram permanentemente questionadas desde 1789. No caso da monarquia, isso se mostra de forma especialmente clara. A necessidade de criar um fundamento novo ou ao menos complementar para essa instituição foi sentida até mesmo em Estados que foram poupados de uma revolução, como a Inglaterra sob Georg III. e a Rússia sob Nikolaus I. E as monarquias se esforçaram indubitavelmente por adaptarem-se às circunstâncias. “Que as monarquias tenham se adequado à nação é uma indicação forte de como as instituições tradicionais tiveram que se modificar na era das revoluções, caso elas não quisessem desaparecer.” Ver também Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreichen Konzepts, pág. 29: “Ainda em 1914, as dinastias representavam a maioria dos membros do sistema político mundial, bem como muitos soberanos,..., já há algum tempo recorriam a um símbolo nacional, porquanto o antigo princípio de legitimação, aos poucos desaparecia.”. Ver também com relação ao exemplo Brasil na Guerra da Triplice Aliança em Dutra, Nação, Região, Cidadania: a construção das cozinhas regionais no Projeto Nacional Brasileiro, pág. 95-96: “O jogo entre a pacificação interna e a belicosidade externa como fator de consolidação da legitimidade da autoridade central, narrada por Elias (1993) no processo de consolidação do Estado moderno, se faz nítido no caso brasileiro durante a Guerra do Paraguai. Vencidas as rebeliões provinciais, o confronto com o inimigo externo atua como grande estímulo à formação do sentimento de nação. Neste momento, a necessidade da busca de um espírito novo para o país já vinha sendo tematizada na literatura, através do romantismo, espalhando-se nos acontecimentos no campo europeu.”. 27 Estas identidades devem ser valorizadas na maioria das vezes como subordinadas com relação à nação. Ver Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, pág.: “...: não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los em uma identidade cultural, para representá-los como identidade cultural, como todos pertencendo à mesma e grande família nacional. Uma generalização relativa a isso parece, no entanto, questionável.

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identidade de classes. A percepção do Eu, como parte de um ambiente especificamente de gênero, com papéis, modelos, valores e influência política, tem efeito na ordenação sobre a identidade de gênero. Etnia ainda é uma outra forma de percepção da identidade, já que nesse âmbito certas circunstâncias são determinantes. Especialmente a colonização e a escravidão influenciaram a formação de identidades étnicas duradouramente28. Todas as formas da identidade têm em comum a importância do outro, sobre o qual a autopercepção pode ser refletida29. O outro atua como modelo de pensamento, dentro da própria identidade coletiva, mas este se desenvolve fora do Nós30. Muitas identidades se baseiam mais na delimitação do que no auto-posicionamento. Desviando das identidades obviamente construídas, existe ainda assim a chamada identidade cultural que, de fato, também surge de modelos aprendidos e do mesmo modo construídos, mas que, no entanto, está mais impregnada na ação inconsciente da vida cotidiana. Só aparece no contato mais intimo com outras identidades culturais, por exemplo, na migração. Ao contrário da identidade cultural construída, que instrumentaliza diferentes métodos da identidade cultural para o seu sentido, esta é enraizada no cotidiano e limitada pela influência da respectiva cultura. Neste sentido, a alimentação é, sobretudo, parte da identidade cultural. Mas, a identidade nacional conseguiu, sim, ser incorporada no conceito de identidade cultural. 31

3.1.2 Identidade e Alimentação

Existem modelos culturais que influenciam a formação das diferentes formas de identidade e também lhes servem como forma de expressão. Especialmente, as áreas da vida cotidiana têm 28

Ver, com relação ao exemplo brasileiro, Queiroz: identidade cultural, identidade nacional no Brasil, em Tempo Social, USP, 1(1) São Paulo, 1989. Ver sobre exclusão dos escravos no conceito de nação, Manning, Wanderung Flucht Vertreibung, Geschichte der Migration, pág. 200. Ver, sobre escravidão, também Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreiches Konzepts, pág. 66-67. 29 Ver, entre outros, Koch, Nationale Identität im Prozess nationalstaatlicher Orientierung, pág. 47-49 e Celik “Wir-Die-Ich”, pág. 194, em Schobert, Jäger, Mythos Identität, Fiktion mit folgen; Jansen, Borggräfe, Nation – Nationalität – Nationalismus, pág. 105. 30 Ver, Einfalt, Jurt, Mollenhauer, Pelzer, (Hrsg.), Konstrukte nationaler Identiät: Deutschland, Frankreich und Grossbritanien (19. und 20. (Jahrhundert), pág. 14: “sem o conceito diferenciador central do outro, a comunidade se dissolveria em suas diferenciações internas. O princípio da alteridade é assim imprescindível para a coerência da comunidade imaginada. O “outro” pôde, com isso, ser identificado tanto dentro como fora da própria comunidade. ”Ver também Jansen, Borggräfe, Nation – Nationalität – Nationalismus, pág. 10-11: “A idéia de nação possibilita, em medida vislumbrável, delimitar dos outros, uma parte como “nós” e, o resto como estranho”“. Trata-se sempre de um método da inclusão e exclusão; o problema permanece também na clara classificação de uma pessoa a uma nação. 31 Ver Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, pág. 45: “No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural.” Continuando, pág. 49: “As Culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era prémoderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional.”.

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efeito neste sentido. Desta forma, bem como roupa e língua, especialmente o fator alimentação é de suma importância32. A alimentação é uma necessidade essencial,33 profundamente ancorada34 na cultura cotidiana do ser humano. Desenvolveu simbologia correspondente, que toca e influencia35 muitas áreas da cultura humana. Nisso, tanto os meios de alimentação têm um caráter simbólico36, quanto à forma de prepará-los e as circunstâncias de consumi-los37 sob a forma do comportamento38 e da cultura material39. Nestes contextos complexos o ser humano se orienta e os utiliza para a autorepresentação que o torna 32

Ver: Fellmann, Kulturelle und personale Identität, pág. 27 em Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen, Band 2, Essen und Kulturelle Identität; Flandrin, Montanari, Food, a culinary history, pág. 16: “Food is perhaps the most distinctive expression of an ethnic group, a culture, or, in modern times, a nation.”Ver Pilcher, Que vivan los tamales! Food and the making of Mexican identity, pág. 2: “Nevertheless, cuisine and other seeminglz mundane aspects of daily life compose an important part of the culture that bind people into national communities.” 33 Entre as necessidades naturais sede e fome, há a satisfação da necessidade de comer e de beber na mediação da cultura culinária que define o quê e como pode ser utilizado para a satisfação da necessidade, a culinária. Este importante aspecto diferencia a satisfação da necessidade humana da natureza do animal. Ver Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen, Band 2, Essen und kulturelle Identität, pág. 13- 14. Ver quanto ao entendimento básico antropológico também Silva, Hall, Woodward, Identidade e Diferença, pág. 42: “A cozinha é o meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura. A cozinha é também uma linguagem por meio da qual falamos sobre nós próprios e sobre nossos lugares no mundo. Como organismos biológicos, precisamos de comida para sobreviver na natureza, mas nossa sobrevivência, como seres humanos depende do uso das categorias sociais que surgem das classificações culturais que utilizamos para dar sentido à natureza.”. 34 Os hábitos alimentares são nisso vinculados ao sistema de valores sociais e culturais de uma pessoa ou grupo, através da ritualização diária completa da comida dentro de certos modelos culturais. Importante é a relação da pessoa com a natureza. 35 O campo especialmente simbólico da alimentação encontra-se no âmbito da formação da identidade com a necessidade do ser humano de se identificar com símbolos. A cozinha deve ser entendida no sentido de construção de identidade como uma construção simbólica incorporada, que permite construir ou se referir a outros. Ver Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen und kulturelle Identität, pág. 18. Ver também Bärlosius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur-wissenschaftliche Einführung, pág. 9”: “ a obrigação recorrente diária de se preocupar com alimentação é a razão do constante trabalho e a origem de toda a economia”. Ver também Montanari, Comida como Cultura, pág. 16. 36 Ocorre uma classificação da alimentação conforme conteúdo simbólico comunicativo em : - Produtos de prestígio: meios de alimentação são tratados como atributos pessoais; eles servem para efeitos demonstrativos exibicionistas e devem ressaltar, de outra forma, a posição elitista social, respectivamente, dependência. - Produtos de Status: alimentos servem como identificação sócio-cultural, eles não devem demonstrar uma função de direção social, mas sim a conformidade com o grupo e facilitar a assimilação. - Produtos apenas funcionais: alimentos que servem como fornecedores de calorias, os alimentos fundamentais que não têm nenhum conteúdo especial e têm simbologia neutra. Ver Teuteberg, Die Ernährung als psychosoziales Phänomen: “Belegungen zu einem verhaltenstheoretischen Bezugsrahmen, pág. 7, in Teuteberg, Wieglmann, Unsere tägliche Kost, Studien zur Geschichte des Alltags”. 37 O consumo de alimentos foi abordado conforme Georg Simmel e mais tarde Ulrich Tolksdorf como o Complexo Refeição. Ver sobre uma aplicação atualizada das diversificadas situações sociais da comida, Bärlösius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kulturwissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 165-195. Ver http://www.ernaehrungsdenkwerkstatt.de/fileadmin/user_upload/EDWText/TextElemente/Mahlzeiten_Meal/Tol ksdorf_Struktralistische_Nahrungsforschung-Mahlzeit.pdf Tolksfdorf, Ulrich, Strukturalistische Nahrungsforschung. Pá.g 11-13. 38 Os assim chamados costumes da mesa transformaram a ingestão de alimentos em uma representação da identidade pessoal e cultural. Ver Fellman, Kuturelle und personale Identität, pág. 35, em Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen, Band 2, Essen und kulturelle Identität. 39 Ver Rath, Alimentação, pág. 243-249 aos campos culturais a alimentação abrange,em Wulf (Hrsg.) , Vom Menschen Handbuch historische Antropologie.

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identificável. A alimentação tem efeito, assim sendo, nas diferentes formas de identidade do homem, isso fica especialmente perceptível com base na importância da preparação de alimentos no âmbito familiar; por exemplo, no “cozido da mamãe ou no bolo da vovó” que ficam ancorados na memória de cada um, de forma especial, seja de forma boa ou ruim. Um outro exemplo marcante é também a preparação de alimentos no encontro de imigrantes no exterior, quando, então, ingredientes da pátria são preparados com cuidado especial. Também as identidades regionais se baseiam em pratos, na maioria das vezes,

produzidos com

ingredientes regionais, com uma relação a um costume, como, por exemplo em forma de uma festa.40. Os hábitos alimentares existentes em uma cozinha servem ao mesmo tempo para diferenciação do homem em suas estruturas sociais41. Através da alimentação, produz-se numa comunidade, uma instrumentalização, como simbologia, para uma identidade coletiva42. Assim, os comensais, a ingestão de alimentos em um grupo, influenciam a identidade do grupo e geram ligações sociais43. Sobretudo, através da ritualização de formas de comportamento culturais específicos e folclorização da preparação dos alimentos, estabilizase na identidade de grupo e se cria uma delimitação para fora44. Neste sentido, o conceito cultural de alimentação serve também para a construção de uma identidade nacional45.

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Ver também Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen, Band 1, Essen und kulturelle Identität, pág. 18: “Formação de identidade através de procedimentos alimentares não se dá apenas no nível regional ou nacional, mas sim abrange outros níveis, como o pessoal, o social, o cultural e o mais amplo no sentido teórico comportamental.”Ver também Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 13, com indicação ao efeito da alimentação na identidade étnica ou pág. 16, na identidade especificamente de gênero. Ver também Montanari, Comida como cultura, pág 183-188 e http://www.jstor.org/stable/4132873 (3.3.2009) Annual Review of antropology, Vo. 31 (2002), pp. 99-119, Sidney W. Mintz and Christine M Du Bois, The Antropology of Food and Eating. S.109-110. 41 Ver, quanto a isso, a constatacao fundamental no pensamento condutor sobre os contextos de identidade e cultura culinária na Europa das regiões de Bärlösius, Neumann, Teuteberg pág. 13: “Constatação fundamental: pratos, bebidas e refeições no cotidiano, sobretudo em festividades, são utilizadas normalmente para a delimitação de grupos sociais e classes, como para minorias étnicas e religiosas, mas também muito para a diferenciação de espaços de povoamento, paisagens, Estados nacionais, oportunamente até mesmo para a acentuação de uma diferença cultural em geral.“. Em Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und Kulturelle Identität”. 42 Ver Neumann, Teuteberg Wierlacher, Kulturthema Essen, Band 2, Essen und kulturelle Identität, pág. 13: “A alimentação é ligada a normas para a satisfação de necessidades essenciais primárias, mas também para o exercício de formas de cultura secundárias, como por exemplo, comunicação, espírito de grupo, a valorização de acontecimentos festivos, a garantia de hospitalidade e muito mais.”. 43 Ver Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgesschichte, pág.12. No sentido de uma relação nacional ver Bauer, Goods power, history: Latin America’s material culture, pág. 198: “For food to have a socially integrative effect in a country, there must be, if not a national cuisine, at least some dishes that make the consumer fells as if he or she is part of a national culinary communion.”. A alimentação consiste na parte constitutiva da identidade, ver Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da antropologia da alimentação, pág. 13. 44 Isso se mostra especialmente claro no casos dos imigrantes. A forma de se alimentar é parte da autocompreensão cultural. Ver Schmid, Alimentação e Migração, pág. 16-24. Nisto foi constatado por meio de pesquisas que à alimentação se atribuiu a maior relevância por parte dos imigrantes, no tocante a identidade étnica. Ver McIntosh, Sociologies of Food and Nutrition, pág. 25, ou Murcoll (Ed), The Nation’s Diet, The Social Science of Food choice, pág. 172:”..., and that people’s food habits are central to their identities., no tocante a imigrantes e Alimentação, pág. 180. Ver também Barlösius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und

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3.2 História do império brasileiro 3.2.1 Desenvolvimento político

A história do império brasileiro começa com a invasão das tropas de Napoleão em Lisboa, em novembro de 1807, com a transferência, por isso motivada, da corte portuguesa e do rei Dom João VI para o Brasil. A chegada da corte real, com 36 navios e aproximadamente 15.000 pessoas da elite portuguesa, em março de 1808, mudaria o Brasil e a residência do rei no Rio de Janeiro, de forma duradoura46. Nos anos seguintes estabeleceu-se uma vida real no Rio de Janeiro e a centralização política do Brasil se estabilizou. Em 1815, erigiu-se a nova pátria: Reino Unido do Brasil Portugal e Algarves, com um status de equivalência com a antiga metrópole47. Na seqüência do desenvolvimento político, em Portugal, João VI foi chamado de volta a Portugal 48. Ele transferiu, em 24 de abril de 1821, a regência sobre a parte menos importante do império, ao kulturwissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 123: “Preparação de alimentos em pratos. Cozinha neste sentido quer dizer uma obra de regras culturais complexas que contêm instruções de como se deve cozinhar de forma diferente, respectivamente. Isso continua nas pág. 124-125: “no ambiente, quer seja ele definido como regional, social ou étnico, no qual uma cozinha é praticada ela estabelece identificações e ao mesmo tempo constróem-se barreiras diante de outras cozinhas . Cozinhas são, por isso, extremamente aptas a produzir sentimentos de superioridade cultural e a desqualificar práticas estranhas. Elas são, com isso, utilizadas principalmente para a implementação e apoio de dois processos sociais: primeiro construir uma identidade cultural generalizada, e, em segundo, impor esforços de delimitação social, política e outros, ou seja, separar distintivamente a própria identidade da identidade estranha. Não exatamente o que é cozinhado ou comido é que forma a base para a construção de imagens estranhas, mas sim observações pejorativas sobre como outras culturas supostamente se alimentam. Por outro lado, a cozinha é um produto do pensamento e da fantasia, que é simbolicamente comprimido e reduzido a estereótipos, sob os quais a identidade é construída. Da realidade material, do cozinhar de fato, esta cozinha está na maioria das vezes distante. Não mais através dos pratos, mas, sim, apenas através das auto-imagens e das alheias, transmitidas sobre cultura alimentar. As identidades são construídas conscientemente de forma ativa. Assim, surgem cozinhas fictícias sobre as quais circundam autoimagens idealizadoras ou imagens alheias, estigmatizadas, que não preenchem nenhuma outra função a não ser produzir distância ou proximidade social. Essas cozinhas não contêm nenhuma instrução quanto à forma de preparo e sua função original. Elas já não preenchem mais. Elas servem apenas para uma finalidade social: unir ou separar pessoas.”. 45 Ver neste contexto: Capítulo 3.3.2 Cozinha: Regional e nacional. Ver também os estudos Pilcher, Que vivan los tamales! Food and the making of mexican identity: http://www.jstor.org/stable/1007616 (3.3.2009) The America s, Vol. 53, No. 2 (Oct., 1996) pp. 193-216, Jeffrez MPilcher, Tamales or Timbales: cuisine and the Formation of Mexican National Identity, 1821-1911. 46 Ver Schultz, Versalhes Tropical, sobre os efeitos políticos, culturais e estruturais da chegada e da permanência da monarquia portuguesa no Rio de Janeiro/Brasil. Sobre a influência no campo cultural ver Pinho, Salões e damas do segundo reinado, pág. 15-25, ver também Russel Wood, From Colony to Nation, pág. 34, no qual a abertura dos portos brasileiros para o comercio internacional, no contexto da chegada da corte é tida como especial. 47 Ver Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 129, sobre os efeitos da proclamação do Reino Unido. No tocante à formação de uma primeira identidade brasileira que se contrapunha a até então dominantes identidades regionais, no contexto da proclamação do reino unido, ver Jancsó, Brasil: Formação do Estado da Nação, pág. 26. 48 Ver Loth, Das portugiesische Kolonialreich, pág. 132-133, sobre o desenvolvimento em Portugal, a revolução liberal-burguesa, Revolução de 1820, a criação das Cortes 1821 e a Constituição liberal de 1822. Ver também Lima, O Movimento da Independência/O Império Brasileiro, pág. 11-26 sobre a partida para Portugal e os efeitos da revolução portuguesa de 1820.

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seu filho, ainda nascido em Portugal, Pedro, ainda que com o conselho que previa o futuro, de que caso ocorresse um movimento de independência do Brasil, ele se mantivesse no topo dele49. Quando o desenrolar dos fatos em Portugal se mostrou desfavorável ao desenvolvimento no Brasil, o príncipe tomou a iniciativa e declarou, no dia 7 de setembro de 1822, com o “Grito do Ipiranga”, a independência da até então colônia50. Em 12 de outubro, Dom Pedro foi proclamado o imperador constitucional e eterno defensor do Brasil. Em 1º de dezembro de 1822 foi coroado imperador: Pedro I51. Nos anos seguintes, ele conseguiu o reconhecimento internacional e a consolidação nacional do Império do Brasil52. A guerra em Portugal, provocada pela independência, foi resolvida pela intervenção britânica, em 1825, e a revolta das tropas portuguesas e regiões insurgentes no Brasil foram derrotadas53. 49

Ver Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 134 O objetivo do conselho era a manutenção do então reino colonial para a dinastia de Bragança. Também Morais, A independência e o Império do Brasil, ver pág. 114-130. Sobre o contexto dos conselheiros brasileiros, e, especialmente do papel de José Bonifácio de Andrade e Silva, como um dos precursores da independência brasileira, ver também Schwarcz, As Barbas do Imperador, pág. 52. 50 O contexto da independência é um tema trabalhado intensivamente na historiografia brasileira. Ver, entre outros, Lima, O Movimento da Independência/ O Império Brasileiro, pág. 272-289; Souza, Pátria coroada: o Brasil como corpo político autônomo 1780-1831; Morais, A Independência e o Império do Brasil, Jancsó, Brasil: Formação do Estado e da Nação, pág. 15, aqui são salientados a cooperação de diversos fatores para o complexo da independência. Também na pesquisa internacional, a independência do Brasil é trabalhada, assim como, por exemplo, Russel-Wood, From Colony to Nation,; Burns, A History of Brazil, ver ,em pesquisa em língua alemã Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 132-138 compacto sobre as circunstâncias em torno do grito do Ipiranga. 51 Ver Handelmann, História do Brasil, pág. 927-931, a respeito das circunstâncias, cerimônias e símbolos do novo império. Segundo Schwarcz, As Barbas do Imperador, pág. 51, Pedro I se orientava no desempenho do império, no exemplo do México de 1821, ver também, Schwarzc, O império em procissão, sobre o papel de José Bonifácio, pág. 8-9. 52 Ver Schwarzc, As Barbas do Imperador, pág. 52, o Reinado de Daome foi o primeiro a reconhecer a independência do Brasil, seguido dos USA, ver Neves, O Império do Brasil, pág. 101. Sobre o reconhecimento internacional do Brasil, ver também Revista do IHGB, Tomo Especial II, Calogeras, A Política Exterior do Império, O Primeiro Reinado, pág. 359-396. O também complexo processo da consolidação nacional dependia, sobretudo, com a unidade da elite mantenedora de escravos, que pode superar as diferenças regionais. Neste aspecto, o medo de um possível desenvolvimento como no Haiti teve um papel importante. Ver Salles, Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado, pág. 52-57, ou também, Carvalho, A Construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 36 sobre a importância da manutenção do sistema escravocrata e da união da elite Brasileira. Ver, quanto a isso, também, Azevedo, Onda Negra, Medo Branco. O Negro no Imaginário das Elites. Século XIX. Um outro aspecto importante da transição sem atritos para o império independente foi a assunção no Brasil de todos os contextos institucionais criados. Ver Neves, O Império do Brasil, pág. 256 e Carvalho, A Construção da Ordem / Teatro de Sombras, pág. 30. Sobre as especificidades da independência brasileira ver também Maxwell, Kenneth, Porque o Brasil foi diferente? O Contexto da Independência, in: Mota (org.), Viagem Incompleta, pág. 177-197. Em 1824, a Constituição do Brasil foi promulgada e ligação política do império foi regulamentada. Ver Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 145-147. 53 Implementação enérgica se deu com uma frota que foi conduzida pelo então Admiral Lord Cochrane, que atuou a serviço do Brasil e combateu as insurreições, principalmente no nordeste do Brasil (Confederação do Equador). Ver Lima, Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, pág. 178-179; Neves, O Império do Brasil, pág. 104-105; Ver quanto à descrição detalhada também Handelmann, Geschichte Brasiliens, pág. 966992.

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O novo império entrou em uma guerra cheia de perdas, com o desenvolvimento da Província Cisplatina em 1825 com os estados do La Plata, na qual, em 1827, o Uruguai saiu como nação independente, o que danificou a imagem do imperador54. Tendo em vista a morte de Dom João VI e a questão da sucessão monárquica portuguesa, Pedro I decidiu em 7 de abril de 1831 partir para Portugal, apesar de ter deixado no Brasil seu filho de 5 anos, Pedro II, sob tutela enquanto o senado no Rio de Janeiro instituiu um governo provisório na forma de uma regência55. A fase da Regência de 1831 a 1840 foi o mais sangrento e conturbado período do Império brasileiro. Ao lado dos conflitos e lutas de poder das facções políticas, no Rio de Janeiro ocorreram inúmeras rebeliões regionais de escravos e também muitas insurreições separatistas no norte e sul, de forma que a integridade do império via-se seriamente ameaçada56. O grande número de revoltas que se transformaram em longas guerras civis, sobretudo no Rio Grande do Sul e no Pará, combinado com as disputas de política interna das classes dominantes, levou, em 1840, a uma campanha dos liberais, na qual Pedro II deveria ser emancipado57.

Pela segunda vez na história brasileira, um monarca havia conseguido

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A imagem do imperador, de origem portuguesa, tinha sido arranhada em virtude de sua aparente política pessoal portuguesa amistosa com os brasileiros e a derrota que levou à perda da Província Cisplatina, anexada em 1816. Com isso, ao término do conflito histórico, em torno da Banda Oriental para o Brasil, também colaborou para isso. Ver Neves, O Império do Brasil, pág. 114. Quanto à atitude antiportuguesa, ver Riveiro, A liberdade em construção, identidade nacional e conflitos: Antilusitanos no primeiro reinado. Ver Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 137-138; Handelmann, Geschichte von Brasilien, pág. 989-1017, Burns, A History of Brazil, pág. 167; Lima, Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira, pág. 185-189 e Revista do IHGB Tomo Especial II, Calogeras, A Política Exterior do Império, O Primeiro Reinado, pág. 397-484. Além disso, ocorreram tensões de política interna nas quais o imperador dissolveu a Assembléia Constituinte e isso levou, entre outras coisas, a um conflito crescente com o partido dos liberais, do qual resultou o conflito da autoridade central com as elites regionais. Resumindo quanto a isso, Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 149: “A atmosfera contra o imperador não se atribuía, portanto, apenas ao binômio Federalismo/Liberalismo versus Unitarismo/Autoritarismo; ela era ao mesmo tempo expressão de ressentimentos antiportugueses gerais.”. 55 Ver Barmann, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 28-31 a respeito da crise e partida de Pedro I, 1831, que, diante das circunstâncias tumultuosas, deixou seus filhos para trás. Handelmann, Geschichte Von Brasilien, pág. 1064, José Bonifácio de Andrada foi nomeado tutor de Pedro II. 56 Na verdade, já no governo de Pedro I haviam ocorrido muitas revoltas, como em 1824, Revolta dos Soldados no Rio de Janeiro e em 1829, mais uma revolta em Pernambuco, Entretanto, as revoltas na fase da regência foram mais abrangentes e mais sérias. Ver Burns, A History of Brazil, pág. 168-175. Quanto às disputas políticas, ver Carvalho, A Construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 50-51. lá se encontra também uma boa listagem e uma representação visível das diversas revoltas, pág. 230-234: 1831-1832 ocorreram seis revoltas no Rio de Janeiro, 1831 Setembrizada em Recife, Novembrizada em Recife, 1832 Abrilada em Pernambuco, 18311832 Pinto Madeira no Ceará, 1832-1835 Carneirada no Recife, 1835 Revolta dos Males em Salvador, 1833 Sedição de Ouro Preto, em Minas Gerais, 1834 Cabanagem no Pará, 1835-1845 Farroupilha no Rio Grande do Sul, 1837-1838 Sabinada em Salvador, 1838-1841 Balaiada no Maranhão. Sobre as revoltas dos escravos, ver Silva, Um Rio chamado Atlântico, A África no Brasil e o Brasil na África, pág. 189-215, Hell Sklavenmanufaktur und Sklavenemanzipation in Brasilien 1500-1888, pág. 195-205, Schwartz, Sugar Plantations in the formation of Brazilian Society, Bahia, 1550,-1835, pág. 486-487. 57 Ver quanto ao desenvolvimento político interno, Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 155-157 e Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 71-73. Já ao final da fase de regência havia tentativas da elite dominante de se criar instituições que dessem integridade, assim por exemplo o imperial

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conservar a integridade territorial do país intacta58.

Na idade de 14 anos Pedro II foi

emancipado pelo parlamento e assumiu a regência na noite de 23 de julho de 1840. Ao longo da nova estruturação das relações de poder político59, ocorreu, em 1842, uma tentativa de revolta liberal em Minas Gerais e São Paulo60. A última grande revolta ocorreu em 1848 em Pernambuco61, entretanto, o jovem imperador conseguiu manter a integridade do Brasil e fortalecer seu papel político central. No decorrer dos próximos anos, os violentos conflitos internos puderam ser dissolvidos. Além disso, houve uma consolidação do estado nacional e um equilíbrio entre as facções políticas dos conservadores e dos liberais62. Na política externa, em 1850, ocorreu uma rápida guerra com a Argentina e houve conflitos com a Inglaterra por causa da proibição do tráfico de escravos 63. O período de 1850 até 1865 caracterizou-se, no Brasil, por uma estabilidade política e um crescimento econômico64.

Colégio Pedro II, que foi fundado em 1837, o Arquivo Público, fundado em 1838 assim como o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, que tem uma importância fundamental para o desenvolvimento da idéia e assumiu a razão de Estado do Brasil imperial . Ver, quanto a esse desenvolvimento, Neves, O Império do Brasil, pág. 258-263. Interpretação da fundação semelhante em Burns, A History of Brazil, pág. 174-175. 58 Na historiografia brasileira, a proclamação do império e a defesa do território nacional são vistas como o primeiro fato. Ver Burns, a History of Brazil, pág. 174-175: “Ä strong reaction against the mounting chaos prompted the elites fearful of the very unity of the empire, to turn to the throne as the instrument and symbol of national unity, to duplicate the miracle it had wrought in 1822.” 59 Ver Carvalho, A Construção da Ordem / Teatro de Sombras, pág. 137, sobre as reformas de 1840-1841, que levou a uma centralização mais forte. 60 Ver quanto à Revolta Liberal em Minas Gerais e São Paulo 1842: Hörner, Memória Seletiva: usos e leituras de um episódio da “Revolução Liberal”de 1842 em São Paulo, pág. 261-274, em Costa, Oliveira(org.) de um império a outro; Burns, A History of Brazil, pág. 177 e Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 88-89, também o conflito no Rio grande do sul foi tratado. 61 Ver, sobre a Revolta Praieira em Pernambuco, Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 123-124 e Prado Jr., Evolução Política do Brasil e Outros Estudos, pág. 73-77. Visto ao todo sempre voltaram a ocorrer novas revoltas regionais diferentes e insurreições, como, por exemplo, a revolta do Quebra-quilo, no nordeste, no começo dos anos 70. Ver Maior, Quebra-quilo, Lutas Sociais no Outono do Império. O que provocou a revolta foi a introdução do sistema métrico, com o qual a população se sentiu prejudicada em relação aos alimentos, devido à mudança da medida. A revolta começou em Campina Grande, no final de 1874, e se ampliou rapidamente aos estados federais vizinhos até em um curto espaço de tempo foi repressivamente reprimida. Ver também Lima, Tachos e Panelas, Historiografia da alimentação brasileira, pág. 43-45. 62 A consolidação do estado nacional e do papel central do imperador deu-se pela doutrina do “Poder Moderador”. As reformas descentrais do período regente foram anuladas para o fortalecimento do poder central. Um ano importante foi o de 1850, quando a Guarda Nacional foi criada, o direito agrário modificado e a proibição do tráfico de escravos foi oficializada. Além disso, Pedro II erigiu muitas elites regionais ao título de nobreza e concedeu novos à aristocracia existente. Também a burocracia regional e a administração foram fortalecidas. Ver Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de sombras, pág. 235-238, um instrumento importante neste sentido foi o Conselho de Estado criado em 1841, ver o mesmo, pág. 327-329, sobre o desenvolvimento político dos partidos ver o mesmo, pág. 181-208. Ver também Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 74-106, e Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 157159, Holanda, Vol. 7, Do Império à República sobre a “Doutrina do Poder Moderador”. 63 Ver Neves, O Império do Brasil, pág. 252, sobre a crise Christie com a Inglaterra, também Holanda, Vol. 6, Declínio e Queda do Império, pág. 167-172. Ver sobre o complexo da crise e o papel de Pedro II, Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 122-126. 64 Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 192-193.

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Um corte no processo de crescimento dinâmico e pacífico deu-se com os conflitos de política externa, com os vizinhos republicanos. O conflito com o Uruguai, em 1864, escalou resultando na sangrenta e cheia de perdas, Guerra da Triplice Aliança, de 1865 até 1870, contra o Paraguai65. Nos anos seguintes, então, o que ocupava a política brasileira era principalmente a questão da escravatura e da abolição66, a instalação e a organização da imigração européia67, a função do exército68 e o movimento republicano de peso69, bem como o conflito entre a igreja e a maçonaria70. Além disso, aspectos econômicos como o ciclo da borracha e do café e a construção de uma rede de comunicação e de transportes e a industrialização incipiente foram importantes desenvolvimentos no fim do período imperial71. 65

Ao longo da guerra ocorreram mudanças sociais importantes, especialmente no tocante à participação dos escravos como soldados no Exército brasileiro, que após a guerra, foram libertados. Da mesma forma, de suma importância é o desenvolvimento do Exército com relação ao imperador. Sobretudo depois da guerra, o exército se desenvolveu crescentemente em direção republicana e foi, por fim, também determinante na proclamação da república.Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil 1825-1891 pág. 196-239 sobre a Tríplice-Aliança e o desenvolvimento do Brasil durante a guerra e sobre a mudança do exército em direção republicana ver pá.g 231. Ver também Costa, A Espada de Dâmocles, o Exército, a Guerra do Paraguai e a Crise do Império; Doratioto, Maldita Guerra, a Nova História da Guerra do Paraguai; Chiavenatto, Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai e http://www.jstor.org/stable/980203 (3.3.2009) The Americas, Vol. 28 (Apr. 1972), pp 388-406, Harris Gaylord Warren, Brazil’s Paraguayan Policy, 1869-1876. Quanto à importância da guerra na criação de uma identidade nacional ver Salles, Nostalgia Imperial, Vol. 6, Declínio e Queda do Império, pág. 349-366 e Holanda, Vol. 7, Do Império à República, pág. 51-68. 66 Ver sobre escravidão e abolição ao final do período imperial: Nabuco, O Abolicionismo; Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 323-326 e pág. 336-341; Carvalho, A Construção da Ordem/Teatro de Sombras, sobre os conflitos entre o imperador e a elite, ver pág. 291-328, Sobre escravidão, ver, entre outros, Reis, “Nós achamos em campo a tratar da liberdade”; a resistência negra no Brasil oitocentista, em Mota, (org. ) Viagem Incompleta; Freyre, Herrenhaus und Sklavenhütte; Reis, Gomes (org.), Liberdade por um fio, história dos quilombos no Brasil; Silva, Um Rio Chamado Atlântico, a África no Brasil e o Brasil na África, Skidmore, Black into white: conseqüências econômicas representadas com base no exemplo de Pernambuco (1840-1889), Gorender, O Escravismo Colonial. 67 A imigração européia no século 19. foi também um importante complexo de temas bem tratado na historiografia brasileira. Ver, entre outros, Fausto (org.). Fazer a América; Alencastro, Renaux, Caras e Modos dos Migrantes e Imigrantes em : Novais, História da Vida Privada no Brasil, Vol. 2, Império: a corte e a modernidade nacional, Alves, Das Brasilienbild der deutschen Auswanderungswerbung, ou Acervo, Volume 10 Número 2, Jul./Dez. 1997, Imigração. 68 Ver quanto ao desenvolvimento do exército, Holanda, Vol. 6, Declínio e Queda do Império, pág. 275-319. 69 Já um ano após a guerra da Tríplice Aliança, surgiu no Rio de Janeiro um manifesto republicano. De fato, já existia no período imperial, desde a década de 30 um movimento republicano digno de ser levado a sério; no entanto, este só ganhou significado depois da guerra. Isso estava relacionado a dois aspectos: por um lado, a revolução na França, depois da guerra de 1870, que também irradiou progresso civilizatório neste sentido, e, por outro lado, com a mudança de geração na sociedade brasileira e, sobretudo, da elite. Esta nova geração, formada em universidades brasileiras, se diferenciava de forma determinante em sua visão de mundo de seus pais. Aceitavam a unidade da nação brasileira como dada e não eram tão tradicionalistas. Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 240-244. 70 Ver, sobre o desenvolvimento que ocorreu em 1872, relativo à questão da separação do Estado e Igreja e o papel da maçonaria, Holanda, Vol. 6, Declínio e Queda do Império, pág. 392-423 e Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 253-257.Ver também Carvalho, Pedro II, pág. 150-156. O conflito teve seu auge com a condenação de dois bispos (1874), condenados a quatro anos de prisão e trabalhos forçados. 71 De fato, o desenvolvimento que, no geral era bom, também foi freado pela economia mundial, por exemplo com o fim da Guerra Civil Americana ou com a crise econômica de 1875. Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil,1825-1891, pág. 269, ver também Nascimento, Die Zweite Kaiserzeit Brasiliens im Spiegelbild der deutsch-brasilianischen Handelsbeziehungen (1840-1888), pág. 164-170. Ver, quanto ao

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Ao todo, os esforços por uma modernização marcaram a fase mais tardia do Império Brasileiro. No período de 1885 até 1889, os debates em torno da abolição da escravatura aumentaram e o movimento republicano fortaleceu-se, sobretudo através da crise do governo desde a guerra da Tríplice-Aliança. 72 Por ocasião de uma ausência de Pedro II, devido a uma viagem, sua filha, a Princesa Isabel73, que estava como regente, promulgou em 13 de maio 1888 a “Lei Áurea”, que abolia definitivamente a escravatura no Brasil74. A abolição da escravatura foi, no entanto, também o início do fim da monarquia, já que o a elite conservadora que apoiava o imperador, agora então também da mesma forma, se dirigira para o lado do movimento republicano75. Assim foi que, na noite de 14 para 15 de novembro, ocorreu um golpe militar e a república foi proclamada76. Pedro II deixou o Brasil juntamente com sua família em 17 de novembro de 1889.

desenvolvimento econômico relativo ao mercado mundial, força de trabalho, infra-estrutura e industrialização incipiente no período imperial: Szmrecsányi, Lapa (org.), História Econômica da Independência e do Império. Sobre o desenvolvimento econômico do Brasil no período de Pedro II ver Nascimento, Nascimento, Die Zweite Kaiserzeit Brasiliens im Spiegelbild der deutsch-brasilianischen Handelsbeziehungen (1840-1888); com relação a infra-estrutura e modernização, ver também Schwarcz, As barbas do Imperador, pág. 128-131. Com relação a economia cafeeira: Stein, Vassouras, A Brazilian Coffee Country, 1850-1900., The Roles of Planters and Slaves in a Plantation Society. Uma boa visão sobre o desenvolvimento econômico, nas diferentes áreas, como mineração e a agricultura destinada a exportação com café, cacau, e algodão, açúcar, tabaco e borracha, industrialização e a construção de infra-estrutura, em Holanda, Vol. 6, Declínio e Queda do Império, pág. 13163. Ver também Costa, Da Monarquia à República, sobre os contextos da plantação de cacau, imigração e movimento republicano, pág. 197-233. 72 Ver Burns, A History of Brazil, pág. 240, sobre o contexto com o fortalecimento do movimento republicano desde a guerra do Paraguai ver também Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 347-349, apesar de aqui o papel do positivismo ser acentuado como ideologia influenciadora do movimento republicano brasileiro. Quanto à abolição, ver Carvalho, Pontos e Bordados, pág. 65-79. Ver também Ventura, Um Brasil mestiço: raça e cultura na passagem da monarquia à república, pág. 331-358 , em Mota (org.), Viagem Incompleta. Um bom resumo do desenvolvimento relativo ao abolicionismo e ao movimento republicano tanto no aspecto temporal como nas especificidades regionais, se encontra em Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 203-212. No tocante à crise de governo, ver Holanda, vol. 7, Do Império à República, Problemas Fundamentais do Governo, pág. 94-156, sobre a crise após a tríplice aliança pág. 176-205 e a respeito da crise de governo pág. 402-416. Ver também Carvalho, Pedro II, pá.g 126-129. 73 Ver sobre a pessoa e o papel da Princesa Isabel: Barman, Princess Isabel of Brazil: gender and power in the nineteenth century. 74 Ver, entre outros, Lima, Formação histórica da Nacionalidade Brasileira, pág. 226-229. Ver também Carvalho, Pedro II, pág. 186-191. 75 De fato, com a questão da escravidão e o final do império estão ligados outros aspectos, assim, via, por exemplo, Prado Jr., The Colonial background of modern Brazil, pág. 90: “O império se mostrava incapaz de resolver os problemas nacionais, a começar pela emancipação dos escravos, de cuja solução dependia o progresso do país,... A abolição, afinal decretada em 1888, em nada contribuiu para reforçar as instituições vacilantes: confiança perdida dificilmente se recupera, e por isso serviu a abolição apenas para alienar do trono as últimas simpatias com que ainda contava.” Ver também Carvalho, Pedro II, pág. 191: “Por mau cálculo ou por desinteresse, o primeiro de Isabel, o segundo do Imperador, a monarquia perdeu com a abolição mais uma batalha política por sua sobrevivência”. Os proprietários a abandonaram. A opinião ilustrada apoiou a medida, mas já se decidira contra o regime. O povo aderiu com entusiasmo, mas não tinha voz política. Representação visível em http://www.jstor.org/stable/3679030 (3.3.2009) Transactions of the Royal Society, sixth series, Vol. I (1991), pá.g 71-88, Leslie Bethell, The Decline and Fall of Slavery in Nineteenth Century Brazil. 76 Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 357-369, sobre o golpe, proclamação da República e a partida do imperador bem como outras circunstâncias da época. Ver também

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3.2.2 Desenvolvimentos políticos e formação de uma identidade nacional Com a chegada da corte portuguesa no Rio de Janeiro, iniciou-se também um processo de transformações sociais e culturais no Brasil. Em muitas áreas da vida desenvolveu-se uma europeização77 que, com o passar dos anos, se irradiou do Rio de Janeiro também para outras classes e partes do país78. Houve uma política de modernização que em nome do progresso e da civilização, através de meios como a criação de instituições 79, industrialização80, imigração, e especialmente através das linhas de telegrafo, ligações por navio a vapor e linhas de trem81, o Brasil deveria se ligar à era moderna82. Sobretudo no campo cultural ocorreu uma forte orientação pela Europa, por exemplo, através da incorporação dos hábitos franceses de vestir e comer e da importação de produtos europeus83.

Costa, Da Monarquia à República, 387-492. Bem feitos estão aqui a representação e o trabalho da percepção de diferentes perspectivas temporais e políticas. Ver também http://www.jstor.org/stable/1006826 (3.3.2009) 77 Em 1816, neste mesmo contexto, veio para o Brasil uma missão francesa de artistas para a construção da Academia de Belas Artes. A ela pertencia entre outros, Jean Baptiste Debret. Ver Haring, Empire in Brazil, pág. 7. Também Bandeira, (org.), Jean Baptiste Debret, Caderno de Viagem, pág. 94. A europeização se estendeu a várias áreas que serão abordadas no âmbito deste trabalho. Também a orientação por padrões europeus permaneceu durante todo o império. Assim Pedro II deixou, por exemplo, a cidade de Petrópolis cuja construção em 1834 foi planejada e iniciada segundo padrões europeus e recebeu imigrantes europeus e suíços. Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág. 114-116, ver também pág. 162-163 sobre a orientação européia e sobretudo francesa. 78 A cultura citadina, que se desenvolveu em torno da corte e da Rua do Ouvidor, como rua luxuosa, no Rio de Janeiro, tornou-se um pólo atrativo para cultura, língua e hábitos para a boa sociedade no país todo. Ver Schwarcz, As barbas do Imperador, pág. 135. 79 Assim, foram fundadas antes da independência instituições como o Banco do Brasil, a Real Academia dos Guardas Marinhos e a Academia Real Militar nos primeiros anos, seguidas das Escola de Medicina do Rio de Janeiro e de Salvador e a Academia de Belas Artes. Isso formou a base para outras fundações posteriores após a independência. Ver Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 73-74. Uma novidade importante foi também a introdução da imprensa, com a chegada da corte no Rio de Janeiro, em 1811 em Salvador, em 1817 em Recife, em Belém e São Luis, em 1821. Ver Burns, A History of Brazil, pág. 122. Quanto à importância especial da imprensa no contexto da identidade nacional, ver Anderson, A Invenção da Nação, Zur Karriere eines erfolgreichen Konzepts, pág. 43-44. 80 A industrialização representou um importante elemento da elite econômica e também foi entendida como tal no âmbito nacional. Assim, em 1827 foi fundada a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, que, como uma organização semi estatal recebia verbas públicas e seus membros eram políticos importantes. Desde 1833 foi publicado um jornal que também era editado na Laemmert: O Auxiliador da Indústria Nacional, Periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Ver Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 44. 81 Sobretudo nos anos 50, quando iniciaram a construção das possibilidades de transporte e comunicação, mostrou-se o importante significado para o crescimento das províncias mais distantes para um império unitário. Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 159 e Padro Jr., Evolução Política do Brasil e outros estudos, pág. 83. 82 Ver a nota de roda pé acima e Schwarcz, As Barbas do Imperador, pág. 128-129, ver também http://www.jstor.org/stable/2742310 (3.3.2009) Current Antropology, Vol. 23, No. 3 (jun., 1982), pp. 255-262, Benício Viero Schmidt, Modernization and urban Planning in 19th-Century Brazil. 83 Dessa forma, alimentos europeus foram importados, a moda européia foi copiada como roupa e publicada em jornais, como modelo de corte, costumes foram imitados, como a cerimônia inglesa do chá, foi criado um mercado de trabalho para os europeus, já que cozinheiros, padeiros e educadores foram procurados através de anúncios em jornais. Ver também, entre outros, em Renault, Indústria Escravidão, Sociedade, pág. 60-65 e Renault, O Dia-a-Dia no Rio de Janeiro, segundo os jornais, 1870-1889; ou em Graham, Diário de Uma Viagem

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De fato, com a independência, iniciou-se um processo de formação de uma consciência brasileira e de estabelecimento84 de um Estado Nacional que durou por anos e se modificou de acordo com as circunstâncias. A construção de uma identidade nacional serviu para a manutenção da unidade nacional85 e deveria fomentar também a identificação com o novo modelo de domínio do império independente, também no sentido de identidades regionais fortes. Para isso, a elite dominante ao redor do imperador se servia de certos símbolos, como a introdução de um brasão, de uma bandeira brasileira e de um hino nacional86. Além disso, foram introduzidos feriados nacionais e instituições foram criadas, já que tal forma de pensamento deveria ser fomentada87. Na fase depois da proclamação da independência, esse processo serviu para a delimitação dos antigos senhores coloniais de Portugal e para a formação de uma consciência como uma nação independente.

ao Brasil, pág. 231, sobre os produtos europeus e pág. 320 sobre a cerimônia do chá. Sobre os costumes franceses à mesa, ver Schwarzc, As Barbas do Imperador, pp. 246-247. Um papel fundamental tinham neste contexto, sobretudo, as relações comerciais com a Inglaterra. Ver Holanda, Declínio e Queda do Império, pág. 172-180. Sobre a fase inicial, entre 1808 e 1822, ver Schultz, Versalhes Tropical, pág. 299-301, Guimarães, O Comércio Inglês no Império Brasileiro: a atuação da firma inglesa Carruthers & Co., em Carvalho (org. ) Nação e cidadania no Império. Ver também Graham, Britain and the onset of modernization in Brasil, lá a respeito da importação de alimentos, pág. 122: “... yet urban, móbile brazilians were led by their fascination with modernitz to use imported foodstuff. British foods were a common item on the shelves of the nine-teenthy-century merchant in Rio de Janeiro. At first, dairy products haded the list.” Em muitos jornais, eram feitas propagandas de produtos europeus, como, por exemplo, no Liberal Mineiro, Ouro Preto, 2.1.1883, Propaganda para uma variedade de vinhos portugueses, franceses e espanhóis, aguardente bem como Genever holandês, mas também queijo ou conservas. Ver também Gazeta Commercial da Bahia, 21.10.1836, Num. 496, pág. 4. 84 Ver Haring, Empire in Brazil, A new world experiment with monarchy, pág. 23: “The new epire therefore was really an aggregation of nearly twenty scattered, centrifugal provinces, many of them with tradition of autonomy or independence, held together by the prestige of the Braganza dynasty. A truly nationalist sentiment had still to be created”. Interessante é também uma comparação com a quase concomitante independência do México. Ver Pilcher, Que viven los tamales! Food and "Following the independence in 1821, mexican elites attempted to bridge the differences of region and class by formulating a national culture, including a national cuisine.” 85 Segundo Jancsó, (org.), Brasil: Formação do Estado e da Nação, pág. 26, as identidades no período colonial eram caracterizadas, principalmente, de forma regional, como baiano, pernambucano, paulista, etc., e apenas com a independência pôde se formar uma identidade brasileira, como uma sociedade imaginada definível. Sobre o papel dos portugueses neste processo, ver, Neves, O Império do Brasil, pág. 100: “Na ausência, porém, de uma tradição cultural, distinta da herança lusa, que emprestasse consciência a essa percepção, a única forma de definir brasileiro era pelo que o termo excluía. E, naquela conjuntura, nenhuma idéia se oferecia com maior naturalidade para exercer este papel do que o ser português. Português transformou-se, juntamente no outro”, no estrangeiro com o qual havia a possibilidade de conflito e que, por conseguinte, convertia-se no inimigo. Ao adquirir esse conteúdo, politicamente produzido, de inimigo da causa do Brasil, o português passava também a ser identificado com o passado e o atraso, originando um antilusitanismo especial, misto de desprezo e galhofa, que persistia por todo o Império e além.”. 86 Sobre o desenvolvimento e importância dos símbolos nacionais do Brasil, como a formação da bandeira, hino, brasão e feriados, ver, Luz, História dos Símbolos Nacionais. Sobre o papel dos símbolos no contexto da identidade nacional, ver Link, Wülfing, (Hrsg.), Nationale Mythen und Symbole in der zweiten Hälfte des 19. Jahrhunderts. Também nas pinturas da coroa observou-se a simbologia, na segunda metade do século XIX e frutas típicas, café, e cana de açúcar foram retratadas. Ver Schwarcz, As barbas do imperador, pág. 54. Ver também Wink, Brasilien als “vorgestellte Gemeinschaft”, Eine kulturwissenschaftliche Untersuchung der Erzählung Brasiliens von Reich zur Nation im lateinamerikanischen Kontrast, pág. 82. 87 Ver, sobre a importância da transmissão de conteúdos sobre a nova simbologia o papel das instituições de ensino, em Neves, O Império do Brasil, pág. 255.

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Principalmente na tranqüila fase da regência88, ocorreu a fundação do arquivo nacional, das universidades89, das escolas, da guarda nacional90 e também a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Nacional91. A manifestação da identidade brasileira também continuou no segundo período do império92. Assim, as instituições de ensino também foram ampliadas93. O 88

Ver quanto à necessidade de reagir na fase regencial, Neves, O Império do Brasil, pág. 258-259: “A partir da abdicação de Pedro I, diante do perigo representado pelo sem-número de rebeliões, motins e levantes, a lógica das nacionalidades do século XIX impôs àRegência a tarefa de tomar algumas iniciativas tendentes a criar uma ordem escravista. ... É neste sentido que se pode compreender a criação de instituições, sempre sob controle ou a égide do poder central, como o Imperial Colégio de Pedro II (1837), o Arquivo Público (1838) pág. 259 e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), assim como a composição das primeiras obras históricas, artísticas e literárias, que deveriam servir para moldar a personalidade do Estado-Nação do Brasil.”. 89 As universidades tinham um papel importante no contexto da formação da identidade nacional. Elas agiam como uma entidade escolar dos filhos das elites das diferentes regiões que se encontravam nestes centros. Ainda no período colonial e até depois da independência do Brasil. Os filhos das elites eram mandados para as universidades em Coimbra, Portugal. Lá, no estrangeiro, desenvolvia-se o pensamento brasileiro e o sentimento de pátria dos estudantes das diferentes províncias de forma especialmente forte e tinha, até mais tarde, um efeito através de “panelinhas” (turmas escolares) na administração de diferentes gerações. O fenômeno permaneceu também com a fundação das universidades nas metrópoles brasileiras. Ver quanto à importância das universidades, em geral, em Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreichen Konzepts, na idéia da russificação do sistema escolar. Ver também Neves, O Império Brasil, pág. 257-260. Ver, quanto a isso, também Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 55: “Elemento poderoso de unificação ideológica da política imperial foi a educação superior. E isto por três razões: em primeiro lugar, porque quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com pouca gente fora dela. A elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos. Em segundo lugar, porque a educação superior se concentrava na formação jurídica e fornecia, em conseqüência, um núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar, porque se concentrava até a independência na Universidade de Coimbra e, após a Independência, em quatro capitais provinciais, ou duas, se considerarmos apenas a formação jurídica. A concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes das várias capitanias e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas superiores eram submetidas pelos governos, tanto de Portugal como do Brasil.”. 90 Ver, quanto ao desenvolvimento da Guarda Nacional: Holanda, Declino e Queda do Império, pág. 320-348. A Guarda nacional era também a base de poder da elite regional, também conhecida como Coronéis, ver Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, pág. 154. Ver também Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 252-253, que defende a idéia de que a Guarda Nacional era uma instituição positiva para o Estado; por um lado, muito barata, já que ela mesma se financiava, e, por outro lado, servia à sociedade de donos de escravos, que, na verdade, economizava o contingente policial necessário. Assim, em 1880, existiam 7410 policiais, mais 918017 membros da Guarda Nacional e, com isso, se organizou uma boa parte da população livre masculina. 91 Sobre a importância do IHGB e, sobretudo, do construtor da identidade Varnhagen, ver Reis, As Identidades do Brasil, de Varnhagen a FHC, pág. 25: “Ele (Varnhagen) quis assessorar o jovem imperador na construção da identidade do seu império, que lhe garantia unidade e longevidade. ... A nação recém-independente precisava de um passado do qual pudesse se orgulhar e que lhe permitisse avançar com confiança para o futuro.”Segundo Rowland, Patriotismo, Povo e Ódio aos Portugueses: Notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente, em Jancsó, István (Org. ), Brasil: Formação do Estado e da Nação, pág. 365, Varnhagen tentou em sua obra criar uma legitimação sobre a História do Brasil, da nova nação através de um contexto histórico, político e cultural. Ver quanto a importância do IHGB na construção da identidade também Salles, Nostalgia Imperial: a Formação da Identidade Nacional no Brasil do Segundo Reinado, pág. 17. Ver também Burns, A History of Brasil, pág. 174-175, ou Neves, O Império do Brasil, pág. 260-265. 92 Segundo Sales, Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado, pág. 13 principalmente a segunda metade do Segundo Reinado foi fundamental para a formação da nação brasileira. Pág. 31: “No caso da América portuguesa, tratava-se de entender as raízes históricas de uma entidade chamada Brasil no momento mesmo de sua fundação. Intimamente identificada com o Estado central que há pouco consolidara seu poder sobre o restante do país, a tarefa que se colocava era a de produzir uma história fundada nas tradições, que demonstrasse a identidade entre o novo Estado e as raízes nacionais.”. 93 Ver Holanda, Vol. 6, Declínio e Queda do Império, pág. 426-443 sobre o desenvolvimento das instituições de ensino no Brasil, desde 1808. Ver também Burns, A History of Brazil, pág. 121 sobre a multiplicação das

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desenvolvimento se manifestou no âmbito da literatura94 e cultura publicadas na forma de festas e comemorações95. No tocante ao direcionamento do conteúdo da identidade, pode-se constatar uma transformação, sobretudo no período de governo de Pedro II. No começo, a identificação era direcionada ao imperador e ao império96. No auge da fase das revoltas para a manutenção da identidade territorial e, por conseqüência, para a aceitação do jovem imperador, a partir dos anos 50, a construção da identidade ocorreu num crescente direcionamento para um Estado Nacional97. Isso ocorreu, sobretudo, através do desenvolvimento na política externa98 e, ao mesmo tempo, como uma identidade que estivesse em condições de superar99 as contradições do Império. instituições de ensino, desde 1808. Ver também Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 6269, sobre o Segundo Reinado, ver, especialmente Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 119-120. 94 Quanto ao significado da literatura brasileira, ver: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0011-52581998000400005&nrm=lng=em (10.5.2008). Dados vol. 41n. 4 Rio de Janeiro, 1998, Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves, Paisagens em Ruínas: Exotismo e Identidade Nacional no Brasil Oitocentista, ver também Salles, Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado, pág. 79-82. Um fato interessante do censo de 1872 foi, contudo, que 23% dos homens sabiam ler e escrever e 13% das mulheres, o que levava a uma taxa de 18,5% da população livre. Ver Carvalho, a Construção da Ordem/Teatro de sombras, pág. 69. Assim ocorreu no ano da coroação de Pedro II também a primeira publicação do Cozinheiro Imperial, da Editora Laemmert. Ver também Hallewell, O Livro no Brasil (sua História) e sobre a editora Laemmert, especialmente Ferrez, A obra de Eduardo Laemmert em : RIHB, 331, abr./jun. 1981. No âmbito da romântica beletristica contemporânea brasileira chegou-se à descoberta do índio como símbolo nacional. Ver Ortiz, Cultura Brasileira e Identidade Nacional, pág. 18-19. 95 Ver Abreu, O Império do Divino, Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900, pág. 129; ver também Mauro, O Brasil no Tempo de Dom Pedro II (1831-1889), pág. 50. Ao todo, ver também Link, Wülfing, (Hrsg.), Nationale Mythen und Symbole in der zweiten Hälfte des 19. Jahrhunderts, pág. 10: “... a isso corresponde o fato de que literatura e arte terem sempre também empiricamente envolvido intensivamente símbolos e mitos nacionais”. Ver também http://www.jstor.org/stable/3513986 (3.3.2009), Luso-Brazilian Review, Vol. 36, Nr. 1 (Summer, 199), pág. 1-18, Jeffrey D. Needell, The Domestic Civilising Mission: The Cultural Roll of the State in Brazil, 1808-1930. 96 Neste contexto, também o desenvolvimento nos países sul americanos vizinhos, onde já havia se estabilizado nos últimos tempos uma forma de Estado republicano, teve um papel fundamental, como também a aceitação do jovem imperador, a ser conseguida após a fase caracterizada por muitos conflitos regionais. 97 Ver http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581998000400005&nrm=iso&lng=en (10.5.2008), Dados vol. 41 n. 4 Rio de Janeiro, 1998, Paulo Luiz Moreaux Lavigne Esteves, Paisagens em Ruínas: Exotismo e Identidade Nacional no Brasil Oitocentista, S.2: “Se, por volta de 1850, a tarefa de consolidação do Estado Imperial se encontrava concluída; o mesmo não se pode dizer em relação ao problema da construção nacional.”. A mudança no direcionamento da identidade nacional se mostra também em publicações da editora Laemmert que era próxima ao governo. Assim, surgiram séries de escritos com o título: Manual do Cidadão Brasileiro, que continha diversos volumes, como por exemplo: “A Constituição Política do Brasil 1851”, ou “O Novo manual Eleitoral 1856”. A editora Laemmert publicou também o Almanaque Anual, que continha como parte importante a denominação do título e do signatário, bem como da administração imperial e da organização do Estado. O desenvolvimento da construção da identidade na segunda metade do império também é muito ligado à pessoa do Imperador Pedro II. Ao final dos anos 40, depois de ter alcançado sua estabilidade de governo, começou com uma percepção amadurecida de seu império. Nisso, ele chegou também, através de sua formação, à decisão de civilizar o Brasil em um sentido europeu, e, via a si mesmo como um cidadão modelo. Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, pág..118-119 und pág.S.130. 98 No período entre 1850 e 1870, os conflitos internacionais do Brasil aumentaram: Guerra contra a Argentina, o conflito em torno do Uruguai, que então terminou na Guerra da Tríplice Aliança, fomentaram uma identificação nacional no sentido da formação de um outro para a própria definição. Ver quanto a isso Burns, A History of Brazil, S.162: „Foreign threats, real or imagined, strengthened unity during the nineteenth century. From time to

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As contradições no Brasil foram muito diferenciadas. Além dos contrastes sociais entre a elite social, na forma da nobreza, latifundiários e altos funcionários do Estado100, a classe média, na forma de fazendeiros de médio porte e comerciantes, funcionários administrativos, médicos e advogados e a maioria da população, que não tinha poder de decisão, que, em parte, era escravizada, e pequenos fazendeiros ou indígenas que viviam distribuídos ao longo do país, ou que haviam acabado de imigrar para o Brasil.

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Existiam diferenças

fundamentais entre a vida no campo e na cidade102, apesar de o desenvolvimento nas metrópoles ter tido ainda um papel especial103.

time waves of anti-Portugues, anti-British, and anti-Spanish American sentiment inundated Brazil, and at those times strong feeling of nationalism surged. Nothing served better to close regional divisions than an external threat. Defined as nineteenth-century nationalism was, it contributed significantly to strengthening the unity.” Ver também Costa, A Espada de Dâmocles, o Exército, a Guerra do Paraguai e a Crise do Império, S.73: “Bem ao contrário, no plano externo, o processo de construção do Estado nacional autônomo esteve caracterizado por um estado de crônica belicosidade, envolvendo o Império e as nações vizinhas, que explodiu, em diversos momentos, em conflito aberto, como em 1825-1828 (Guerra Cisplatina), 1850-1851 (Guerra contra Oribe e Rosas), 1864 (Invasão do Uruguai) e 1865-1870 (Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai).“. 99 Também este aspecto era plenamente conhecido dos contemporâneos, razão pela qual o governo fez uso do meio do censo, a fim de ter uma visão do quadro geral. Ver http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702005000100014&lng=pt&nrm=iso (10.5.2008) Tempo Social, v.17 n.1, São Paulo, jun.2005, Tarcisio R. Botelho, Censos e Construção Nacional no Brasil Imperial pág.85: „O início do Segundo Reinado marcou o progressivo redirecionamento das preocupações com os levantamentos populacionais. A construção de uma ordem política mais sólida, permitindo a superação dos conflitos e incertezas característicos do período regencial, esteve na raiz da consolidação da monarquia brasileira.“. 100 Ver Carvalho, A construção da Ordem / Teatro de Sombras, pág..85, segundo a qual, a elite, que correspondia a 0.1-0.3 % da população, mas que representava 95% dos ministros, 90% dos deputados e 85% dos senadores, bem como 100% dos conselheiros de Estado. Ver também http://www.jstor.org/stable/177976 (3.3.2009), Comparative Studies in Society and History, Vol. 14, No. 2 (Mar, 1972), pp. 215-244, Eul-Soo Pang and Ron L. Seckinger, The Mandarins of Imperial Brazil; und http://www.jstor.org/stable/178507 (3.3.2009), Comparative Studies in Society and History, Vol. 24, No. 3 (Jul., 1982), pp. 378-399, Jose Murilo de Carvalho, Political Elites and State Building: The Case of Nineteenth-Century Brazil. A elite no Brasil assumiu um papel importante para a união da unidade nacional. Ver sobre isso, O Ethos da Elite: Ensaio sobre a unidade nacional brasileira, em Zarur (org.), Região e nação na America Latina. 101 Ver também http://www.jstor.org/stable/3513220 (3.3.2009): Luso-Brasilian Review, Vol. 20, No. 1 Summer 1983, pp. 104-108, Thomas E. Skidmore: Race and Class in Brazil: Historical Perspectives; http://www.jstor.org/stable/156126 (3.3.2009) Journal of Latin American Studies, Vol. 9, No. 2 (Nov. 1977), pp. 199-244, Thomas Flory: Race and Social Control in Independent Brazil. 102 Ver Freyre, Das Land in der Stadt, Die Entwicklung der urbanen Gesellschaft Brasiliens. Ver também a análise acertada de Burns, A History of Brazil, pág. 162, segundo a qual o interior formou a sociedade brasileira e com isso um núcleo nacional que funcionou como antagonista ao separatismo regional, na costa. Ver quanto às diferenças na cidade e no litoral relativas às rebeliões também Carvalho, A Construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 232-235, ver, quanto ao desenvolvimento rural: Del Priore, Venâncio, Uma história da Vida Rural no Brasil, ver quanto à urbanização, também Costa, Da Monarquia à República, pág. 235-271 e Borges, (org,), Campo e Cidade na Modernidade Brasileira. 103 As metrópoles do Brasil, no império, eram em 1872 o Rio de Janeiro, com 274972 habitantes, Salvador da Bahia, com 129109 habitantes, Recife, com 116617 habitantes, Belém com 61977 habitantes, Porto Alegre, com 43998 habitantes, e São Paulo, com 31385 habitantes, segundo Neves, O Império do Brasil, pág. 298. Ao todo, viviam nas capitais das províncias um milhão de moradores, com uma população total de 10 milhões. Ver também Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 84, avaliação do censo de 1872. Ver por exemplo, sobre o desenvolvimento do Rio de janeiro: Gouvêa, O Império das Províncias, Rio de Janeiro, 18221889.

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Esses componentes foram, além disso, diferenciadamente influenciados de forma regional e ainda estavam sujeitos a modificações temporais, como tornou claro exatamente o exemplo da escravatura. A manutenção da instituição da escravatura mostrou-se nos primeiros anos da independência ainda como um importante meio de colocar os interesses das elites regionais sob um cálculo imperial104. Nos anos seguintes, até a introdução da proibição da escravatura, no ano de 1850, ocorreu a introdução das maiores “quantidades parciais” de escravos para o Brasil.105. Eles foram trazidos neste contexto, primeiramente para as regiões centrais e para o nordeste.Com o desenvolvimento econômico, sobretudo das plantações de café no sudeste do Brasil, instaurou-se então um comércio interno de escravos, de forma que houve um deslocamento demográfico. Através dos crescentes preços dos escravos e do decadente preço do açúcar, os escravos do nordeste passaram a ser vendidos no sul106. Desenvolvimentos políticos como a Lei do Ventre Livre107 ou a onda de libertação no âmbito da Guerra do Paraguai influenciaram o desenvolvimento, da mesma forma como a discussão abolicionista. De acordo com esse fato, o reconhecimento social da população afro-brasileira modificou-se ao longo do período imperial108. Apesar disso, a população escravocrata, assim como as populações indígenas109, não foram levadas em consideração no processo de construção da identidade brasileira ou com relação à participação política. Assim, grupos de origem africana desenvolveram valores e identidades culturais que se expressavam entre outros, através da religião, música e alimentação, o que e levou a uma cultura afro-

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Ver, neste sentido: Carvalho, Pontos e Bordados, Escravidão e Razão Nacional, pág. 35-63; http://www.jstor.org/stable/203379 (3.3.2009), Journal of Interdisciplinary History, Vol. 9, No. 4 (Spring, 1979), pp. 667-688, Eul-Soo Pang, Modernization and Slavocracy in Nineteenth-Century Brazil. 105 Ver Carvalho, A construção da Ordem/Teatro de Sombras, pág. 277, ver também http://www.jstor.org/stable/3679030 (3.3.2009), Transactions of the Royal historical Society, Sixth Series, Vol. 1 (1991), pp. 71-88, Leslie Bethell, The Decline and Fall of Slavery in Nineteenth Century Brazil. 106 Ver, por exemplo, Pedrão, O Recôncavo Baiano e a Origem da Indústria de Transformação no Brasil, pág. 307-324, em Szmrecsanyi, Lapa (org.), História Econômica da Independência e do Império. Neste contexto, aumentam também os preços dos alimentos, já que nas plantações de cana-de-açúcar ainda se plantava agricultura de subsistência, enquanto nas plantações de café, a partir da segunda metade do século 19. só se produzia café. Ver Holanda, Raízes do Brasil, pág. 174-175. Além disso, ocorreram diversos períodos de seca no nordeste, que da mesma forma tiveram um papel na queda econômica do nordeste. Ver Barman, Emperor Pedro II, and the making of Brazil, 1825-91, pág. 286. 107 Lei promulgada em 27.9.1871. Ver Barman, Citizen Emperor, Pedro II and the making of Brazil, 1825-1891, pág. 238. 108 Ver Costa, Da Monarquia à República, pág. 367-386. 109 Estes foram representados negativamente, sobremaneira por Varnhagen, como primitivos canibais. Ver Reis, As Identidades do Brasil, De Varnhagen a FHC, pág. 35-37. O papel e o desenvolvimento dos indígenas no império brasileiro são da mesma forma um complexo diversificado, ver Cunha, (org.), História dos Índios no Brasil. Ver também, Cunha, Política Indigenista no Século XIX, pág. 133-154. A escravização de Índios foi ainda legal até 1833. Ver também http://www.jstor.org/stable/979771(3.3.2009) The Américas, vol. 21, No. 3 (Jan., 1965), pp.263-273, Mathias C. Kimen, The Status of the Indian in Brazil after 1820.

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brasileira.110 No período do Segundo Reinado, houve uma imigração européia de massa para o Brasil111. Além da esperança da elite brasileira de, assim, trazer para o país progresso e civilização, teve que ocorrer uma integração destes dois grupos populacionais distintos, processo para o qual uma identificação nacional era necessária112. Isso foi, no entanto, especialmente difícil, porquanto os imigrantes já vinham para o Brasil com uma identidade própria que pretendiam manter113.

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De fato, a população escravizada influenciou ao longo dos séculos, de forma determinante, o desenvolvimento do Brasil, da mesma forma como a realidade brasileira também influenciou a população escrava, como mostram os trabalhos de Gilberto Freyre e, de fato, se formou, especialmente no período imperial, uma identidade afro-brasileira que é mantida até os dias atuais. Ver, quanto a isso: Bastide, Brasil, Terra de Contrastes; Querino, Costumes Africanos no Brasil. Quanto ao significado da alimentação ver Cascudo, A cozinha africana no Brasil,: Lody, Tem Dendê Tem Axé, Etnografia do Dendezeiro e Lody, Santo também come. 111 Ver acima, sobre a imigração. Quanto ao papel da imigração de massa para o Brasil, ver também Prado Jr. “Evolução Política no Brasil, pág. 233-250, lá pág. 237: “O imigrante europeu foi um dos principais factores de modernização do Brasil,...”. Ver, quanto à imigração de massa, também Manning, Wanderung, Flucht, Vertreibung, Geschichte der Migration, pág. 200. “A formação da soberania era cheia de debates e esforços. A construção da nação é um processo da inclusão, no qual pessoas são levadas a se incorporar à “sociedade inventada” e assumir uma idéia comum de identidade.”. 112 Ver Alves, Das Brasilienbild der deutschen Auswanderungsverbund, pág. 76: “O desejo de formar uma nação, a busca por um povo, só era possível se essa diferença fosse superada e uma população fosse formada, que se identificasse completamente com a idéia de uma pátria e de uma sociedade brasileira. Essa identificação deveria se apoiar não apenas em fatores geográficos, mas sim se desenvolver no sentido de uma nação ética.”. A necessidade da identificação nacional, sobretudo levando em conta também a composição heterogênea da população, era conhecida pelos pesquisadores sociais contemporâneos. Ver Queiroz, Identidade Cultural, Identidade Nacional no Brasil, pág. 29-30 em Tempo Social, USP, 1 (1), São Paulo, 1989, Ver também Seyferth, Identidade Nacional, Diferenças Regionais, Integração Étnica e a Questão Imigratória no Brasil, em Zarur (org.), Região e Nação na América Latina. Uma medida importante para a integração de novos cidadãos era o já promulgado decreto sobre a cidadania, de 14.1.1823. Nele foi permitido a todos os estrangeiros, depois de comunicado oficial ao imperador e à pátria, ser contado como cidadão brasileiro. Ver Neves, O Império do Brasil. Pág. 97-98. 113 Cada um dos grupos migratórios que havia imigrado das diferentes regiões da Europa manteve sua própria identidade, seja na forma da língua, dos costumes e dos hábitos alimentares, que, de certa forma, são mantidos até hoje. Exatamente no caso dos imigrantes,a questão da identidade é especialmente importante e a pátria antiga é vista de forma transfigurada. Isso levava a dificuldades de adaptação que diversos estudos sobre migração comprovam.

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3.3 Alimentação 3.3.1. Alimentação e estratificação social

A alimentação é um ato de sobrevivência realizado por uma pessoa diariamente e uma das ações mais antigas do ser humano em geral. Por isso também o cunho cultural dessa ação é especialmente variado. Um aspecto importante da alimentação humana está ligado à distribuição dos recursos naturais existentes. Desde milhares de anos, a distribuição de alimentos serve para a manutenção da estratificação social114. Nisso, o ser humano serve-se, por um lado, da quantidade de um alimento e, por outro, da qualidade e da forma de preparo de um prato. Na diferenciação social em sociedades complexas, tanto a forma de preparo, como a apresentação e o comportamento ritualizado, têm uma importância especial. A distribuição desigual é a razão pela qual alimentos são utilizados para preparação de diferentes pratos, o que resulta na variedade de culinárias. Reflete-se também a construção hierárquica da sociedade115. Com isso, pode-se diferenciar a alimentação da elite da sociedade da alimentação do povo.

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Também ocorreu uma hierarquização do alimento, enquanto na Europa, na Idade Média, e na Idade Contemporânea, frutas e legumes eram reservados principalmente para a nobreza, no Brasil, essa relíquia se manteve sob a forma de preços altos e o prestígio da carne de ave, enquanto frutas, dadas as circunstâncias naturais, eram comidas por todas as classes sociais. Ver quanto à classificação dos alimentos na Europa: Montanari, Der Hunger und der Überfluss, Kulturgeschichte der Ernährung in Europa. Um outro aspecto é o acesso a alimentos ricos em proteínas, o consumo de alimentos ricos em proteínas levou ao grande porte da aristocracia. Também o consumo de temperos raros e de ingredientes exóticos oferecia um outro elemento de diferenciação. Ver Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 16. Ver também Goody, Cooking, cuisine and classe, que, com base nas sociedades tribais africanas constatou uma diferenciação de uma complexa culinária da elite e uma simples cozinha popular, que demonstra o caráter de classe da alimentação. Ver, McIntosh, Sociologies of Food and Nutrition, pág. 22, segundo a qual a comida é caracterizada como marco de diferenciação social, dependendo da diferenciação social da sociedade. 115 Ver Schivelbusch, Das Paradies, der Geschmack und die Vernunft, Eine Geschichte der Genussmittel, pág. 18: “A classe dominante sempre desenvolveu mais um estilo de vida como diferenciação dos subalternos. Tudo grosseiro e plebeu é rejeitado. O refinamento das formas, dos modos e dos objetos da vida diária torna-se um meio de distanciamento das classes”. Na perspectiva sociológica da alimentação ver Barlösius, Essgenuss als eigenlogisches soziales Gestaltungsprinzip. Sobre a sociologia da alimentação, e da bebida, representado com base no exemplo da grande cuisine francesa. Ali, na pág. 29, segundo Bordieu, dois tipos de sabor alimentar, que se contrapõem, necessidade e obrigatoriedade, pratos nutritivos e econômicos versus liberdade ou luxo, transferência do foco principal da matéria para a forma de preparo utilizada, pratos que satisfazem, mas, na maioria das vezes, engordam, em contraposição a alimentos consistentes com forma de cozimento complicadas das classes mais altas. Quanto ao significado da diferenciação e distribuição, sobre o surgimento de “cozinhas” ver Barlörius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 14. Em sociedades caracterizadas por poucas diferenças sociais, existem na maioria das vezes, poucas cozinhas, cujas diferenciações estejam baseadas em desigualdades sociais verticais. Em tais sociedades são diferenciadas apenas a cozinha trivial da de festas e estilos alimentares relacionados a gênero e relativos à idade. Que todos na essência cozinham e gostam da mesma coisa é um instrumento importante, para evitar esforços de diferenciação e reconhecer-se igualdade equivalente reciprocamente.

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Outras diferenciações do consumo de alimentos são condicionadas através de categorias fundamentais e de modelos de diferenciação, idade e gênero116. Nessas três categorias idade, gênero e estratificação social pode-se também constatar uma outra diferenciação, relativa ao alimento do dia-a-dia e às refeições festivas, simbólicas, de difícil preparo, e prestigiosas. A diferenciação em refeição trivial e festiva aparece como um fenômeno quase global e acentua, desta forma, o valor cultural da alimentação117. Como resultado da situação alimentar, pode-se constatar, também, a presença de doenças, bem como alimentação errada ou fome, como também a falta de alimentação. Esses aspectos se baseiam, sobretudo, na estratificação social e no acesso ao alimento que a ela está vinculado. Por um lado, existem doenças resultantes da falta de alimentação, devido à falta de vitamina, como pelagra118, beribéri119, hemeralopia120, ou o escorbuto, e bócio, através da

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Ver, como estudo atual, ”Murcott, (Ed.), The Nation’s Diet, The Social Science of Food Choice, quanto a diferenciação de acordo com gênero, pág. 173/174, bem como no tocante a produção bem como ao uso, e a idade, pág. 174-176. Ver sobre o mesmo modelo de categorização social: Mennell, Sociology of Food, Diet and Culture, pág. 54, classe, pág. 55, gênero, pág. 57, Idade. 117 Ver, quanto ao complexo de temas: Wiegelmann, Comidas do Dia-a-Dia e de Festas. O autor trabalha também um processo de transformação da escolha de comidas e o modelo base, no qual a alimentação trivial da classe alta é a alimentação dos dias de festa da classe baixa. Fenômeno interessante, neste sentido, é que existem vários exemplos nos quais a comida da classe mais baixa aparece novamente como comida de prestígio da classe alta. Um exemplo internacional seria o Caviar, no exemplo brasileiro o bacalhau, que, primeiramente, serviu como comida dos escravos, nos livros de receita portugueses aparece, em virtude de sua “inferioridade como alimento dos pobres”, nem chegou a ser mencionado nos primeiros livros, mas aparece novamente na classe alta, no final do Século 19, como comida típica de festividades religiosas na páscoa. Ver também Mello, Cultura e Alimentação – Um Exercício de Nova História, em Ciência e Trópico, Recife, Vol. 30, Nr. 1 (2002), pág. 91. 118 Pelagra é uma doença causada pela da falta de niacina, que surge em virtude do consumo apenas do milho. Pelagra foi descoberta em 1730, em Astúrias, mas ela foi amplamente difundida na Itália, onde polenta era a comida trivial dominante das classes mais baixas. A doença também apareceu na Espanha, na França e nos Estados Unidos. Interessante assinalar que não foi encontrada nenhuma anotação sobre pelagra no Brasil, apesar de o milho em algumas regiões ser o alimento básico dominante. Contudo, no Brasil, a alimentação a base de milho foi ainda complementada através de frutas e legumes ou também de carne seca ou peixe desidratado. Ver sobre Pellagra, Flandrin, The early modern period, pág. 356, em Flandrin, Montanari (eds.), Food, a culinary history, e Montanary, Der Hunger und der Überfluss, Kulturgeschichte der Ernährung in Europa, pág. 19-163, Super, Food, Politics and Society in Latin America, pág. 4 e Braudel, Sozialgeschichte des 15.-18. Jahrhunderts, Der Alltag, pág. 171-172. Um outro método de evitar a epidemia de Pelagra foi desenvolvido no México, que era dominado pela cultura do milho. Para isso o milho era cozido na canela com o calcário mineral, o que acrescentava a ele cálcio, riboflavina e niacina. Só então o milho era triturado sobre uma pedra. Ver Pilcher, Que vivan los tamales, pág. 11. Ver sobre Minas Gerais, a declaração sobre o consumo de carne de porco, que é rica em niacina, em Magalhães, A Mesa de Mariana, Produção e Consumo de Alimentos em Minas Gerais, (1750-1850), pág. 31. 119 Beribéri, é, da mesma forma, uma doença oriunda da falta de vitamina que apareceu em larga escala entre os escravos, e, entre outros, levava à depressão. Segundo Carneiro, Comida e Sociedade, uma História da Alimentação, pág. 30, isso levava além da tristeza em virtude da perda da liberdade e da pátria à tristeza típica dos escravos, chamada de “banzo”, já que as formas de comportamento valem como os sintomas comuns de beribéri. Ver também Magalhães, A Mesa de Mariana, Produção e Consumo de Alimentos em Minas Gerais, (1750-1850), pág. 30. De acordo com o autor, beribéri aparece frequentemente em regiões nas quais o arroz polido e descascado é utilizado como base da alimentação. Através do polimento, a casca do grão, que é rica em vitamina B, é perdida. 120 Hemeralopia é uma doença provocada pela carência da vitamina A, que aparecia nas regiões de plantações de cana de açúcar e que levava a uma visão noturna distorcida. Ver Ribeiro, A História da Alimentação no Período Colonial, pág. 37.

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falta de iodo121. Por outro lado, o excesso de alimentação também resulta em doenças como a obesidade, altos índices de colesterol, e, com isso, o problema da hipertensão, bem como diabetes. As doenças relacionadas à má nutrição surgiram em maior número nas classes mais baixas, e nas populações escravizadas, enquanto as doenças ligadas ao excesso de alimentação eram peculiares com as classes sociais mais altas, no exemplo brasileiro, principalmente na forma de diabete122. Fome é expressão da divisão em classes e do acesso limitado a alimentos, mas em economias de subsistência também uma consequência da dependência natural na forma da seca, colheitas sem sucesso e ataque de pragas123. Isso levou a uma divisão dos hábitos alimentares no nordeste semi-árido do Brasil, já que nos tempos de seca fazia-se necessário recorrer a um cardápio de necessidade124. No século XIX, a fome foi um problema mundial125. O aspecto da escravidão é de especial importância no âmbito da estratificação social da sociedade e da alimentação, influenciada, em virtude disso, exatamente pelo exemplo brasileiro. Os escravos representavam a classe mais baixa na hierarquia social, e como não livre, estavam em uma caracterizada dependência com relação também a sua alimentação126. O seu abastecimento alimentar estava submetido ao pensamento econômico do senhor de escravos e sua alimentação era, por isso, muito restrita, de forma que resultava nas

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O bócio, sobretudo na população do interior, foi percebida por diversos viajantes. Ver , por exemplo, Silva (org.), Os Diários de Langsdorff Vol. III, pág. 142. Ver também Magalhães, , A Mesa de Mariana, Produção e Consumo de Alimentos em Minas Gerais, (1750-1850), pág. 29. A carência de iodo pode levar não apenas à formação do bócio como também a outras formas de deformação, além de atacar o sistema nervoso e levar a distúrbios psíquicos. 122 Ver RIHGB, n. 215 abr./jun., 1952, Pedrosa, A Diabetes Sacarina no Brasil, pág. 164:”... a doença não era comum nos nossos hospitais, era doença da classe alta.”. 123 Fome é um aspecto importante da história social, já que fome é um motivo freqüente para revoltas, rebeliões, e insurreições. Ver Carneiro, Comida e Sociedade uma História da Alinentação, pág. 18: Ver também Gonzalbo, Introduccion a la história de la vida cotidiana, pág. 209. Segundo o autor, fome é sobretudo um problema de distribuição, ver também Barlörius, Soziologie des Essens, Eine Sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 13. Ver sobre o importante complexo de temas no Brasil, também Castro, Geografia da fome. Ver, sobre a variedade das pragas que ameaçavam as colheitas, Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, pág. 85-89. As secas no nordeste também são um efeito paralelo do fenômeno El Nino na costa oeste da América do Sul. Ver, Campos, Clecia (eds.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 anos de Agricultura no Brasil, pág. 63. 124 Ver Carneiro, Comida e Sociedade, uma história da alimentação, pág. 38-39. No cardápio de necessidade estão, sobretudo, cactus, conhecidos pelo nome de “Brabos”. Ver também Sampaio, A Alimentação Sertaneja e do Interior da Amazônia, Onomástica da Alimentação Rural. 125 Ver, sobre a importância da fome e a superação da crise de alimentação, através da revolução agrária, de transportes, e da conservação: Hauer, Carl Friedrich von Rumohr und der Geist der bürgerlichen Küche, pág. 5255. Até o século XXI a fome permaneceu um problema global. Por outro lado, o abastecimento de subsistência, ainda mais forte do que nos dias de hoje, assim sendo, a fome no século XIX também deve ser vista como um problema de abastecimento da urbanização. 126 Ver, com relação a este tema: Karasch, A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850, pág. 198-205 Sobre a Dieta dos Escravos, e pág. 250-257 sobre Doenças relacionadas a alimentação.

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mencionadas carências alimentares. A alimentação dos escravos foi mencionada em diversos relatos de viagens e também tratada em capítulos sobre a manutenção de escravos127.

3.3.2 Cozinha: Regional e Nacional

O conceito de cozinha abrange, por um lado, o conceito cultural da preparação da comida e, por outro, o local físico da preparação do alimento. No conceito cultural de cozinha, trata-se de um procedimento entre a necessidade da ingestão de alimentos e a satisfação da necessidade através de comida e bebida, na forma de uma refeição128. Para isso, recursos são definidos culturalmente na forma de alimentos transformados através do processo aprendido do preparo de pratos, com os quais a necessidade pode ser satisfeita. Ao lado deste princípio fundamental, o sistema cultural da cozinha se desenvolveu fundamentalmente ao longo da milenar existência humana, de forma que não apenas a necessidade da ingestão de alimentos seja saciada, mas, sim, que outras simbologias em torno da preparação dos alimentos sejam incluídas, como, por exemplo, foi mostrado no capítulo anterior. Além disso, também no sentido de cozinha, que, na maioria das vezes, é denominada pelo caráter geográfico129, a hierarquização de uma sociedade é demonstrada e contribui para a formação de identidade. Cozinhas se baseiam na maioria das vezes em um ou dois alimentos básicos que contenham amido, que podem ser trabalhados de forma muito variada. Estes são completados com um componente rico em proteína e um que forneça vitaminas. Determinante é o sabor, e como os ingredientes são, na maioria das vezes, insossos, o tempero determinará o direcionamento do sabor típico de uma cozinha e com isso é de importância central130.

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Ver, por exemplo: Manual do Agricultor Brazileiro, Segunda Edição, por C.A. Taunay, Rio de Janeiro, 1839, Typographia Imperial e Constitucional, de H. Villeneuve e Comp. , pág. 9-10. A situação alimentar dos escravos será tematizada no decorrer deste trabalho. Ver uma representação resumida em Costa, Marcondes, A Alimentação no Cativeiro: Uma Coletânea sobre os Regimes Alimentares dos Negros Afro-Brasileiros, em RIHGB, n. 411, abr./jun. 2001. 128 Ver sobre o entendimento sociológico alimentar Barlörius, Essgenuss als eigenlogisches soziales Gestaltungsprinzip. Sobre a sociologia da comida e da bebida, representada com base no exemplo da Grande cuisine da França, pág. 37-40. 129 Ver Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema, Essen, Band 2, Essen und kulturelle Identität, sobre a relação da classificação geográfica da cozinha, pág. 19: “Documentada... a dificuldade, de relacionar a transição do fático de uma paisagem alimentar e de suas caracterizações regionais e nacionais para aquele potencial fictivo, que é colocado em ação com a ideologização e mifiticação... Espaços e territórios, nos quais cultura alimentar ocorre, são desta forma não apenas obviamente geográficos, mas, sim, ao mesmo tempo, também sempre caracterizados de forma social e cultural, como entre outros, Pierre Bourdieu mostrou.”. 130 Ver Barlörius, Soziologie des Essens, Eine sozial und kultur wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 129-132, pág. 131-132: “Acompanhamentos deixam claro qual é a origem de uma cozinha, que consista em legumes, derivados do leite, carne ou peixe. A sua riqueza, pobreza ou a sua completa ausência é um indício claro para a origem de uma cozinha. O equilíbrio entre alimentos básicos e acompanhamentos é uma chave importante para a identificação da posição social de uma cozinha.”.

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O conceito físico de cozinha significa o lugar para a preparação com utensílios. Na maioria das vezes, esse lugar é ocupado pelo gênero espefíco, a cozinha no âmbito doméstico pela dona de casa ou no exemplo da casa grande brasileira, a cozinheira negra. Ao contrário, na gastronomia profissional prevalece a figura do cozinheiro131. No exemplo brasileiro ainda existe a diferenciação da cozinha interna e da cozinha externa. A cozinha externa servia para a preparação básica dos alimentos que causavam sujeira, como, por exemplo, o abatimento de animais ou o preparo da comida dos escravos, enquanto a cozinha interna servia para a preparação de alimentos mais refinados132. A técnica de cozinha foi modernizada no meio do século XIX através da introdução de fornos novos, que regulavam melhor a temperatura, da utilização de combustíveis como o gás, bem como, ao final do século, através da introdução das primeiras geladeiras e máquinas de sorvete133. A relação geográfica é determinante na classificação dos conceitos alimentares na forma de cozinhas. Os recursos alimentares de uma região retirados do ambiente natural e seus efeitos do mesmo na produção agrária influenciam os métodos culturais para a produção de alimentos, a cozinha. Produtos regionais, costumes, técnicas e alimentos determinam a cozinha regional. Deve-se juntar a isso o desenvolvimento cultural no decorrer de um longo período de tempo, que determina a variedade das possíveis comidas que podem ser feitas ainda que com poucos alimentos regionais134. Essas condições básicas universais levaram ao surgimento de cozinhas regionais no mundo todo135. Especialmente no Brasil, com suas diferenças determinadas em

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A separação específica por gênero na família e na gastronomia ainda será tratada mais adiante separadamente. Ver, a respeito da separação da cozinha no Brasil, Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da antropologia da Alimentação, pág. 204, também Stein, Vassoutas, A Brazilian Coffee Country, 1850-1900, The Roles of Planters and Slave in a Plantation Society, pág. 176-177; e Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), pá. 75. 133 Ver Strong, Banquete, uma história da culinária e da fartura à mesa. Pág. 240. Ver também http://scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-4714200700020001&lng=pt&nrm=iso(10.5.2008). Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material. V. 15, n.2, São Paulo, Jul./Dez. 2007, João Luiz Máximo da Silva, Transformações no Espaço Doméstico – o Fogão e a Cozinha Paulistana, 1870-1930. Sobre o desenvolvimento da máquina de sorvete e refrigeradores, ver Tannahill, food in History, pág. 357-358. Assim, em 1830, foi inventada a primeira sorveteira a base de amoníaco, em 1850, uma sorveteira a base de éter e, em 1877, o primeiro navio refrigerador. 134 A importância resultante da alimentação para o costume regional reconheceu para o Brasil primeiramente Gilberto Freyre, que, em 1926, anunciou o Manifesto Regionalista, que, mais tarde, também foi publicado em jornais. Neste manifesto, ele acentuava especialmente a importância da alimentação, pág. 30: “Feitos estes reparos, estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por alguém neste Congresso: os valores culinários do Nordeste. A significação social e cultural desses valores.” Ver também Pilcher, Que viven los tamales! Food and the making of Mexican identity, pág. 157: “A regional cuisine comprised a fixed corpus of recipes, essentially limited to local resources.”. 135 “Ver abordagem temática clara deste fenômeno em Leal, a História da Gastronomia, pág. 101-128. 132

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virtude das grandes dimensões espaciais e diferentes nuances culturais, as cozinhas regionais são, da mesma forma, ricamente variadas136. Uma percepção das especificidades da cozinha de uma região é transmitida da França ainda antes da revolução137. A centralização da França levou, ao lado do surgimento da Grande Cuisine, também ao fornecimento da capital com especialidades das regiões, sobretudo com a melhora das vias de transporte no século XVIII, de forma que surgiu uma percepção dessas tradições alimentares que passaram a ser cultivadas. Assim, ocorreu que, na França, no meio do século XIX, em cada região já existia um livro de culinária próprio publicado138. Também nas áreas de língua alemã, no século XIX, publicou-se uma grande variedade de livros de culinária com títulos geográficos139. Mostra-se, entretanto,

que devem ser diferenciadas também as tradições culinárias da

população de uma região, por um lado, e por outro, a postulação de tal cozinha regional como reação a processos de centralização política140. Um outro resultado seria, então, a proclamação também de uma cozinha nacional, ligada, na maioria das vezes, ao processo de construção de nações141. Hoje em dia a percepção de uma

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Este aspecto será detalhado mais adiante ao longo deste trabalho. Recomenda-se, no caso do Brasil, contudo, falar-se em cozinha, ver Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da antropologia da alimentação, pág. 13. o Brasil já era desde a colonização um país fortemente caracterizado pelo regionalismo, a comunicação era difícil, devido aos caminhos de transporte e às fortes correntes marinhas e exigia este desenvolvimento. Ver Dutra, Nação, Região, Cidadania: A Construção das Cozinhas Regionais no Projeto Nacional Brasileiro, pág. 94, em Campos – Revista de Antropologia Social, v. 5, n. 1, 2004. Ver também Doria, A Culinária Materialista, Capítulo: A Cozinha Nacional e a Estruturação das Cozinhas Regionais, pág. 66-76. 137 A existência de métodos regionais de preparação de alimentos já deveria, no entanto, ser conhecida há mais tempo, já que, como o tema deste trabalho mostra, identidade está ligada a alimentação, e deveria sim já em impérios como o romano ou o chinês ter existido uma alimentação diferenciada. No entanto, a França, no âmbito da culinária e nas pesquisas relacionadas ao tema, teve um papel importante. Ver Csergo, Julia, The emergence of regional cuisine, pág. 501 em Flandrin, Montanari (eds.), Food a culinary history. 138 Ver Csergo, The emergence of regional cuisine, pág. 505 in Flandrin, Montanari (eds.), Food, a culinary history. 139 Ver Hauer, Carl Friedrich von Rumohr e Der Geist der bürgerlichen Küche, pág. 60: “Nota-se que no século XIX aparecem cada vez mais adjetivos geográficos nos títulos dos livros, que representam todo o espectro das cidades alemãs, tribos, províncias, estados e partes do país. Com isso, os estilos alimentícios apresentados nos livros de cozinha oferecem paralelamente a um modelo de delimitação específico de classes para cima, ou respectivamente para baixo, uma possibilidade geoculinária para a formação da identidade cultural.”. 140 Ver Bärlosius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 147: “Para as cozinhas regionais pode-se mostrar que tradições culinárias tipicamente regionais, no geral, são valorizadas por aquelas classes sociais que se vêem empurradas para a periferia através de processos de centralização nacional. Nisso existem duas dimensões ligadas uma a outra: primeiramente, classes sociais que participam do processo de criação de cozinhas regionais têm a pretensão de dominar culturalmente outros grupos sociais dentro da região. Em segundo lugar, elas ligam, desta forma, a intenção de fundamentar a região como unidade culturalmente equivalente ao poder central.” Este modelo teórico confere, por exemplo, no caso das regiões de Pernambuco e de Minas Gerais. 141 Ver Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, S.99.

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cozinha, sobretudo por meio de livros de culinária, é comum no âmbito nacional. No entanto, trata-se, como também na fundação de uma nação como tal, de uma construção cultural142. Com isso, uma cozinha nacional como tal não existe143, mas sim apenas a união de diferentes cozinhas regionais, que deve, entretanto, sugerir, sim, o sentimento de pertencença144. O conceito de uma cozinha nacional surgiu, segundo o entendimento moderno, no contexto da Revolução Francesa145. Um fenômeno interessante é também a estilização de uma cozinha

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Ver Bärlosius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 147-148: “As mesmas cozinhas podem, então, mais tarde, ser instrumentalizadas para produzir sentimentos de pertencença nacional ou regional, ou seja, para favorecer a construção horizontal de uma comunidade e exteriorizar distâncias correspondentes. Não surpreende, portanto, que cozinhas intituladas “nacionais”, frequentemente tenham sido “inventadas” durante uma fase determinante do processo de formação do Estado. Elas não representam, de forma alguma, como o nome delas indica, todas as cozinhas existentes em um estado ou uma mistura autorizada de uma variedade das cozinhas. Mais do que isso, existem várias provas de que a classe social, que impulsiona o processo de formação do Estado essencialmente, consegue impor o seu estilo culinário como nacional: assim, por exemplo, o citadino, exato parisiense nobre na França, o Gentry, na Inglaterra, e os imigrantes ingleses na América do Norte. A atribuição de estilos culinários cidatinos ou de classes específicas como cozinha nacional, deveria, com isso, garantir a estruturação vertical da sociedade e não, como poderia ser depreendido do nome da cozinha, estimular a formação horizontal da comunidade pertencente ao Estado. Na formação de cozinhas nacionais, trata-se assim de construções fictícias, pois sua exigência não se baseia na realidade da comida diária”. Sobre a construção do conceito de nação, ver entre outros: Jansen, Borgräfe, Nation – Nationalität – Nationalismus: Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreichen Konzepts oder Hobsbawn, Nationen und Nationalismus. Ver também como objeção crítica científica sobre o conceito de cozinha regional e nacional, Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und Kulturelle Identität, pág. 18: “Em um nível mais alto a pretendida ou afirmada identidade se mostra pois frequentemente como uma construção ficitivia. Se se examinar a cozinha nacional como um acontecimento de identificação, então mostrar-se-á que não raramente surge uma contradição entre a identidade afirmada e o resultado real. Somente em um nível mais baixo de integração podem ser preparados tipos culturais reais. Se se partisse da cozinha regional como nível de identidade, esta também se mostraria da mesma forma como fictícia , e apenas em um nível muito mais limitado da integração, por exemplo, da cozinha cidatina ou do campo de uma paisagem culinária, poder-se-ia, finalmente, comprovar tipos culturais reais da cozinha convincentemente.” 143 Uma dificuldade ai é que a construção narrativa nacional, cozinha típica de um país, esbarra em uma larga aceitação na sociedade e no cotidiano. Assim, certas comidas são identificadas com países, como, por exemplo, o chucrute e a salsicha com a Alemanha, ou a Pizza e o Spaghetti com a Itália. No entanto, trata-se, sobretudo, de estereótipos, que deixam de valer no caso de uma apreciação mais intensiva. Um outro efeito é também a limitação de cozinha regional a certo número de pratos típicos no âmbito da cozinha nacional. Por isso existe na literatura específica crítica justificada no conceito de cozinha nacional. Ver, entre outros, Pilcher, Que viven los tamales! Food and the Making of Mexican Identity, pág. 156-157. 144 Ver Setzwein, Zur Soziologie des Essens, Tabu, Verbot, Meidung, pág. 97: “A acentuação de uma pertencença que se baseie na igualdade de direitos, uma espécie de parentesco simbólico, pode ser observada também no contexto de pratos nacionais ou de especialidades locais. A identificação de nações com certas comidas bate-se visivelmente em xingamentos de seus pertencentes por pessoas de outras nacionalidades”. Ver também Pilcher, Que viven los tamales! Food and the making of Mexican identity, pág. 4. A introdução de receitas regionais possibilita, através do provar do “outro”, também uma desconstrução de diferenças regionais ou éticas. Ver Bauer, Goods, powers, history: Latin America’s material culture, pág. 185-192, no entanto, Bauer constata um aparecimento de cozinhas nacionais na América Latina apenas a partir de 1930, apesar de que deviase, contudo, então, falar em um renascimento da metódica. 145 Neste contexto, o conceito de cozinha regional também é bem investigado nesta pesquisa, ver, por exemplo: Bärlosius, Essgenuss als eigenlogisches soziales Gestaltungsprinzip. Sobre a sociologia da comida e da bebida, representada com base no exemplo da Grande cuisine francesa ou ponto de vista crítico: Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 84: “A revolução francesa de 1789 criou a primeira cozinha nacional, já que restaurantes, livros de culinária e outras literaturas de gourmets tornaram os pratos da elite acessíveis a amplas as camadas da população. No entanto, os franceses deixaram uma variada herança, já que, por um lado, estimularam outras nações a colocar o tema da alimentação na frente do carro da unidade nacional,

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nacional através de imigrantes de diferentes regiões de um país em uma nova pátria 146. Ponto decisivo para a fundação tanto de cozinhas regionais como nacionais é a impressão de livros de culinária147, que serviam para a postulação e a publicação e divulgação de tal cozinha148.

3.3.3 Estruturas de longo tempo

Exatamente em se tratando de alimentação, determinada por meio dos recursos alimentares existentes, mudanças, transformações e inovações ocorrem em períodos longos de tempo149. Da mesma forma que determinados alimentos são preparados há séculos segundo os mesmos modelos, também certos tabus e tradições são mantidos por gerações150. Hábitos alimentares

e, por outro, entretanto, iniciaram uma nova cultura alimentar exclusiva, que em outros lugares permitia às elites nacionais se distanciar das massas.”Ver também Mennell, All Manners of Food, Eating and Taste in England and France from Middle Ages to the Present. Pág. 157. O ponto alto da cozinha francesa começou em 1810 e foi cunhado no século XIX pelo cozinheiro Careme, e agradou no mundo intero na gastronomia e na alta sociedade. Foi seguido por Escoffier, no final do século XIX, começo do século XX. Ver também Kellz, Careme Cozinheiro dos Reis; James Scoffier, O Rei dos Chefs; e Strong, Banquete, uma história ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa, pág. 238-245, sobre Careme e a cozinha francesa no século XIX. 146 Ver Bärlosius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 162, sobre a construção de cozinhas nacionais na migração. Ver também Schmid, Ernährung und Migration, pág. 24: “A cozinha dos imigrantes não é idêntica à cozinha atual do país de origem. Pesquisas mostram que imigrantes abandonam sua cozinha de origem e ao invés disso, no país em que se fixam estabelecem uma cozinha nacional.”. O melhor exemplo disso são os italianos e os chineses. 147 O método do livro impresso como instrumento para a divulgação de um conceito de idéia é, na concepçao de cozinha nacional, bem semelhante ao conceito de nação como comunidade imaginada de Anderson, Die Erfindung der Nation, Zur Karriere eines folgenreiches Konzepts, pág. 44-53. Assim, através do meio devem ser constatados os hábitos alimentares que são característicos para uma cozinha e desse modo, podem valer como formadores de identidade. Ver, quanto a isso, Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und kulturelle Identität, pág. 18. 148 Ver Pilcher, Que viven los tamales! Food and the making of Mexican identity, pág. 2, “Culinary literature has great potential for contribuinting to the creation of these national cultures. Cookbook authors help to unify a country by encouraging the interchange of foods between different regions, classes and ethnic groups, and thereby building a sense of community within the kitchen... the conflicting motivations for writing cookbooks as well as the arbitrary immutable recipe collections preserve from the distant past, regardless of the claims of authenticity made by their authors.”Ver também Comparative Studies in Society and History, Vo. 30, No. 1, Jan. 1988, Cambridge, Appadurai, Arjun, How to make a national cuisine: Cookbooks in contemporary India. 149 A mudança na agricultura de alimentos ocorreu especialmente antes do século XX de forma mais lenta, já que, de repente, também não havia sementes suficientes à disposição. Por isso, Fernand Braudel criou também o conceito “longue durée”, já que processos sociais só se transformam a longo prazo. A alimentação como parte recorrente da história do cotidiano se presenta de modo especial a isso. Ver quanto à importância da perspectiva de história da alimentação de Braudel: Santos, A Alimentação e o seu lugar na história: Os tempos da memória gustativa, pág. 13-14 em História Questões e Debates, v. 42 (2005) Curitiba, Dossiê: História da Alimentação. Ver também Ewald, Der Mensch und seine Umwelt, em Handbuch der Geschichte Lateinamerikas 1, pág. 130: “Especialmente com comidas e bebidas o potencial natural de um lugar se engrena com a história que o caracteriza.” Ver também Reis, Annales, A Renovação da História, pág. 74-77, sobre Braudel e o conceito de “longue durée”. 150 Um bom exemplo disso é a preparação da querida sobremesa, Manjar Branco. Assim, este prato foi preparado durante décadas tendo o peito de frango como base. As primeiras anotações da receita em português são oriundas do século XVI: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/livros_electronicos/cozinhaportugues.pdf (28.7.2008) Um tratado da cozinha portuguesa do século XV. Todos os livros de culinária trabalhados do século XIX procedem conforme os mesmos ingredientes. Apenas com o início do século XX aparecem receitas sem a utilização do peito de frango, assim em : A Doceira Doméstica Ou Collecção de Receitas pela maior parte novas, de doces,

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não mudam tão rapidamente como transformações políticas. No entanto, com a modernidade e a industrialização incipiente, bem como com a urbanização, isso foi se transformando crescentemente, e, de modo especial, no exemplo brasileiro, nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo, tornou-se perceptível no final do século XIX151. Hábitos alimentares são contabilizados desde a industrialização como um dos bens culturais de vida curta que estão expostos ao processo de transformação econômica152. Assim, por exemplo, a Primeira Guerra Mundial, como desenvolvimento político, pôde, num curto espaço de tempo transformar a sequência alimentícia de milhões de pessoas em diversos países de forma relativamente repentina153. No século XIX, entretanto, o desenvolvimento da modernidade, sobretudo no Brasil, em seu efeito geral ainda não era tão caracterizado e capaz de mudanças tão rápidas e abrangentes. Assim sendo, as fontes e influências especialmente na área da cozinha e da alimentação são relativamente de longa duração e, por isso, as receitas e relatórios de aproximadamente 20 anos antes e depois os dados políticos do Império Brasileiro devem ser interpretados como relevantes. Além disso, o surgimento de um livro de cozinha ou de uma coleção de receitas da mesma forma deve ser observado como um processo. Neste aspecto, contribuem, na maioria das vezes, informações e experiências na forma de tradições que foram colecionadas por décadas e mantidas por gerações. A reprodução oral de receitas determinou por centenas de anos a cultura culinária da humanidade154. Exatamente no caso examinado do exemplo brasileiro, com um alto índice de analfabetos no Império, este aspecto deve ser levado em consideração. Da mesma forma, também o processo de surgimento de um livro de culinária escrito manualmente ou uma coleção de receitas pode durar anos. Este processo que pode durar anos,

pudins, tortas, conservas, pasteis, licores e em geral tudo quanto pertence à arte do confeiteiro e pasteleiro, apropriadas ao uso das cozinhas particulares por D. Anna Correa, 4. edição, correcta e melhorada, Rio de Janeiro, na livraria de U.G. de Azevedo, editor, 1895. Hoje, ao contrário, o Manjar Branco é um pudim de côco engrossado e atribuido à cozinha da Bahia, sendo que a amplitude histórica da receita caiu completamente no esquecimento. Uma receita para manjar branco é também apresentada no livro espanhol Libro del Arte de Cozina von 1602 na pág. 48. 151 Ver Montanari, Der Hunger und der Überfluss, Kulturgeschichte der Ernährung in Europa, S. 188:” Nós nos limitaremos à indicação de que nos tempos mais primordiais dos países industrializados, Inglaterra e França, apenas no final do século XIX só sentiram as mudanças mais importantes para todo o modo de vida da população, que resultaram da transição de uma alimentação à base de grãos para uma nova, na qual proteína e gordura foram asseguradas por uma quantidade perceptível de alimentação animal.”. 152 Ver Wiegelmann, Alltags- und Festspeisen, pág. 12: “A alimentação é um bem cultural realizado mais de uma vez diariamente, mas de vida curta, e que é atingido fortemente por abalos e estados econômicos.”. 153 Ver Bärlosius, Essgenuss als eigenlogisches soziales Gestaltungsprinzip. Zur Soziologie des Essens und Trinkens, representando com base no exemplo da grande cuisine da França, pág. 11-12. Sobre a importância da guerra como momento relevante de transformação relativo à alimentação ver também: Mintz, Tasting Food, Tasting Freedom, pág. 25. 154 Ver, quanto à importância da reprodução oral de receitas em amplos círculos de populações, Montanari, Comida como Cultura, pág. 13, e pág. 61-70.

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e leva à produção de um livro de culinária ou, à criação de uma coleção de receitas particular, aparece nos registros esporádicos das datas dos denominados Cadernos de Receitas, escritos manualmente e utilizados como fontes. Também livros de culinária, com as variadas edições, mostram da mesma forma o efeito de longa data de receitas de culinária. Por exemplo, receitas da primeira edição do Cozinheiro Imperial de 1840 aparecem ainda na 11. Edição de 1900, e, pode-se dizer, assim, que sobreviveram duas gerações. Além disso, deve-se observar que algumas receitas de livros portugueses de culinária muito mais antigos foram mantidas.

3.3.4 Aspectos gerais relativos à alimentação

Já que, como demonstrado, a alimentação está profundamente ancorada no cotidiano do ser humano, muitos outros aspectos da vida cultural são influenciados. Neste sentido, devem ser mencionados aqui alguns outros aspectos que parecem relevantes ao longo deste trabalho. Um fator universal importante na alimentação humana é o surgimento de tabus com relação a certos alimentos, cujo valor para a antropologia foi ressaltado, sobretudo por Claud LeviStrauss155. Tabus alimentares são importantes marcos culturais, que, na maioria das vezes, estão relacionados com o caráter de morte de um símbolo de identificação. Neste sentido, na maioria das vezes, também a religião tem um papel importante. O mais conhecido talvez seja a proibição da ingestão de carne de porco para os judeus ou os mulçumanos, o que faz parecer lógico o freqüente uso de carne de porco e banha como gordura de assados na Península Ibérica como medida de controle e disciplinação social156. Este tabu relativo ao consumo de carne de porco também se aplicava aos escravos de origem mulçumana. O exemplo de tabu alimentar mais difundido no Brasil era a proibição de comer carne na sexta-feira da paixao e no período da quaresma, que também tem relação direta com a divulgação da religião católica157. Carl Schlichthorst menciona, por exemplo, em seu relatório

155

Ver, com relação ao princípio teórico de Claude Levi_Strauss, triângulo culinário cozido, cru e podre, no exemplo brasileiro, Silva, Farinha, feijão e carne seca, pág. 121-129. Ver também Bärlosius, Eva, Essgenuss als eigenlogisches soziales Gestaltungsprinzip. Sobre a sociologia da alimentação e da bebida, representado no exemplo da grande cuisine da França, pág. 35-36. Um bom começo para o entendimento do conceito de Levi Strauss e da importância para a identidade, em Silva, Hall, Woodward, Identidade e Diferença, pág. 42-45. 156 Ver Fernández-Armesto, Comida, uma história, pág. 211-212. Quanto aos tabus alimentares religiosos ver no geral Stentzler, Gesegnete Mahlzeit, Zur religiösen Substanz der Esskultur, pág. 200-201 em : Schuller, Kleber (HG) Verschlemmte Welt, Essen und Trinken historisch-anthropologisch, ver a respeito de Tabus e ao desenvolvimento da pesquisa antropológica relativa a isso: Silva, Papagaio Cozido com Arroz: Livros de Cozinha e Receitas Culinárias no Rio de janeiro do Século XIX, pág. 28-37. 157 Ver com relação à quaresma entre o carnaval e a páscoa: Viana, Festas de Santos e Santos Festejados, pág. 24-25.

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sobre o Rio de Janeiro de 1825, a compra adequada feita, no período da quaresma, de caranguejos, palmito, bem como de salada e batatas158. Assim, foram introduzidas no livro de culinária Cozinheiro Imperial receitas classificadas com a anotação “para dias de jejum, dias de peixe e para os de carne” 159. Um outro tabu não manifesto explicitamente era, por exemplo, a ingestão de carne de carneiro, o que estava diretamente ligado à importância do carneiro para a páscoa católica160. Este tabu se limitava ao Brasil do início do século XIX, já que carne de carneiro era em Portugal um alimento usual e a utilização de carneiro era recomendada em livros medicinais e até mesmo mencionada em livros brasileiros de culinária161. O tabu da carne de carneiro tornou-se perceptível através dos inúmeros relatórios de viagens ingleses. Assim, o irlandês Richard Burton relatou a importância religiosa da carne de carneiro fazendo remissão ao tabu que disso resultou o tabu com relação à comida. Os viajantes, como na Inglaterra, gostariam de ter comido carne de carneiro, mas eles descreviam variadas vezes e independentemente uns dos outros, que não existia carne de carneiro para comprar162. No Brasil, ainda existia uma série de outros tabus alimentares, na maioria das vezes, com relação à combinação de alimentos. Esses se referiam quase sempre à mistura de uma fruta com outras frutas ou com leite, bem como com aguardente. Os tabus também tinham características diferentes de acordo com a região, como, por exemplo, acreditava-se no Maranhão, que a mulher grávida não deveria comer abacaxi163. A área cultural da religião tem, em todo caso, como o exemplo dos tabus alimentares demonstrou, um efeito duradouro na alimentação. Desta forma, tendo em consideração o tabu católico do peixe para feriados e o período da quaresma, o peixe seco se tornou um alimento

158

Ver Schlichthorst, O Rio de Janeiro como é (1824-1826), pág. 87. Ver Cozinheiro Imperial ou Nova Arte do Cozinheiro e do Copeiro em todos os seus Ramos…, 4a ed. 1859. A classificação dos alimentos já é mencionada logo no prefácio na pág. VI. 160 Ver Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, pág. 63. Ver também Saint-Hilaire, Viagem à Província de Goiás, pág. 22, segundo a qual ninguém come carne de carneiro. 161 Ver Henriquez (Médico do Rei D. João V) , Âncora Medicianal. Para conservar a vida com Saúde, pág. 9798. Assim, foram utilizados entre outros as entranhas do carneiro, para que os primeiros dentes da criança saíssem melhor pela gengiva. Para isso, as entranhas deveriam ser colocadas na gengiva. Também em livros de culinária como o Cozinheiro Imperial ou o Cozinheiro Nacional existem receitas de carneiro. Isso obviamente limita o tabu, mas pode também estar ligado à influência da cozinha internacional, que também se fez presente em livros de culinária. Como autêntica receita brasileira de carneiro o Cozinheiro Nacional menciona, ao lado de 109 receitas de carneiro e cabrito, Carne de Carneiro com Maracujás, ver Cozinheiro Nacional, 2008, pág. 126. 162 Ver Frieiro, Feijão, angu e couve, pág. 118. 163 Ver Abdala, A Cozinha e a Construção da Imagem do Mineiro, pág. 103-104 e Putz (ed.), História da Gastronomia Paulistana, pág. 38, alguns exemplos estão lá: “banana com leite, banana com manga, banana da terra com água, laranja com leite, manga com leite, maracujá com pinga, melancia com banana, pêssego com pepino, banana com pinga, manga com pinga, pinga com leite, feijão fava com laranja, laranja com manga, garapa com melancia, melancia com uva”. Ver a respeito dos tabus no Maranhão: Lima, Pecados da Gula, Comeres e Beberes das Gentes do Maranhão, pág. 27. 159

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difundido no Brasil e permitiu à população de fiéis a manutenção de uma norma religiosa. Alguns relatórios de viagem mencionavam, contudo, também a não observância deste tabu. A eucaristia como parte integral da missa cristã ilustrou a importância da alimentação no contexto da religião164. Aqui, inclui-se também um outro aspecto significativo da importância da religião católica para a alimentação. Este está ligado à diversificada utilização da clara do ovo de galinha. A clara do ovo foi utilizada para a fixação de roupas, para a decoração de altares, como cola para o pó do ouro, para clarear o vinho da missa e para a produção de folha de ouro, apesar de a gema de ovo ainda sobrar e ser utilizada para a fabricação de doces. Ai foram usadas proporções de gemas de ovos inacreditáveis para os dias atuais. Como resultado, formou-se, na cozinha dos conventos e mosteiros, a tradição de doces feitos à base de gemas165. Na verdade, a crença católica era a dominante no período do Império Brasileiro, mas, de fato, existiam também outras religiões no Brasil. A população africana multiétinica conservava suas crenças. Existia, por isso, uma variedade de crenças como o Candomblé na Bahia, Xangô em Pernambuco, Tambor de Mina no Maranhão ou Batuque no Rio Grande do Sul e o Islamismo166. Todas essas religiões têm uma forte relação com a alimentação, já que nas cerimônias religiosas, determinados pratos (sacrifícios) são preparados para os deuses, que então são comidos pelos praticantes167. Através do caráter religioso da comida, receitas, que em parte são oriundas do século XVIII, até hoje foram mantidas. Além disso, o calendário religioso determinava também a escolha das comidas na forma dos pratos típicos de dias festivos que permitiam identificar a festa e são característicos de uma região.

164

Ver Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 13: “Também a eucaristia cristã ilustra a importância religiosa da comensalidade, já que ela une as pessoas à missa.” 165 Ver Ewald, Ursula, Speise und Trank in Lateinamerika, 16-20 Jahrhundert, pág. 153, em Heidelberger Geografische Arbeiten, Heft 100, Heidelbberg, 1995, ver também Algranti, Leila Mezan, A Hierarquia Social e a Doçaria Luso-Brasileira (Séculos XVII ao XIX) em Revista da Sociedade de Pesquisa Histórica, n. 22, 2002, Curitiba; http://www.pe.sebra.com.br:8080/notitia/download/acucar_no_Tacho_Maria_Lecticia.pdf Cavalcanti, Açúcar no tacho, pág. 4. 166 Ver Bastide, O Candomblé da Bahia, pág. 17: “Ao longo de todo litoral atlântico, desde as florestas da Amazônia até a própria fronteira do Uruguai, é possível descobrir, no Brasil, sobrevivências religiosas africanas, … Os candomblés pertencem a “nações” diversas e perpetuam, portanto, tradições diferentes: Angola, Congo, Gêge (isto é, Ewe), Nagô (termo com que os franceses designavam todos os negros de fala zoruba, da Costa dos Escravos), Quêto (ou Ketu), Ijêxa (Ijesha).” Ver também Ferreti, Festa de Acossi e Arramba, Elementos do Simbolismo da Comida no Tambor de Mina, Correa, “A Cozinha é a Base da Religião”: A Culinária Ritual no Batuque do rio Grande do Sul, em Horizontes Antropológicos, Comida, Ano 2, Numero 4, janeiro/junho, 1996. 167 Ver sobre a temática Lody, Axé da Boca, Temas de Antropologia da Alimentação e Lody, Santo também Come. Ver também Cascudo, A Cozinha Africana no Brasil, pág. 18-19. Segundo Cascudo Cuba, tem uma origem semelhante da população, a alimentação, entretanto, não é tão diversificada como nas regiões do Brasil com a divulgação do culto do “jeje nago” , de uma forma da religião do candomblé africano, a qual ele remete.

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Especialmente característicos são, por exemplo, em todo Brasil, os feriados em junho, o ciclo junino. Os feriados estão ligados diretamente à colheita do milho, razão pela qual são preparados alimentos à base de milho, uma característica típica da festa. Um outro exemplo ligado à religião é o feriado de São Cosme e Damião em setembro, no qual se come caruru. É ligado à religião pelo fato de os santos gêmeos serem homenageados tanto na religião católica, como também no candomblé aparecerem como orixás sincronizados168. A separação em alimentação trivial e alimentação de dias de festas é um outro aspecto que influencia a alimentação. A alimentação trivial é, na maioria das vezes, preparada de forma simples e se baseia em alimentos que satisfaçam. Os alimentos de dias festivos se valem de produtos mais caros, são preparados de forma mais elaborada, e têm um caráter de prestígio169. Eles são feitos para uma ocasião cultural, seja um dia de festa ou também uma visita. Exatamente na sociedade brasileira, muito hospitaleira, servia-se com prazer ao convidado uma comida de difícil preparo, sobretudo nas regiões mais distantes a chegada de um viajante estrangeiro era um acontecimento especial. Isso levou ao fato de os viajantes estrangeiros terem frequentemente recebido o mesmo alimento no Brasil do século XIX, isto é galinha com arroz170. Galinha com arroz, no Brasil chamada de caldo de frango ou canja, também foi preparada, devido ao seu efeito fortalecedor, especialmente para doentes171. O “fenômeno galinha com arroz” foi mencionado expressamente em muitos relatórios de viagem, e foi parcialmente considerado monótono, já que foi servido muitas vezes aos viajantes. A freqüência com que essa comida foi servida mostra, contudo, não só a hospitalidade já afirmada dos brasileiros, como também o valor social deste prato. Tanto a 168

Ver com relação a este contexto no Brasil: Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, pág. 25. Lá aparecem vários exemplos, como na pág. 48, pombos de cobertura de açúcar (alfenim) no pentecostes, em Goiás, que representam o Espírito Santo. Ver pág. 294-295 relativamente ao Ciclo Junino. 169 A especial importância das comidas de dias festivos já foi mencionada no âmbito da estratificação social. Ver como base: Wiegelmann, Alltags- und Festspeisen. 170 Ver quanto a isso também Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um exercício de nova história, em Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr. 1 (2002), pág. 88. A galinha recebeu, em certas regiões do Brasil, um prestígio social, e vale, até hoje, como comida de domingo, comparável ao assado de domingo alemá. Esta indicação deve ser entendida com relação à difícil e eurocêntrica colocação de Ursula Ewald, que apareceu no artigo: Speise und Trank in Lateinamerika, XVI-XX Jahrhundert, no Heidelberger Geografische Arbeiten, Heft 100, 1995, na pág. 151 ao lado de outras colocações mal pesquisadas: “para o assado de dias festivos de família a cozinha tradicional latino-americana não conhece nenhuma receita.” Talvez isso também deva ser atribuído à falta de compreensão da autora, que eventualmente alguém em uma festa de família queira comer alguma outra coisa senão um assado, nas diversas centenas de etinias e culturas existentes na América Latina? 171 Ver Almeida, Medicina Mestiça: Saberes e práticas purativas nas Minas setecentistas, pág. 218: Receita de Caldo de frango de 1765. A sopa foi completada em utilização medicinal em parte também com tinturas químicas, como “tintura Marti” . Ver quanto à utilização da galinha no Hospital Real Casa de Misericórdia em Vila Rica (hoje Ouro Preto), pág. 348, Carvalho, Reminiscências de Villa Rica, em Revista do Arquivo Público Mineiro, Anno XX, 1924, Belo Horizonte, 1926. Ver também o cardápio do Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara, de 1848, em Magalhães, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, pág. 12.

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galinha como o arroz eram produtos caros, servidos apenas em ocasiões especiais ou a doentes. Um outro aspecto relativo à alimentação é representado pela importância medicinal. Durante muito tempo, a alimentação foi vista como base da medicina em quase todos os livros medicinais até o século XIX. Segundo a “teoria galênica dos sucos“, os alimentos foram classificados de acordo com a sua utilização medicinal, conforme o binômio quente/frio, úmido/seco172. Todo alimento foi, desta forma, atribuído a uma categoria que pudesse surtir efeito contra a respectiva doença173. Os temperos tiveram neste aspecto especial importância174. Através do progresso da medicina na Europa e da utilização de medicamentos, a alimentação perdeu, contudo, sua importância para a medicina no começo do século XIX. Isso valeu, sobretudo, para as áreas que estavam abertas à “civilização. No caso do Brasil, as cidades na costa”. No interior do país, a importância medicinal da alimentação se manteve pelo século XIX. Por exemplo, von Langsdorff registrou em seu diário de 10.10.1827: “No Engenho do Defunto Brigadeiro achei vários cocos-de-aguacu,... e com três sementes “quentes”, conforme eles dizem. Os Brasileiros são muito preocupados com a nutrição e têm muita experiência nessa área. Eles classificam as comidas e frutas como “refrescantes” e “quentes”. Um médico aplicado poderia, e deveria, aprender muita coisa aqui; um médico que não entende de nutrição não é levado a sério aqui175.”

172

Ver a respeito da “Teoria galênica dos sucos” Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 63 e Montanari, Comida como Cultura, pág. 12. Nas cabeças das pessoas essas classificações eram completamente utilizáveis. Assim, desaconselhavam, por exemplo, em seus relatórios de viagem ambos os sábios de Spix e de Martius degustar frutas frias a noite e na madrugada. Também desaconselhavam comidas exageradas, já que essas poderiam fazer mal a saúde. Ver Von Spix, von Martius, Viagem ao Brasil nos Anos 1817-1820, pág. 110. 173 Neste sentido surgiu então, também o primeiro trabalho científico sobre o Brasil. Wilhelm Piso escreveu em 1648: Historia Naturalis Brasiliae, apesar de o efeito das plantas e animais ter sido mencionado, bem como a sua comestibilidade. Ver Piso, Guilherme, História natural e médica da Índia Ocidental. 174 Ver Flandrin, Seasoning, Cooking and Dietetics in the late middle ages, pág. 315-317, em Flandrin, Montanari, Food, a culinary History. 175 Em Silva (org.), Os diários de Langsdorff Vol. III, pág. 133. Ver sobre o desenvolvimento no Brasil, Figueiredo, A Arte de Curar, Cirurgiões, Médicos, Boticários e Curandeiros no Século XIX em Minas Gerais, pág. 40-46 e a respeito da relação com a alimentação pág. 98-101. Ver sobre a história do desenvolvimento da alimentação na medicina também Flandrin, Diététique et Regimes Anciens (XIII-XVIII siécles), pág. 19-32, em Musée de L’assistance Publique – Hôpitaux De Paris, L’appétit vient em mangeant! Histoire de l’alimentations à l’hôpital.

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Nos livros de culinária Cozinheiro Imperial ainda existiam alguns restos disso, como, por exemplo, o pepino é classificado como frio176. No campo doméstico continuou fazendo-se uso de alimentos como medicamentos. Isso levou ainda em 1889 à publicação do livro Medicina Caseira, Compêndio de Receitas Ùteis de Medicamentos Vegetaes, sem dosagem de boticas e à mão em qualquer parte, Para uso dos homens da roça pelo Doutor Tupinambá177. A importância da alimentação para a medicina se mostra também no livro publicado em 1721: Âncora Medicinal, Para Conservar a Vida com Saúde, escrito por Francisco da Fonseca Henríquez, o médico do rei português João V.

178

. O livro se refere exclusivamente à

utilização de alimentos, sobretudo de maneira profilática, e é tido como o primeiro livro sobre alimentação em língua portuguesa179.

O livro também faz referência em algumas áreas

explicitamente ao Brasil, por exemplo, que, no Brasil, ao invés de se comer pão come-se farinha de mandioca (farinha do pau) 180 , ou que o abacaxi é uma fruta brasileira. Sobretudo a menção à utilização da farinha de mandioca no Brasil ao invés do pão mostra a importância que a alimentação tem no aspecto da migração. Desde a colonização o desenvolvimento da América sempre foi caracterizado por constante migração. Pessoas de diversas partes do mundo vieram para a América e tentaram se alimentar de alimentos que eram para elas desconhecidos, utilizando para isso as técnicas e os 176

Ver Cozinheiro Imperial ou Nova Arte do Cozinheiro e do Copeiro em todos os seus Ramos … 4 ed. 1859, pág. 247: “Pepino conhecido por uma das quatro sementes frias”. Também existem receitas com contexto medicinal, como, por exemplo, na pág. 44, Caldo amargoso para todos as moléstias do peito e vômitos. Também outros livros de culinária do período imperial indicam explicitamente receitas de conteúdo medicinal, como na Doceira Brasileira ou nova guia manual para se fazerem todas as qualidade de doces com muitas observações sobre taes assumptos. Terceira edição mais correcta e accrecentada com numerosas receitas novas”, Constança Oliva de Lima, 3a. 1862, pág. 11. Xarope medicinal de agrião, lá são mencionadas nas pávias seguintes uma variedade de outros xaropes medicinais. 177 Editado na Editora Laemmert e atendia à exigência: “… medicina doméstica, simples e essencialmente brasileira, …”. Quase todas as receitas utilizam alimentos, veja como exemplo contra o alcoolismo, pág. 10-11: “Bebedice: Ponhão-se nove camarões grandes escamados ou cinco sardinhas em uma garrafa de aguardente forte, e, depois de bem arrolhada, enterre-se em logar humido por espaço de nove dias, ao tirar cõe se. Desta aguardente dê-se um calice pela manha em jejum a pessoa que teve o habito da embriaguez que ella deixará o vicio. Tome-se o escremento amarello da galinha, collido pela manha no gallinheiro, e delle faça-se infusão em aguardente, no fim de um dia cõe-se e dê-se a beber aos calices. Se o ebrio gostar mais do vinho, prepare-se a infusao em vinho”. 178 Outras edições surgiram em 1731, 1754 e 1769. 179 Ver o prefácio sobre a avaliação da obra da perspectiva medicinal atual, pág. 12: “o doutor Henriquez correlaciona o poder nutriente dos alimentos à sensação de calor e “`a recomposição dos espíritos do sangue”, que seriam a glicose e ácidos graxos de nossos dias. … Preciosas as observações sobre alimentos, sua composição aceitação digestiva e poder nutriente: o número e a frequência das refeições: o quando e o quanto de tais ou quais, ao longo do dia ou da noite, em função do estado de saúde, da intensidade da vida física, do biotipo e do temperamento, do clima, e, porque não, do estado de alma.” No livro, todos os alimentos também foram classificados de acordo com o binômio mencionado, ver, por exemplo, pág. 89: “centeio frio e seco” do que segue que o pão é de difícil digestão e por isso bom para “homens rústicos e trabalhadores”. 180 Ver Henríquez, Âncora Medicinal, Para Conservar a Vida com Saúde, pág. 19, sobre o pão e a farinha de mandioca no Brasil, pág. 200 sobre abacaxi. Importante neste contexto é também que segundo a sua representação o pão é sem dúvida o alimento ideal, o que leva à associação com a importância do pão na alimentação contemporânea portuguesa.

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modelos culturais por elas conhecidos181 . Este fenômeno cultural universal tem suas raízes no significado da alimentação para a identidade cultural e é até hoje comprovável 182 em todos os movimentos migratórios. No caso do Brasil, houve diversos movimentos migratórios. A colonização, da mesma forma, deve ser entendida como migração, como a introdução de escravos como migração forçada e as ondas migratórias caracteristicamente européias no século XIX e XX. Além disso, no Brasil, a migração interna também tem um papel importante, especialmente devido às diferenças regionais. Desta forma, os imigrantes do nordeste que foram para o Rio de Janeiro, mantiveram, por exemplo, a sua cultura regional. Isso se mostra até os dias de hoje na Feira de São Cristóvão, na qual são vendidos produtos típicos do nordeste, especialmente alimentos e comidas. Uma conseqüência da migração transnacional foi, além disso, o intercâmbio global de alimentos183. Especialmente as imigrações italianas e alemãs transformaram de forma duradoura a cozinha brasileira no período imperial184. Também através da migração, conceitos culturais, como cozinha, por exemplo, foram incorporados e tiveram efeito tanto no cotidiano familiar como na gastronomia. A diferenciação da comida caseira no âmbito familiar e da preparação profissional de pratos é um outro aspecto que influencia a alimentação185. Isso se mostra também pela diferenciação 181

Esse sistema complexo que estava exposto a diversas transformações é ultimamente bem pesquisado. Assim constatou-se que exatamente a alimentação é a parte mais importante da manutenção da identidade dos imigrantes e, por isso, se mantêm por mais tempo por gerações, do que, por exemplo, a língua. Ver quanto a isso McIntosh, Sociologies of Food and Nutrition, pág. 25-26 e Murcott (Ed.), The nation’s Diet, The Social Science of Food Choice, pág. 180. Ver, com relação ao conteudo dos temas em geral Schmidt, Ernährung und Migration. 182 Como já mencionado, muitos movimentos migratórios levaram à construção de “cozinhas nacionais”, ver Bärlosius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 162 e Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 162, sobre o surgimento da cozinha italiana fora da Itália. Ver também Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und kulturelle Identität, pág. 19: “Justamente no caso de cozinhas de imigrantes mostra-se uma construção de uma cozinha de origem em comum, na qual a migração deve ser entendida como um ato cultural consciente, que tem a tarefa de estabilizar a identidade de origem contra a tentativa de assimilação ou de integração. O perceptível em tais processos é que é possível afirmar uma cozinha comum a nível nacional, apesar de que essa possivelmente no país de origem como tal talvez nem exista mais ou até mesmo nunca tenha existido.”. 183 No caso da colonização da América, ver Crosby, Die Früchte des weissen Mannes. De fato os senhores coloniais eram obrigados a recorrer sempre a alimentos locais que não conheciam, como também os grupos migratórios seguintes. No entanto, a introdução de plantas e animais na América foi uma parte importante da colonização. Ver sobre o conceito geral Gabaccia, We are what we eat, Ethnic food and the making of americans. Ver também Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 14-15. 184 Ver entre outros Reinhardt, Dize-me o que comes e te direi quem és: Alemães, Comida e Identidade; Silva, A Alimentação e a Culinária da Imigração Italiana em Travessia, Revista do Migrante, Ano XV, número 42, Janeiro-Abril/2002, Linguagens & Símbolos; http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artetext&pid=S010201882006000100004&Ing=en&nrm=iso&tlng=pt (10.5.2008), Oliveira, Padrões Alimentares em Mudança: a Cozinha Italiana no Interior Paulista, em Revista Brasileira de História, vol. 26, no. 51, São Paulo, Jan./Jun. 2006; Heck, Belluzo, Cozinha dos Imigrantes oder Alvim, Imigrantes: A Vida Privada dos Pobres do Campo, em Novais. (coord.), História da Vida Privada no Brasil 3. 185 Ver Bárlosius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur- wissenschaftliche Einführung in die Ernährugsforschung, pág. 142-146.

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das categorias gênero e também no campo da migração no qual na gastronomia do Brasil homens europeus foram procurados como cozinheiros em anúncios de jornais. Assim, a cozinha profissional foi determinantemente influenciada pela migração, por um lado no tocante ao conhecimento da preparação dos pratos, e, por outro, pela importação de alimentos, que eram necessários para a realização das respectivas cozinhas. Assim, por exemplo, uma grande parte dos hotéis e estabelecimentos gastronômicos estava nas mãos de estrangeiros ou imigrantes. Também o abastecimento com alimentos importados acontecia através de tais comerciantes, no caso do Brasil estes eram portugueses186. Um papel importante no contexto do desenvolvimento mundial da gastronomia teve a adoção da cozinha francesa e do conceito a ela vinculado de restaurante. A idéia da gastronomia, do atendimento comercial, é, na história da humanidade, antigo e difundido. Contudo, a cozinha francesa conseguiu influenciar o conceito de restaurante como desenvolvimento global da gastronomia. Isso se desenvolveu como conseqüência da revolução francesa. De fato, já existiam antes da revolução albergues, e a evolução para restaurante se deu no contexto com o Boulanger Assunto187, no entanto, a revolução catalizou este processo. A palavra restaurante, com o significado que tem nos dias atuais, foi introduzida no dicionário apenas em 1835. Antes da revolução existiam em Paris aproximadamente 100 restaurantes, após a revolução 500-600, e alguns anos depois já 3000188. Com a perda de poder da nobreza, os cozinheiros que antes eram ocupados pela nobreza ficaram desempregados e passaram a procurar uma nova área de ocupação189. Eles viajavam, por um lado, pelo mundo para encontrar novas ocupações, por outro, criaram áreas de atuação na própria França, que deveriam abordar todas as novas classes, sobretudo a burguesia. Ocorre que a cozinha francesa alcançou em outros países especialmente a classe alta, que assim poderia reafirmar a sua posição social ascendente190. 186

Ver Menezes, A Gastronomia Portuguesa no Estado do Rio de Janeiro, em Lessa, (org.), Os Lusíadas na Aventura do Rio Moderno, exemplos semelhantes, há também de outras regiões, assim, o fundador do restaurante mais antigo e mais famoso de Recife , Pernambuco, O Leite, era também um imigrante português. Ver Soares, O Leite Ao Sabor do Tempo, A História e um Restaurante. Ver também Lopes, Um Estrangeiro na Cozinha, na Revista Gula, No. 188, 200 Anos da Vinda da Família Real, junho 2008. 187 Ver Pitte, The Rise of the Restaurant, pág. 474-476 em Flandrin, Montanari, (eds.), Food, a culinary history. 188 Ver, quanto a esse contexto, Pitte, The Rise of the Restaurant, pág. 472-476 em Flandrin, Montanari, (eds.), Food, a culinary history. Ver Altwegg, Die Kochkunst geht auf die Strasse, Der Siegszug des Restaurants in der französischen Revolution in Schultz (Hg.), Speisen Schlemmen Fasten, Eine Kulturgeschichte des Essens. 189 Ver Menell, Sociology of Food, Diet an Culture, pág. 23. A Haute Cuisine surgiu como parte da cultura da corte francesa centralizada. Ver também Pilcher, Que viven los tamales! Food and the making of Mexican identity, pág. 151, no qual é mencionada a autora Rebecca Spang, que desmitifica a afirmação já que ela provou que existiam restaurants décadas antes da revolução. Assim mesmo, o efeito de longo alcance nao é discutido. 190 Isso se mostrou entre outros no exemplo brasileiro, nos cardápios da classe alta, que era em 95% escrito em francês. Este fenômeno é, da mesma forma, contudo, mencionado supostamente apenas a partir de 1880 em Bauer, Goods, power, history: Latin America’s material culture, pág. 197. Ver sobre a imigração da cozinha

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A cozinha profissional na gastronomia era internacionalmente caracterizada pelo cozinheiro masculino191. Em contrapartida, acontecia o característico comércio de rua de comidas, principalmente por mulheres192. Esta área foi frequentemente dominada por escravas que vendiam alimentos, bebidas, doces e pratos, e eram denominadas negras de tabuleiro193. Este comércio de rua foi retratado, por exemplo, nas figuras do pintor Debret. As comidas típicas são até hoje o acarajé na Bahia, que ainda nos dias atuais são vendidos por mulheres negras vestidas de branco nas esquinas de Salvador e foram reconhecidas como patrimônio imaterial brasileiro. Típico para o norte era e ainda é a tacacazeira que vende tacacá nas ruas, também em outras regiões do Brasil um tipo de lanche bastante difundido. A cozinha familiar é caracterizada especialmente pela dona de casa, que cozinha a comida trivial194. Além disso, existia ainda no Império a cozinha das plantações, que era dominada na maioria dos casos pela cozinheira escrava195, enquanto a senhora, chamada de sinhá, preparava os pratos doces que eram os que tinham prestígio 196. Especialmente os pratos doces tinham um alto valor na cozinha brasileira, no entanto, eles eram derivados na verdade do método de conservação de frutas com açúcar. A conservação de alimentos era uma das técnicas mais importantes na área da alimentação. Isto deve ser visto diante do contexto que os métodos de conservação mais usuais, o resfriamento e o congelamento, no século XIX, haviam acabado de ser descobertos197, e no Brasil só foram utilizados com uma maior

francesa e do efeito social: Bärlosius, Soziologie des Essens, Eine sozial- und kultur-wissenschaftliche Einführung in die Ernährungsforschung, pág. 150-157. 191 No Império Brasileiro, os restaurantes chamavam casas de pasto, uma denominação vinda de Portugal. Ver Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, pág. 14. Sob essa rubrica eles também são mencionados nos almanaques. 192 Ver quanto ao papel da mulher na cozinha da Bahia: http://www.urutagua.uem.br/013/13santana.htm (19.11.2008), Revista Urutagua, No. 13, Ago.-Nov., Maringá, Paraná, 2007, Santana Suellen Thomaz de Aquino Martins, Culinária Sul-baiana: Mulher e Diversidade Cultural. Ver no contexto da mulher na cozinha também Pilcher, Que viven los tamales! Food and the making of Mexican identity, pág. 5: “Finally, the study of cuisine illustrates the significance of women and domestic culture in the formation of national identities.” . 193 Ver, quanto a isso: Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, pág. 53-57, ver sobre Minas Gerais, Negro nas Terras do Ouro, Cotidiano e Solidariedade Século XVIII, pág. 50-51. 194 Ver Weigelmann, Alltags und Festspeise, pág. 15, que acentua a importância da comida no âmbito familiar como fenômeno universal. 195 Ver, quanto às relações nas plantações com a instância típica da Casa Grande: Freyre, Herrenhaus und Sklavenhüte, Ein Bild der brasilianischen Gesellschaft. 196 Este é um fato especialmente interessante no desenvolvimento da alimentação no Brasil. Ver Algranti, A Hierarquia social e a Doçaria Luso-Brasileira (Séculos XVII ao XIX), em Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n. 22, 2002, Curitiba, e Abrahaão (org.), Delícias das Sinhás, História e Receitas culinárias da Segunda Metade do Século XIX e Início do Século XX. 197 O desenvolvimento da geladeira, sorveteira e congelador já foi mencionado. Em 1876, houve o primeiro transporte de carne congelada da Argentina para a França. Ver Goody, Cooking, cuisine and class, pág. 163. Um bom panorama sobre a revolução na conservação no século XIX oferece Hauer, Carl Friederich von Rumohr und der Geist der bürgerlichen Küche, pág. 54-55.

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abrangência no século XX198. Os métodos de conservação mais usuais até o século XX eram salgar199, cozinhar com açúcar200, secar201, colocar em vinagre, álcool, mel, xarope, salmoura, ou óleo, defumar ou cozinhar202. A conservação de alimentos deveria também protegê-los do apodrecimento203. Um aspecto neste contexto é a conservação de frutas e legumes que existiam em excesso condicionados ao período da colheita sazonal e através da conservação deveriam passar a estar disponíveis o ano todo204. Os alimentos secos eram também mais leves no peso e por isso bem adequados para o transporte. Principalmente alimentos básicos simples, como cereais, milho ou mandioca estão disponíveis através dos métodos de conservação desidratar e moer, como importantes fontes de reserva alimentar em tempos de necessidade. Com a industrialização, surgiu também o método de conservação dos enlatados205. Com a conservação de alimentos pode ser realizada uma separação entre consumidor e produtor, de forma que no século XIX puderam ser resolvidos problemas de abastecimento surgidos através do crescimento e da urbanização206.

198

A história do primeiro gelo que veio para o Brasil em 1834 é atualmente bem investigada. Não serviu, na verdade, para a conservação, mas, sim, para o resfriamento de bebidas e para a produção de sorvete. 199 A manutenção e conservação através do sal é um dos métodos de conservação mais antigos. Através do processo de osmose retira-se a água do alimento e, com isso, ele se torna durável. Este método foi utilizado especialmente em alimentos valiosos, ricos em proteína, como carne e peixe. Ver sobre a importância do sal para a conservação Goody, Cooking, cuisine, and class, pág. 155. 200 Ver quanto a isso, entre outros, Algranti, Alimentação, Saúde e Sociabilidade: A Arte de Conservar e Confeitar os Frutos (séculos XV-XVIII), em História Questões e Debates, v. 42 (2005) Curitiba, Dossiê: História da Alimentação. 201 Com as condições climáticas do Brasil, secar é um bom método de conservação, desta forma, peixe, alimentos básicos como milho ou também frutas foram desidratados. Sobretudo na conservação de carne, o secar teve grande importância para o Brasil. O processo é utilizado em diferentes regiões do Brasil. O produto chama no nordeste então, carne do sol, no sul do Brasil charque. O Charque era uma fonte alimentar importante para a economia escravocrata. A denominação charque ou xarque e o método são oriundos da região dos Andes, onde desde o tempo dos Incas a carne de lama seca ao sol se chama charqui. Este exemplo mostra, entretanto, também a influência no sul do Brasil da América espanhola. Ver sobre charqui: Tannahill, food in History, pág. 276. Ver também Rodrigues, Vocabulário Indígena com ortografia correta, pág. 52 em Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Vol. XVI 1889-1890, Rio de janeiro, 1894, Tomo II. 202 Só a variedade de possibilidades que o ser humano tinha pensado para a conservação de alimentos mostra a importância cultural da conservação dos alimentos. E certamente existem ainda outras formas. 203 Ver Montanari, Der Hunger und der Überfluss, Kulturgeschichte der Ernährung in Europa, pág. 195: “As técnicas de conservação, às quais no passado se atribuiu uma importância preferencial, representavam um método pobre de vencer as estações do ano. Ao contrário, o uso de alimentos frescos e facilmente perecíveis era um luxo reservado aos ricos.”. 204 Ver Hauer, Carl Friedrich von Rumohr e Der Geist der bürgerlichen Küche, pág. 135: “Este tema não podia faltar em nenhuma obra contemporânea que se ocupasse com a prática alimentar. Em um tempo em que a dependência da oferta sazonal ainda representava um problema nuclear do abastecimento, o conhecimento sobre as poucas possibilidades tradicionais de conservação dos alimentos era importante para a sobrevivência”. 205 Ver sobre a entrada da alimentação no tempo da industrialização através da invenção da conserva em lata de Nicolas Appert, 1809, Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 88. 206 Ver Montanari, Der Hunger und der Überfluss, Kulturgeschichte der Ernährung in Europa, pág. 189-190, e Pilcher, Nahrung und Ernährung in der Menschheitsgeschichte, pág. 86-91. Ver também Pedrocco, The food insdustry and new preservation techniques in Flandrin, Montanari (eds.), Foods a culinary history.

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A importância dos métodos de conservação ainda no Século XIX mostra-se também através da indicação e receitas nos livros de conselhos207 e livros de culinária, como, por exemplo, no Cozinheiro Nacional, no qual são colocadas 35 receitas sobre conservação como um capítulo próprio208. Também no primeiro livro de cozinha em língua portuguesa: Arte de Cozinha, escrito em 1680 pelo cozinheiro Domingos Rodrigues, fez-se remissões às receitas sobre conservação na contracapa209, bem como na coleção de receitas portuguesas da princesa Maria do século XVI210. Apesar de exatamente na difusão da cozinha e através da prática diária, a cozinha ser uma área de utilização prática e de tradição oral, os livros de culinária tinham um papel importante na alimentação do homem. Eles servem, por um lado, para transmissão de conhecimento sobre alimentos e técnicas de preparação, por outro lado eles divulgam o conceito cultural de uma determinada cozinha na forma de uma coleção de receitas211. O livro europeu de receita mais antigo conhecido é do século I e é denominado segundo o seu suposto autor Aspicius212. Livros de cozinha surgiram em várias línguas e países213 e foram também levados pelos imigrantes para a nova terra. Desta forma, vieram, com a transferência da biblioteca real portuguesa, livros europeus para o Brasil. Também existem no Real Gabinete de Literatura Portuguesa no Rio de janeiro tanto livros portugueses como livros franceses de culinária do século XIX. Um outro exemplo mostrou-se nas cartas do imigrante alemão Stutzer, que em uma carta a parentes na Alemanha escreveu: “Usando a 207

Ver, por exemplo, as indicações sobre a forma de servir batatas, pág. 19, em Thesouro Inesgotável ou Colleção De Vários Processos e Receitas Com Appilicao as Sciencias, Artes Industria, Agricultura E Economia Domestica, obra utilisima a todas as classes da sociedade. Publicada por Agostinho da Silva Vieira, Pharmaceutico de primeira Classe. Porto, 1860, e Hinweise zur Fleischkonservierung em : Armazém de Conhecimentos Úteis Nas Artes e Oficias; ou collecao de Tratados Receitas E Invenções de Utilidade Geral, Destinado A Promover A Agricultura E Industria de Portugal E Do Brasil, Por F. S Constancio, Paris, Na Livraria de Va. J. –P. Aillaud, Monlon E Ca. , 1855, pag. 268 Conservação da carne fresca: “Para conservar a carne fresca, ainda durante os grandes calores, pôr-se-há de môlho em leite coalhado, tapando bem o vaso. Não só se conserva fresca, mas torna-se mais tenra e saborosa.” E pág. 288-289 Conservação das substâncias alimentares. 208 Ver Cozinheiro Nacional, Capítulo XVII As Conservas. 209 Ver Arte de Cozinha, dividida em três partes, A primeira do modo de cozinhar vários guisados de todo gênero de carnes, conservas, tortas, empadas e pastéis. A segunda, de peixes, mariscos, frutas, ervas, ovos laticínios, doces conservas do mesmo gênero. A terceira, de preparar mesas, em todo o tempo do ano, para hospedar príncipes e embaixadores, por Domingos Rodrigues, Lisboa 1794. 210 Ver http://objdigital.bn.br/acervo_digital/livros_electronicos/cozinhaportugues.pdf (28.7.2008) Um tratado de cozinha portuguesa do século XV, Receitas de conservas. 211 Ver Gomes, Barbosa, Culinária de papel em Estudos Históricos, Rio de janeiro, n.33, Alimentação, 2004. 212 De fato, existem livros de culinária muito mais antigos, o indiano “Vasavarajeyam” surgiu em 3500 a.C.e o livro chinês “Li-Chi”contém receitas do período de 500 à 100 a.C. 213 Ver Hauer, Carl Friedirch von Rumohr und Der Geist der bürgerlichen Küche, pag. 60-61; http:///homepage.boku.ac.at/duerr/Literaturverzeichnis.PDF (10.10.2008) Dürrschimid, Literatursammlung, Geschichte des deutschsprachigen Kochbuchs; Artelt, Die Deutsche Kochbuchliteratur im 19. Jahrhundert. Ver também Strong, Banquete, uma história ilustrada da culinária, dos costumes e da fartura à mesa, pág. 72-79; Hyman, Printing the Kitchen, French Cookbooks 1480-1800, in Flandrin, Montanari (eds.), Food a culinarry history, Silva Paula Pinto e Papagaio Cozido com arroz: Livros de Cozinha e Receitas Culinárias no Rio de Janeiro do Século XIX, sobre o desenvolvimento da literatura culinária internacional pág. 63-80.

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‘Davidis’ eu posso assar as coisas mais maravilhosas”214. Davidis era o nome de um livro alemão de culinária popular no século XIX. No campo da língua portuguesa foram publicados até o século XX uma variedade de livros de culinária215. Um aspecto importante nisso foi a adoção de receitas216. Através de uma comparação de diferentes edições de um livro de culinária, podem ser constatadas transformações sociais e culturais. Por isso, os livros de culinária e coleções de receitas escritas manualmente tornaram-se uma importante fonte não apenas para a pesquisa histórica da alimentação, mas também recebem maior atenção nos últimos 20 anos nas ciências humanas217. 4. A Alimentação no Brasil 4.1 As regiões do Brasil O território brasileiro abrange regiões de vegetação e zonas climáticas bastante diferentes, existindo ainda uma grande divisão geográfica: a planície do norte, nordeste e Amazonas e o planalto do oeste e sudeste, que perfazem a região montanhosa do Brasil 218. Essas condições ambientais219, diferenciadas regionalmente, influenciam permanentemente a paisagem e a alimentação. Territorialmente, o Brasil se encontra dividido em cinco grandes regiões

214

Ver pág. 234 em Stutzer, In Deutschland und In Brasilien, Lebenserinnerungen von Gustav Stuzer. Ver Rêgo, Manuela (org.), Livros Portugueses De Cozinha e http://www.fundaj.gov.br/docs/text/bibcomida.html (5.3.2008) Gaspar, Vila Nova. O Sabor da Terra: uma bibliografia sobre a culinária brasileira; Carneiro, Meneses, A História da Alimentação: balizas historiográficas, em Anais do Museu Paulista, História e Cultura Material, Vol. 5, Jan./Dez, 1997, São Paulo. 216 Ver Couto, Arte de Cozinha: Alimentação e Dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX), pág. 122132. 217 Ver entre outros http://www.poshistoria.ufpr.br/fonteshist/Carlos%20Antunes.pdf (19.11.2008), Santos, Carlos Roberto Antunes dos, Os pecados e os prazeres da gula os cadernos de receitas como fontes históricas. Ver também Neumann, Teuteberg, Wierlacher, Kulturthema Essen Band 2, Essen und kulturelle Identität, pág. 18. 218 Ver Zepp, Pohl, America, p.291. 219 Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, p. 61-69 oferece uma boa visão panorâmica sobre ventos, tipos de clima, botânica, temperatura, e ainda um mapa sobre os 5 tipos de clima do Brasil, p. 67 e tipos de vegetação na p. 70. Ver também Ross (org.), A Geografia do Brasil, pp. 100-108. À p. 107, mapa sobre a situação atual da pesquisa, com visão panorâmica sobre os 6 tipos de clima. 215

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geográficas:

Norte,

Nordeste,

Centro-Oeste,

Sudeste

e

Sul220.

221

4.1.1 A Região Norte A região norte compõe-se dos atuais estados e territórios do Amazonas, Pará, Acre, Rondônia, Tocantins, Roraima e Amapá222. Belém e Manaus são as duas cidades mais importantes. Enquanto Belém, situada no baixo Amazonas era uma cidade bem viva já na época colonial, Manaus, a poucos 1.500 km acima, desenvolveu-se somente a partir de meados do século XIX, através do comércio do cacau e, principalmente, da borracha223. Desde épocas

220

A divisão do Brasil em regiões varia conforme o autor. Assim, em 1941, o Brasil foi dividido pelo Instituto de Geografia Brasileiro em seis regiões, com a região Centro-Norte contendo os estados do Maranhão e Piauí. Mas politicamente esses estados fazem parte hoje da região Nordeste. Ver, por exemplo, Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.24. A exata delimitação das regiões também é controversa nessa obra, porque a divisão política dos estados não se baseava nos fatos geográficos e por isso algumas zonas de vegetação, como, por exemplo, a Floresta Tropical da Amazônia, se situava também, de acordo com esta divisão, no Centro Oeste e no Nordeste. Além disso, há também abordagens que consideram toda a costa como uma só zona, devido à homogeneidade do clima e da vegetação, o que faz sentido quanto à alimentação. Em Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, o Brasil se encontra dividido em oito regiões quanto à culinária. Além das cinco regiões políticas, o Maranhão e a Bahia são apresentados como regiões independentes, e a costa também é tratada como uma região. Ao contrário desses autores, Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, manteve-se fiel às cinco regiões políticas e, como essa última divisão política é hoje a mais comum, ela será usada também neste trabalho. 221 Mapa dos regioes do Brasil atual 222 V. http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as diferentes regiões. 223 Ver quanto ao comércio da borracha e o desenvolvimento da região: Weinstein, Before the boom: the Amazon Rubber Trade under the Empire, in Szmrecsányi, Lapa, (org.), História Econômica da Independência e do Império.

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primordiais, a grande Belém dependia de provisões da região e no almanaque224 encontra-se registro, em 1883, de 32 casas de pasto e 10 hotéis. A Ilha de Marajó desempenhou então um papel importante, devido ao plantio de açaí e à criação de búfalos, iniciada pelos jesuítas nos primórdios da época colonial, para transportar carne por via fluvial à cidade de Belém, situada na parte mais baixa do rio225. E é este o motivo de o mercado principal de Belém, Ver-o-Peso, se situar às margens do Rio Pará. Como o Equador passa pela parte norte, o clima tropical é dominante226, quase constantemente úmido e quente, com muitas chuvas na época das águas, levando a inundações de grandes superfícies227, enquanto na época da seca formam-se bancos de areia nos rios. Por isto, esta fase é chamada de tempo das praias, e a pouca quantidade de água leva à pesca, à caça de tartarugas e à coleta de seus ovos228. A pesca intensiva na época da seca é feita em parte coletivamente, através de diferentes métodos como a rede, nassas e venenos extraídos de plantas. Posteriormente, os peixes são assados sobre o moqueado, método indígena de conservação de alimentos, armazenados ou vendidos229. O norte do Brasil é marcado pela presença de numerosos rios, sendo o Amazonas a confluência de muitos deles230. No século XX, a vegetação do norte do Brasil diminuiu consideravelmente, como se sabe, mas no século XIX, dizia-se que a região possuía uma espessa vegetação e este é o motivo apresentado, para que o único acesso a esta região só pudesse ser feito através dos rios. A alta biodiversidade ali reconhecida diz respeito à flora e fauna, e teve efeito positivo sobre a alimentação231. Essas condições ambientais naturais influenciaram a alimentação da região e, além do peixe232 , os tipos de tartarugas da região 224

Ver Almanak Paraense de Administracao, Commercio, Industria e Estatistica Para o Anno de 1883, organizado por Belmiro Paes de Azevedo e Marcellino A. Lima Baratta, Para, 1883, p.343 quanto à Casa de Pasto e p.357 sobre Hotéis. 225 Ver Campos, Clecia, (eds.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 anos de Agricultura no Brasil, p.65 e Meida, Ordem do dia, a questão das carnes verdes ou apontamentos sobre a creacao do gado na Ilha do Marajó, Pará, 1856. Ver também os anúncios de jornal, que anunciavam a chegada de navios de Marajó com carne para Belém, in O Liberal do Para, Belém, 25.2.1874, S.2. 226 Ver Ross (org.), Geografia do Brasil, p.100-102 quanto às condições climáticas junto ao Equador no norte do Brasil. 227 Ver Antunes, Brasil, Problemas e Perspectivas, p. 156. Ver também Ross (org.) Geografia do Brasil, p.102. 228 Ver Ave-Lallemant, Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859, p.84. 229 Sobre os métodos de pesca, ver: Canstatt, Brasil: Terra e Gente (1871), p.88. Ver também sobre peixe seco como o produto comercial mais importante: Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, p.203. 230 Ver Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, p.51-52. Os afluentes mais importantes do Amazonas são os rios Madeira, Negro, Juruá, Purus, Tapajós e Xingu. 231 Ver sobre a apresentação do Amazonas, do ecosistema da floresta tropical e da biodiversidade: Ross (org), A Geografia do Brasil, p.159-168. 232 Ver Pereira, Panorama da Alimentação Indígena, Comidas, Bebidas & Tóxicos na Amazônia Brasileira, p.259. Nas páginas 227-259 há uma exuberante descrição dos peixes da região. Ver ainda Veríssimo, A Pesca na

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contam também como importante alimento retirado dos rios233. Citando o estudo “A Pesca na Amazonia”, de 1895: „A tartaruga é verdadeiramente o gado da Amazônia, como lhe chamam lá muitas vezes. Ela e o pirarucu sao, já disse, os principaes elementos da alimentenção de suas populações. “234. O peixe mais apreciado é o Pirarucu, de vários metros de comprimento e que pode chegar a pesar até 250 kg. Possui uma língua áspera, que é usada para raspar as raízes da mandioca e sementes de guaraná. Sua carne é salgada para se manter conservada235. Na época da seca, as tartarugas põem seus ovos nos bancos de areia e esses ovos são também muito apreciados como alimento, de onde também se retira gordura para uso culinário e para a iluminação. Os ovos de tartaruga eram preparados como ovos mexidos. Para a produção do óleo, os ovos eram quebrados em uma tigela e deixados ao sol e, em consequência do calor, a gordura ficava depositada na superfície, sendo então vendida como manteiga de ovos da tartaruga236. Na época dos bancos de areia, ou seca, é mais fácil capturar as tartarugas, que eram então mantidas em tanques apropriados, sendo alimentadas para servirem de provisão alimentar; às vezes, eram também levadas nas viagens como parte da matula. O casal Agassiz descreveu o processo da seguinte maneira: „No jardim de todas as casas se encontra um desses tanques, e sempre bem provido, pois a carne de tartaruga constitui a base essencial da alimentação dos habitantes; a alimentação pública depende desse animal. “237.

Amazônia, um livro de 1895, que destaca especialmente o significado da ictiologia amazônica e da abundância de espécies. V. ainda Furtado, Repertório Documental para a Memória da Pesca Amazônica. 233 No século XIX, a captura e consumo de tartarugas, hoje proibidos, eram ainda muito populares. Ver Orico, Cozinha Amazônica, p.59, 76, 95-99, sobre o significado essencial das tartarugas, quanto ao abate e preparo, para a cozinha do norte nos dias de festa. Vários relatórios de viagem descrevem a relevância das tartarugas. Por exemplo, Adalberto, Príncipe da Prússia, Brasil: Amazonas Xingu, p.164; Kidder, Fletcher, O Brasil e os Brasileiros, p.309-311. Sobre os ovos das tartarugas, ver: Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, p.203. Ver ainda Ave-Lallemant, Robert, Viagem pelo Norte do Brasil no Ano de 1859, p.84 e p.183. 234 Veríssimo, A Pesca na Amazônia, S.79. 235 Sobre o Pirarucu, ver especialmente: Orico, Cozinha Amazônica, p.111-116. Ver também Monteiro, Comidas e Bebidas Regionais, p.7-8. Nos relatórios de viagem do século XIX, faz-se também frequentemente referência ao pirarucu. Avè-Lallemant, Robert, Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859, p.54, descreve o processo de salgar e secar o peixe, também à página 143. Ver ainda Adalberto, Príncipe da Prússia, Brasil: Amazonas Xingu, p.145 ou Canstatt, Brasil: Terra e Gente, p.88. 236 Ver Orico, Cozinha Amazônica, p.186. Ver ainda p. 82 a respeito da observação prospectiva/visionária sobre o consumo intensivo da tartaruga e principalmente de ovos de tartaruga quanto à ameaça eminente de extinção: “Como, porém, a aparentemente inesgotável exploração tem que ter um fim, ultimamente se tem manifestado o receio, entre os brasileiros, de que a continuação sem controle do roubo dos ovos possa levar à extinção desta espécie.“. 237 Ver Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, p.215.

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Peixes-bois, botos e crocodilos também eram apanhados para o consumo238, sendo que os primeiros eram um alimento muito apreciado, pois como passavam por peixe, podiam ser consumidos também durante épocas de jejum. Possuem muito tecido gorduroso, do qual é retirado óleo e da sua carne pode-se fazer linguiça ou até uma conserva de nome mixira239. No entorno do rio havia também aves e caça como alimentos, por exemplo, o grande roedor capivara, que vive ao longo dos rios e que é uma primorosa fonte nutritiva240, sendo muito divulgada e apreciada em todo o Brasil. Entre as aves, o pato é a mais relevante, pois é à base do prato pato ao tucupi241, muito apreciado na região norte. Outro prato regional é o Turu, um tipo de verme, nativo do extinto mangue, servindo até hoje de fonte de proteína para os pescadores242. Na floresta tropical da Amazônia há um grande número de plantas comestíveis. Entre elas, deve-se ressaltar as nozes, como a castanha do Pará, que era denominada “carne vegetal” 243. Há também um grande número de frutas, sendo as mais conhecidas o cacau 244, o abacaxi, bacuri245, caju, fruta do conde, cupuaçu, mucuri e açaí246. O açaí, nome usado para designar tanto a fruta quanto uma refeição, já era muito apreciado no século XIX e continua sendo até hoje. É típica do Estado do Pará, a foz do Amazonas. É 238

Os crocodilos jovens eram os mais apreciados, e eram consumidos grelhados ou cozidos. Ver Orico, Cozinha Amazônica, p.99 ou Pereira, Panorama da Alimentação Indígena, Comidas, Bebidas & Tóxicos na Amazônia Brasileira, p.268-269. O acompanhante de viagem do Príncipe Adalberto da Prússia, o Conde Bismark, experimentou carne de crocodilo, ver Adalberto, Príncipe da Prússia, Brasil: Amazonas Xingu, p.198. A gordura do crocodilo também era empregada na iluminação, ver Canstatt, Brasil: Terra e Gente, p.84. 239 O peixe-boi, também denominado manati, é um mamífero e se encontra hoje extremamente ameaçado de extinção, porque era um alimento muito apreciado. Era pescado principalmente na época da seca. Ver Orico, Cozinha Amazônica, p.119-124; na bibliografia contemporânea, ver Kidder, Fletcher, O Brasil e os Brasileiros, p.307-308: “O peixe-boi é excelente para alimentação; pode logo ser levado a mesa,....”. 240 Wilhelm Piso descreveu como se grelhava a carne da capivara para servir de alimentação aos soldados da WIC, ver Piso, História Natural e Médica da Índia Ocidental, p.232. Ver ainda Lima, Mamíferos da Amazônia. 241 Ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.49. Ver ainda Filho, Giovanni, Cozinha Brasileira, com Recheio de História, p. 27-29. 242 Ver Nosso Pará, N°7, Dezembro 2000, Belém, Sabores e Selvagens. P.66-69. 243 Quanto às castanhas, ver também Cavalcante, Frutas Comestíveis da Amazônia. A mais conhecida delas é a castanha do Pará, nome que remete à sua região de origem, conhecida em Inglês como Brazilnut. É muito energética e contém grande parte de gordura. Sobre a denominação carne vegetal ver Pereira, Panorama da Alimentação Indígena, Comidas, Bebidas & Tóxicos na Amazônia Brasileira, p.139, ver também Orico, Cozinha Amazônica, p.138. Uma árvore produz até 500 kg de castanhas por ano. Produzia-se também óleo e leite da castanha do Pará. Ver Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da antropologia da alimentação, p. 103. 244 O cacau tornou-se o principal produto de exportação da região da Amazônia, tendo sido suplantado pela borracha somente no segundo trimestre do século XIX. Sobre o cultivo do cacau no Brasil, ver Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.115-117. As sementes do cacau também eram consumidas pelos indígenas. Ver von Humboldt, Südamerikanische Reise, p.384. 245 O Barão do Rio Branco estipulou o bacuri como sobremesa durante o jantar do Ministério do Exterior no Itamaraty. Dessas frutas podem ser feitos sucos, cremes, pudins ou sorvetes. 246 Ver apresentação abrangente em Cavalcante, Frutas Comestíveis da Amazônia, ver ainda Orico, Cozinha Amazônica, p.135-141.

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assim que o casal Agassiz descreve detalhadamente o consumo de açaí e sua aceitação, tão abrangente que ultrapassa diferenças de classes no baixo Amazonas. Há também uma expressão conhecida no Pará, que o casal reproduz: “Quem vai ao Para, parou…, Bebeu açaí, ficou.”

247

. O viajante R. Avè-Lallemant também descreve o consumo desta especialidade

regional: “Esse molho cor de vinho é na margem do Rio Pará exatamente o mesmo que o mate no Rio Grande do Sul e nas republicas espanholas,…. Mais ainda do que isso é, em suma, o principal alimento do povo. Assim se obtém o açaí. Misturam-no com farinha de mandioca torrada e adoçam-no um pouco açúcar; um caldo meio ralo, que na primeira prova, achei logo muito saboroso, perfeitamente comparável com o das nossas cerejas pretas. Pela manha, à tarde, à noite, e quando possível, também à meia-noite, o povo do Pará serve-se açaí.” 248. A polpa da fruta da palmeira do açaí, rica em energia, é consumida depois de se fazer dela um purê, servido com farinha de mandioca ou também como acompanhamento de carne ou peixe, e é alimento básico na região norte. Esta planta tem ainda muitos outros usos, por exemplo, na medicina: uma solução ou mingau feito das raízes pode ser usado no combate a vermes e o suco do seu palmito, que também é consumido como alimento, é usado para estancar o sangue de cortes249. Sementes também eram usadas na alimentação, sendo a mais conhecida o guaraná 250, uma semente de um tipo de cipó e que contém cafeína. Ela era ralada na língua do peixe pirarucu, misturada com água e mel, transformando-se assim em uma bebida energética que satisfazia. E até hoje o guaraná é um refrigerante muito apreciado no Brasil. Primeiramente, ele é transformado em uma pasta, podendo ser usado para outros fins. Há relatórios sobre biscoitos de guaraná.

247

ver Agassiz, Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, p.154. Ver Avè-Lallemant, Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859, p.32-33. 249 Sobre o uso na Medicina, ver Shanley, Medina, (eds.), Frutíferas e Plantas Úteis na Vida Amazônica, p.165. Sobre a importância atual e valor nutritivo ver o estudo de Rogez, Açaí: Preparo Composição e Melhoramento da Conservação. 250 Ver Bosisio, A Cozinha Amazônica, p.25-26. Uma referência contemporânea do guaraná com descrição do seu preparo encontra-se em Canstatt, Brasil: Terra e Gente (1871), p.129, ver ainda Agassiz, Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, p.295. O consumo do guaraná começou a ser divulgado também na Europa, como se depreende do relatório de Sampaio, Diário da Viagem, que em visita, e correição das povoações da capitania de S. Joze do Rio Negro fez o Ouvidor, E Intendente Geral da Mesma, no Anno de 1774-1775, publicado em Lisboa, em 1825, p.5-6. 248

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Na floresta, caçavam-se vários animais que enriqueciam a cozinha regional. Paralelamente a várias espécies de macacos251, alimentavam-se também de antas, pacas e tatus252, jabutis, veados e jaguares253. Da floresta extraía-se também mel254 e formiga, para enriquecimento da alimentação255. No Brasil, assim como em outras regiões, há muitas formigas usadas como alimento protéico. É costume apanhar as tanajuras que, depois de torradas, são consumidas também com farinha de mandioca. Von Humboldt descreveu o consumo de formigas com farinha de mandioca, durante sua breve estada na floresta tropical brasileira256. No âmbito da agricultura, o cultivo da mandioca ganhou importância, principalmente nas hortas indígenas, tornando-se alimento básico bastante apreciado em todo o território brasileiro; transformada em farinha, já servia de alimento básico substituto do pão desde a época da conquista, sendo de grande importância para as regiões do norte do Brasil257. O cultivo da horta indígena baseia-se nas queimadas, que tornam uma determinada superfície adubável e cultivável. Depois que esta pequena área estivesse lixiviada, outra área era acrescentada a ela, onde se plantavam principalmente bananeiras e tubérculos, que não exigiam um trabalho258 muito intenso. Há 5000 anos, a mandioca é cultivada dessa maneira e

251

Macacos serviam de alimentação em diferentes regiões do Brasil, sendo uma caça comum no Norte. Ver Canstatt, Brasil: Terra e Gente, p.73: „Vi muitas vezes meus homens matarem macacos e assarem-nos no espeto. … “esse assado era muito saboroso.”. O Príncipe Adalbert e seu grupo de viagem se alimentavam de carne de macaco grelhada, ver Adalberto, Príncipe da Prússia, Brasil: Amazonas Xingu, p.183 e S.220. 252 O Tatu é apreciado na alimentação há muito tempo. Sobre seu consumo já no século XVII, ver Piso, História Natural e Médica da Índia Ocidental, p.234-235: “Finalmente, sua carne, excetuada a do Tatu-peba, não somente boa para comer, mas por ser tenra e branca, é servida como delicia em casa dos ricos, assada, cozida e preparada à maneira de pastel, sendo preferida a dos coelhos e leitões.”. 253 Ver Pereira, Panorama da Alimentação Indígena, Comidas, Bebidas & Tóxicos na Amazônia Brasileira, p.162-209. 254 Sobre extração do mel e apicultura ver Pereira, Panorama da Alimentação Indígena, Comidas, Bebidas & Tóxicos na Amazônia Brasileira, p.281-287, e ainda Holanda, Caminhos e Fronteiras, p.50-53. 255 Ver Von Humboldt, Südamerikanische Reise, p. 365-366. Ver também Pereira, Panorama da Alimentação Indígena, Comidas, Bebidas & Tóxicos na Amazônia Brasileira, p.277-279, ou Amorim, Alimentação Brasileira: “Alguns Aspectos Culturais”, p.9, onde se faz referência a um emprego medicinal. Avè-Lallemant, em Viagem pelo Norte do Brasil no ano de 1859, p.107 refere-se também a formigas como alimentação. Ver também, quanto à criação de formigas pelos indígenas, o relatório do Graf Langsdorff na subregião de Minas Gerais mais adiante. 256 Ver von Humboldt, Südamerikanische Reise, S.365-366. 257 Ver também Kiple, Ornelas (eds.), The Cambridge World History of Food Vol. I. & II, p.181-187. Ver ainda Zeron (org.), Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira, Vol.1, Alimentação, p.131-135. Ver também Albuquerque, a mandioca na Amazônia. 258 Ver Aguiar, Mandioca - Pão do Brasil, p.64-65, sobre a quantidade de trabalho envolvido nas plantações de mandioca. Na literatura contemporânea sobre o abastecimento de alimentos das plantações, recomenda-se também o cultivo simples e produtivo da mandioca. Esse fato contradiz as afirmações e conclusões de Ewald, Der Mensch und seine Umwelt, in Handbuch der Geschichte Lateinamerikas 1, p.131, segundo as quais, os donos de escravos teriam plantado o arroz, devido ao grande volume de trabalho envolvendo a plantação da mandioca. Ver ainda Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.13-14, que afirma ser possível, sem muito trabalho, obter 7 toneladas de 1 hectar de plantção de mandioca no espaço de um ano. Ver também Campos, Clecia, (eds.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil, p.51-54. e ainda

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a própria mandioca é uma planta útil há 100000 anos; daí terem se desenvolvido 80 espécies de mandiocas, distribuídas por todo o Brasil. Enquanto as espécies domesticadas têm um sabor mais para doce e são brancas, as venenosas ou bravas são amareladas e têm um sabor mais amargo, porque contêm ácido cianídrico. Devido ao pouco trabalho exigido e aos grandes resultados obtidos, mas também à sua resistência, a mandioca tornou-se o alimento básico preferido no Brasil. A grande vantagem da mandioca, cujos galhos podem ser usados facilmente como mudas e ser diretamente plantados, é não depender de uma determinada época para colheita. Após 10 meses, o tubérculo já está pronto para ser colhido, mas pode ser também deixado debaixo da terra durante meses, continuando a crescer. A mandioca também é muito resistente a situações climáticas extremas, como a seca. As etnias indígenas trabalham em um ritmo de três tempos ao ano: enquanto um campo de cultivo é mantido no estágio de plantio, outro é mantido em estágio de crescimento e um terceiro, para a colheita. Na região do Amazonas, a mandioca é incontestavelmente o alimento básico, seguido pelo peixe e, logo após, pela caça e isto já era um fato muito antes da conquista dos portugueses, o que explica, na mitologia indígena, os diferentes mitos sobre a origem e o emprego da mandioca259. Conseguiu-se transformar a mandioca, que em princípio é uma planta venenosa, em uma mandioca mansa, chamada aipim260 , que pode ser consumida cozida ou grelhada com a casca261. A mandioca brava só é empregada na fabricação de farinha. Mesmo assim, tem que ser apurada, porque o sumo é venenoso. Com esse objetivo, a mandioca é ralada e a massa ralada é então colocada em um coador comprido, o tipiti, para escorrer o sumo. No norte do Brasil, esse sumo venenoso é fervido e fermentado, é o

uma pequena visão panorâmica sobre referências à mandioca na história brasileira, in Zeron, (org.), Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira, Vol.1, Alimentação, p.197-198. 259 Ver Monteiro, Alimentos preparados à base da mandioca, p.11-18. Desde o descobrimento/a conquista do Brasil, vários europeus relatam sobre esta planta desconhecida, por exemplo, Staden, Brasilien: die wahrhaftige Historie der wilden, nackten, grimmigen Menschenfresserleute, p.226-227, ou De Lery, Unter Menschenfresser am Amazonas, Brasilianisches Tagebuch 1556-1558, p.186-198. Wilhelm Piso dedicou nove páginas a esta raiz [da mandioca], enumerando os diferentes tipos e indicando sua utilização em outras regiões da América do Sul sob o nome Yuca e Cassava, descrevendo ainda a produção da farinha de mandioca para a extração da fécula, com a qual produziam os beijus. Ver também Piso, Guilherme, Historia Natural e Medica da Índia Ocidental, p. 261-270. De acordo com Cascudo, Historia da Alimentação no Brasil, p. 94, há 100 tipos de mandioca, encontrando-se 80 deles no Brasil. 260 Interessante é que existem, no mínimo, três denominações diversas para a mandioca mansa nas diferentes grandes regiões do Brasil, à disposição nos supermercados, sendo as denominações independentes do tipo de mandioca. Em Minas Gerais, ela se chama mandioca, no Rio de Janeiro e São Paulo aipim e no Nordeste macaxeira. Contudo, esses nomes são de origem indígena e Lery relata sobre os dois tipos básicos, aypi e maniot. Ver Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.18-21. 261 Ver Lima, Tachos e Panelas, Historiografia da Alimentação Brasileira, p.69.

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tucupi262, usado como caldo básico na cozinha. Da mandioca ralada são produzidos, através de diferentes processos, farinhas diferentes, sendo a mais comum e mais usada a farinha de mandioca, carima e tapioca. Produzir diferentes farinhas de alimentos básicos como milho e aqui, a mandioca, é um fenômeno brasileiro. No Pará, usa-se ainda uma farinha de peixe, de nome piracui. No caso da mandioca, há no mínimo sete tipos e a diferença é o resultado das diferentes etapas do trabalho, que se baseiam no tipo de mandioca. Há, ainda, além dos exemplos já citados, um tipo de amido feito ou da mandioca brava ou da mandioca mansa, polvilho azedo ou doce; ou ainda uma farinha de mandioca, a farinha d’água, que fica de molho até fermentar, sendo então transformada em farinha e posteriormente torrada. Mas é principalmente a secagem que determina a qualidade da farinha de mandioca; mas como a farinha era vendida pelo peso, frequentemente não passava pelo processo de secagem263. Bebidas parcialmente fermentadas podem ser também fabricadas da mandioca, cauim, por exemplo, é uma conhecida cerveja indígena feita à base de cuspe, mas que, em outras regiões e sob o mesmo nome, pode ser fabricada com o milho264. A mandioca é empregada na Região Norte de muitas maneiras. Típico da região é o emprego do tucupi como sopa para ser consumida à noite, o tacacá265. O viajante R. Avè-Lallemant descreveu este fato como se segue: „Uma das mulheres preparou-nos a bebida nacional dos muras, chamada tacacá, que não ousamos recusar. … Preparam-na com o amido da mandioca macerada, e até com o suco da raiz mesmo, aliás muito venenoso. Na língua da terra chamam a esse suco tucupi. Cozido dum modo especial perde, porém, a qualidade venenosa e da à bebida glutinosa um pronunciado sabor acidulado, que torna mais picante, adicionando-lhe pimenta. “266.

262

Sobre a produção, ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.14 und p.50. Nos Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro Vol XVI 1889-1890, Rio de Janeiro 1894, faz-se referência à palavra tucupy, no Tomo II, Vocabulário Indígena com orthographia correta por J. Barbosa Rodrigues, p.57. Ver ainda Agassiz, Viagem ao Brasil 1865-1866, p.185 e também Chaves, Freixa, Larousse da cozinha brasileira, p.34-35. Ver RIGHB, n.104 1928, Stradelli, Ermano, Vocabulários da lingua geral português-nheengatu e nheengatuportugues. Tucupi só se emprega no norte do Brasil. 263 Ver listagem das diferentes farinhas de mandioca em Monteiro, Alimentos Preparados à Base da Mandioca, p.30-31 e ainda Aguiar, Mandioca - Pão do Brasil, p.70. 264 Há um sem-número de bebidas preparadas à base de mandioca. Ver listagem de bebidas de mandioca em Aguiar, Mandioca - Pão do Brasil. p.166-168. 265 Ver receitas em Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.61. Uso de Takaká também em Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro Vol XVI 1889-1890, Rio de Janeiro 1894, Tomo II Vocabulário Indígena com orthographia correta por J. Barbosa Rodrigues, p.56. 266 Ver também Avè-Lallemant, Viagem pelo Norte do Brasil no A no de 1859, p.212.

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O emprego da farinha tem no norte formas típicas, como a paçoca267, misturada com nozes, e usada na cozinha indígena para a fabricação de pão árabe a partir da farinha de mandioca, o beiju268. As folhas da mandioca brava são cozidas durante dias; um trabalho que gasta muito tempo, e torna-se então uma refeição, denominada maniçoba269. 4.1.2 A Região Nordeste O Nordeste do Brasil abrange hoje os atuais estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia270. Devido à situação geográfica entre o Equador e o trópico do sul, a região tem um clima quente, sendo tropical e úmido na costa, mas tornando-se cada vez mais seco, à medida que se avança para o interior. Essa região pode ser dividida em quatro subregiões, diferenciadas pelo clima e pela vegetação próprios: meia Norte, zona da mata, agreste e sertão271, que apresentam também tipicidades quanto à alimentação272. As cidades costeiras de Recife e Salvador da Bahia desempenham um papel especial, pois como metrópoles contemporâneas, viviam do comércio marítimo e precisavam ser abastecidas pelas cidades do seu entorno. Durante o Império, ambas estavam entre as mais importantes grandes cidades: Eram os maiores portos da Região Nordeste e, portanto, os centros econômicos, políticos e sociais dessa região do Brasil. Ali também se percebia uma influência internacional maior, através da importação de produtos e da estadia de vários viajantes e comerciantes. Dependiam do abastecimento das cidades do interior, que encontrou nas cidades um bom mercado para a venda da produção de gêneros alimentícios. Em Recife, o caráter de grande cidade era visível, por exemplo, no grande número de tabernas, padarias, 267

Ver Monteiro, Alimentos Preparados à Base da Mandioca, p.36; Aguiar, Mandioca - Pão do Brasil, p.140141. 268 Ver Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro Vol XVI 1889-1890, Rio de Janeiro 1894, Tomo II Vocabulário Indígena com orthographia correta por J. Barbosa Rodrigues, na p.52 há diferentes tipos de beijus listados com nome indígena. Ver também Monteiro, Alimentos Preparados à Base da Mandioca, p.26-27. 269 Ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.52-53. Ver ainda Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.28. 270 Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf, Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. 271 Ver Wagley, An Introduction to Brazil, p.145 e Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.65. Conforme já mencionado neste trabalho, embora o Maranhão e o Piauí pertençam politicamente ao Nordeste, eles são diferentes e devem ser compreendidos como zona de passagem do Nordeste para o Norte, reunindo características das duas grandes regiões, da Floresta Tropical e do Sertão. Ver também a título de introdução http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf, Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. A região do Sertão ultrapassa as fronteiras do Nordeste e abrange ainda o Norte de Minas Gerais e o Leste de Goiás. 272 O trabalho do sociólogo e folclorista Maior, Comes e Bebes do Nordeste, apresenta uma boa visão panorâmica: ele empreende uma tentativa de explicar todas as comidas e bebidas da região.

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confeitarias, hotéis e casas de pasto, catalogados nos almanaques. Em 1881 havia algumas centenas de bares e 33 hotéis e casas de pasto, como eram chamados os restaurantes naquela época. Havia também diferentes fábricas, tocadas parcialmente por estrangeiros, fábricas de cerveja, sendo duas de alemães, e duas fábricas de gelo, estreitamente ligadas à produção de refrigerantes e que documentam o desenvolvimento progressivo do Recife naquele período273.

- A região Centro Norte abrange os estados do Maranhão e Piauí. No Oeste, a região era marcada pelos prolongamentos da Floresta Amazônica, que se tornavam uma estepe de palmeiras e então, no Piauí, uma região seca do interior do Nordeste, o Sertão. O clima é quente e úmido. A costa é frutífera e o centro do Maranhão, ao redor da capital, São Luis, é marcado por um delta fluvial, cujas águas de aluvião aumentam na época das chuvas 274, o que levou, principalmente na costa, ao fomento da agricultura, de modo especial do algodão e do arroz. As condições geográficas favoreciam, paralelamente à pesca, também o cultivo do arroz, que foi realizado aqui mais intensamente do que em outras partes de todo o Brasil, até o século XX. Do Maranhão exportava-se arroz para Portugal, e as primeiras anotações do cultivo intenso de arroz no Maranhão remontam a meados do século XVIII. Por meio da iniciativa do Marquês de Pombal, um tipo de arroz muito produtivo da Carolina do Sul, na América do Norte, foi importado pelo Maranhão275. Hoje em dia, o arroz é o alimento básico mais importante no Brasil. Havia também uma espécie endêmica de arroz, denominada abatiape pelos índios Tupis, o que em sua língua significa “milho das águas” e que, cientificamente, é uma espécie autônoma de arroz, o oryza subulata. Com a chegada e assentamento dos Portugueses, que traziam consigo o arroz Oryza sativa, mais produtivo, passando por Cabo Verde até a Bahia, Maranhão/Grão-Pará e Rio de Janeiro, teve início um consumo maior e mais abrangente desse produto, mas que ainda se limitava às

273

Ver: Almanak Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola da Província de Pernambuco para o Anno de 1881, Recife, 1881, listagem das tabernas p.172-179, hotéis e casas de pasto p.194 e p.200-201. Sobre o desenvolvimento da vida urbana em Recife, ver ainda Carvalho, Interiores Residenciais Recifenses: A Cultura Francesa na Casa Burguesa do Recife no Século XIX. A respeito de Salvador, abrangendo o Recôncavo como uma região de grande densidade demográfica no século XIX, ver Barickman, Um Contraponto Baiano, Açúcar, Fumo, Mandioca e Escravidão no Recôncavo, 1780-1860 e também Mattoso, Bahia: A Cidade do Salvador e seu Mercado no Século XIX. 274 O Maranhão é relativamente plano e daí procede a existência de uma grande maré cheia, que pode chegar até a 8m. A capital São Luis fica em uma ilha próxima à costa, no coração do delta formado por três rios principais, Pindare, Mearim e Itapicuru. Ver também Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.66-67. Sobre as regiões do Maranhão, ver ainda Lima, Pecados da Gula, Comeres e Beberes das Gentes do Maranhão, p.17. 275 Ver: Lima Historia do Maranhão, A Colônia, p.593-596, sobre o desenvolvimento do cultivo e exportação do arroz ver: Lima, Historia do Maranhão A Monarquia, p.413-421.

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regiões de cultivo e importação na área costeira, durante os primórdios e meados da época colonial; por outro lado, no interior, dependendo da produção, esse produto continuou muito caro até o século XIX, apesar de ser muito apreciado em todos os lugares em dias de festa. Aí reside a origem de se servir arroz com frango como refeição festiva ou como remédio para doentes. Ao final do século XIX, o cultivo do arroz já era mais difundido no Brasil. Contudo, um aspecto importante da história do arroz na América está ligado à população escrava, oriunda do oeste africano. Na costa oeste da África, a principal região de origem dos escravos da América, que os portugueses conquistaram e usaram durante muito tempo, havia uma cultura do cultivo do arroz já bem marcada. Ali era cultivada uma espécie vermelha de arroz por meio de um sistema criativo de irrigação junto ao delta do rio, e tinha um emprego importante como alimento básico. E foi assim que etnias africanas especializadas no cultivo do arroz caíram na escravidão nas principais regiões de cultivo do arroz da América e lá tornaram o seu cultivo efetivo, através dos seus conhecimentos. Eles cunharam a técnica do cozimento do arroz e seu uso nas regiões, de modo que, por exemplo, o sul dos atuais Estados Unidos apresenta uma típica culinária do arroz276. Devido à economia embasada em plantações, muitos escravos africanos vieram para a região. O cultivo do algodão levou, principalmente no século XVIII, a um aumento da população escrava. Em 1822, 59% da população do Maranhão eram negros

277

, o que influenciou a

alimentação da região278, tanto que o arroz de cuxa 279 é a refeição típica da região. Também o

276

Em 1772 foram exportadas 30.217 Arrobas arroz para Portugal, e em 1800, 294950 arrobas. Ver: Becker, Meding, Potthast-Jutkeit, Schüller,(Hg.); Iberische Welten, Sonderdruck; Pohl, Die Landwirtschaft Brasiliens in der Kolonialzeit, p.333. Nesse contexto, ver também Campos, Clecia, (eds.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil, p.54. Quanto a esse assunto, ver também Carney, Black Rice, The African Origins of Rice Cultivation in the Americas, com numerosas referências sobre o cultivo do arroz no Brasil. Sobre a culinária do arroz no sul dos Estados Únicos, ver Hess, The Carolina Rice Kitchen: The African Connection. Ver ainda Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.111-112; Kiple, Ornelas(eds.), The Cambridge World History of Food Vol. I. & II, p.132-148. Houve também decretos governamentais proibindo o cultivo do arroz vermelho. Ver: Santos, Cultura, Industria e Comercio de Arroz no Brasil Colonial, in RIHGB n. 318 jan./mar. 1978. Há também relatórios de viagens sobre o arroz vermelho a partir do Maranhão e a sua importação do norte, ver por exemplo Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p. 183 e 196. 277 Ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.75. Assim, formou-se também uma religião afrobrasileira na região, Tambor de Mina. Ver Ferretti, Festa de Acossi e Arramba, Elementos do Simbolismo da Comida no Tambor de Mina, in Horizontes Antropológicos, Comida, Ano 2, Numero 4, Janeiro/Junho, 1996, Porto Alegre. 278 Ver Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, que dedicaram um capítulo só para a cozinha do Maranhão. Sumário sobre Produtos e Pratos Típicos, às p.37-47. Ver também Lima, Pecados da Gula, Comeres e Beberes das Gentes do Maranhão, p.6-7, com referência à influência africana da azeite de dendê , leite de coco, galinha de angola. Faz-se referência também ao significado religioso das comidas, por exemplo, do caruru, comida difundida em todo o Brasil. Ver p. 10. 279 Ver Houaiss, Draeger, Magia da Cozinha Brasileira, para Deuses e Mortais, p.76, e também Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.48-49. Sobre cuxa e como obra básica sobre a cozinha do Maranhão ver:

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açaí, denominado juacara, nesse local, desempenha um papel importante na alimentação, além do peixe e do arroz. Ao final do Império, cristãos discriminados no Reino Osmânico também vieram para o Maranhão, depois da visita de Dom Pedro II., por ocasião de sua viagem à Europa e eles também trouxeram consigo sua cultura culinária. No interior do Maranhão, havia, além disso, a civilização do babaçu. Na região da passagem da Floresta Tropical para o sertão, há grandes florestas de babaçu. Os frutos eram utilizados na produção de óleo e o palmito, denominado pindoba280, era empregado na alimentação. O interior do Piauí se prolonga pelo Sertão de modo crescente, onde impera a economia da subsistência em combinação com a criação de gado281. Na época da colônia e até o Império, o Piauí era famoso por sua criação de gado e os rebanhos eram levados até Belém, Salvador da Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. -A subregião da Zona da Mata abrange uma faixa costeira de mais ou menos 100 km de largura e, devido à influência do Atlântico, é bem provida de chuvas/precipitações atmosféricas282, possuindo um clima permanentemente quente e solo frutífero283. Essa região se estende do Ceará até ao sul da Bahia e a faixa costeira era densamente coberta pela Mata Atlântica284 e junto às fozes dos rios e nas baixas corredeiras havia uma profusão de mangues. Essas condições favoráveis, quanto ao clima e à vegetação, levaram ao primeiro foco de assentamento dos portugueses nas capitanias de Pernambuco e Bahia. E ali se iniciou, a partir de 1550, o cultivo da cana-de-açúcar, importada da Europa, passando pelas ilhas do Atlântico. A partir daí, desenvolveu-se nos séculos XVI e XVII a região mais produtiva de açúcar do

Lima, Pecados da Gula, Comeres e Beberes. Ver ainda Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.59. 280 Ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, sobre a Civilização do Babaçu p.72-79. Consultar também http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf, Brasil: Informações Gerais sobre as diferentes regiões, a vegetação de palmeiras é chamada também de mata dos cocais. 281 A economia e o modo de viver estão adaptados ao clima semiárido e, no contexto da subregião do Sertão, apresenta-se uma análise mais detalhada. Ver Campos, Clecia, (eds.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil, p.65. Ver também Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.74. 282 Assim discorre Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, de 2000 mm de chuvas por ano na costa do Nordeste. Ver p.147. A época das maiores chuvas é no outono e no inverno. 283 Ver, quanto à descrição da faixa costeira Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.105-107, ver também http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf, Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. 284 A Mata Atlântica hoje praticamente já desapareceu, o que se deve principalmente às queimadas para a expansão de áreas para o cultivo da cana-de-açúcar. Ver Ross (org.), A Geografia do Brasil, p. 171-174.

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mundo. A produção de açúcar ainda continuou existindo no século XVIII e XIX

285

, na

maioria das vezes através dos campos de cana-de-açúcar unidos às usinas de processamento de açúcar, o engenho. Para conseguirem uma boa administração, era necessário um intenso trabalho escravo, o que levou, com o passar dos séculos, à maior emigração obrigatória da História do Mundo. Milhões de pessoas foram trazidas do continente africano para a costa nordeste do Brasil, para executarem trabalhos forçados286. Esse complexo formado pelo açúcar e pelos escravos teve efeitos duradouros, tanto na região quanto na sociedade brasileira287, sendo a mais evidente a formação da população, visto o Brasil ser o país com a segunda maior população de descendentes de africanos, logo após a Nigéria. O maior significado disso tudo é a hegemonia do açúcar nos hábitos alimentares dos brasileiros. A influência da cozinha africana sobre a cozinha brasileira é também relevante. Por um lado, as forças de trabalho empregadas nas plantações precisavam ser abastecidas288, por outro lado, traziam sua identidade e hábitos culinários, que tentavam conservar. Uma parte deste desenvolvimento resultou no cultivo autônomo de pequenas hortas, feito pelos escravos, onde se plantavam frutas e legumes e se criavam gado miudo e aves. O direito de possuir pequenas áreas de cultivo com trabalho escravo foi passado na América a partir de 285

Ver Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550-1835, p. 422; segundo esse autor, a produção de açúcar foi a principal fonte de renda do Brasil durante toda a época colonial. Ver também Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.30-46, sobre o desenvolvimento da economia do açúcar no Brasil. Ver ainda: http://www.pe.sebrae.com.br:8080/notitia/dowload/Açucar_no_Tacho_Maria_Lecticia.pdf ,Cavalcanti, Maria Lecticia Monteiro, Açúcar no tacho, p.5 e Ramos, Fábio Pestana, No Tempo das Especiarias, O Império da Pimenta e do Açúcar, p.195-269. 286 Sobre esse grupo temático e a pesquisa sobre a escravidão, especialmente em Pernambuco, ver Santos, Die Sklaverei in Brasilien und ihre sozialen und wirtschaftlichen Folgen, Dargestellt am Beispiel Pernambuco (18401889); ver também sobre o sistema de escravidão no Brasil: Hell, Sklavenmanufaktur und Sklavenemanzipation in Brasilien 1500-1888; Verger, Fluxo e Refluxo, Do trafico de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX; Schwartz, , Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550-1835; Gorender, O Escravismo Colonial; Thornton, A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico 1400- 1800; Silva, Um Rio Chamado Atlântico, A África no Brasil e o Brasil na África. 287 O sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre, forneceu, nesse contexto, uma pesquisa básica, embora hoje se tenha que questionar alguns aspectos ali descritos. Ver Freyre, Herrenhaus und Sklavenhütte, Ein Bild der brasilianischen Gesellschaft, Freyre, Nordeste, Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil e Freyre, Açúcar, Uma Sociologia do Doce, com Receitas de Bolos e Doces do Nordeste do Brasil; Chaves, O Açúcar na História do Brasil; Azevedo, Canaviais e Engenhos na Vida Política do Brasil. Sob a visão geográfica da região, ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.125-129. A respeito do contexto escravidão e açúcar no nordeste brasileiro, ver também: Cavalcanti, O Negro Açúcar; com relação à produção de açúcar e sistema de escravidão na América, ver: Mintz, Sidney W., Sweetness and power, The place of sugar in modern history. 288 Ver pesquisa sobre a Bahia in Barickman, Um Contraponto Baiano, Açúcar, Fumo, Mandioca e Escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Sobre a alimentação dos escravos, ver também Costa, Marcondes, A Alimentação no Cativeiro: Uma Coletânea sobre os Regimes Alimentares dos Negros Afro-Brasileiros, in RIHGB nº. 411 abr./jun. 2001. Ver também http://www.pe.sebrae.com.br:8080/notitia/dowload/Acucar_no_Tacho_Maria_Lecticia.pdf ,Cavalcanti, Açúcar no Tacho, p.6.

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muitas regiões. No Brasil, os escravos tinham o direito de trabalhar em suas roças aos domingos e feriados. A colheita era vendida no mercado ou aos donos das plantações, além de abastecerem a si próprios, que plantavam em suas roças os vegetais que conheciam como o quiabo e outras, além da mandioca, milho e inhame, um tubérculo africano. O direito a uma área de cultivo para os escravos foi firmado através do “ordem regia de 31 de janeiro de 1701”289. A influência afrobrasileira na culinária é mais dominante no Estado da Bahia, devido, entre outros fatores ao grande número de afrobrasileiros ali existentes. Muita pimenta, óleo de coco, caranguejo seco, coentro e leite de coco fazem parte do complexo conjunto de temperos típicos. Juntamente com os diferentes crustáceos, peixes, aves e carne, assim como legumes como o quiabo e inhame e o uso da mandioca e do milho, fazem da cozinha baiana uma das mais marcantes cozinhas regionais do Brasil. Conservaram-se também muitos pratos do século XVIII, como caruru, vatapá, acarajé ou efo290. Aqui também a alimentação era determinada pelas condições naturais. A predominância da paisagem costeira levou à pesca, e introduziu-se no nordeste um tipo simples de barco, a jangada. Com grandes navios, pescava-se a baleia próximo à costa. Contudo, peixe fresco permanecia caro no mercado291. Junto à costa e nos mangues havia um grande número de crustáceos e peixes, que praticamente contribuíram para a cozinha da região. Os mangues oferecem vários tipos de caranguejos, ostras e também peixes, à disposição dos habitantes, que não necessitam de equipamentos especiais292. Além disso, havia tartarugas e peixes-boi até o início do século 289

Muito bem documentado, ver, por exemplo, Barickman, Um Contraponto Baiano, Açúcar, Fumo, Mandioca e Escravidão no Recôncavo, 1780-1860, p.107-116. Ver também Costa, Marcondes, A Alimentação no Cativeiro: Uma Coletânea sobre os regimes Alimentares dos Negros Afro-Brasileiros, in RIHGB nº. 411 abr./jun. 2001. p.203 Ver sobre a produção de vegetais no complexo da escravatura do Caribe in Mintz, Tasting Food, Tasting Freedom, p.37-49. Ver também Fernándesez-Armesto, Comida, uma Historia, p.218. 290 Há muita bibliografia sobre a cozinha baiana. Dignos de destaque são os clássicos como Brandão, A Cozinha Baiana; Viana, a Cozinha Bahiana, seu Folclore – suas Receitas e Cascudo, A Cozinha Africana no Brasil. O contexto religioso do sincretismo entre a cozinha baiana e o Candomblé afrobrasileiro é destacado em Querino, Costumes Africanos no Brasil; Lody, Santo Também Come; Varella, Cozinha de Santo (Culinária de Umbanda e Candomblé) e Bastide, O Candomblé da Bahia. Ver, mais atualizado, Guilherme Radel, que diferenciou a cozinha baiana em três partes: a cozinha da Costa, no Sertão e em Salvador da Bahia:: Radel, A Cozinha Praiana da Bahia e A Cozinha Africana da Bahia. Listagem dos 206 pratos da cozinha baiana in Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.108-113. 291 Ver Barickman, Um Contraponto Baiano, Açúcar, Fumo, Mandioca e Escravidão no Recôncavo, 1780-1860, p.90. 292 Boa apresentação da cozinha praiana/costeira no exemplo da Bahia, em Radel, A Cozinha Praiana da Bahia. Divisão das regiões das fontes de alimentos no mar, p.31-42, os mangues, p.43-48 e os rochedos e corais p.4958. Ver também Freyre, Gilberto, Nordeste, Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil, p.64. Sobre a importância da pesca e principalmente dos mangues para a cozinha de Recife, ver: Cavalcanti, Uma Viagem pelos Sabores Pernambucanos, in Continente Documento, Ano III, N°28, Sabores Pernambucanos, A Arte de fazer uma culinária da terra Recife, 2004, p.8. Sobre apresentação contemporânea,

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XX e eram tão apreciados como alimento que quase foram extintos da região 293. Muito elucidativo sobre a extinção das tartarugas no Nordeste é o número dos abatedores de tartarugas, os tartarugueiros, registrado no Almanaque de Pernambuco no decorrer dos anos. Se ainda havia no Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Província de Pernambuco para o Anno de 1860294 quatro tartarugueiros, no Almanak de Pernambuco Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola, 1871295 só havia três e no Almanak Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola da Província de Pernambuco para o Ano de 1881296 restava apenas um. Com a queda do número e consumo de tartarugas, extinguiu-se a profissão de tartarugueiro297. Criava-se gado, mas a finalidade era o trabalho no engenho, não o consumo de carne. Assim, havia vários decretos proibindo totalmente o abate de novilhos e apenas o gado mais velho podia ser abatido para o consumo, o que não era simples, porque devido à idade e ao trabalho constante, a carne era dura. Por isso, a carne era mais usada para se fazer paçoca. As frutas típicas do Nordeste eram o caju, ananás e goiaba. O coco também era amplamente difundido na região. Outras frutas usualmente consumidas eram bananas, laranjas, fruta-pão e mangas. O caju, endêmico no Brasil, era muito apreciado pelas etnias indígenas. A sua castanha é rica em energia e, da fruta, os índios fabricavam bebidas alcoólicas. A produção e o consumo do vinho de caju foram registrados já no século XVII, nos relatórios de viagem 298. Os índios faziam guerras por regiões com plantações de caju, antes da conquista portuguesa, e os índios

ver Joost (Hg.), Reise nach Brasilien in den Jahren 1815-1817 von Maximiliam Prinz zu Wied-Neuwied, p. 123126 e Therese, Prinzessin von Bayern, Meine Reise in den brasilianischen Tropen, 230-231, onde se relata que as classes mais baixas da Bahia se alimentam de caranguejos e tubarões. 293 Não se conservaram mais, na tradição culinária, as refeições com os dois animais e não foi mais possível encontrar receitas, apesar de se fazer referência, durante a exposição na Estação Peixe Boi na Ilha de Itamaracá, aos hábitos alimentares regionais dos índios. 294 Ver Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Província de Pernambuco para o Anno de 1860 organizado por José de Vasconcellos, 1°-Anno, Recife, 1860, p.305-306. 295 Ver Almanak de Pernambuco Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola, 1871, Quarto Anno, Recife, 1870, p.236. 296 Ver Almanak Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola da Província de Pernambuco para o Ano de 1881, Recife, 1881, p.212. 297 Ver também Campos, A Descoberta do Sabor Selvagem, p.64; o autor remete a suas lembranças, dizendo que no mercado central em Fortaleza, no primeiro trimestre do século XX, ainda havia um estande/uma barraca com abatedores de tartarugas. 298 Ver Schmalkalden, Mit Kompass und Kanonen, p.36. Ele apresenta também um relatório sobre frutas contemporâneas da região do Nordeste, ver p.82-91.

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Tupis calculavam sua idade pelas colheitas de caju299. O abacaxi é também uma fruta nativa do Brasil, que foi logo muito apreciada pelos europeus. António do Rosário, em seu livro “Frutas do Brasil”, de 1701, designa essa fruta como a rainha das frutas300. Há dois tipos principais, abacaxi e ananás. E delas também se produziam bebidas. A goiaba também é endêmica no Brasil e difundida em todas as regiões. Há duas espécies principais, a branca e a vermelha. Principalmente da vermelha, produzia-se um doce feito com açúcar muito apreciado, a goiabada301, cuja receita foi adaptada de um doce português clássico, a pessegada. O coco, originário da Oceania, tornou-se nativo na Ásia, de onde foi trazido pelos portugueses para a América. Sua palmeira, o coqueiro, oferece várias possibilidades de utilização e emprego302 e o coco também pode ser usado na culinária, sendo que era tido como refeição dos pobres, por passar a existir em grande profusão na região. H. Koster descreve o coco como se segue: “Coqueiro o fruto é de uso geral na cozinha da gente pobre, e constitui um dos principais artigos no comércio interno.”303. Além disso, o leite de coco é empregado em vários pratos cujo elemento principal é o peixe, ou no preparo dos feijões. A água de coco também era muito apreciada como bebida rica em vitaminas e minerais, além de bebida higiênica304. As bananas são plantadas como estacas e foram da Malásia até à África através dos árabes, os portugueses a levaram através das Ilhas do Atlântico para o oeste 305. Há muitos tipos diferentes, elas são nutritivas e adaptaram-se muito bem às condições ambientais brasileiras. Há relatórios apontando para o fato de a banana cozida ser endêmica no Brasil, o que não pode ser verificado. Eram uma importante fonte de alimento para os escravos e a população

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Ver Carvalho, Cajus, in Maior, Valente (org.) Antologia Pernambucana de Folclore, p.30. Ver também Freyre, Gilberto, Nordeste, Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil, p.164 e Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.15. Ver também Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.41. 300 Ver Rosário, António do, Frutas do Brasil, pág.1 e a descrição vai até à pág.46. 301 Ver Freyre, Gilberto, Nordeste, Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil, p.123, que apresenta a goiabada como sobremesa mais apreciada e característica das casas dos senhores de escravos no Nordeste. 302 Ver Kiple, Ornelas, (eds.), The Cambridge World History of Food Vol. I. & II, p.388-397. No que diz respeito ao Brasil, ver Maior, O Coco: Riqueza, Alimentação e Folclore 303 Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p.358. 304 Ver Cavalcanti, Uma Viagem pelos Sabores Pernambucanos, in Continente Documento, Ano III, N°28, Sabores Pernambucanos, A Arte de Fazer uma Culinária da Terra Recife, 2004, p.8. Ver também Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova História, p.89 in Ciência & Tropico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002). 305 Ver Kiple, Ornelas, (eds.), The Cambridge World History of Food Vol. I. & II , p.175-181.

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de renda mais baixa. H. Koster descreve esses fatos assim: „ A banana curta com farinha seca é o almoço diário entre o povo de cor. “306. Os alimentos mais importantes eram o feijão, a mandioca e o milho. O feijão é um dos mais importantes fornecedores de albumina, sendo o mais difundido em todo o Brasil. Para a região do Nordeste, a mandioca é o mais consumido em forma de farinha e é o mais importante fornecedor de carboidratos307. O complexo açucareiro levou a uma cultura marcada pelos doces e sobremesas, que era o crachá de todo o clã familiar e marca a região até hoje. As receitas das famílias eram protegidas e passadas de geração em geração, um fenômeno que se repetiu também em outras regiões do Brasil308. Nesse contexto, a observação de Henry Koster, que viajou no ano de 1810 por Pernambuco, e descreveu uma refeição de uma família rica do Recife, entrando em detalhes sobre os doces: „Por ceia puseram diante de mim carne-seca e farinha de mandioca, tornada em papa, que chamam pirão, e também biscoitos-duros (bolachas) e vinho tinto. Não era suficientemente brasileiro para comer o pirão, preferindo a bolacha e a carne, o que estarreceu o anfitrião. Os doces servidos depois eram como sempre, deliciosos, conforme o hábito das famílias dessa ordem. O rico homem brasileiro tem tanto orgulho dos seus doces, quanto o cidadão inglês de sua mesa ou dos vinhos. “309 As sobremesas e doces mais famosos do Nordeste são o Bolo Souza Leão, Bolo de Rolo, Cocada, Quindim e Pé de Moleque, assim como as compotas de frutas310. As frutas eram colocadas em potes com açúcar como compota, visto o consumo de frutas cruas ser visto

306

Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p. 361. Barickman conclui que a farinha de mandioca representa o fundamento da nutrição na Bahia. Ver Barickman, Um Contraponto Baiano, Açúcar, Fumo, Mandioca e Escravidão no Recôncavo, 1780-1860, p.89-91, p.91: “A maior parte das calorias vem de um alimento principal e rico em amido; na Bahia, esse alimento era sem dúvida a farinha de mandioca. … O arroz, o milho e o feijão eram, sem dúvida, mais amplamente consumidos, mas seu papel na alimentação cotidiana era secundário. Não há melhor prova disso que os registros do Celeiro Publico de Salvador. Entre 1785 e 1851, o arroz, o milho e o feijão corresponderam a só 12 % de todos os gêneros que entraram no Celeiro. A farinha sozinha representou os outros 88%.“. P.96: „A importância da farinha de mandioca é, pois, indiscutível. Presente, tanto nas mesas dos ricos, como nas dos pobres, e nas cuias e baldes que os escravos usavam à falta de pratos, constituía a base da dieta comum. “A população urbana do Recôncavo e principalmente os habitantes de Salvador deviam comprar grande parte da farinha vendida no mercado local.”. 308 Ver, Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.49. 309 Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p.80. Mais adiante, ele relata sobre uma rica mesa na casa de um dono de engenho, chamado Coronel, que serviu dez diferentes sobremesas e tipos de doces. Ver p. 83. 310 Ver os livros de receitas de Açucarados, e Caderno de Receita, Maria Gaudina Regalo Braga, Pernambuco, ~ 1877. 307

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como não-saudável, além de as compotas terem a vantagem de conservar as frutas por um tempo maior311. Para as sobremesas da casa grande, importava-se açúcar cristal ou até açúcar parcialmente refinado. Os principais produtos dos engenhos eram a rapadura e a cachaça312 para serem vendidos no mercado do país, e o açúcar cru era para ser exportado313. A refinação do açúcar era feita na Europa. Mas o açúcar cru já era filtrado nos engenhos e havia vários graus de qualidade. Através da importação, a partir de 1790, da espécie de cana otahite ou cana caiena, que substituiu a cana crioula, o volume de açúcar aumentou. Como a região vivia da monocultura e o trabalho exigia muitos homens, os gêneros alimentícios tinham que ser levados até essa região314, apesar de existirem engenhos autárquicos, o que levou à importação, por exemplo, do bacalhau para a alimentação dos escravos e a transações comerciais internas com as subregiões vizinhas. Da faixa do agreste, extraíam-se farinha de mandioca, feijão e azeite de dendê, do sertão, carne de sol, que eram trocados pelos produtos dos engenhos315. Mecanismos semelhantes participaram do desenvolvimento regional, por exemplo, em Sergipe, onde se produzia farinha de mandioca, devido à divisão da terra em pequenas propriedades, para suprir as grandes regiões de cultivo da cana-de-açúcar na Bahia e em Pernambuco316.

311

Ver http://www.pe.sebrae.com.br:8080/notitia/dowload/Acucar_no_Tacho_Maria_Lecticia.pdf , Cavalcanti, Açúcar no Tacho, p.6. Ver também sobre os doces típicos de Pernambuco Cavalcanti, Uma Viagem pelos Sabores Pernambucanos, in Continente Documento, Ano III, N°28, Sabores Pernambucanos, A Arte de Fazer uma Culinária da Terra, Recife, 2004, p.7-8. O açúcar constrói a base da identidade de Pernambuco. Ver Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p. 199-211. 312 Ver quanto ao significado histórico e antropológico da Cachaça: Venâncio, Carneiro, Álcool e Drogas na História do Brasil. Ver também Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p. 223-226. 313 Ver Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550-1835, p.431. 314 Ver, por exemplo, o comércio da costa com as regiões de plantações no interior no exemplo da Paraíba. Ver Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova História, in Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002), p.87. 315 Sobre o papel das pequenas fábricas na produção de alimentos, ver Campos, Clecia, (eds.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil, p.56. A ligação entre abastecimento dos engenhos e a grande cidade Salvador da Bahia com farinha de mandioca dos arredores é analisado intensamente no estudo : Barickman, B.J., Um Contraponto Baiano, Açúcar, Fumo, Mandioca e Escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Ver também Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550-1835, p.435: „As we have seen, a certain regional specialization took place in which areas of the southern Reconcavo like Maragogipe and Jaguaripe, towns to the south like Cairú and Boipeba, and the regions like the Rio Real and the interior of Sergipe de El- Rey to the north of Salvador specialized in food production.“. Ver também, sobre o papel das pequenas empresas e empresas formadas por famílias na produção de alimentos: Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.47-51. 316 Ver Nunes, Maria Thetis, As Culturas de Subsistência em Sergipe – A Farinha de Mandioca, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, N°29 1983-1987, Aracaju, p.15: “.A farinha tornou-se importante na pauta das exportações da Capitania de Sergipe, a partir dos fins do século XVII, continuou por todo o século

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No decorrer do desenvolvimento, importava-se charque do sul do Brasil, principalmente no século XIX, que era também parcialmente trocado por açúcar, tabaco e cachaça. No sul da subregião, na Bahia, havia também um cultivo digno de ser citado, o de tabaco e cacau. O cacau era originário da Amazônia e adaptou-se a partir de 1746 no sul da Bahia, onde seu cultivo era destinado à exportação317. Pratos típicos da região, além das famosas sobremesas e dos famosos doces, são a galinha de cabidela, acarajé, moqueca, peixada, vatapá, bobó de camarão, arroz-de-hauça e caruru318. Variações de tapioca recheada são muito difundidas na região como tira-gosto. A maioria dos pratos foi fortemente influenciados pelos produtos do sertão, por exemplo, através do uso do charque. Há também um sem-número de pratos de peixe, como peixada ou moqueca. Chama-se de faixa agreste o trecho que corre paralelamente à costa e se conecta à região. Essa faixa, como zona de passagem, com clima quente e úmido, se estende até à Bahia e é caracterizada em sua orla exterior pela costa e seu interior semi-árido, o sertão319. Sendo assim, o volume de chuvas diminui continuamente quanto mais se penetra no interior. No estado da Paraíba, há uma cumeada que merece ser citada, visto atingir uma altura de 300 a 900 metros, apresentando também um clima mais úmido, funcionando como uma separação direta entre o sertão e a costa320. A região do agreste era marcada por pequenas propriedades, que asseguravam principalmente o abastecimento agrícola dos engenhos situados na costa321. O fato de as pequenas propriedades terem produções agrícolas diferenciadas influenciou os hábitos alimentares. Nas hortas, cultivavam-se feijão, milho e mandioca mansa para o consumo próprio. Tratava-se de XVIII, alcançando o século XIX, podendo afirmar-se que houve um ciclo da mandioca no desenrolar da economia sergipana.“. 317 O Brasil não possui uma verdadeira cultura do chocolate. Sobre o cultivo do cacau na Bahia, veja estudo da história e efeitos sócio-culturais desse cultivo: Filho, Sul da Bahia: Chão de Cacao (uma civilização regional); veja também Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.129. 318 Esses pratos são de origem afrobrasileira, excetuando-se a peixada, de origem portuguesa, e são consumidos em toda a região, principalmente na Bahia. Ver sobre este prato e outros mais: Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.51-85 e ainda Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.89-133. 319 Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf, Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões, ver ainda Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, p.153. 320 Ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.119. Essa cordilheira, Serra da Borborema, enquanto região denominada também de brejo, concentrava sua produção em pequenas propriedades também nos alimentos, que eram trocados por produtos da costa e do sertão. Veja Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova Historia, p.87 in Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002). 321 Quanto a esta problemática, ver a nota acima; para destaque desse significado do agreste, ver: Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.106.

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um método misto de cultivo agrícola, plantando-se juntos feijão, milho e mandioca, porque eles se complementam bem: o milho, de crescimento rápido, fornecia sombra ao feijão que, por sua vez, enriquecia o solo com azoto e o feijão podia ultrapassar o milho e a mandioca em altura322. Ao contrário, a mandioca brava era plantada para a produção da farinha, e a palmeira de dendê para a produção de óleo, produtos que abasteciam a zona costeira. Mas a principal característica da região é formar a passagem entre duas regiões tão diferentes, costa e sertão, assim como a maneira como a troca de mercadorias acontece na região323. -Sertão, como é denominado o interior, é uma região seca e quente, semiárida, com índices muito baixos de chuvas324 e fases de seca que podem durar anos325. No século XIX, houve oito grandes secas nos anos de 1804, 1809, 1816-17, 1824-25, 1830, 1844-45, 1877-79, 188889. A seca de 1877 a 1879 ficou conhecida como a Grande Seca. As secas e suas consequências destruidoras estavam ligadas ao fenômeno climático El Niño. Essas condições levaram a movimentos de emigração para o norte e o sudeste brasileiros. As fases de seca levaram também a um deslocamento da produção de carne seca para o Rio Grande do Sul, durante uma seca no final do século XVIII. Devido a tais condições climáticas e ao solo predominantemente ruim, a vegetação desta região, a caatinga, se compõe de suculentas e de arbustos de cactos326. No sertão, há também alguns cumeados, que se sobressaem como ilhas verdes. Nas zonas um pouco mais úmidas do sertão, crescem as palmeiras de carnaúba, das

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O método de cultivo é descrito, por exemplo, por Charles Ribeyrolles, ver Aguiar, Mandioca- Pão do Brasil, p.78. 323 Ver Cavalcanti, Uma Viagem pelos Sabores Pernambucanos, p.6 in Continente Documento, Ano III, N°28, Sabores Pernambucanos, A Arte de Fazer uma Culinária da Terra, Recife, 2004. 324 Ver Ross (org.), A Geografia do Brasil, p.103-105; e Aderaldo, Velhas Receitas da Cozinha Nordestina, p.1112. 325 Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões; Wagley, An Introduction to Brazil, p.47-49, acentua também a recepção do Nordeste na Literatura Brasileira, citando como exemplo Os Sertões de Euclides da Cunha. Ver também Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, p.147 e Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, pp.112-116. Ver Filho, Giovanni, Cozinha Brasileira, com Recheio de História, pp.50-52. As secas são um fenômeno da região e assim são conhecidas treze grandes secas e períodos de fome na Bahia, de 1638 até 1750. Ver Campos, Clecia (eds.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil. Ver idem, p. 63. Sobre os efeitos políticos da seca, ver também http://www.jstor.org/stable/1007119 (3.3.2009), The Americas, Vol. 43, No. 1 (Jul., 1986), pp. 69-85, Gerald Michael Greenfield, Migrant Behavior and Elite Attitudes: Brazil's Great Drought, 1877-1879; http://www.jstor.org/stable/2515990 (3.3.2009), The Hispanic American Historical Review, Vol. 72, No. 3 (Aug., 1992), pp. 375-400, Gerald Michael Greenfield, The Great Drought and Elite Discourse in Imperial Brazil; ver também Aguiar, Abastecimento; Crises, Motins e Intervenção, p.47-60. Deve-se observar que as grandes secas não se limitavam à subregião do sertão, mas abrangiam todo o Nordeste com seu efeito recíproco. 326 Ver Wagley, An Introduction to Brazil, p.43. Ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.113. Ver também Ross (org.), A Geografia do Brasil, p.174- 179.

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quais são extraídos uma resina e palmito para alimentação327. O viajante Henry Koster descreve como era feito um mingau da carnaúba, que era servido com carne e coalhada328. Da mesma maneira, os cursos de rios como o do grande São Francisco329, que corre de Minas Gerais passando pela Bahia e Pernambuco até desaguar no mar em Sergipe, podiam ser úteis na agricultura e servem, nas épocas das secas, como regiões de pasto e sempre havia pesca nestes rios. E os peixes, fora o consumo próprio, são salgados e postos a secar. E assim se produzia peixe seco, que era vendido para outras regiões, principalmente para Minas Gerais, para lá ser vendido como alimento para a população escrava. O surubim é um peixe típico para este processo330. No sertão, a alimentação é marcada principalmente pelo clima seco. Nesse sentido, o que se oferecia para a região era em primeira linha a pecuária, criação de boi e cabras331. Os animais podem se alimentar das plantas e as transformam em produtos úteis para o homem. Servem também como uma espécie de silo, pois acumulam nutrientes e, além disso, também fornecem leite332. A criação de gado é feita da maneira típica das regiões semiáridas, leva-se uma vida nômadepastoral: fugindo da seca, os criadores de gado andam pela região, à procura de alimento para o gado, até encontrarem regiões mais úmidas, onde adentram. Esse tipo de pecuária é complementado, na maioria das vezes, através de uma economia rudimentar de subsistência e do comércio com outras regiões. Da vida nômade dos vaqueiros no sertão extrai-se, além do couro, os alimentos, leite, queijo, manteiga, ricota/coalhada e doce de leite, carne fresca e, principalmente, carne de sol333. H. Koster cita especialmente os derivados do leite, manteiga e queijo: „O queijo do Sertão é excelente quando fresco, mas ao fim de quatro ou cinco 327

http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões; Wagley, An Introduction to Brazil, p.45; ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, pp.106-108. 328 Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p.167. 329 Com seu curso atravessando o sertão, o Rio São Francisco é uma exceção tal, que alguns autores vêm nas regiões que o cercam uma subregião. Ver Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, p.154, ou Wagley, An Introduction to Brasil, p.51. Ver também sobre o significado desse rio para a região, http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as diferentes regiões. Outros rios do Nordeste, comparados ao São Francisco, são muito menores, apesar das condições semelhantes nos seus cursos. Ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.107. 330 Ver Wells, Three Thousand Miles Through Brazil, From Rio de Janeiro to Maranhão, p.261 und p.343. 331 Em 1837 empreendeu-se a tentativa de introduzir/importar dromedários e, em 1859, camelos do norte da África. Contudo, ambas as tentativas fracassaram. Ver Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.165-166. 332 Ver Aderaldo, Velhas Receitas da Cozinha Nordestina, p.56. 333 Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p.166. Ver também Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.38-40.

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semanas fica duro e seco. Poucas pessoas fabricam manteiga, batendo o leite em garrafas comuns.“ Ele descreve também uma outra especialidade do sertão: manteiga de garrafa334. As boas possibilidades de venda do couro elevam o consumo de carne335. Rebanhos de gado eram levados também até à costa para o abastecimento das cidades. O Príncipe Maximilian Wied zu Neuwied cita a venda de gado para abate, vindo do sertão, em Salvador da Bahia336.. Os produtos do sertão eram trocados na costa por rapadura337, mel de engenho338, cachaça e, no agreste, por farinha de mandioca. Nesse contexto da economia de subsistência, plantava-se feijão339, mandioca, milho, cará, batata doce e abóbora, um legume apreciado no nordeste. Verduras de folhas, ao contrário, eram vistas como comida de gado e não eram nem plantadas e nem consumidas. Citando Henry Koster: “Os vegetais verdes não são conhecidos em seu uso e até dariam risada ante a idéia de comer qualquer espécie de salada.”340. Os habitantes do sertão sabem como se alimentar da caatinga, à qual recorrem como um tipo de „cardápio do sufoco“ nas fases de seca. As plantas comestíveis são chamadas brabos341 e, em sua maioria, trata-se de cactos como o xiquexique da caatinga. Em um livro de receitas, esses cactos da caatinga são apresentados, onde se ensina a fazer sobremesas com eles342. Além

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Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p.167. Ver também sobre a produção de queijo de coalho e manteiga de garrafa: Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p. 96-97 e Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova Historia, p.96 in Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002). 335 Ver Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova Historia, p.94 in Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002). 336 Ver Joost (org.), Reise nach Brasilien in den Jahren 1815-1817 von Maximilian Prinz zu WiedNeuvied,p.192. 337 Ver, quanto à importância da rapadura para a alimentação no Sertão, Filho, Engenhos de Rapadura do Cariri, p. 55; ver Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova Historia, p.87 in Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002). 338 Ver Filho, Engenhos de Rapadura do Cariri, p.56: „O mel, melado ou melaço, é retirado do último ou do penúltimo tacho de cozimento e é usado puro, com farinha, macaxeira, folha de louro, de goiaba ou queijo ralado.“. 339 Na região do sertão, o feijão é consumido quase verde (feijão fradinho), é preparado com carne seca e manteiga. 340 Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p.167. Tal situação prevalece até hoje, ver Cavalcanti, Uma Viagem pelos Sabores Pernambucanos, p. 5 in Continente Documento, Ano III, N°28, Sabores Pernambucanos, A Arte de Fazer uma Culinária da Terra, Recife. 341 Ver Carneiro, Comida e Sociedade, uma História da Alimentação, p.38-39; Castro, Geografia da Fome, p. 220-227; Sampaio, A Alimentação Sertaneja e do Interior da Amazônia, Onomástica da Alimentação Rural. Ver também Holanda, Caminhos e Fronteiras, p.36-42. À p. 39, faz-se referência a uma árvore de nome umbuzeiro, cujas raízes, de sabor adocicado, servem de alimento na época da seca. 342 Ver Receitas de Açucarados, Pernambuco, p.49 Mandacaru em Calda.

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disso, existe ainda a possibilidade de complementar o cardápio com carne de caça, lagarto e cobras, que existem em grande quantidade no sertão343. Comidas típicas são carne seca assada com mandioca frita, baião de dois344, buchada345 e cuscuz. A farinha de mandioca pode também ser cozida no leite, daí resultando o pirão de leite346. Fazem parte ainda das tipicidades da alimentação no sertão, além do cardápio dos vaqueiros, farinha de mandioca com rapadura347 , o abundante café-da-manhã, que tem por base pratos principais quentes348. No contexto culinário brasileiro, o chouriço349servido como sobremesa é um fenômeno. Consome-se também, na região, tanajuras com farinha de mandioca como farofa350. 4.1.3 A Região Centro-Oeste Esta região abrange os atuais estados de Goiás, o Distrito Federal, Brasília, Mato Grosso e Mato-Grosso do Sul351. O norte e o oeste de Goiás são influenciados pelas regiões vizinhas do nordeste e norte, com tipos de vegetação e clima do Sertão e da Floresta Tropical e o norte do Mato Grosso, pela Floresta Tropical352. A região Centro-Oeste tem um clima tropical quente e deve ser diferenciada em duas subregiões. Na metade da região norte, fica a sub-região do planalto, em que domina a savana do

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Ver Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil, p.120. Ver também Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.70-71. 344 Prato dos trabalhadores rurais, ver Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova Historia, p.90 in Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002). 345 No Sertão comiam-se e ainda se comem cabras,cabritos e bodes com frequência. O prato mais conhecido é a buchada. Ver Cavalcanti, Uma Viagem pelos Sabores Pernambucanos, p. 21-23 in Continente Documento, Ano III, N°28, Sabores Pernambucanos, A Arte de Fazer uma Culinária da Terra, Recife. 346 Ver Aderaldo, Velhas Receitas da Cozinha Nordestina, p.85. 347 Ver Aguiar, Mandioca- Pão do Brasil, p. 70. 348 Ver Aguiar, Mandioca- Pão do Brasil, p.138, ver também Cavalcanti, Uma Viagem pelos Sabores Pernambucanos, p. 5 in Continente Documento, Ano III, N°28, Sabores Pernambucanos, A Arte de Fazer uma Culinária da Terra, Recife. 349 Ver Filho, Engenhos de Rapadura do Cariri, p.56: „É preparado com mel de rapadura, sangue de porco, farinha de mandioca, pimenta-do-reino, gergelim e gordura, depois adicionado, quando pronto, de castanha de caju assada.“. Ver Mello, Cultura e Alimentação na Paraíba – um Exercício de Nova Historia, p.91 e pág. 96 em Ciência & Trópico, Recife, Vol. 30, Nr.1 (2002) e Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.51 e Bosisio, Culinária Nordestina, p.93. 350 Ver Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.251-254, contendo referência ao consumo de outros insetos. 351 Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. 352 Ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.25.

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cerrado353, com fases bem marcadas pelas épocas das chuvas e da seca354. A sub-região sul é formada pela planície úmida, a região do Pantanal355. Devido à quantidade de rios, dos quais o Paraguai e o Paraná são os maiores, e também às constantes chuvas, a região é um grande pântano onde há constantes enchentes356. Ambas as regiões têm em comum o fato de terem sido anexadas bem mais tarde pelos bandeirantes, no século XVIII. Até hoje, esta região relativamente grande não apresenta um elevado índice populacional, tendo poucos habitantes. Em 1770 foi relatado um número de 12.159 habitantes em Mato Grosso, incluindo indígenas, negros e mestiços. Em 1800, esse número era de 27.690357. Por volta de 1820, viviam na região de Goiás 68.500 habitantes, e deste total, 15.000 viviam na capital358. As descobertas de ouro e diamante359 levaram a assentamentos pontuais feitos por europeus e escravos trazidos por eles, apesar de a região ser habitada há séculos por etnias indígenas. Uma parte importante da alimentação indígena no centro do interior é a batata doce, mas este tipo de batata não conseguiu atingir a relevância e significado de um alimento básico como a mandioca, o milho ou o arroz. É classificada como legume, não como acompanhamento de determinados pratos360. A alimentação do norte da sub-região do cerrado foi marcada pela caça a pacas, capivaras, tamanduás, emu, veados e tatus e também pela pesca nos cursos dos rios361. As cobras, 353

Ver Ross (org.), A Geografia do Brasil, pp. 179-183. Ver Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, p. 164 e http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. 355 Ver Ross (org.), A Geografia do Brasil, p.187-188. A região do Pantanal tem uma grande biodiversidade e tem mais de 250 tipos de peixes, por exemplo. 356 Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as diferentes regiões e Antunes, Brasil: problemas e perspectivas, p. 165. Ver também Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.187-190. Mapa fluvial, ver 189. Os rios Xingu, Tocantins, Tapajós e Cuiabá são também grandes rios que influenciam a região. 357 Ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.43. Apenas nos anos 60 do século XX, após a fundação e construção de Brasília, é que o acesso à subregião do norte foi melhorado, enquanto o acesso à subregião do sul e à capital do Mato Grosso, Cuiabá, que passa pelo Paraguai através do sistema fluvial do rio do mesmo nome, continuou, por isso, muito difícil até à Guerra da Tríplice Aliança. Sobre a conquista da região, ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.39-43. 358 Ver Magalhães, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, p.72. 359 Sobre o povoamento de Goiás, no contexto da descoberta de ouro, ver Magalhães, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, p.49-50, mapa sobre minas de ouro em Goiás, p. 51. A febre do ouro em Goiás levou, além disso, a uma enorme alta dos preços dos gêneros alimentícios, que eram levados, em parte, de São Paulo até à região. Ver Pohl, Viagem no interior do Brasil, p.128-129. 360 Sobre a alimentação indígena em Goiás, ver: Ortencio, A Cozinha Goiana, p.27-31. Sobre a batata doce e a alimentação indígena no interior, ver: Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p. 16 e p.24. Menciona-se como explicação o fato de as regiões de cultivo terem sido conquistadas só mais tarde. 361 Ver Ortencio, A Cozinha Goiana, p. 175. Havia pesca digna de ser mencionada junto aos rios, ver Magalhães, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, p.64 e p.92, havia também tartarugas e seus ovos, que eram muito apreciados. Sobre a tábua de carne de caça da região, ver o mesmo, p.92. 354

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frequentes na região, também servem à alimentação362. Os solos da região denotam pequena fertilidade e daí resulta a vegetação do tipo da savana. Tais terras são apropriadas apenas para a pecuária que, em combinação com a economia de subsistência, marcou a atividade agrícola no início do século XIX 363. No lastro da onda de imigração devido à descoberta do ouro, surgiram problemas com o abastecimento, que puderam, contudo, ser efetuado devido à diminuição da imigração, tendo em vista a queda da febre do ouro. Todavia, a situação da alimentação ficava ameaçada em situações de crise, quando as chuvas faltavam, porque dependia da produção local e da combinação com o comércio especializado. Crises no abastecimento surgiram também com a eclosão da Guerra da Tríplice Aliança, porque o Governo Central obrigou a Província de Goiás a abastecer as tropas no Mato Grosso364. Mesmo com estas dificuldades, desenvolveu-se também ali uma produção local de alimentos e aumentou o número de pequenos negócios que tocavam a agricultura365. Além disso, a culinária da região foi marcada também pelas plantas comestíveis. Principalmente as pessoas pobres se serviam do cerrado para melhorar a nutrição366. A fruta típica da região é o pequi e o palmito da palmeira de guariroba do cerrado, sendo ambos misturados ao arroz e servidos como arroz com pequi e arroz com guariroba367. Desde a anexação feita pelos bandeirantes, os alimentos básicos são principalmente o milho368 e o feijão. Juntamente com o arroz com pequi, outros pratos típicos da subregião norte são a pamonha, o empadão goiano e os doces alfenim e furrundum369.

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Ver Ortencio, A Cozinha Goiana, p.178; à p.179, receita de cobra assada. Ver Magalhâes, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, p.59-.62. 364 Ver Magalhães, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, p.80. 365 Ver Magalhães, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, pp. 52-53, lá se plantavam principalmente milho e feijão, assim como mandioca e arroz. O objetivo era o auto-abastecimento e atender à procura dos produtos locais, ver p.66. Ver também Sumário sobre as Atividades Econômicas em Diferentes Locais de Goiás, 1824, p.63. 366 Ver Magalhães, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, p.91-92. 367 Ver Lacerda, Folclore Brasileiro, Goiás, p.47. Ver ainda Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.150. Ambas as plantas são usadas em diferentes pratos da região. Ver também apresentação contemporânea sobre a divulgação de pequi em Saint-Hilaire, Viagem á Província de Goiás, p.152. Outras frutas da região são araticum, baru e cagaita. 368 Havendo aí predominância do milho como alimento básico. Ver Magalhâes, Alimentação, Saúde e Doenças em Goiás no Século XIX, p.72. 369 Ver sobre a cozinha em Goiás: Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.144-154. Ver também Lacerda, Folclore Brasileiro, Goiás. 363

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Na subregião do Pantanal, com pequena densidade populacional, a pesca representa a principal fonte de alimentação, devido às condições ambientais. Os peixes eram salgados como medida de conservação370. Os peixes comestíveis mais importantes são pacu, dourado, pintado e piranha, que cunham os pratos típicos da região como o caldo de piranha e escabeche de pacu371. Os crocodilos, numerosos na região, também servem de alimento. A caça e a coleta de frutas faziam parte da alimentação, recorrendo-se aqui aos conhecimentos das etnias indígenas e adotando-se seus hábitos alimentares372. Segundo o detalhado Diário de Viagem do Conde Langsdorff, que atravessou a região no final de novembro de 1826 até final de maio de1828, pode-se registrar como caça da região a capivara, a anta, veado, macaco, crocodilo e jacutinga. Ele menciona também o emprego da pimenta cumari na região, que era colocada no vinagre373. Frutas típicas do Pantanal são guavira, caraguata e a banana também é muito apreciada na região374. Sob condições favoráveis, o arroz também era cultivado na região e servia de alimento básico, sendo ainda fornecido à subregião do norte375. Em virtude da descoberta do ouro376 no Mato Grosso em 1718, surgiu em1719 a maior e mais importante cidade da região, Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, no centro da região da extração. Através da extração de ouro, comparativamente descomplicada, a cidade enriqueceu, o que se refletia, por exemplo, em uma cultura dos doces. O viajante Herbert Smith assim relatou esse fato:

370

Ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.83 e p.87. 371 Ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.135-137. 372 Ver Sampaio, Cheiros & Sabores de Mato Grosso do Sul, p.12, segundo o qual sete diferentes etnias habitavam a região e influenciaram as tradições culinárias. Ver também Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.98: „ Aprender a conhecer novos alimentos pode ter sido uma das tácticas dos moradores da Vila Real, como defesa com que contaram nos piores momentos da seca.“. Nesse contexto, foram incluídos na alimentação cobras, sapos, ratazanas, raízes e brotos, assim como formigas, macacos, gusanos, frutas e carne de caça. 373 Ele inclui na lista do inventário de viagem, na p. 216, o ponto de inventariação: “5. - uma garrafa com vinagre e páprica ou pimenta-cumari, que é o tempero que se costuma usar aqui.“ Veja em Silva (org.), Os Diários de Langsdorff Vol III Mato Grosso e Amazônia. Até os dias de hoje, a pimenta colocada no vinagre é um tempero usado no Brasil. 374 Ver Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.90. 375 Graf Langsdorff narra sobre grandes campos de arroz junto ao Rio Taquari, ver p. 22. Prosseguindo sua viagem pela região, ele sempre volta a descrever a organização da matula com arroz e locais com cultivo de arroz e, por fim, ele próprio constata à p. 277 que o arroz era o principal prato deles. Ver in Silva (org.), Os diários de Langsdorff Vol III Mato Grosso e Amazônia. Ver sobre o arroz também Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.100-101. 376 Ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.48-49. Em 1748 foi fundada a Capitania Mato Grosso. Ver ibd. p.81.

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„Generalizada entre velhos e moços, machos e fêmeas, era a paixão pelos doces, que provalmente porque tanto apreciam, sabem preparar muito bem. Em pouco tempo adquirimos o mesmo vicio. Nas grandes reuniões, apareciam às vezes com bandejas gigantescas de gostoso manjar, pessoas amigas da…, desapareciam aqueles montes em poucos minutos. Especialmente o bolo de coco e mandioca (…) era tão bom, que só por ele sou capaz de ainda voltar a Cuiabá. “377. Os bandeirantes participaram da fundação de Cuiabá e da anexação da região, e também trouxeram consigo seus métodos culinários e de cultivo. Nesse sentido, os alimentos milho, feijão, mandioca, banana378, toucinho/gordura, açúcar e carne seca chegaram à região379. No âmbito da extração do ouro, instalaram-se também engenhos, pois o açúcar e a cachaça eram muito apreciados380. Em 1751, já havia 24 engenhos na região de Cuiabá para a produção de cachaça de cana-de-açúcar e 22 engenhos para a produção de açúcar e rapadura. Nos arredores de Cuiabá surgiram plantações e criação de gado381 e na cidade foram feitas hortas382. Essas hortas, denominadas quintal, marcaram a cidade em muitos lugares no século XIX e eram parte da cultura brasileira de assentamento e alimentação. Para a produção de alimentos, usavam-se muitos escravos africanos, que também levaram sua cultura da alimentação para a culinária da região. A produção regional de alimentos influenciou a culinária regional e levou a pratos como frango com arroz, carne seca com arroz, bolo de arroz ou farinha de mandioca com banana383.

377

Ver Smith, Do Rio de Janeiro a Cuiabá (1881-1886), p.348. Sobre a relevância do milho como alimento básico na alimentação da região, ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.98-99, sobre o feijão, p.99-100, sobre a mandioca, p.90-95 e sobre a banana na alimentação regional, ver p. 96-97. 379 Ver a descrição de viagem de Graf Langsdorff, que menciona plantações de feijão e milho secos, devido ao pouco volume de chuva. Ver p.155 in Silva (org.), Os Diários de Langsdorff, Vol III., Mato Grosso e Amazônia. Sobre a influência da alimentação dos recém chegados de São Paulo, ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.89-91, 380 Ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (17271808), p.58-60. Ver também ibd. p.101-105. 381 Ver especialmente sobre a criação de gado, porcos, aves, mas também de mulas e cavalos: Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p. 106-113 382 Ver na interdependência com Cuiabá, Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.76-77. 383 Ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.113, segundo o qual esses pratos também cunharam a cozinha regional. Mas, no final das contas, isso corresponde à comida brasileira em geral, não devendo ser entendido como algo especial, que só se encontra na região. 378

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Pela proximidade e principalmente pelos principais caminhos de acesso ao Paraguai e Argentina, esses países também influenciaram a culinária da região384. Pratos típicos que têm este pano de fundo são saltenhas385 e sopa paraguaia386. 4.1.4 A Região Sudeste Esta região compõe-se dos atuais estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo387. Devido à sua dimensão e às diferentes influências culturais sofridas em cada estado, recomenda-se uma análise mais diferenciada deles, dividindo esta região em quatro subregiões. Assim, a primeira subregião abrange o Estado do Espírito Santo. Esse estado se caracteriza pela zona costeira, com espessas florestas e solo fértil, com clima tropical, situada entre o Rio de Janeiro e a Bahia, aos quais se junta no interior a cordilheira da costa. O Espírito Santo não possui um índice populacional denso e perdeu em significado, comparado aos estados vizinhos. A povoação/colonização do estado montanhoso estendeu-se até meados do século XIX e emigrantes alemães e italianos também chegaram à região388. Enquanto as cidades costeiras apresentam uma mistura da cozinha européia e indígena, o interior do estado conservou uma alimentação tipicamente européia, por exemplo, da cozinha italiana, visto os italianos terem povoado a cidade de Santa Teresa. Esse fato está ligado à política colonial portuguesa, que deixou o interior do Espírito Santo aos índios botocudos, que ali puderem se fixar até o início do século XIX, quando foram então vencidos em uma sangrenta guerra. Por isso, o interior do estado permaneceu apartado de uma colonização „brasileira”, o que levou a uma característica marcada pelo mar, no que diz respeito à culinária analisada no Espírito Santo389.

384

A proximidade com o Paraguai e a Argentina levou também ao contrabando. Ver Alencar, Misturando Sabores: A Alimentação na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1727-1808), p.117. Ver também Sampaio, Cheiros & Sabores de Mato Grosso do Sul, p.11. 385 Ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p. 139. 386 Ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.138 e Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.95. 387 Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. Na época colonial e no início do Império, a província de São Paulo era bem maior, o Paraná só foi fundado em 1843, antes fazia parte de São Paulo e, no que diz respeito à divisão em regiões, faz parte da Região Sul. 388 Outras cidades estão mais caracterizadas por alemães, ou pela Pomerânia, como a cidade de São Domingos Martins, onde até hoje o pão é designado por weitbroud ou michjabroud (pão de milho) e servem-se Apfelstrudel, joelho de porco (Eisbein) e Gulasch. Ver Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.107108. 389 Ver, entre outros, sobre o conflito dos Botocudos no Espírito Santo e no sul de Minas Gerais: Mattos, Civilização e Revolta, os Botocudos e a Catequese na Província de Minas.

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A cozinha da região, denominada capixaba, foi marcada pelo emprego do peixe e frutos do mar390, assemelhando-se à cozinha baiana, mas sem o emprego do azeite de dende e do leite de coco391. Juntando-se à cordilheira costeira392 do Espírito Santo e Rio de Janeiro, encontra-se no planalto393 a subregião de Minas Gerais, com florestas espessas e muito montanhosa. No norte, há algumas regiões que fazem parte do clima e vegetação típicos do Sertão, que passa a cerrado ali mesmo no norte de Minas Gerais394. Em direção ao sul/oeste, o solo e o clima são muito bem apropriados à agricultura, havendo ainda muitas fontes e rios395. O Estado de Minas Gerais foi anexado pelos bandeirantes no século XVII, quando estavam à procura de ouro396. Em decorrência da sua descoberta na região ao redor de Sabará e Vila Rica de Ouro Preto397, no final do século XVII, ocorreu uma onda de imigração na região, o que levou à fundação de muitas pequenas cidades, que já eram significativas na época colonial, como Mariana, Sabará e São João Del Rei. O ouro era transportado por mulas em caravanas na Estrada Real, passando pela costa marítima até às cidades portuárias de Parati e Rio de Janeiro. Ao longo da Estrada Real cresceram numerosas cidades e, durante certo período, Minas Gerais era a maior região de extração aurífera do mundo, e esta fase da extração de ouro ganhou o nome de “Ciclo do Ouro”, na História do Brasil. Em seguida, 390

Sobre a culinária no Espírito Santo, ver Bosisio, (ed), Dos Comes e Bebes do Espírito Santo. A especialidade é uma espécie de pastelão de peixe, torta capixaba, que os pobres comiam e era servida também na semana da Páscoa e já tinha surgido em um anúncio de jornal, da Gazeta da Victoria de 28.3.1874. Ver ibd. p.17 391 No Espírito Santo também se fazem moquecas . Ver Bosisio, (ed), Dos Comes e Bebes do Espírito Santo, p.18, Ver receitas de moqueca e torta capixaba in Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.156157. 392 Outras partes importantes da cordilheira são a Serra da Mantiqueira e a Serra do Espinhaço. Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. 393 Esse trecho é chamado de Planalto. A maior parte da região fica ao norte do trópico sul, fazendo assim parte dos trópicos. Contudo, o clima típico diminui, à medida que se avança em direção ao sul. Além disso, a temperatura é mais baixa devido à altura das montanhas. Ver Zepp, Pohl, Amerika, p.304. Ver também Ross (org.) Geografia do Brasil, p.105-106. 394 Ver Ross (org.), A Geografia do Brasil, p.178-183. 395 A Região Sudeste possui muitos rios menores e médios, cujas nascentes ficam nas montanhas. O Rio Paraná e o São Francisco são tidos como os mais importantes, e suas nascentes ficam na região. Ver http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. 396 As minas de ouro deram nome à região.. 397 A Vila Rica do Ouro Preto, atualmente Ouro Preto, o que se deve ao fato de o ouro ter sido descoberto entre pedras escuras, outrora capital do estado e famosa por sua abundância em ouro, tornou-se uma cidade próspera e rica, nos séculos XVII e XVIII, Nessa região, desenvolveu-se também uma consciência política, que influenciaria a História do Brasil sob o nome de Inconfidência Mineira, ver Maxwell, A Devassa da Devassa, a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808, e Andrade, Elites Regionais e a Formação do Estado Imperial Brasileiro, Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Ver em caráter de resumo sobre o desenrolar dos acontecimentos após as descobertas do ouro e do diamante, Bernecker, Eine kleine Geschichte Brasiliens, p.99-102 e, no contexto do grande número de escravos levados às Minas Gerais, ver Martins, Minas e o Tráfico de Escravos no Século XIX, outra vez, in Szmrecsányi, Lapa, História Econômica da Independência e do Império, p.99-130.

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descobriu-se diamante ao redor da cidade de Tijuca398, e, nesse contexto, houve um rápido crescimento populacional, o que levou, no século XVIII, a uma situação difícil em relação ao abastecimento de alimentos e, consequentemente, a um enorme aumento dos seus preços e à supervalorização sua na região399, pois eram levados em caravanas à região, vindos de São Paulo e do Rio de Janeiro, chegando a custar dez vezes mais do que no Estado de São Paulo. Essa situação só obteve uma melhora na segunda década do século XVIII, quando levaram gado de outras regiões para Minas Gerais. Nas regiões situadas na periferia das zonas de extração de ouro e diamante, desenvolveram-se economias de abastecimento diferenciadas, que fizeram dela seu mercado de venda dos seus produtos agrícolas, funcionando na maioria das vezes como pequenas fazendas e o comércio estabeleceu-se rápida e ininterruptamente400. Devido à povoação, muitas cidades foram fundadas, atingindo prosperidade advinda da descoberta do ouro e diamante. Essa prosperidade era vista no estilo de vida, por exemplo, através de muitos anúncios de vinhos e alimentos importados nos jornais. Cito o exemplo de um jornal, Liberal Mineiro, Ouro Preto, de 2.1.1883, onde foi publicado um anúncio extenso de um comerciante de gêneros alimentícios, bem abastecido de vinhos portugueses, e que fazia ainda propaganda de 18 diferentes vinhos franceses401. Um outro exemplo dessa

398

Tijuca é a atual cidade de Diamantina e era designada distrito, severamente vigiado, um distrito fechado, onde se fundou a cidade, em consequência da extração do diamante. 399 Nesse contexto, as larvas em um tipo de bambu, bicho de taquara, eram comidas que, de acordo com testemunhas da época, não eram tão ruins. Essas larvas eram também usadas como droga, pois depois de secas tinham um efeito semelhante ao do ópio, ver Amaral, O Problema da Alimentação, Aspectos Médico HigiênicoSociais Vol. 1, p.47. Ver sobre o aumento populacional e elevação dos preços, o testemunho em forma de relatório de Eschwege, Pluto Brasiliensis, p.40. Ver sobre o afunilamento do abastecimento de provisões, que levaram à fome em 1689, 1700 e 1713, Frieiro, Feijão, Angu e Couve, p.52-57. A constante elevação de preços levou a administração municipal a fixar o preço dos gêneros alimentícios, ver ibd., p.192. Relatórios atuais sobre a situação da alimentação, oferta de gêneros alimentícios e preços encontram-se documentados também em relatórios de viagem. Os diários de viagem de Graf Langsdorff, que viajou por Minas Gerais de maio de 1824 a fevereiro de 1825, também contêm um bom sumário. Ver preços de São João del Rei, início de junho de 1824 in Silva (org.), Os Diários de Langsdorff Vol I, p.34. De Mariana, ele descreve como os indígenas criavam formigas comestíveis: eles prendiam as tanajuras fêmeas, arrancavam suas asas e colocavam-nas na terra macia, para que fundassem novas colônias. Ver ibd., Relação de Preços no Mercado de Mariana à p. 98. 400 Ver quanto a isso, Meneses, O Continente Rústico, Abastecimento Alimentar nas Minas Gerais Setecentistas. Ver também Carrara, Padrões de Existência, Regime Alimentar e Movimento de Preços numa Sociedade em Transição: Minas Gerais, 1750-1900, in Varia Historia, 23, Julho 2000, UFMG, Belo Horizonte. Aí, p.147-153 listagem de gêneros alimentícios e preços de Ouro Preto de 26/7/1895; e Zemella, O Abastecimento da Capitania de Minas Gerais no Século XVIII, p.184. 401 Ver Liberal Mineiro, Ouro Preto, 2.1.1883. Existem tantos anúncios semelhantes e que podem ser lidos em muitos jornais de Minas Gerais do final do século XIX, conservados na Hemerotheca de Belo Horizonte, que nomeei apenas um a título de exemplo.

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prosperidade, visível até hoje, são as muitas igrejas barrocas da região, ricamente enfeitadas. Contudo, de um modo geral, Minas Gerais permaneceu marcada pela agricultura402. Com o esgotamento das minas de ouro de acesso mais simples e rápido, a mineração diminuiu na região no início do século XIX, enquanto indústrias de mineração especializadas se apoderavam desses recursos. Consórcios europeus também participavam da extração das riquezas naturais. Com isso, a produção agrícola, que havia se iniciado no século XVII, devido à explosão da descoberta do ouro, começou a crescer continuamente no decorrer das décadas seguintes, cunhando assim Minas Gerais que, de estado abastecido por outros, passou a ser o estado fornecedor de produtos agrícolas. A produção de queijo era a atividade mais típica, paralelamente à criação de gado suíno e cultivo do milho e, em meados do século XIX, iniciou-se no sul do estado o plantio do café. As cidades, em sua maioria pequenas, conservaram um sistema de hortas típico, que servia à economia de subsistência. Seguindo uma tradição de Portugal colonizador, plantavam-se raízes e ervas medicinais, legumes e também frutas. A este respeito, ver Del Priore, Venancio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil: „No século XVIII, Sebastião da Rocha Pita enumera, como produtos da horta, os quiabos, os jilós e os maxixes, as largas taiobas, as espécies e cores que servem ao gosto, ao olfato e a vista. Das hortaliças da Europa, há no Brasil alfaces, couves de várias castas, repolho, nabos, rabaos, cenouras, pepinos, espinafres, aboborasd’agua, cebolas, alhos, cardos, bredos, mostarda, salsa, manjerona, endro, manjericão, alecrim, arruda e losna, das medicinais, canafìstula, tamarindo, jalapa, salsaparrilha, filipódio, pau-da-china, malvas, tanchagem, sene a que os naturais chamam tacumburi. Dentre as frutas, as mais comuns eram a banana e os cítricos. “403. Para a culinária de Minas Gerais, a horta tornou-se típica através da couve, cujas folhas eram empregadas no consumo cotidiano. Outros vegetais típicos de Minas Gerais são ainda o

402

Ver sobre a produção de queijo, que já era feita no início da produção agrícola, o estudo detalhado de Meneses, Queijo Artesanal de Minas, Patrimônio Cultural do Brasil. Uma anedota interessante nesse contexto narra que as autoridades mandavam espetar os queijos, nos postos de controle ao longo da Estrada Real, com o intuito de proibirem o contrabando de ouro e diamantes, ver ibd, p.21. Ver sobre o desenvolvimento descrito, Frieiro, Feijão, Angu e Couve, p. 67-70 e Meneses, O Continente Rústico, Abastecimento Alimentar nas Minas Gerais Setecentistas, p.169-176. 403 Ver Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, p.51-52.

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quiabo e as folhas de uma trepadeira cheia de espinhos, o ora-pro-nobis e ainda um chá denominado congonhas, aparentado com o mate, que deu nome a algumas cidades deste estado. A fruta da jabuticabeira foi especialmente mencionada, podendo-se fazer vinho de jabuticaba404. No quintal, criavam-se também aves e porcos, que eram alimentados com os restos das refeições405. A povoação foi ainda acrescida pelos imigrantes portugueses, que para cá vieram atraídos pela descoberta do ouro, trazendo técnicas alimentícias relevantes para a região. Justamente a produção de queijo foi beneficiada pelo conhecimento técnico da Serra da Estrela em Portugal, onde era produzido o famoso Queijo da Serra, tendo sido adaptado às tipicidades locais, por exemplo, por meio do emprego do coalho do tatu406.Um outro exemplo da influência da imigração portuguesa na culinária da região seria a divulgação das broas, um bolo de milho tipicamente português e o uso da couve, como alimentos diários, assim como o largo emprego do toucinho e da banha407. Ainda devido à descoberta do ouro, remonta a vinda de numerosos escravos para Minas Gerais, inseridos nos trabalhos de mineração e agricultura408, pois após a conquista das reservas de ouro, Minas Gerais passou a ser a principal região para o assentamento de escravos africanos, também para trabalharem nas pequenas fazendas que se ocupavam com o abastecimento. Assim, no século XIX, Minas Gerais tinha a maior densidade populacional de 404

O vinho foi mencionado por von Spix, von Martius, Reise in Brasilien in den Jahren 1817-1820, p.276. E Richard Burton elogiou o pé de jabuticaba em Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico à p.50. Produzia-se vinho também com laranjas, ver Burton, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, p.122, havendo ali também uma receita fornecida por Graf Hogendorf, o oficial ajudante de Napoleão que havia fugido para o Brasil e que produzia vinho de laranja. À p.136, descrição das frutas de jardim de Barbacena. Ver, entre outros, Lima, Tachos e Panelas, Historiografia da Alimentação Brasileira, p.71 e Frieiro, Feijão, Angu e Couve, p.70-71. 405 A respeito dos jardins típicos de Minas Gerais, ver Meneses, Pátio Cercado com Árvores de Espinho e outras Frutas: o Quintal das Vilas “Mineiras” (Século XVIII e XIX). Ver também Scarano, Negro nas Terras do Ouro, Cotidiano e Solidariedade Século XVIII, p.72-73; Frieiro, Feijão, Angu e Couve, p.69. Porém, a colheita era pequena, porque um grande número de insetos diminuía a produção, ver Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, p.118 e p.85-89. Ver relatórios da época sobre os jardins, entre outros Saint- Hilaire, Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil, p.28. 406 Ver Meneses, Queijo Artesanal de Minas, Patrimônio Cultural do Brasil, p.27-29. O relatório de viagem de Maximilian Prinz zu Wied-Neuwied faz igualmente referência ao emprego do coalho de tatus, antas, veados e porcos, ver in Joost (hg.), Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817 von Maximilian Prinz zu WiedNeuwied, p.196. 407 Ver Scarano, Negro nas Terras do Ouro, Cotidiano e Solidariedade Século XVIII, p.60. 408 Vários trabalhos tratam da história da escravidão em Minas Gerais. Ver, por exemplo, Martinez, Riqueza e Escravidão, Vida Material e População no Século XIX Bonfim do Paraopeba/MG; Scarano, Negro nas Terras do Ouro, Cotidiano e Solidariedade Século XVIII; Mattoso, Ser Escravo no Brasil, Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, S.51-52, ver Magalhâes, A Demanda do Trivial; Vestuário, Alimentação e Habitação, in Revista Brasileira de Estudos Políticos, vol. 65, Julho de 1987, Belo Horizonte, p.159. Ver também Witter, Minas e o Tráfico de Escravos no Século XIX, e Libby, Protoindustrialização em uma Sociedade Escravista: o Caso de Minas Gerais; in Szmrecsányi, Lapa, (org.), História Econômica da Independência e do Império.

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habitantes oriundos da África em todo o Brasil. O cultivo do milho na região é muito difundido, influenciado pelos assentamentos dos bandeirantes e pelas caravanas de mulas dos tropeiros409, pois era um alimento importante para eles e, dessa maneira, os tropeiros contribuíram para a divulgação do milho em suas rotas. Desenvolveu-se, ainda, uma culinária de viagem, completamente especializada em alimentos que, semelhantemente aos dos bandeirantes, era de fácil transporte e conservação, tais como o milho, feijão, toucinho, carne seca e farinha, tanto de mandioca quanto de milho. Portanto, produtos dos quais se retirava o peso líquido supérfluo, que lhe era novamente adicionado na hora do seu preparo. O milho era o preferido porque, por um lado, era fácil de plantar e tinha uma colheita produtiva e, por outro lado, porque servia tanto aos animais, como ração, quanto aos homens, em forma de inúmeros pratos que podiam ser feitos com ele, mesmo a farinha sendo o consumo mais usual. Minas Gerais faz parte da região ao sul do Brasil, onde o milho ultrapassou a mandioca como alimento básico. Quanto aos alimentos básicos, milho e mandioca, a literatura especializada divide o Brasil em duas regiões410. O consumo da mandioca como alimento básico é difundido nas regiões costeiras e no norte de Minas Gerais, mas as passagens de um a outro não são muito nitidamente demarcadas. De Minas Gerais até Mato Grosso e as regiões do sul, são caracterizadas como cultura do milho, mas não há exclusão de um ou outro, pois nas festas juninas servem-se, também no Nordeste, pratos feitos com milho e, em Minas Gerais, a mandioca surge como alimento básico já em fontes históricas. A Coletânea do Ouvidor Caetano da Costa Matoso, denominada Códice Matoso, originária de 1749, oferece um interessante comprovante do cultivo e consumo do milho, ocorridos ainda durante a época colonial tardia. Na extensa descrição da província, da sociedade e do

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Sobre o significado dos tropeiros no contexto da história brasileira, ver Goulart, Tropas e Tropeiros na Formação do Brasil, em relação à alimentação p.121-126 e Lenharo, As Tropas da Moderação, O Abastecimento da Corte na Formação Política do Brasil 1808-1842; Holanda, Caminhos e Fronteiras, p. 125-134; descrição feita na época dos tropeiros e seu modo de usar o milho e sal para as mulas, in Rugendas, Malerische Reise in Brasilien, p. 25-26. 410 Contudo, há discursos públicos de fundamentalistas sobre nutrição em ambas as regiões, principalmente nos pontos extremos de cada uma delas, que negam qualquer valor nutritivo ou de um ou do outro alimento. Esse fato foi percebido por pesquisadores da época, como von Spix e von Martius, Reise in Brasilien in den Jahren 1817-1820. p. 227. Ver, quanto à divisão entre milho ou mandioca: Prado, The colonial background of modern Brazil, p.191-193. Uma boa pesquisa, que ainda complementa a visão dividida entre mandioca e milho, baseando-se na cultura indígena da batata doce no interior, mas que admite os traços básicos, encontra-se em Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, p.16-25.

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cotidiano, ele discorre sobre a alimentação e acentua principalmente a relevância do milho como alimento básico411. Por ocasião da chegada da Corte Portuguesa, Luis Pereira da Cunha escreveu em 1808 sobre as possibilidades de fornecer farinha para o Rio de Janeiro: „7. Farinha de Mandioca, Apenas algum roceiro a fabrica para gastos particulares, porque neste paiz a farinha, que geralmente se consome, he de milho.“412. A época da colheita do milho varia, porque a espiga seca junto com a planta. Um grande número de pratos pode ser preparado, usando-se os diferentes tipos de milho413, que já era empregado na alimentação básica dos escravos durante a extração do ouro. Após moagem dos grãos de milho, obtinha-se a sua farinha, denominada fubá que, cozida, transforma-se então em angu414 ; essas duas denominações se originam da língua africana Qimbundo415, tendo sido também empregadas por Saint-Hilaire: „ o fubá e a verdadeira farinha de milho, tal como sai do moinho. È com o fubá que se faz uma espécie de polenta chamada angu... .”416. Deve-se completar essas informações acrescentando que o angu em Minas Gerais era sempre cozido sem sal, visto este condimento ser uma preciosidade nesse estado, e esta tradição se conserva até hoje. Essa iguaria rica em carboidratos era complementada, além de legumes como feijão e repolho, frutas como a goiaba, banana e frutas cítricas, com proteína animal da caça e da criação própria de animais, ou ainda com

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Ver p.785: Noticia de muitas comidas que se fazem de milho, in Figueiredo, Campos, (Org.), Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Ver também sobre milho Brum, Milho, O Sustento da Vida, in Sabores, Gastronomia e Historia, ano IV, Tiradentes e Gramado, 2008, ver ainda Holanda, Caminhos e Fronteiras, Uma Civilização do Milho, p.181-189 e Schmidt, Areas de Alimentação, p.317-323 in Schaden, Homen, Cultura e Sociedade no Brasil. 412 Ver Carta de Antônio Luis Pereira da Cunha sobre o envio de gêneros alimentícios para família real, 25.1. 1808. 413 Ver a listagem simplificada in Magalhâes, Notas para um Estudo, in Vária Historia, 21, Julho 1999, UFMG, Belo Horizonte, p.36: milho verde na espiga, cozido, grelhado, em forma de farinha (Fubá), com a qual são feitos os angus com diversas variações, mingau de milho, pamonhas, canjicas, broas, cuscuz ou pipoca, sendo que sua origem daria uma pesquisa interessante, que ainda não foi feita. Do milho faziam-se ainda bebidas, que se tornavam alcoólicas por meio da fermentação com saliva. Ver Cascudo, Historia da Alimentação no Brasil, p.107-112. Ver Zeron, (org.), Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira, Vol.1, Alimentação, p.111113. Principalmente os viajantes alemães descreviam o milho usando a denominação alemã, trigo turco, porque na percepção da época, o milho era originário do Leste, não sendo visto como planta americana. 414 O que era válido também para a classe socialmente mais baixa, ver Scarano, Negro nas Terras do Ouro, Cotidiano e Solidariedade Século XVIII, p.41: „Em Minas, o angu de fubá cozido na água e o feijão-preto, algumas vezes feito com toucinho ou carne, não constituíram apenas o alimento do escravo mas também do negro e mulato livre, e mesmo do branco pobre.“ Ver também a pesquisa clássica: Frieiro, Feijão, Angu e Couve; e Costa, Marcondes, A Alimentação no Cativeiro: Uma Coletânea sobre os Regimes Alimentares dos Negros Afro-Brasileiros, p.208-230, in RIHGB, n. 411 abr./jun. 2001. 415 Ver Lopes, Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, p.62 e p.285. 416 Ver Saint-Hilaire, Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil, p.16, nota 18.

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outros produtos do comércio417. Como tábua de carne de caça eram usadas, segundo o Códice Costa Matoso de 1749: „Antas, veados, macacos, quatis, onças, capivaras, cervos, e aves jacus, gaviões, pombas e outros muitos pássaros, e, muitas vezes, cobras, lagartos, formigas e uns sapinhos que dão pelas arvores, e outros, sim, mais uns bichos muito alvos, que se criam em taquaras e em paus pobres. “418. Minas Gerais é conhecida principalmente por seus pratos com carne de porco e pela exportação de toucinho, banha, costela de porco e pela produção de linguiças, o que ainda é visível na produção local. O cultivo do milho, em combinação com feijão, era complementado pela criação de porcos de modo ideal: os excrementos de humanos e porcos eram usados como adubo para o milho e o fubá podia ser usado também na engorda dos porcos, cujo valor de venda se media pela quantidade de gordura419, o que foi descrito como se segue pelo viajante Wells: „Toucinho (too-séen-yo) The outer fatty covering of the bodies of pigs is cut off from the flesh, in one sheet, it is then gashed with a knife, salt is sprikled over and rubbed in, and finally the whole is made up into a roll, and constitutes the toucinho of commerce. The thickness varies according to the fatness of the animal, and a pig is classified as „two, three, four, or five fingered“, the standard of thickness of a finger being adopted for measuring the thickness of fat that the animal will show when killed. This product is used by all classes in Brazil as the main basis of all culinary operations.“420.

417

Ver Magalhâes, A Mesa de Mariana, Produção e Consumo de Alimentos em Minas Gerais (1750-1850), S.101. A tábua de carne de caça mais comum era composta por anta, paca, veado, quati, macuco e jacu. Usavam também frutas e legumes dos arredores para a alimentação, como por exemplo a fruta imbu e os brotos da Samambaia. Ver também Scarano, Negro nas Terras do Ouro, Cotidiano e Solidariedade Século XVIII, p.49-50. O abastecimento de gêneros alimentícios em Minas Gerais foi muito bem pesquisado e ilustrado em vários trabalhos de História, ver entre outros Zemella, O Abastecimento da Capitania de Minas Gerais no Século XVIII, Meneses, O Continente Rústico, Abastecimento Alimentar nas Minas Gerais Setecentistas; Frieiro, Feijão, Angu e Couve; ou os trabalhos de Magalhâes, A Mesa de Mariana, Produção e Consumo de Alimentos em Minas Gerais (1750-1850) e Magalhâes, A Demanda do Trivial; Vestuário, Alimentação e Habitação in Revista Brasileira de Estudos Políticos, vol.65, Julho de 1987 e Notas para um Estudo, in Vária Historia, 21, Julho 1999, UFMG, Belo Horizonte. 418 Ver Figueiredo, Campos, (Org.), Códice Costa Matoso. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis, p.218. 419 Ver, sobre a combinação da criação de porcos com o cultivo do milho, Holanda, Caminhos e Fronteiras, p.186-187. 420 Ver Wells, Three Thousands Miles through Brazil, From Rio de Janeiro to Maranhao, Vol II., p.385.

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O cultivo da cana para a produção de rapadura e cachaça também foi de relevância para o desenvolvimento de Minas Gerais421. Em Minas Gerais criou-se uma das mais típicas culinárias do Brasil422, e seus pratos foram assentados como primeiros pratos típicos no livro de receitas Cozinheiro Imperial423. Até os dias de hoje, a cozinha de Minas Gerais marca bastante a identidade dos seus habitantes, que consideram sua culinária como um tipo de crachá da região. Pratos clássicos de Minas Gerais são o tutu a mineira, lombo do porco, feijão tropeiro e frango com quiabo e frango ao molho pardo. Os biscoitos, chamados quitandas, assim como o queijo da região, são famosos424. Biscoitos típicos são, por exemplo, a broa de fubá ou o pão de queijo. Nos livros de cadernos de receitas da região, escritos a mão, encontram-se muitas receitas de biscoitos e bolos. Ao sul, fazendo fronteira com os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais, deles separado pela Cordilheira do Mar, encontra-se a subregião do Rio de Janeiro. Essa região, antigamente densamente coberta por florestas na costa e com a Baía de Guanabara425 penetrando profundamente até o interior, tem um clima tropical e se subdivide em Cidade do Rio de

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A melhor cachaça do Brasil é, sem dúvida alguma, a de Minas Gerais, onde há um grande número de destilarias menores e médias, denominadas alambiques. Ver sobre o significado do cultivo da cana-de-açúcar em Minas Gerais: Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural do Brasil, p.40. Segundo ele, o cultivo teve início por volta de 1700. 422 Ver Abdala, A Cozinha e a Construção da Imagem do Mineiro. A relevância da cozinha mineira evidencia-se no grande número de livros de culinária regional, que ultrapassa o número dos livros de culinária de outras regiões. Ver também Filho, A Cozinha Mineira na História do Brasil, in Notícia Bibliográfica e Histórica, Ano XXIX, N°165, abril/julho 97, PUC, Campinas, 1997, e Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.91-98. Contra essa corrente, determinados discursos paulistas tentam remontar a agora famosa cozinha mineira aos bandeirantes e, assim, apossarem-se dela, ver Maranhão, Cozinha Mineira, Patrimônio Paulista, in Historia Viva, Rio de Janeiro, Nov., 2003. 423 Ver Cozinheiro Imperial ou Nova Arte do Cozinheiro e do Copeiro em todos os seus Ramos, 4 ed. 1859, p.239 Tutu ou Feijão a Mineira, primeiro prato a ter um nome regional. O primeiro livro de receitas a ter denominação regional tambem e de Minas Gerais: Doces Mineiros, Colleccao Completa de Variadissimas Receitas de Doces, Obtidas das mais afamadas Fabricantes Mineiras, Bello Horizonte, 1906. 424 Ver um bom sumário de receitas em Christo, Fogão de Lenha, Quitandas e Quitutes de Minas Gerais, 23-64. Ver também Quintão, (org.), Sabores de Mariana, Caderno de receitas; Bosisio, (ed.), Sabores e Cores das Minas Gerais; Nunes, História da Arte da Cozinha Mineira por Dona Lucinha; Oliveira, Coisas de Minas, A Culinária dos Velhos Cadernos. Ver apresentação da época sobre nutrição em Minas Gerais in Figueiredo, Campos, (Org.), Códice Costa Matoso. Coleção das noticias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis; Revista Brasileira de Estudos Políticos, vol.65, Julho de 1987, Belo Horizonte, Magalhães, A Demanda do Trivial; Vestuário, Alimentação e Habitação., p.153-199; Varia Historia, 21, Julho 1999, UFMG, Belo Horizonte, 1999, Magalhães, Notas para um Estudo, p.33-41; Varia Historia, 23, Julho 2000, UFMG, Belo Horizonte, 2000, Carrara, Padrões de Existência, Regime Alimentar e Movimento de Preços numa Sociedade em Transição: Minas Gerais, 1750-1900. 425 A Baía de Guanabara, com um diâmetro de 380 km² no interior do Rio de Janeiro, era apropriada tanto para o cultivo do arroz como para caça de camarao e pesca. Têm-na como a maior baía do Brasil, mas recebe as águas de 35 rios que nela deságuam. Ver Andrade, Paisagens e Problemas do Brasil, p.166. Dessa forma, desenvolveuse também aqui um outro foco de cultivo de arroz.

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Janeiro e os arredores fluminenses426. A partir da época colonial, a região costeira, de maneira semelhante à costa do Nordeste, era caracterizada pelas plantações de cana-de-açúcar427; contudo, a fase mais intensa do cultivo da cana estabeleceu-se mais tarde no Nordeste e, por isso, não está tão fortemente arraigada nesta região como lá. Na costa e na baía foi cultivado o arroz e desenvolveram-se máquinas de descascar o arroz428. O cultivo do café se instalou em meados do século XIX na parte montanhosa da subregião429. Antes da chegada do Rei de Portugal, em 1808, o Rio de Janeiro já era a capital portuguesa da América e a maior e mais importante cidade do Império. A cultura urbana do Rio de Janeiro, muito influenciada pela Europa, era a mais marcante para o Brasil do século XIX430. Isso é visível em muitos aspectos e, nesse sentido, a culinária do Rio de Janeiro era também intensamente europeizada, seja através dos produtos, do pessoal e da etiqueta social 431. Por outro lado, havia no Rio de Janeiro e ao seu redor uma grande participação da população escrava e desse fato procede o consumo cotidiano afrobrasileiro432, de modo que os contrastes sociais eram bastante evidentes ali. O desenvolvimento da culinária foi ricamente descrito em muitos relatórios de viagem. Quase todos os viajantes estrangeiros do século XIX passaram pelo Rio de Janeiro e sua caracterização é arrematada por relatórios de soldados que serviam ao Exército Brasileiro, diplomatas que estavam sediados na Corte e também por artistas. Dignos de citação são os quadros de Debret e Rugendas, registrando a vida cotidiana no 426

Ver a representação das características geográfrico-climáticas do Rio de Janeiro, in Filho, O Rio de Janeiro Imperial, p.35-57. 427 Aqui também se desenvolveu uma cultura da sobremesa, ver Casadei, Doces Fluminenses, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, 1999. 428 Ver n. 318 jan./mar. 1978, Santos, Corsino Medeiros dos, Cultura, Indústria e Comércio de Arroz no Brasil Colonial, p.43- 48, segundo o qual a primeira máquina foi construída em 1756 e melhorada nos anos de 17601770. 429 Ver quanto ao desenvolvimento do cultivo do café na região: Stein, Vassouras, A Brazilian Coffee Country, 1850-1900, The Roles of Planters and Slave in a Plantation Society; Magalhâes, O Café, na Historia, no Folclore e nas belas-Artes; Oliveira, Historia do Café no Brasil & no Mundo e Martins, Historia do Café. 430 Boa representação da urbanização do Rio de Janeiro in Filho, O Rio de Janeiro Imperial, p.151-256, e Schultz, Versalhes Tropical e sobre a época desde a chegada da corte até à independência, ver Silva, A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822) Cultura e Sociedade. 431 Sobre a culinária no Rio de Janeiro, ver: El-Kareh, Bruit, Cozinha e Comer, em Casa e na Rua: Culinária e Gastronomia na Corte do Império do Brasil, in Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n°33, Alimentação, 2004; Silva, Papagaio Cozido com Arroz: Livros de Cozinha e Receitas Culinárias no Rio de Janeiro do Século XIX e Filho, O Rio de Janeiro Imperial, p.330-338. Ver ainda Renteria, O Sabor Moderno, Da Europa ao Rio de Janeiro na Republica Velha; e Renault, Industria, Escravidão, Sociedade, Uma pesquisa Historiográfica do Rio de Janeiro no Século XIX, um bom trabalho, que se aprofunda também nas peculiaridades e efeitos recíprocos da gastronomia em uma metrópole. Ver pesquisa sobre o papel dos imigrantes portugueses na gastronomia do Rio de Janeiro: Menezes, A Gastronomia Portuguesa no Estado do Rio de Janeiro in Lessa, (org.), Os Luisadas na aventura do Rio Moderno. 432 Ver sobre a cozinha dos escravos no Rio de Janeiro Karasch, A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro, 18081850, p. 198-206 e S.313-314. Os escravos eram também colocados nas ruas para a venda de gêneros alimentícios. Ver Goulart, O Comércio Ambulante do Leite no Rio de Janeiro do Século XIX in RIHGB n. 263 abr./jun. 1964.

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Império do Brasil, por exemplo, o quadro de Debret de 1827 retratando uma família brasileira jantando: „O Jantar no Brasil “433.

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Assim, oferta de mercado, fornecimento de gêneros alimentícios, etiqueta, gastronomia e hotelaria e também a culinária “brasileira” obtiveram diferentes avaliações435. Resumindo, pode-se registrar que muitos europeus não estavam satisfeitos com a escolha sul- americana das refeições e imperavam as observações negativas sobre a dificuldade de digestão dos alimentos do cotidiano, tais como feijão e farinha de mandioca, observações essas que se estendiam ao fornecimento de carne fresca à cidade436. “O Almanaque Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro”, que era publicado anualmente e funcionava como um tipo de „Páginas Amarelas” oferece

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Ver Debret, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, p.172-176. Ver Debret, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, p.172. 435 Como exemplos, cito von Tschudi, Reisen durch Südamerika, que descreve os aspectos mencionados às páginas 70-82. Boas observações fizeram também os norte americanos Kidder, Fletcher, O Brasil e os Brasileiros, analisa mais de perto, às páginas 185-192 na primeira parte das suas descrições, a vida cotidiana e a nutrição no Rio de Janeiro. Ver também von Leithold, von Rango, O Rio de Janeiro Visto por Dois Prussianos em 1819; Schlichthorst, O Rio de Janeiro como è (1824-1826); Von Binzer, Os meus Romanos, Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Brasil; ou Martins, O Rio de Janeiro dos Viajantes, O Olhar Britânico (1800-1850). Ver sobre a relevância dos relatórios de viagem quanto à história da nutrição: Silva, Entre o Pão e a Farinha, Viagens através da Cultura Européia e da Mesa Brasileira no Século XIX. 436 Ver, por exemplo, a avaliação predominantemente da alimentação no Rio de Janeiro em Seidler, Dez Anos no Brazil, p.102-112; ver ainda Graham, Diário de uma Viagem ao Brasil, p.196-197 e 230-231, ou Schlichthorst, O Rio de Janeiro como é (1824-1826), S.73: “Os hotéis são tão ruins quanto eles. Comidas intragáveis.”. As experiências dos viajantes influenciaram também os primeiros guias de viagem como Reimers, Reise-Führer von Europa nach Brasilien, Hamburg, 1914, 3. Auflage, no qual nàs páginas 99-106 diferentes pratos e plantas são grosseiramente explicados, gritantemente de maneira neutra. 434

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uma boa visão panorâmica do desenvolvimento da gastronomia no Rio de Janeiro, porque todas as fábricas se encontram listadas com o respectivo endereço e, em edições posteriores, acrescentaram-se propaganda e oferta de produtos. Os almanaques eram editados pelos irmãos Laemmert e foram copiados, devido ao seu sucesso, em outras regiões, como no Recife, por exemplo. Assim, havia uma rubrica casa do pasto, hoje restaurantes, para confeitarias, hotéis, cafés, botequins. Entre 1844 e 1851, a gastronomia aumentou e de 9 hotéis e casas de pasto registrados em 1844, passou-se a ter registrado, em 1851, 30 negócios, com tendência a aumentar. Dos anúncios de jornal feitos por diferentes negócios de gêneros alimentícios, pode-se depreender a oferta internacional de mercadorias no Rio de Janeiro437. A oferta de prestação de serviços culinários já era muito diferenciada no século XIX e muitos gêneros alimentícios eram vendidos nas ruas, por vendedores ambulantes. Paralelamente ao comércio de rua típico do Brasil e efetuado mais por mulheres negras, que vendiam doces, frutas e legumes, assim como refeições simples como o angu, havia também um comércio leiteiro no Rio de Janeiro, no qual foram importadas garrafas em 1857438. Os norteamericanos Kidder e Fletcher descrevem como se segue a presença das vendedoras ambulantes de doces: “As crianças ficam encantadas quando avistam na rua as pretas com o favorito tabuleiro cheio de doces e brinquedos. „Lá vem ela“, a quitandeira, com o seu filhinho africano amarrado nas costas, e o tabuleiro na cabeça, gritando: „Chora menina, chora menino, Papai tem dinheiro bastante, Compra menina, compra menino.“439. Visto sob uma perspectiva geral, o Rio de Janeiro era não só a capital política, mas também cultural do Brasil, que se irradiava, com seu cotidiano cosmopolita, para todo o Brasil440. Os editores do Rio de Janeiro forneceram uma contribuição importante para essa irradiação, 437

Anúncios de jornais quanto a ofertas de gêneros alimentícios já foram usados várias vezes como fontes de consulta para trabalhos sobre História. Ver, por exemplo, Silva, A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822) Cultura e Sociedade, especialmente sobre nutrição p.33- 39; Renault, Industria, Escravidão, Sociedade, uma Pesquisa Historiográfica do Rio de Janeiro no Século XIX, p.56-67. e 122-132 e Renault, O Dia-a-dia no Rio de Janeiro. Ver pesquisa sobre custos de alimentos no Rio, usando anúncios de jornal como fonte de referência: Lobo, Canavarros, Elias, Noivas, Madureira, Estudo das Categorias Socioprofissionais, dos Salários e do Custo da Alimentação no Rio de Janeiro de 1820 a 1930, in Revista Brasileira de Economia, Vol.27, n°4, out./dez. 1973, Rio de Janeiro. 438 Ver Goulart, O Comércio Ambulante do Leite no Rio de Janeiro do Século XIX, in RIHGB, n. 263 abr./jun. 1964. E também Silva, Papagaio Cozido com Arroz: Livros de Cozinha e Receitas Culinárias no Rio de Janeiro do Século XIX, S.90. 439 Ver Kidder, Fletcher, O Brasil e os Brasileiros, p.185-186. 440 Ver, quanto a este contexto, Gouvêa, O Império das Províncias, Rio de Janeiro, 1822-1889.

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publicando livros de culinária e etiqueta sobre a metrópole, que serviram como ferramenta para a sua divulgação. Eles foram publicados já a partir da época da Regencia e o Cozinheiro Imperial é uma obra importante nesse sentido. Os editores com capital mais forte do Brasil Imperial eram os irmãos Laemmert e seus concorrentes Garnier, que tinham sua sede na pomposa Rua do Ouvidor441. A alimentação no Rio de Janeiro, na esfera da elite social, é mais semelhante à Europa do que ao Brasil, o que está mais bem simbolizado nos cardápios impressos, predominantemente em Francês, por ocasião de determinados acontecimentos sociais. As refeições e bebidas ali registradas eram muito européias, o que se pode depreender também dos livros de receitas existentes, predominantemente franceses e portugueses. Além disso, eram impressos livros de receitas em Português, na França, chegando ao mercado brasileiro, como, por exemplo, o Manual de Confeitaria442. Ao contrário, a alimentação cotidiana do carioca simples não se diferenciava muito da média da alimentação do resto do Brasil. A refeição típica do Rio de Janeiro é a feijoada443. O Estado de São Paulo situa-se ao sul dos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais 444, tendo a cidade com o mesmo nome como a mais importante metrópole. Essa subregião se subdivide em uma faixa costeira marcada por características tropicais, com as cidades de Santos e São Vicente, a Serra do Mar e o planalto noroeste. O desenvolvimento na faixa costeira se iguala à faixa costeira do norte, com economia de plantações tendo a mandioca como alimento básico. Assim, a culinária da costa, chamada caiçara, é caracterizada pelo emprego de frutos do mar e frutas, o que se evidencia no prato típico azul-marinho, composto por peixe cozido com bananas.

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Sobre o significado dos editores, ver também Silva, Papagaio Cozido com Arroz: Livros de Cozinha e Receitas Culinárias no Rio de Janeiro do Século XIX, S.107-117. 442 Ver Manual de Confeitaria por Candido Borges da Silva, Paris, Livraria de Vva J.P. Aillaud , Guillhardt e cia, 1866. 443 Ver entre outros, ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.170-171. E também http://www.galanet.eu/dossier/fichiers/breve%20hist%F3ria%20da%20feijoada.pdf (23.1.2009), Elias, Breve História da Feijoada; Ditadi, Feijoada, Cozinha Brasileira, in Gula N° 67, Outubro 1998 e Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p. 191-197, e ainda Filho, Cozinha Brasileira, com Recheio de História, p.32-38. 444 Sobre a história de São Paulo, ver entre outros Morse, Formação Histórica de São Paulo; sobre o desenvolvimento social no tempo do império, ver Moura, Sociedade Movediça: Economia, Cultura e Relações Sociais em São Paulo – 1808-1850 e Oliveira, Entre a Casa e o Armazém, Relações Sociais e Eexperiência da Urbanização em São Paulo, 1850-1900.

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No decorrer do século XIX, a cidade de Santos ganhou significado, sendo o mais importante porto de todo o estado445. Aqui atracava a massa migratória européia em seu caminho para São Paulo e, devido a este fato, a cidade tem características européias. A partir da segunda metade do século XIX, o porto de Santos tornou-se de uma importância imensa para a exportação do café446. Junto à paisagem costeira, eleva-se o planalto, que marcou a região São Paulo. Bons solos, clima ameno e água suficiente determinaram o desenvolvimento da agricultura do estado. Até 1843, esse estado abrangia as regiões do Estado do Paraná, que foi então fundado. Mesmo após a separação, o Estado de São Paulo permaneceu grande, estendendo-se em grande profundidade para o interior, fazendo fronteira com o meio oeste. Devido ao clima mais ameno, pôde-se plantar trigo na região e frutas européias também puderam frutificar melhor447. A cidade de São Paulo, situada junto a dois rios, foi-se tornando ponto principal de chegada da massa imigratória a partir do século XIX e se fortificou mais ainda nessa posição no século XX, tornando-se uma metrópole urbana cosmopolita com economia e produção industrial fortes448. Devido à sua produção agrícola, a região de São Paulo participava do processo de abastecimento das regiões do ouro, primeiramente em Minas Gerais e depois no Mato Grosso; posteriormente, no século XIX, também da cidade nitidamente mais importante e maior, o Rio de Janeiro, pois para lá iam os tropeiros do sul e São Paulo tornou-se o ponto de cruzamento do comércio interior brasileiro. A cidade de Sorocaba tornou-se importante, com seu grande mercado de gado, pois ficava no centro das rotas. No século XIX, as plantações de café, que haviam se iniciado no século XVIII, se expandiram em São Paulo449. Os donos das plantações de café ficaram ricos, à semelhança dos produtores 445

Ver boa pesquisa sobre o desenvolvimento da imigração e transporte do café em Santos: Gitahy, Ventos do Mar, Trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos, 1889–1914. 446 Por isso, em 1914 foi fundada a bolsa do café em Santos, o que acentua a relevância da cidade para o comércio internacional do café. Ver Martins, História do Café, p.218-220. 447 Ver, nesse aspecto, por exemplo, observações contemporâneas em Saint-Hilaire, Segunda Viagem a São Paulo, p.200 und p.207. 448 Há estudos relevantes quanto à nutrição, como a pesquisa sobre a introdução de fogões a gás, ver http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142007000200018&lng=pt&nrm=iso (10.5.2008), Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v.15, n.2, São Paulo, jul./dez. 2007, João Luiz Maximo da Silva, Transformações no Espaço Doméstico - o Fogão a Gás e a Cozinha Paulistana, 18701930. 449 Sobre o desenvolvimento do cultivo do café em São Paulo, Martins, Historia do Café, e em relação à passagem da escravidão para o trabalho assalariado dos imigrantes nas plantações de café, ver Messias, O Cultivo do Café nas Bocas do Sertão Paulista, Mercado Interno e Mão-de-obra no Período de Transição – 1830-

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de açúcar do nordeste e criaram um alto estilo de vida, com a Casa Grande no centro da economia de plantações. É interessante observar que se formou ali um campo sócio-cultural, no qual os doces, no âmbito da alimentação, também se tornaram os crachás das famílias, embora naquela época fosse produzido pouco açúcar em São Paulo450. O consumo do café ganhou importância na sociedade brasileira451, apesar de a maior parte da produção se destinar à exportação. Aumentou o número de imigrantes europeus como mão-de-obra na região, e eles tinham que se adaptar à alimentação dos produtos ali encontrados452, e a farinha de trigo agradou aos italianos453, fazendo com que se apegassem aos seus hábitos alimentares, o que se pode constatar com o início do cultivo do vinho. A imigração internacional marcou o desenvolvimento urbano de São Paulo e também a culinária da cidade454. E a partir da produção no interior, desenvolveu-se uma cozinha internacional acompanhando o crescimento da cidade, até se tornar uma metrópole455. Mas o interior da Região de São Paulo permaneceu marcado pela característica de interiorana456 , que se evidencia através do consumo de lagartos/lagartixas e crocodilos ou a apreciada formiga iça. A composição étnica também influenciou a alimentação. Na maioria das vezes, os imigrantes das mesmas regiões de origem se assentavam nas mesmas comunidades, o que permitiu

1888. Ver quanto ao efeito do cultivo do café sobre outros ramos da economia da região, Saes, Estradas de Ferro e Diversificação da Atividade Econômica na Expansão Cafeeira em São Paulo, 1870-1900, in Szmrecsányi, Lapa, (org.), História Econômica da Independência e do Império. 450 Quanto a esse aspecto, ver Abrahao, (org.), Delícias das Sinhás, História e Receitas Culinárias da Segunda Metade do Século XIX e Início do Século XX. 451 Ver quanto ao significado do café para a identidade brasileira: Topik, Where is the coffee, Coffee and Brazilian Identity, in Revista de Historia, 139, 1998, São Paulo. 452 Ver sobre imigração: Fausto, (org.), Fazer a América; e Heck, Belluzzo, Cozinha dos Imigrantes. 453 Ver Luzzatto, Culinária da Imigração Italiana, As Comidas e suas Histórias e Sapienza, Café Amargo, Resistência e Luta dos Italianos na Formação de São Paulo. 454 Ver Heck, Belluzzo, Cozinha dos Imigrantes. Como complementação, ver Alvim, Imigrantes: A Vida Privada dos Pobres do Campo, p.254-256, in Novais,(cord.), História da Vida Privada no Brasil 3. 455 Ver sobre o desenvolvimento da gastronomia e do abastecimento de gêneros alimentícios em São Paulo: Goulart, Velho Mercado das Carnes em São Paulo, RIHGB, n. 266 jan./mar. 1965; Pierson, Hábitos Alimentares em São Paulo, in Revista do Arquivo Municipal São Paulo, Vol. 10, 1944, São Paulo; Santa Anna, Transformações das Intolerâncias Alimentares em São Paulo, 1850-1920, in História Questões & Debates, v. 42 (2005) Curitiba, Dossiê: História da Alimentação; http://www.mp.usp.br/cafe/textos/Joana%20Monteleone.pdf (25.7.2008), Joana Monteleone, Cafés, Quitandas, Quiosques. Um bom livro nesse contexto é Putz, (ed.), História da Gastronomia Paulistana, de acordo com o qual a gastronomia só tomou forma a partir de 1850, com a inauguração de hotéis e restaurantes, ver ibd., p. 76-77. Ver também o bom trabalho atual de Belluzzo, São Paulo, Memória e Sabor, que apresenta bem o desenvolvimento às p. 34-61. 456 Ver bom estudo: Florencano, Abreu, Culinária Tradicional do Vale do Paraíba. p.28-30.

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conservar a identidade cultural e também culinária457. Como prato típico da região de São Paulo apresentam-se os pratos de milho, tais como canjica e cuscuz paulista458. O significado das refeições feitas com milho aponta também para as raízes indígenas de São Paulo, onde o tupi-guarani era falado até o início do século XIX. As etnias indígenas da região usavam o milho há muito tempo como alimento básico e as refeições acima citadas podem ser consideradas como remanescentes da sua cultura459.

4.1.5 A Região Sul Essa região compreende os atuais estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul460. Situada em uma zona de clima subtropical com solo fértil, florestas e água suficiente 461, o planalto termina na região em direção ao sul, cujo trecho final forma a Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul, à qual se conecta a planície frutífera dos Pampas, que forma um bom terço da superfície do Rio Grande do Sul. Devido ao clima mais frio, plantas européias puderam ser bem difundidas462 e a agricultura se desenvolveu bem, tornando-se o ramo principal da economia da região. A Região Sul era importante para o abastecimento da Região Sudeste e, assim, cresceram estradas para o

457

Ver, por exemplo, Silva, A Alimentação e a Culinária da Imigração Italiana, in Travessia, Revista do Migrante, Ano XV, número 42, Janeiro-Abril/2002, Linguagens & Símbolos; Luzzatto, Culinária da Imigração Italiana; http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201882006000100004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt (10.5.2008), Revista Brasileira de História, vol.26, no.51, São Paulo, Jan./Jun. 2006, Flávia Arlanch Martins de Oliveira, Padrões Alimentares em Mudança: a Cozinha Italiana no Interior Paulista; Fernandes, Língua e Alimentação: Dois Elementos da Identidade Italiana em Pedrinhas Paulista. 458 Ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.180-181 e Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.116. 459 Ver Holanda, Raízes do Brasil, p.122-132 e Holanda, Caminhos e Fronteiras, p. 181-189; Campos, Clecia (org.), Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil, p. 54, segundo a qual São Paulo, através do uso indígena da planta, era o centro do cultivo do milho, seguido de Minas Gerais e Goiás. 460 No âmbito do desenvolvimento da história do Império, havia províncias situadas mais ao sul, fato determinado politicamente, como, por exemplo, a Província Cisplatina, atualmente, o Uruguai. Como já anteriormente mencionado, o Estado do Paraná fez parte de São Paulo até 1843. Ver: http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista1-mat1.pdf , Brasil: Informações Gerais sobre as Diferentes Regiões. 461 A Região Sul é suficientemente abastecida de água, fornecida por diferentes rios, como o Rio Paraná. Na região fronteira entre o Paraná e o Paraguai, encontram-se as Cataratas do Iguaçu e, no Rio Grande do Sul, a Lagoa de Patos é uma das maiores do mundo. 462 No sul do Brasil, o inverno é frio. Ver Antunes, Brasil: Problemas e Perspectivas, p.139-141. Ver Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, p.113. Apresentação contemporânea em Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p.58, havendo referência ao cultivo das seguintes frutas nas proximidades de Porto Alegre: amêndoas, pêssegos, peras, cerejas, uvas e ameixas. Foram vistas até oliveiras. Ver também p. 78, ou ainda p.106, com descrição do cultivo de laranjas, figos e pêssegos, além da referência ao cultivo do trigo e do pão de trigo.

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comércio, sobre as quais os tropeiros transportavam as mercadorias e o gado, do sul em direção ao norte. Eles influenciaram uma refeição típica do sul do Brasil, o arroz de carreteiro463. Conforme citado anteriormente, produzia-se464 vinho na região, iniciada pelos imigrantes italianos, que deixaram também influência permanente na culinária da região, por exemplo, na polenta. A produção de vinho no sul limitava-se às regiões com traços de montanhas, como no Paraná e Santa Felicidade e, mais ao sul, na Serra Gaúcha, onde hoje se produzem os melhores vinhos no Brasil. Outros imigrantes europeus, juntamente com os italianos, foram assentados também na região, para fortalecimento das fronteiras465. Tiveram importância, nesse sentido, imigrantes de língua alemã na região durante o século XIX, que foram assentados já no início do século. O foco do assentamento alemão fica assim no sul, com centro cultural no Estado de Santa Catarina, onde surgiram as cidades alemãs de Blumenau e Brusques, paralelamente a muitos outros assentamentos. No Paraná e no Rio Grande do Sul, há uma parte relativamente grande da população que apresenta ascendência alemã, o que pode ser visto ainda hoje no uso da língua e em festas, como, por exemplo, a maior Oktoberfest fora da Alemanha que acontece em Blumenau, conhecida no Brasil inteiro.

Uma outra

característica cultural importante da colonização alemã no sul do Brasil são as tradições do café com bolo alemão e a introdução da culinária burguesa. Por isso, existe no sul o conceito de “Café Colonial“, uma espécie de tábua para café com todos os tipos de biscoitos, tortas e bolos. A receita de cuca deve ter-se apoiado no original Rührkuchen [bolo simples] alemão466. 463

Ver uma boa apresentação dessa rota comercial em Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros. Ver ainda Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.198-199; Filho, Giovanni, Cozinha Brasileira com recheio de história, p. 22-26; também Castillo, Fogão Campeiro, Receitas Gaúchas, p.63 e Lody, Brasil Bom de Boca, Temas da Antropologia da Alimentação, p.60-61, e ainda Laytano, A Cozinha Gaúcha na Historia do Rio Grande do Sul, p.64. 464 Sobre o cultivo do vinho no Brasil, Santos, O Vinho Nosso de Cada Dia, p.43-45 e Laytano, A Cozinha Gaúcha na História do Rio Grande do Sul, p.95—96. Ver ainda Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p.133-135. 465 No Paraná, há também colonos de origem polonesa e ucraniana, ver Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, p. 138-142, além dos numerosos italianos e holandeses, ver ibd., p. 160-161. Ver a respeito dos italianos: Jacoby, Cozinha Gaúcha, uma Mistura Muito Bem Feita, capítulo III, Cozinha Italiana, p.95-120. Assim, há uma gastronomia italiana na região, ver Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, p.44-63. Ver sobre a imigração no Paraná: Santos, História da Alimentação no Paraná, p.68. Ver Piccolo, Imigração Alemã e Construção do Estado Nacional Brasileiro Rio Grande do Sul, Século XIX; Piazza, Açorianos e Madeirenses no Sul do Brasil, em Acervo, Revista do Arquivo Nacional, Volume 10 Numero 2, Jul/Dez 1997, Imigração. Ver ainda Kühn, Breve História do Rio Grande do Sul, p.87-98, ver também Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p. 159. Sobre os imigrantes dos Açores no Rio Grande do Sul, ver Kühn, Breve História do Rio Grande do Sul, p. 55-59. 466 Ver Laytano, A Cozinha Gaúcha na História do Rio Grande do Sul, p.84-89, e Jacoby, Cozinha Gaúcha, Uma Mistura Muito Bem Feita, capítulo IV Cozinha Alemã, p.121-128; assim como Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, p.68-76. Ver também a apresentação de Stutzer, In Deutschland und Brasilien, Lebenserinnerungen von Gustav Stutzer, que vivia em Blumenau e fez conferências sobre a colonização no

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O alimentaçao influenciada pela alemaes ainda se percebe nas principais regioes da immigraçao alema467. Na Região Sul, o trigo foi cultivado com sucesso, principalmente no Rio Grande do Sul e teve um bom desenvolvimento no século XVIII, tendo entrado em crise no início do século XIX, devido a doenças e à importação dos Estados Unidos e do espaço. No Paraná, o cultivo do trigo também foi positivo468. Os pessegueiros também se adaptaram bem ao clima e ao solo, tendo, por isso, a fama de serem a fruta típica, principalmente no Rio Grande do Sul. Dele se derivam vários doces, como, por exemplo, a pessegada, uma pasta feita de pêssegos e açúcar, sendo a mais famosa a origone, pêssegos secados ao sol servidos com arroz, o arroz com origone, a sobremesa típica do Rio Grande do Sul469. Contudo, o papel mais importante na agricultura do sul do Brasil é desempenhado pela pecuária. Por isso, os pecuaristas eram as pessoas politicamente mais influentes da região e os conflitos em torno dos solos mais férteis para o pasto influenciavam a Política do Império em relação aos estados vizinhos do sul. A criação de gado no sul do Brasil teve início já no século XVII, marcada em seus primórdios pelas reduções dos jesuítas. Na região frutífera, o gado se reproduzia mais rapidamente. No final do século XVIII, foram abatidas mil cabeças para produção de couro, mas os que restaram conseguiram se restabelecer470. Alinhando-se à tradição cultural da estepe gramífica da América Espanhola, desenvolveu-se no Rio Grande do Sul uma criação de gado semelhante471. O gaúcho, pastoreador de gado montado a cavalo, marcou bastante o Estado do Rio Grande do Sul, cujos habitantes são denominados de gaúchos.

Brasil. Ver também o estudo de Schulz, 1865, Studien über agrarische und physikalischen Verhältnisse in Südbrasilien in Hinblick auf die Colonisation und die freie Einwanderung. 467 Ver por expemplo o estudo sobre Parana http://www.historiadaalimentacao.ufpr.br/grupos/textos/culinaria_alema.PDF (25.7.2008) Reinhardt, Juliana Cristina, Tradições culinárias de alemães em Curitiba: Comida. Memória e identidade. 468 Sobre o cultivo do trigo no Rio Grande do Sul, ver: Kühn, Breve Historia do Rio Grande do Sul, p.61-62. Ver Santos, História da Alimentação no Paraná, p.142-150. Além disso, na Região Sul, cultivava-se também o arroz, que hoje é um dos principais produtos de exportação do Rio Grande do Sul. 469 Ver Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.199. 470 Ver sobre o desenvolvimento das várias raças bovinas e sua distribuição na região: Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, p.64- 69. Ver também Laytano, A Cozinha Gaúcha na História do Rio Grande do Sul, p.27-29. Em termos de contemporaneidade: Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p.32. Ver ainda Spencer L. Leitman, Cattle and Caudillos in Brazil's Southern Borderland, 1828 to 1850, Ethnohistory, Vol. 20, No. 2 (Spring, 1973), pp. 188-198, à p.190 há uma boa apresentação de um mapa regional e rotas do gado da região. 471 Ver sobre o significado de Gaúchos como passagem entre Espanhois e Portuguêses na América, Lima, Tachos e Panelas, Historiografia da alimentação brasileira, p. 110.

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O consumo de carne de boi é especialmente grande aqui e, de acordo com descrições da época do Império, alimentam-se quase que exclusivamente durante as três refeições principais de carne. Saint-Hilaire relata a respeito da maneira mais impressionante: „Desde que me encontro nesta capitania, já tive oportunidade de presenciar os hábitos carnívoros de seus habitantes; em redor das estâncias encontram-se espalhados muitos ossos de animais; e logo que se entra nessas fazendas, sente-se logo cheiro de carne e de sebo. “472. ... „Nesta região ninguém come outra coisa. Carne assada, carne cozida, carne em guisado ou cortada em pequenos pedaços; sempre carne, e quase sempre, de vaca ou de boi. “473. O método tradicional de preparo é a carne grelhada, como fogo do chão ou churrasco474, que se assemelha ao assado do espaço La Plata. Saint-Hilaire descreve-o como se segue: “Apenas chegado ao lugar onde pernoitei, o meu soldado acendeu uma grande fogueira; cortou a carne em grandes nacos da espessura de um dedo, fez ponta numa vara de, aproximadamente, dois pés de comprimento, cravou-a em forma de espeto numa porção de carne, atravessou nesta outros pedaços de madeira em sentido transversal, para que ela ficasse bem estendida; enfiou o espeto obliquamente na terra, levando ao fogo um dos lados da carne e, quando o julgou suficientemente assado, expôs o outro lado ao fogo. Ao fim de um quarto de hora, o assado podia ser comido; era uma espécie de beef-steak suculento, mas extremamente duro. Na viagem que fiz em companhia do conde, já vira seus peões e soldados prepararem as refeições desse modo.” 475.

472

Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p.51. Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p.134; na p.83, ele menciona o costume de não dependurar a carne, como se faz na Europa. 474 Sobre o significado do churrasco, ver Maciel, Churrasco à Gaúcha, in Horizontes Antropológícos, Comida, Ano 2, Número 4, Janeiro/Junho, 1996, Porto Alegre, p.34: „Associado à figura do gaúcho, o churrasco remete a alguns aspectos que concernem ao processo de construção de identidades regionais envolvendo, de um lado, a „tipificação“ ou a estereotipia pela qual certos elementos culturais são utilizados como indicadores identitários e de outro a uma forma de ritual de comensalidade.”. Ver também Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, p.33-37. Desenvolveu-se assim um domínio semântico ao redor do termo específico do Churrasco, ibd., p.35. Ver também Jacoby, (ed.), Cozinha Gaúcha, Uma Mistura Muito Bem Feita, p.34 e Castillo, Fogão Campeiro, Receitas Gaúchas, p.15-17. Ver além disso Laytano, A Cozinha Gaúcha na História do Rio Grande do Sul, p.42-48, com receitas nas quais a carne é grelhada junto com o couro. Ver também Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p. 150-151, e ainda Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.202-203. 475 Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 135. 473

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Juntamente com o subproduto couro, a produção de carne de boi cresceu a ponto de se tornar o principal produto de exportação na forma de charque476, cuja produção se concentrava nos arredores da cidade de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul. Ao fim do século XVIII e início do XIX, tocava-se aqui uma produção protoindustrial de carne seca. Em Pelotas, havia vários abatedouros, para aonde os rebanhos de gado eram tocados ao iníciar-se a época da seca. Assim, a produção de couro e de carne seca no sul do Brasil aproveitava-se da instabilidade política no espaço La-Plata na primeira metade do século XIX. As charqueadas representavam um microcosmo de trabalho duro, mal cheiroso, cercado de moscas e urubus, feito principalmente por homens escravos477. Daqui eram abastecidas muitas regiões do Brasil com a carne seca, importante para a economia da escravidão, e a cidade conseguiu enriquecer, o que se evidenciava mais nitidamente na produção das suas famosas sobremesas. Hoje em dia, os Doces de Pelotas são famosos e conhecidos em todo o Brasil478. A título de complementação, uma caça apreciada na estepe da região era o grande pássaro emu e seus ovos479. Partindo da tradição indígena do consumo do chá-mate, que era também muito difundido na espaço La-Plata, o chá era produzido e consumido em toda a Região Sul e continua sendo até hoje uma expressão importante da identidade regional480, o que foi descrito como se segue pelo viajante Saint-Hilaire: “O uso dessa bebida é geral aqui: toma-se mate no instante em que se acorda e, depois, varias vezes durante o dia. A chaleira cheia de água quente esta sempre ao fogo e, logo que um estranho entre na casa, oferecem-lhe mate imediatamente. O nome de mate e propriamente o da pequena cuia onde ele é servido, mas da-se também a bebida ou a quantidade de liquido contido na cabaça; assim diz-se que se 476

Sobre a exportação de charque, ver também Kühn, Breve História do Rio Grande do Sul, S.63-66. Ver uma apresentação sobre abate e secagem da carne p.45, in Leite, Charqueadas de Danúbio Gonçalves, Um Resgate para Historia. Apresentação contemporânea em Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 109-122. Saint-Hilaire ressalta também a necessidade da importação de sal para a produção de carne seca. 478 Há vários livros de receitas que se ocupam dessa temática. Ver a pesquisa detalhada que levou ao reconhecimento pelo IPHAN, Rieth, Flavia Maria Silva (cord.), Inventário Nacional de Referências Culturais, Produção de Doces Tradicionais Pelotenses, Relatório Final, Pelotas, 2008, ver também Laytano, A Cozinha Gaúcha na História do Rio Grande do Sul, p.107, e ainda Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p. 149. 479 Ver a apresentação em Saint-Hilaire, p. 280-282 e S. 410. Ver ainda Seidler, Dez Anos no Brasil, p.87. 480 Ver Maciel, Chimarrão – Identidade, Ritual e Sociabilidade, in Maciel, Gomberg (org.), Temas em Cultura e Alimentação. Ver sobre o consumo e produção de mate: Santos, História da Alimentação no Paraná, p.26-27 sobre a exportação, a partir da qual se formou uma burguesia do mate, que podia comprar produtos de exportação caros, ver p. 59. Ver sobre o complexo do mate no Paraná p..151-172. Ver também Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, pp.15-22 e Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.200201; Lima, Tachos e Panelas, Historiografia da Alimentação Brasileira, S. 71. 477

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tomaram dois ou três mates, quando se tem esvaziado a cuia duas ou três vezes.… Os verdadeiros apreciadores do mate tomam-no sem açúcar, e então se obtém o chamado mate-chimarrão.” 481. Outros produtos agrícolas igualmente importantes, além do milho, são as sementes chamadas pinhão482, provenientes de uma espécie de pinheiro bravo, a araucária, que existem com mais frequência no Paraná. Uma comida típica do Paraná é o barreado483. 4.2 A Cozinha/Culinária Colonial Com a descoberta, a conquista e a povoação do Brasil pelos portugueses, a partir de 1500, desenrolou-se um processo, durante o qual houve uma troca de plantas, animais, técnicas e gostos, contexto global. Com isso, a culinária do Brasil no século XIX, enquanto esboço da valorização culinária das fontes de alimentos existentes no conjunto dos conhecimentos culturais quanto a técnicas e gostos, surgiu somente de uma fusão de 300 anos da tradição alimentar secular dos indígenas e dos portugueses, que trouxeram, além disso, pessoas e seus bens culturais, tais como plantas e animais de outros continentes para a América. 4.2.1 Imperialismo Ecológico e Base Indígena Os navegantes portugueses não se limitavam às plantas úteis conhecidas por eles em Portugal, faziam uma permuta global com plantas da Ásia e África, que espalharam pelo Brasil, distribuindo também plantas do Brasil em seu Império Colonial. Com o início da expansão européia, os portugueses se revelaram como os „preparadores do caminho“ dessa prática de distribuição global, da qual participaram também posteriormente outras nações européias de modo semelhante. Uma característica especial desse comércio português é, contudo, a troca de produtos com vários continentes. Ainda na fase de expansão portuguesa das ilhas, foram levados às Ilhas do Atlântico, como a Ilha da Madeira, animais, plantas, sendo a principal a cana de açúcar, e também força de trabalho. Plantas úteis da Índia, como o coco, por exemplo, 481

Ver Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p.136. Ver Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, p.114- 118. Ver Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, pp.134-135. O nome da capital do Paraná, Curitiba, deriva-se do Tupi e significa: kuri (Pinhas de pinheiro) tyba (excesso). Apresentação contemporânea em Saint-Hilaire, Viagem ao Rio Grande do Sul, p.72. 483 Ver Marcellini, Caminhos do Sabor: Rota dos Tropeiros, p.145- 147, ver também Chaves, Freixa, Larousse da Cozinha Brasileira, p. 145 e Fernandes, Viagem Gastronômica através do Brasil, p.192-193 e Filho, Giovanni, Cozinha Brasileira, com Recheio de História, p.91-95. De acordo com anotações, o prato tem, no mínimo, 200 anos de idade. Ver também http://www.mre.gov.br/dc/textos/revista13-mat15.pdf (20.9.2009) Santos, Carlos Roberto Antunes dos, O Sabor do Paraná, Que a Festa Comece: O Barreado, uma Expressão Artesanal da Cozinha Paranaense. 482

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ou a mangueira, foram levadas para o Brasil, enquanto, por exemplo, o mamoeiro ou o caju foram levados do Brasil para a Ásia e África. A raiz do inhame e a bananeira vieram da África para o Brasil e a mandioca e o milho foram levados do Brasil para a África. De Portugal vieram as frutas cítricas e o milho foi levado para Portugal. Hoje em dia, o Brasil é inimaginável, sem as plantas importadas, como as palmeiras que caracterizam as praias ou os extensos campos de cana-de-açúcar484. A alimentação no Brasil baseava-se, antes da chegada dos europeus, na mandioca rica em carboidratos, no milho e na batata doce, que eram complementadas com a carne de caça ou com a pesca, assim como com vitaminas da grande variedade de frutas e legumes485. Contudo, algumas plantas brasileiras merecem menção especial além do milho e da mandioca, o caju, abacaxi, mamão, palmito, amendoim, castanha do Pará e a pimenta486. As etnias indígenas dispunham de diferentes técnicas de extração e processamento de gêneros alimentícios e as diferentes etnias indígenas do Brasil desenvolveram técnicas diferentes para obterem as fontes de alimentos. Exemplificando: A caça com flechas envenenadas ou a pesca com nassa e veneno, domesticação da mandioca e de tanajuras [formigas aladas] e a técnica das queimadas para as hortas. Contudo, por volta de 1.500, somente uma área de 1 milhão até 1 ½ milhão de hectares era utilizada na agricultura487. Desenvolveram também métodos para a conservação dos alimentos, como assá-los sobre o moquem, secagem e métodos de preparo 484

Ver Loth, Das portugiesische Kolonialreich; Boxer, O Império Marítimo Português: 1415-1825 e Ramos, No Tempo das Especiarias, O Império da Pimenta e do Açúcar; quanto ao aspecto da troca global de plantas, ver, por exemplo: Franҫa, O Laboratório Colonial, in Sabores, Gastronomia e Historia, ano IV, Tiradentes e Gramado, 2008; sobre intercâmbio com a Índia, ver: Erédia, Suma de Árvores e Plantas da Índia Intra Ganges e Rego, A Manga em Goa, in Oriente 3, Agosto 2002, Flores e Jardins nas Narrativas de Viagem, Lisboa; e Xavier, Plantas Indiáticas no Brasil, in RIHGB n. 314 jan./mar. 1977. Dessa maneira, a cozinha portuguesa e seu entendimento culinário foram difundidas pelo mundo todo, ver Hamilton, Os Sabores da Lusofonia, no qual se descrevem as cozinhas de todas as partes do Império Colonial Português daquela época; ver ainda quanto a este aspecto: Castelo-Branco, A Expansão Portuguesa e a Culinária; e quanto às possessões portuguesas na Índia e seu desenvolvimento local, ver Sousa, Cozinha Indo- Portuguesa, Receitas da Bisavó. 485 Ver a listagem dos animais e plantas do Brasil antes de 1500 e que eram usados na alimentação in Hue, Delícias do Descobrimento, A Gastronomia Brasileira no Século XVI, p.23-52 frutas, p.59-101 legumes e cereais, p.105-129 mamíferos, p. 133-146 aves, p.147-169 peixes, p.170-175 frutos do mar, p.176-184 répteis e sapos, p.185-187 insetos. Os primeiros relatórios de viagem também descrevem os animais e plantas que não conheciam , ver por exemplo De Lery, Unter Menschenfresser am Amazonas, Brasilianisches Tagebuch 15561558 e Staden, Brasilien: die wahrhaftige Historie der wilden, nackten, grimmigen Menschenfresserleute. Ver como registro científico da fauna e flora do Brasil: Piso, Historia Natural e Médica da Índia Ocidental. Ele nomeia os objetos em Brasileiro, Português e Holandês, mencionando a possibilidade de uso das plantas e animais para a nutrição. Ver a apresentação das frutas do Brasil de 1702 in: Rosário, Frutas do Brasil. 486 Ver Silva, Culinária Colonial, 23-25, in Oceanos, N. 42, Viver no Brasil Colonial, Abril/Junho, 2000, Lisboa. Recomenda-se Kiple, Ornelas, (eds.), The Cambridge World History of Food Vol. I. & II., para esclarecimento da origem de muitas plantas úteis e de relevante valor nutritivo. 487 A esse respeito e quanto às queimadas para formação de hortas: http://www.jstor.org/stable/3984562 (3.3.2009), Environmental Review: ER, Vol. 10, No. 2 (Summer, 1986), pp. 122-133, John R. McNeill, Agriculture, Forests, and Ecological History: Brazil, 1500-1984.

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tais como cozer, grelhar, moer e socar. O sal era extraído das cinzas de determinadas plantas e bebidas alcoólicas produzidas por meio da fermentação pelo cuspe. Muitos gêneros alimentícios conservam denominações indígenas até hoje488. Os conquistadores se apoderaram igualmente desse conhecimento, importante para a sobrevivência no início da colonização, sempre tentando usar o novo alimento de acordo com sua cultura alimentícia. Adquiriram esse conhecimento porque conviviam com as mulheres indígenas, antes que fossem substituídas pelas mulheres de origem africana, no decorrer da época colonial. Assim, receberam os alimentos indígenas como a mandioca e o milho e os instrumentalizaram com o correr do tempo. As etnias indígenas administravam seu espaço vital com equilíbrio e os problemas com o abastecimento surgiram somente com a passagem para economia de exportação e a monocultura489. Sem o conhecimento das plantas e dos animais úteis, assim como do seu preparo, todo o povoamento da América teria, com certeza, fracassado.

Os relatórios de viagem dão

testemunho de quanto os europeus estavam presos a seus hábitos alimentares. Assim, o uso da farinha de mandioca foi considerado como substituto do pão e produziu-se vinho das frutas nativas. Ambos os produtos eram as bases da tradição alimentar européia. Nesse sentido, o uso indígena da farinha de mandioca em combinação com uma base de carne ou peixe, misturados como mingau nutritivo, correspondeu à imagem que os europeus faziam de uma refeição490. O mingau era um preparo básico consumido pelas classes baixas da Europa. A existência do feijão no Brasil também agradou aos portugueses, sendo talvez um dos motivos para o significado do feijão como alimento básico no Brasil até hoje.

488

Ver, por exemplo, Cascudo, História da Alimentação no Brasil, capítulo Cardápio Indígena. E também Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, pp.15-29. A esse respeito, Lima, Tachos e Panelas, Historiografia da Alimentação Brasileira, p.13. Uma boa apresentação, geral e nítida, de plantas úteis e selecionadas do Novo Mundo: Ewald, Pflanzen Iberoamerikas und ihre Bedeutung für die neue Welt, pp.48-54 in Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas, Band 32, Köln, 1995; ver ainda Silva, Culinária colonial in Oceanos, N. 42, Viver no Brasil colonial, Abril/Junho, 2000, Lisboa. Resta observar ainda que o canibalismo existente entre algumas etnias não era feito por motivos técnico-nutritivos e que novas abordagens vêm tal fato com olhos críticos e que, por exemplo, as descrições de Hans Staden são consideradas como pura invenção. Ver Peter-Röchler, Mythos Menschenfresser, Ein Blick in die Kochtöpfe der Kannibalen. 489 Ver, Ribeiro, A História da Alimentação no Período Colonial, p.12-15. Ver Crosby, Die Früchte des weissen Mannes, p.140. Ver também a título de complementação Vasconcellos, Observações sobre a Alimentação dos Brasilindios na Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, in Arquivo Iberoamericano de Historia de la Medicina y Antropologia Medica, Vol. 9 (1957). 490 Ver quanto à compreensão da alimentação indígena do ponto de vista europeu: Silva, Culinária Colonial, 2325, in Oceanos, nº. 42, Viver no Brasil Colonial, Abril/Junho, 2000, Lisboa. Sob o mesmo aspecto, os diferentes relatórios de viagem dos séculos XVI e XVII fornecem também comprovações suficientes.

115


Poucos anos após o descobrimento, iniciou-se o povoamento e a conquista do Brasil e, nesse processo, teve início também a permuta de plantas e animais 491. Enquanto algumas plantas européias úteis não se davam bem com o clima, principalmente o clima tropical, outras como a cana-de-açúcar desenvolviam-se muito melhor. Falharam as primeiras tentativas de plantar trigo, uvas, azeitonas, amêndoas e outros tipos de frutas no clima tropical do Brasil. Só mais tarde, após a conquista do planalto mais frio de São Paulo e Minas Gerais e do sul do Brasil, com clima subtrópical mais ameno é que os portugueses obtiveram sucesso. Ao contrário, plantas oriundas de regiões climáticas tropicais ou subtropicais aclimatizaram-se bem. A cana-de-açúcar, levada pelos árabes do espaço índico para a região do Mar Mediterrâneo, adaptou-se excelentemente. Além disso, as plantas úteis nativas foram integradas na agricultura colonial, para assegurar o abastecimento492. Os animais europeus se adaptaram bem ao novo mundo e assim os portugueses trouxeram animais domésticos europeus para o Brasil: porcos, frangos, bois, ovelhas, cabras, cães, gatos, burros, mulas e cavalos 493. O

491

Ver sumário das plantas importadas com dados sobre sua origem e data de importação in Doria, A Formação da Culinária Brasileira, p.37-38. Apesar de o aspecto da entrada das plantas no Brasil ser importante nesse estudo, a afirmação acertada de Ursula Ewald dever ser citada: „Sabe-se que o Novo Mundo forneceu mais plantas ao Velho Mundo do que dele recebeu, sendo que a troca de plantas ainda não está encerrada.”. Ver Ewald, Pflanzen Iberoamerikas und ihre Bedeutung für die neue Welt, pp.33-34, in Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas, Band 32, Köln, 1995. No contexto da fauna, o desenrolar dos acontecimentos tomou outra duração, visto os europeus já terem levado um grande número de animais para a América, intencionalmente ou não; contudo, quanto a animais úteis, apenas o peru foi levado para a Europa tendo um objetivo em vista e obtendo sucesso no empreendimento. 492 Ver quanto a esse aspecto bem geral Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil; Campos, Clecia (eds.) Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil; Ewald, Speise und Trank in Lateinamerika, 16.-20. Jahrhundert in Heidelberger Geographische Arbeiten, Heft 100, Heidelberg, 1995; Super, Wright, Food, Politics and Society in Latin América; Super, Food, conquest and colonization in 17 th-century Spanish América; Pohl, Die Landwirtschaft Brasiliens in der Kolonialzeit in Becker, Meding, Potthast-Jutkeit, Schüller (Hg.); Iberische Welten, Sonderdruck e Cascudo, História da Alimentação no Brasil. Ver também http://www.jstor.org/stable/3984562 (3.3.2009), Environmental Review: ER, Vol. 10, No. 2 (Summer, 1986), pp. 122-133, John R. McNeill, Agriculture, Forests, and Ecological History: Brazil, 1500-1984. 493 A questão das abelhas é controversa, visto algumas etnias indígenas já terem conhecimento do mel como adoçante e serem até apicultores e, por isso, deve-se duvidar da afirmação de Ursula Ewald: „Die Haustiere aus Europa wie Pferd, Rind, Maultier, Esel, Schwein und Huhn und die altweltliche Biene veränderten auf dem amerikanischen Doppelkontinent das gesamte Leben.“ aus Ewald, Speise und Trank in Lateinamerika, 16. – 20. Jahrhundert, in Heidelberger Geographische Arbeiten, Heft 100, Heidelberg, 1995. Ver menção a abelhas americanas em Silva, Culinária Colonial, p.24, in Oceanos, N. 42, Viver no Brasil colonial, Abril/Junho, 2000, Lisboa e Holanda, Caminhos e Fronteiras, p.43-54. Para alegria dos colonos, o número de cabeças de gado aumentou bastante, ver relatórios resumidos in Hue, Delícias do Descobrimento, A Gastronomia Brasileira no Século XVI, pp.130-131. Segundo Crosby, Die Früchte des weissen Mannes, p.176, o gado bovino apresenta duas vantagens em relação ao gado suíno, da perspectiva dos homens. A primeira reside no fato de possuírem um regulador de calor mais eficiente, podendo assim viver melhor em regiões mais quentes e a segunda, no fato de processarem a celulose, indigerível para os humanos, transformando-a em leite e carne. Além do mais, podem servir como animais de tiro/usados no trabalho. Ver também nesse sentido: http://www.jstor.org/stable/3984562 (3.3.2009) Environmental Review: ER, Vol. 10, No. 2 (Summer, 1986), pp. 122-133, John R. McNeill, Agriculture, Forests, and Ecological History: Brazil, 1500-1984, S.1986: „ European animals played a major role in reshaping the Brazilian landscape.“.

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numero do gado bovino cresceu hapido494, que tem a vantagem de dar bem com o calor e serviu como força do trabalho e deposito nutritivo. Não só os animais e as plantas, mas também as doenças, ervas daninhas, roedores e insetos da Europa e da Ásia puderam se multiplicar muito bem e rapidamente no novo espaço vital, visto existirem poucos ou nenhum predador natural para eles495. A. Crosby denomina o resultado dessa evolução Imperialismo Ecológico496. Há numerosos exemplos de doenças como a gripe, varíola, cólera e também a malária, que se espalharam entre as etnias indígenas, representando uma importante preparação do caminho para a expansão européia na América, visto os índios não possuírem qualquer resistência contra aquelas doenças. Além disso, as doenças atingiam até etnias que viviam bastante afastadas, muito antes de terem qualquer contato com europeus. Como exemplos mais persistentes, citamos a expansão da „bicharada nociva“ e dos camundongos, assim como a da malária na América do Sul. 4.2.2 Fusão da Técnica e Paladar Um aspecto de peso no desenvolvimento da culinária no Brasil é representado pela fusão de paladar e técnica. Os portugueses não trouxeram só novas plantas e animais, mas também substâncias que acentuavam o paladar, como temperos e novos métodos de preparo e conservação. A influência mais importante na alimentação brasileira foi a introdução de temperos básicos, como o açúcar, o sal, ácidos como o vinagre e frutas cítricas. Os sabores básicos já eram conhecidos pelos indígenas, visto o sal ser extraído das cinzas de plantas, o sabor doce já estar presente na forma de açúcar de frutas maduras e mel, e o sabor ácido, em frutas como o maracujá e o sumo fermentado da mandioca, o tucupi. Contudo, os portugueses dispunham, através do sal, açúcar e vinagre e frutas cítricas, de produtos que, por um lado, podiam ser conservados por mais tempo, podiam ser transportados e, por outro lado, tinham um efeito mais intenso. Além disso, os três produtos podiam ser usados de modo excelente para a conservação dos alimentos, por exemplo, carne e peixe podem ser conservados por meio do sal. Através de um processo de osmose, extrai-se a água excedente do objeto em 494

Ver Hue, Delicias do Descobrimento, A Gastronomia Brasileira no Secilo XVI, p.130-131. Quanto a isso, predadores naturais dos mamíferos europeus, remeto ao fato de os animais selvagens carnívoros do Brasil, como a raposa, o cachorro do mato, o jaguar e a pantera, preferirem animais de menor porte à vaca e seus predadores naturais são as cobras e os parasitas, principalmente devido à quantidade de ambos, sendo que o Brasil é um dos países com a maior quantidade de cobras no mundo. 495

496

Ver quanto ao conceito de imperialismo ecológico o livro do Crosby, Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900-1900.

117


questão e, com isso, a bactéria que destrói o alimento perde sua base vital. A conservação do mais importante alimento básico português, do bacalhau, é feita por meio desse processo, assim como a produção de carne seca, charque e carne de sol 497. O sal era importante também na pecuária e para manter unidos os rebanhos e as caravanas de mulas498. A conservação de frutas em combinação com o açúcar baseia-se também em um processo de osmose, contudo, frutas eram cozidas com açúcar para se fazer geléia ou xarope. Essa técnica veio também com os portugueses para o Brasil, tendo sido utilizada aqui em todo o território, como o comprovam muitos livros de receitas e receitas escritas à mão499. De igual importância era o uso do óleo e da gordura no preparo das refeições, produtos que contribuíram muito para o paladar das refeições, além de poderem ser usados também no processo de sua conservação. Óleo e gordura, extraídos de plantas como o milho, nozes, sementes ou na forma de gordura animal, como a manteiga ou banha, são importantes condutores de sabor, que incorporam o sabor dos alimentos que entram em contato com eles. Assim, o óleo pode ser aromatizado por meio de ervas e temperos e, além disso, algumas vitaminas se dissolvem apenas na gordura, como o betacaroteno da cenoura. A técnica do aquecimento dos alimentos, da fritura com óleo ou gordura não era conhecida pelas etnias indígenas brasileiras. Para sua conservação, gêneros alimentícios podem ser imersos em óleo ou cozidos em sua própria gordura, sendo depois armazenados, surgindo daí confit. Era assim que se conservavam as famosas costelas de porco de Minas Gerais. Do caminho das Índias, os portugueses trouxeram mais temperos para o Brasil, que enriqueceram a culinária500. E dessa maneira o alecrim, o manjericão, a salsa, a cebola e o alho e muitos outros temperos chegaram à América Portuguesa, enquanto da Índia vieram a pimenta, o gengibre, cúrcuma, cravo e a canela. Quando se instalou o comércio de escravos, novos alimentos e técnicas e sabores culinários, tais como o óleo de coco, quiabo, banana, 497

Essa técnica de conservação é largamente difundida, por exemplo, o salmão „enterrado“ da Escandinávia, ou ainda a conservação de arenques na Holanda, sendo que, aqui, acrescenta-se ainda um processo de fermentação, adicionando-se restos de intestino ao arenques. A produção de chucrute na Alemanha e na França também se baseia em um processo de salgamento. Nesse contexto, restaria pesquisar até que ponto os habitantes dos Andes também usariam sal para a produção de charque de carne de alpaca. 498 Ver Del Priore, Venâncio, Uma História da Vida Rural no Brasil, p.76 und Crosby, Die Früchte des weissen Mannes, p.179. 499 Ver Algranti, Alimentação, saúde e sociabilidade: A arte de conservar e confeitar os frutos (Séculos XVXVIII), in História Questões & Debates, v. 42 (2005) Curitiba, Dossiê: História da Alimentação und Braga, A arte nova e curiosa para conserveiros, confeiteiros e copeiros, e mais pessoas que se ocupam em fazer doces e conservas com frutas de varias qualidades e outros muitas receitas particulares que pertencem a mesma arte Lisboa 1788. 500 Ver Hue, Delícias do Descobrimento, A Gastronomia Brasileira no Século XVI, pp.77-79.

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inhame e coco chegaram ao Brasil, oriundos da África. Esses produtos eram empregados, no início, para a alimentação dos escravos no Brasil, encontrando seu caminho para a Casa Grande e para a cozinha brasileira, através dos escravos, que trabalhavam na cozinha. E nesse mesmo contexto do comércio escravo, foram introduzidas plantas na África, com o principal objetivo de fazer com que os escravos se acostumassem ao novo alimento. Da mesma maneira, os escravos da África Ocidental, que já tinham experiência com o cultivo do arroz em sua região, eram deportados para as regiões de cultivo do arroz no Brasil. Conhecimentos técnicos dos escravos foram também levados em consideração na mineração ou na pecuária501. Esse processo de permuta continuou durante toda a época colonial, por um lado continuavam chegando pessoas de diferentes partes do mundo e, por outro lado, novas regiões no interior do Brasil eram anexadas pelos bandeirantes. Eles entravam em regiões com recursos alimentícios desconhecidos até aquele momento, que conquistavam para a colônia, ou em forma de alimentos ou por meio de posse do conhecimento nos espaços naturais, como o do Sertão. Essa experiência foi adquirida através de luta, de acordo com relatórios sobre fome e falta de alimentos, até que se introduzisse o tipo de ação adequada. Assim, no caminho de ida durante os avanços pelo interior, foram feitas plantações de milho para que, na volta ou durante outras expedições, já houvesse alimento disponível. Um outro tipo de ação que se impôs durante expedições posteriores e maiores foi o uso dos rios, de modo a poder transportar mais alimentos; além disso, enviavam na frente botes leves da expedição principal, para que seus ocupantes pudessem caçar com tranquilidade e abastecer, assim, o corcel principal502. O comércio se expandia no decorrer dos séculos e importavam-se gêneros alimentícios para o Brasil. Com exceção do peixe seco para abastecimento da alimentação dos escravos nas plantações, a importação servia, em primeira linha, às necessidades de consumo da classe alta. Os suprimentos da população, em geral, era feito através do mercado interno até o século XX 503

. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a classe média, que aumentava vagarosamente,

conseguiu ter acesso aos produtos importados, o que pode ser comprovado por meio da oferta

501

Sobre esse processo sociocultural ver: Freyre, Herrenhaus und Sklavenhütte, Ein Bild der brasilianischen Gesellschaft. 502 Ver Silva, Culinária Colonial, pp.25-26, in Oceanos, N. 42, Viver no Brasil Colonial, Abril/Junho, 2000, Lisboa. 503 Ver Ewald, Der Mensch und seine Umwelt, in Handbuch der Geschichte Lateinamerikas 1, p.130.

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de alimentos nas lojas. Por exemplo, os produtos do mercado interno eram classificados como da terra ou nacional e os importados portugueses, como do reino. Mesmo assim, o mercado interno florescia, os tropeiros faziam o papel de transmissores, tanto no sentido material quanto cultural, promovendo, assim, uma permuta de produtos e costumes. 4.2.3 Percepção diferenciada das várias realidades nutricionais Portanto, a culinária do Brasil Colonial pode ser vista, com razão, como o resultado um processo secular de fusão, relevando-se as diferentes conotações regionais. Deve-se considerar também a estratificação social ocorrida no contexto colonial: a classe alta, formada pelos proprietários de terras, os funcionários portugueses e o clero superior, a classe média, formada pelos pequenos proprietários de terra, artesãos e funcionários administrativos mais baixos, e a classe baixa, formada pelos pobres e pelos escravos e, assim, observar também a diferença entre as refeições cotidianas e as excepcionais, refeições em ocasiões especiais, tais como estado de saúde, visitas e dias de festa. A classe alta se alimentava, de um modo geral, de produtos europeus importados e de produtos nacionais de alto valor como caça, aves, carne, peixe e frutas, a classe média consumia produtos típicos do país, enquanto a alimentação dos pobres e dos escravos limitava-se principalmente a alimentos feitos com a farinha de mandioca e/ou de milho, feijão, toucinho, carne ou peixe secos, dependendo da situação, e também de frutas, principalmente laranjas e bananas. As refeições cotidianas do Brasil Colonial baseavam-se geralmente no feijão, toucinho e farinha, complementados com produtos locais. Como refeições em ocasiões especiais, eram usados preponderantemente aves e arroz, adicionados a produtos locais. Havia também uma grande diferença entre cidade e campo: enquanto os habitantes das cidades, principalmente das cidades costeiras, eram abastecidos pelo mar e pelos produtos importados, a população do campo ficava mais submetida às influências do clima, solo e vegetação504. Além disso, o resultado observado foi que nas regiões do interior, a diferença entre a alimentação cotidiana da classe média e da baixa era mais de quantidade. Deve-se acrescentar também que, durante os 322 anos do período colonial, a alimentação no

504

Silva, Culinária Colonial in Oceanos, N. 42, Viver no Brasil Colonial, Abril/Junho, 2000, Lisboa, pp. 26-27, reconhece também o contraste cidade-campo. Ver apresentação abrangente da perspectiva rural, com muitas referências à alimentação e produção agrícola: Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil.

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Brasil passou por processos de mudança na alimentação, condicionados por acontecimentos históricos, econômicos e espaciais505. 4.3 Cozinha/Culinária Portuguesa A abordagem cultural da culinária portuguesa influenciou de modo duradouro a alimentação no Brasil, tendo sido exercida de várias maneiras durante os séculos do domínio português, seja através da permuta já exposta aqui de plantas, animais, técnicas e idéias de paladar, seja na forma de exercício do poder colonial sobre a sociedade brasileira. 4.3.1 Influência sobre a Culinária Brasileira A contínua migração de Portugal para o Brasil representa também um outro aspecto dessa „colonização culinária“, tanto quanto à imigração de funcionários, soldados ou colonos que traziam seus costumes culinários para o Brasil e os renovavam no Brasil, mesmo que estes últimos tivessem passado por alterações devidas ao fator tempo. E, além disso, a classe alta brasileira enviava seus filhos para freqüentarem a universidade em Portugal, onde podiam adquirir um sentimento de unidade como Brasileiros, mas também ter contato com a culinária da metrópole “civilizada”, trazendo de volta à pátria uma idéia-guia de culinária. Para o presente estudo, a vinda da Corte Portuguesa, no ano de 1808, tem uma grande relevância, pois representou a vinda da elite política de Portugal com toda a corte, trazendo cozinheiros e literatura específica sobre culinária em forma de livros de receitas. E, a partir do Rio de Janeiro, a cultura portuguesa da corte se irradiou para todo o Brasil. No decorrer da época colonial, a importação de gêneros alimentícios portugueses, necessária para que os hábitos alimentícios se conservassem, trouxe influências importantes. Principalmente

nos

primórdios

do

Brasil

Colônia,

os

imigrantes

improvisavam,

desconsiderando a falta de alguns elementos culinários, usando, por exemplo, farinha de

505

Esses processos de mudança e a compreensão diferenciada da alimentação brasileira são o resultado das conexões entre este capítulo e o anterior. Deve-se fazer referência ao fato de a temática já estar muito bem apresentada e estudada, visto o folclorista Luis da Câmara Cascudo ter redigido um trabalho padrão de quase mil páginas sobre esta temática, Historia da Alimentação no Brasil e que Zeron, (org.), Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira, Vol.1, Alimentação, também oferece uma boa ferramenta sobre o mesmo tema, introduzindo textos sobre todas as plantas úteis e animais comestíveis do Brasil, extraídos de apresentações históricas. A literatura empregada no capítulo também coloca a temática como suficientemente estudada, de maneira que, quanto ao foco deste trabalho, a culinária colonial do Brasil foi estudada em todos os seus aspectos relevantes e não é nosso objetivo reproduzir aqui as obras citadas mais intensivamente.

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mandioca indígena em substituição à farinha de trigo, ou produzindo pão de farinha de mandioca fresca ou de fubá506. Tentava-se também realizar o máximo possível a partir da imaginação nativa quanto a refeições, como a criação de porcos ou o cultivo de hortas e ervas e a produção de doces. Mesmo assim, o fluxo de produtos típicos de Portugal para o Brasil foi mantido sem interrupções. Assim, o bacalhau, importante para grande parte de Portugal, foi importado507, e a partir do século XIX, mais um produto, apreciado em Portugal e muito relevante para a população, a sardinha em lata508. Também foram importantes produtos indispensáveis para a culinária portuguesa, como o sal, enquanto o açúcar era produzido aqui mesmo no Brasil. O vinho também foi importado e produzido no Brasil em muitos lugares, feito de frutas como o abacaxi, caju, laranjas, jabuticabas, ou mel. Como últimos produtos importantes e importados restam a farinha de trigo e o azeite.

4.3.2 Desenvolvimento da Culinária Portuguesa Em Portugal, a culinária é dividida em sul e norte e essa diferenciação se baseia no consumo de manteiga, banha e cerveja ao norte509, e azeite e vinho no sul. O emprego de cerveja e manteiga é considerado pela literatura especializada como relíquia da grande migração de povos, quando os povos germânicos e gálicos chegaram à região. A ocupação árabe, que durou séculos, também deixou uma nítida influência, visto terem introduzido plantas, técnicas e costumes que se conservam até hoje. Os exemplos que mais impressionam, porque se estenderam até o Brasil, são o consumo de doces e cuscuz. Os árabes levaram o arroz, a cana-de-açúcar, as frutas cítricas, amêndoas e berinjelas para Portugal, a técnica da produção de iogurte, e o cozimento a vapor de cereais para a produção do cuscuz também chegaram através deles até à Península Ibérica; também a produção de

506

Mostravam-se bem flexíveis/adaptáveis, mas deve-se citar o provérbio: A fome é a melhor cozinheira.“ Devido à sua conservação e ao conteúdo de sal, o bacalhau é muito apreciado em Portugal e no Brasil, mesmo considerando-se os motivos religiosos durante a quaresma e a semana santa. Portanto, ele compõe classicamente as refeições durante a Páscoa nos dois países citados. 508 Ver Zeron, (org.), Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira, Vol.1, Alimentação, p.234. 509 Ver Amorim, Da Mão a Boca, para uma História da Alimentação em Portugal, pp.25-28. Introduz-se também a subdivisão pelas diferenças climáticas, geográficas e da flora e fauna. Ver sobre a influência da migração internacional também Lima-Reis, Algumas Notas para a História da Alimentação em Portugal, pp.30-33. 507

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açúcar e o marcante costume português muito difundido de consumir doces foi influenciado por eles. Muitas designações no âmbito da agricultura e culinária são de origem árabe510. O consumo de peixe em Portugal remete-se à sua situação geográfica junto ao mar, especialmente piscoso entre Marrocos e Portugal. Mas a religião cristã exerceu uma grande influência sobre o consumo do peixe, porque proibia que se consumisse carne durante 240 dias511. Igualmente típico da cozinha portuguesa é acompanhar a refeição com pão e, como pão de trigo era relativamente caro, era produzido em Portugal com castanhas, tremoços e breve também de milho512. O emprego de nozes, vagens, milho como substitutos da farinha pode ser observado também no Brasil, onde se recorria à farinha de mandioca ou ao fubá como substitutos da farinha de trigo, como já se mencionou anteriormente. Quanto ao significado do pão para a nutrição e o emprego de farinhas substitutas para ele, ver a obra do século XVIII sobre técnicas de nutrição para a saúde e bem-estar, “Âncora Medicinal, Para Conservar a Vida com Sáude”, na qual o pão de trigo é o primeiro a ser analisado, em seguida o pão de centeio, de milho, cevada e aveia. Classificam-se também, ainda na mesma obra, os diferentes cereais usados no pão, de acordo com as regiões onde são preferidos, por exemplo, pão de milho para as províncias entre Douro e Minho ou centeio como difundido de uma maneira bem geral em todo Portugal e na Galícia. Em caráter introdutório, cita-se: „O pão é o melhor e mais comum alimento de quantos os homens usam, porque, sobre ser como triaga e corretivo de todos aqueles com que se mistura, é o que mais substancialmente engorda e nutre o corpo.“513.

510

Ver Amorim, Da Mão a Boca, para uma Historia da Alimentação em Portugal e Saramago, Cardoso, Para a História da Doçaria Conventual Portuguesa, pp.9-17. E sobre a influência árabe e a Reconquista ver ainda: LimaReis, Algumas notas para a história da alimentação em Portugal, pp.35-43. 511 Ver: Amorim, Da Mão a Boca, para uma Historia da Alimentação em Portugal, p. 80. Conforme já mencionado, sardinha e bacalhau eram especialmente apreciados pelo povo, ver sobre o significado do bacalhau seco para Portugal pp. 102-106. Ver ainda Veloso, A Alimentação em Portugal no Século XVIII nos relatos de viajantes estrangeiros, p.16, também p.139, segundo o qual o consumo de ambos os peixes é entendido como momento unificador entre todas as regiões e toda a população. A carne era tida também como artigo de luxo, tanto para a classe alta como para a média, ver Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, pp. 27-30, aqui havendo igualmente referência ao jejum de carne, condicionado religiosamente pp. 33-35. Bacalhau e sardinha não aparecem nos livros de receitas, por serem considerados alimentos do povo simples. Ver quanto a este aspecto: Rodrigues, Domingos, Arte de Cozinha 1680, Introdução Paula Pinto e Silva, 31 Receitas Atualizadas pela Chef Flavia Quaresma, p.25. 512 Ver sobre o significado especial do consumo de pão na alimentação portuguesa: Amorim, Da Mão a Boca, para uma História da Alimentação em Portugal, p.83. Ver sobre o desenvolvimento do pão quanto ao trigo ser um artigo de luxo e a substituição da farinha de trigo: Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, pp.38-40. Ver ainda Veloso, A Alimentação em Portugal no Século XVIII nos Relatos de Viajantes Estrangeiros, p.58. 513 Ver Henriquez, (Médico do Rei D.João V), Âncora Medicinal, Para Conservar a Vida com Saúde, p.85.

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A carne de porco era apreciada em Portugal, servindo ainda de linha divisória entre judeus e muçulmanos. Desse modo, podia-se controlar, no âmbito da criação de disciplina social cristã na época da Inquisição, a fé dos cristãos-novos em relação ao consumo de carne de porco, e o chouriço, uma lingüiça feita de sangue, era a mais adequada para tais fins, visto o consumo de carne de porco e de sangue ser proibido tanto para judeus como para muçulmanos514. Mas a carne de porco era cara no comércio e daí ser consumida mais em dias de festa. Durante muito tempo, as aves eram refeições reservadas à nobreza e, por isso, ocupavam uma posição alta entre os alimentos, sendo também muito cara. O que ainda acentua o prestígio das aves é o grande número de receitas existentes nos livros de receitas515. Com a expansão portuguesa, aumentou também o consumo de temperos e esse processo se estendeu com o seu largo emprego, porque os temperos continuavam caros, sendo, por isso, mais usados pela classe alta ou então por ocasiões festivas. O processo relativo aos “artigos coloniais” também é interessante: coco e mandioca não eram usados, enquanto o milho já fazia parte da alimentação cotidiana em Portugal no século XVIII516. Os conventos assumiram um papel especial na culinária portuguesa. Serviam de alojamento ao rei durante suas viagens pelo reino, dispunham de terrenos extensos e ainda eram usados pela elite portuguesa como abrigo para filhos que nao tinham direito à herança e assim, muitos membros das famílias nobres viviam nos conventos517. Esses são os três motivos pelos quais se comia muito bem nos conventos portugueses e eles passaram a ter o papel de refúgio 514

Ver também sobre o uso da carne de porco como prova da crença religiosa: Veloso, A Alimentação em Portugal no Século XVIII nos Relatos de Viajantes Estrangeiros, p.46. Surgem, nesse contexto, pratos como Mau de Porco de Judeu ou Chouriço Mourisco, que contradizem os tabus religiosos. Quanto a esse fato, há uma abordagem explicativa, ou seja, que se poderia tratar de guarnições/métodos especiais de preparo, segundo os quais o pé de porco seria servido frio, como os pratos judeus no Sabbat, ou que o tempero seria de origem moura. 515 Ver Veloso, A Alimentação em Portugal no Século XVIII nos Relatos de Viajantes Estrangeiros, p.47. As aves eram bem mais caras do que carne de vaca ou cabra. Ver também Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, p.36. 516 Ver Goucha, Doçaria - uma Tradição Portuguesa, p.6, sobre o comércio de temperos ver: Ramos, No Tempo das Especiarias, O Império da Pimenta e do Açúcar. Ver também Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, p.51. 517 Quanto a esses aspectos, ver: Goucha, Doçaria - uma Tradição Portuguesa, pp.4-5. Ver também Algranti, A Hierarquia Social e a Doçaria Luso-Brasileira (Séculos XVII Ao XIX) in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n.22, 2002, Curitiba, p.28 e Saramago, Homen, Para a Historia da Doçaria Conventual Portuguesa, menciona aqui o acúmulo de riquezas e a expansão da criação de gado nos conventos, de onde resultaram as grandes reservas de ovos. Deve-se considerar ainda que impostos básicos fossem pagos frequentemente em gêneros, sendo os ovos muito apreciados, por se conservarem até 3 semanas sem refrigeração.

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da prestigiosa cultura dos doces portugueses518. A produção de doces, licores e bolos passou a ser uma tradição cultural dos conventos e sua venda tornou-se uma relevante fonte de renda para os conventos. O livro de receitas da Irmã Leocádia do Monte Campo representa nesse contexto uma fonte importante e suas receitas são uma coletânea do convento e se baseiam em ingredientes de Portugal e suas colônias. Está escrito em linguagem simples e apresenta também “conselhos para iniciantes”, por exemplo, como o leite deveria ser aquecido lentamente519. A partir do século XII, o açúcar passou a ser a base dos doces, substituindo o mel e passou a ser usado como remédio na Medicina520. É bastante típico da cultura doceira de Portugal as compotas de frutas521 e também os doces feitos com gemas522. Na cultura doceira portuguesa, os doces são diferenciados de acordo com a sua base. A subdivisão em doces baseados em massas e doces baseados em frutas ou ovos já está registrada no primeiro livro de receitas português, Arte da Cozinha, escrito por Domingos Rodrigues, em 1680, e o chocolate e sorvete ja faziam parte. A cultura doceira espalhou-se em toda a sociedade portuguesa e nas colônias e então passou a existir determinados doces para as inúmeras festas523, desenvolvendo-se, ainda, uma venda 518

Quanto à temática da cultura dos doces em Portugal e o significado dos conventos, ver Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, p.14; Reabro, O Doce Nunca Amargou, Doçaria Portuguesa, História, Decoração, Receituário, pp.34-44, estando listados aqui, pp.41-44, conventos portugueses e suas especialidades. Ver também Saramago, Cardoso, Para a História da Doçaria Conventual Portuguesa, sobre as especialidades, pp.217-228; Saramago, Doçaria Conventual do Alentejo, As Receitas e o seu Enquadramento histórico e Algranti, Leila Mezan, Os Doces na Culinária Luso-Brasileira: da Cozinha dos Conventos à Cozinha da Casa Brasileira, Séculos XVII a XIX in Anais de Historia de Além-Mar, Vol. VI, Lisboa, 2005; http://www.unicamp.br/pagu/Cad17/n17a17.pdf (25.7.2008) Cadernos pagu (17/18) Campinas, 2001/2002, Algranti, Leila Mezan, Doces de Ovos, Doces de Freiras: a Doçaria dos Conventos Portugueses no Livro de Receitas da Irmã Maria Leocadia do Monte do Campo (1729). 519 Ver http://www.unicamp.br/pagu/Cad17/n17a17.pdf (25.7.2008) Cadernos pagu (17/18) Campinas, 2001/2002, Algranti, Leila Mezan, Doces de Ovos, Doces de Freiras: a Doçaria dos Conventos Portugueses no Livro de Receitas da Irmã Maria Leocadia do Monte do Campo (1729). 520 Ver Saramago, Doçaria Conventual do Alentejo, As Receitas e o seu Enquadramento Histórico, p. 13 e Saramago, Cardoso, Para a História da Doçaria Conventual Portuguesa, pp.24-31 e sobre o próprio uso, ver Henriquez, (Médico do Rei D.João V), Âncora Medicinal, Para Conservar a Vida com Saúde, S. 207. 521 Principalmente por motivos de conservação, ver a esse respeito: Algranti, Alimentação, Saúde e Sociabilidade: A Arte de Conservar e Confeitar os Frutos (Séculos XV-XVIII), in História Questões & Debates, v. 42 (2005) Curitiba, Dossiê: História da Alimentação e Braga, A arte nova e curiosa para conserveiros, confeiteiros e copeiros, e mais pessoas que se ocupam em fazer doces e conservas com frutas de varias qualidades e outros muitas receitas particulares que pertencem a mesma arte Lisboa, 1788. 522 24 ou até 36 gemas são quantidades normais. Ver a esse respeito também Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, p. 42: “Eram extremamente vulgares as receitas de doces contendo muitos ovos, especialmente no que se referia as gemas.”. Mesmo nos atuais livros de receitas, tais quantidades ainda aparecem, ver, por exemplo: Bellis, (ed.), O Gosto Brasileiro – as Mais Famosas Receitas das Nossas Avós, Cozinha Portuguesa, p.67 Barriga-de-freira, 18 gemas. Interessante é o fato de muitos doces serem nomeados, fazendo-se referências religiosas, como Barriga de Freira, sendo famoso o Toucinho do Céu. 523 A ligação entre grandes quantidades de doces e dias de festas é mencionada expressamente por muitos autores, por exemplo, que se serviam doces por ocasião dos enterros. Ver Saramago, Doçaria Conventual do Alentejo, as Receitas e o seu Enquadramento Histórico, pp.35-37; Ribeiro, O Doce Nunca Amargou. Doçaria

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ambulante de doces nas ruas de Portugal. Surgiram manufaturas de doces com confeitarias profissionais, em parte oriundas dos conventos, que eram fornecedores das festas e uma produção caseira para a venda nas ruas524. E a hierarquia social se refletia no consumo de determinados doces e a elite era consumidora de doces mais dispendiosos. E essa diferença de classes se tornava evidente durante as festas, quando se servia a mesa de acordo com a categoria ou classe social. Desse modo, o emprego desmedido de açúcar e tempero por parte da classe alta tinha o objetivo de exibir sua posição social. A apresentação dos doces desenvolveu também sua etiqueta e costumes próprios. As mulheres faziam abotoaduras de papel e serviam os doces dentro delas. Tal costume chegou também até o Brasil525. 4.3.3 Literatura de Livros de Receita A literatura especializada em forma de livro de receita representa um veículo importante para a divulgação da cozinha portuguesa. A fonte mais antiga que se conservou em língua portuguesa é a coletânea de receitas da Infanta Dona Maria de Portugal526. A princesa portuguesa Maria casou-se em 1565 com o general e duque de Parma, Alexander Farense e levou este livro de receitas para Parma, no qual se encontram as mais antigas receitas portuguesas como galinha mourisca, manjar branco, doce de limão, macapao, pão-de-ló e pessegada. O primeiro livro de receitas, „Arte e Cozinha“, foi publicado em 1680 e Domingos Rodrigues, português nato e cozinheiro da corte de Dom Pedro II de Portugal, e que conseguiu uma cesura e modernização duradouras da cozinha portuguesa527, era o seu autor. Esse livro de Portuguesa, História, Decoração, Receituário, p.11 e Algranti, A Hierarquia Social e a Doçaria Luso-Brasileira (Séculos XVII Ao XIX) in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n.22, 2002, Curitiba, pp.28-30. 524 Ver Algranti, A Hierarquia Social e a Doçaria Luso-Brasileira (Séculos XVII Ao XIX) in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n.22, 2002, Curitiba, p.29: “Confeitaria artesanal realizada por profissionais e a confeitaria feita por populares, vendida por ambulantes.“. 525 Ver Algranti, A Hierarquia Social e a Doçaria Luso-Brasileira (Séculos XVII Ao XIX) in Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, n.22, 2002, Curitiba. O uso dos doces a título de representação da posição social estendeu-se também ao Brasil. Ver também sobre o emprego de abotoaduras de papel, O Doce Nunca Amargou. Doçaria Portuguesa, História, Decoração, Receituário, p.10. Nesse livro encontram-se cópias das abotoaduras de papel. 526 Os manuscritos foram redescobertos nos anos sessenta do século XX na Biblioteca Nacional de Nápoles e reeditado sob o título de O livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal, Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Século XV e digitalizado. Ver Cunha, A.G. (org.), Um Tratado da Cozinha Portuguesa do Século XV; http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000109.pdf (28.7.2008). Ver ainda Couto, Arte de Cozinha: Alimentação e Dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX), pp. 41-46. 527 Essa referência está registrada no livro e na literatura específica de um modo geral. Ver, por exemplo: Amorim, Da Mão à Boca, para uma história da alimentação em Portugal, pp. 176-181. A repercussão do livro se evidencia nas edições posteriores, decorrido longo tempo da morte de D. Rodrigues, e na transcrição de numerosas receitas em outros livros. Como exemplo dessa repercussão, citamos o livro de receitas brasileiro, Cozinheiro Imperial, cuja primeira edição, no ano de 1840, foi reeditada até sua 11ª edição, em 1900. Veja sobre

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receitas dividia-se em três partes: a primeira trata do modo de cozinhar vários guisados de todo gênero de carnes, conservas, tortas, empadas e pastéis. A segunda, de peixes, mariscos, frutas, ervas, ovos, lacticínios, doces, conservas do mesmo gênero. A terceira, de preparar mesas, em qualquer época do ano, para hospedar príncipes e embaixadores. Teve várias edições, 1693, 1758, 1765, 1794, 1814, 1836 e 1844528. Ele investiu em temperar mais moderadamente, orientando-se pelas cozinhas das cortes internacionais, enquanto antigamente se temperava529. Aspectos interessantes do livro de receitas são, por exemplo, um prato marcado pelo curry indiano530 ou ainda as numerosas sugestões de cardápios531, passando por menus adaptados às estações do ano até cardápios semanais dispendiosos ou menu francês de alta classe. Na primeira metade do século XVIII, foram publicados diferentes livros em Portugal, que levavam em consideração a nutrição/alimentação. Em 1715 foi publicado o “Manual doméstico”, de Fransisco Borges Henriques, contendo receitas como tripas do Porto532. Em 1721 foram publicadas duas outras fontes sobre a alimentação em Portugal, a obra médica sobre nutrição, “Âncora Medicinal, Para Conservar a Vida com Saúde”, escrito por Francisco da Fonseca Henriquez, médico pessoal do rei João V533, e as anotações manuscritas da freira Maria Leocadia, do convento Monte do Campo, de 1729534.

esse significado também Veloso, A Alimentação em Portugal no Século XVIII nos Relatos de Viajantes Estrangeiros, p.13. Ver também o prefácio da edição brasileira de 2008 de Rodrigues, Arte de Cozinha 1680, Introdução Paula Pinto e Silva, 31 Receitas Atualizadas pela Chefe Flavia Quaresma. 528 Ver Rêgo, (org.), Livros Portugueses de Cozinha, p. 103. 529 Alfredo Saramago analisou muito bem Arte de Cozinha na edição de 1693, no prefácio da edição portuguesa de 2001.Ver aí sobre a mudança introduzida por D. Rodrigues, pp.15-17. Analisou-se mais de perto também a estrutura de Arte de Cozinha, pp.19-21 trata dos produtos usados, pp. 22-24 os temperos, pp.25-26 as gorduras, pp.25-27 as sobremesas/os doces. Veja também Couto, Arte de Cozinha: Alimentação e Dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX), pp.35-41, onde se discorre também sobre a influência francesa sobre a corte portuguesa através da rainha Maria Franziska von Savoyen. Paralelamente à reedição em Portugal, o livro foi publicado no Brasil em 2008, como reedição do original de 1680. Ver Rodrigues, Arte de Cozinha, 1680, Introdução Paula Pinto e Silva, 31 Receitas Atualizadas pela Chefe Flavia Quaresma. 530 Ver Rodrigues, Arte de Cozinha, 1680, Introdução Paula Pinto e Silva, 31 Receitas Atualizadas pela Chefe Flavia Quaresma, p.130, Caril para qualquer peixe ou para carne. 531 Ver Rodrigues, Arte de Cozinha, 1680, Introdução Paula Pinto e Silva, 31 Receitas Atualizadas pela Chefe Flavia Quaresma, pp. 173-213. Para o banquete sugerido por ocasião da recepção de um embaixador, pp. 203207, pensou-se também na comitiva do embaixador com sugestões especiais. 532 Ver Rêgo, (org.), Livros Portugueses de Cozinha, p. 11. 533 Ver conteúdo da nota acima que, embora não contenha receitas, explicita em compensação a compreensão contemporânea da alimentação e dos gêneros alimentícios. 534 Encontram-se aí principalmente receitas sobre a produção de doces e biscoitos nos conventos, como por exemplo, do pão de milho. Quanto ao livro de receitas já mencionado, ver o artigo: http://www.unicamp.br/pagu/Cad17/n17a17.pdf (25.7.2008), Cadernos pagu (17/18) Campinas, 2001/2002,

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Em 1780 foi publicada uma outra obra sobre a cozinha portuguesa, “Cozinheiro Moderno, ou Nova Arte de Cozinha” de Lucas Rigaud535. Era francês nato, trabalhava como cozinheiro em várias cortes européias, por exemplo, em Paris, Londres, Turin, Nápoles e Madri, lá entrando em contato com outros importantes cozinheiros contemporâneos, entre eles o francês La Chapelle, que também trabalhava em diferentes cortes européias e que havia publicado o livro de receitas “The modern Cook”, em 1733, em Londres, o qual foi publicado dois anos depois também em francês, “Le cuisinier moderne”. Lucas Rigaud trabalhou, por último, como cozinheiro da corte portuguesa536 e, após alguns anos na corte portuguesa, publicou sua obra, que tinha como objetivo modernizar a cozinha portuguesa. No prefácio do seu livro de receitas, Lucas Rigaud criticava a obra de Domingos Rodrigues e aproximava a arte de cozinhar mais ainda da cozinha francesa. Deve-se dar atenção ao título do livro de Rigaud: ele toma o título de La Chapelle e acrescenta como subtítulo o título do livro de Rodrigues. Outro comentário é que, em sua obra, Rigaud toma receitas de outros contextos europeus. Em uma visão de conjunto, pode-se dizer que Rigaud se orienta mais pelo sabor dos próprios alimentos, colocando o tempero cada vez mais em segundo plano. Há também muito mais receitas com carne de boi e legumes e uma das receitas mais espantosas para a produção de cubinhos para o caldo de carne, parece ter sido tirada do livro de receitas de Leonardo da Vinci537. Em 1788, publicou-se o livro: “A arte nova e curiosa para conserveiros, confeiteiros e copeiros, e mais pessoas que se ocupam em fazer doces e conservas com frutas de varias

Algranti, Leila Mezan, Doces de Ovos, Doces de Freiras: a Doçaria dos Conventos Portugueses no Livro de Receitas da Irmã Maria Leocadia do Monte do Campo (1729). 535 O livro Cozinheiro Moderno ou nova Arte de Cozinha também foi publicado em várias edições, 1785, 1798, 1807 e 1826. Ver Rêgo, (org.), Livros Portugueses de Cozinha, p.102. Ver ainda Amorim, Da Mão a Boca, para uma História da Alimentação em Portugal, pp.182-188. 536 Ainda não foi realizada uma comparação dos livros, mas só o fato de Rigaud ter mantido o título já diz muito. De um modo bem geral, pode-se partir do fato de que as cozinhas das cortes européias se orientavam por parâmetros franceses, não só devido ao entrelaçamento entre a nobreza, mas também devido aos chefes de cozinha. Ver também Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, pp.110-113. Ver sobre Chapelle também Rodrigues, Arte de Cozinha 1680, Introdução Paula Pinto e Silva, 31 Receitas Atualizadas pela Chefe Flavia Quaresma, pp.21-22 e p.32 e Couto, Arte de Cozinha: Alimentação e Dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX), pp.47-48. 537 Essa receita foi publicada com as mesmas palavras também no Cozinheiro Imperial, por isso é mencionada aqui, mas entraremos em detalhes sobre ela no decorrer deste trabalho. Ver nesse aspecto: Braga, Portugal a Mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, pp. 91-93. Ver sobre a interpretação do Cozinheiro Moderno também Couto, Arte de Cozinha: Alimentação e Dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX), pp.46-52.

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qualidades e outras muitas receitas particulares que pertencem à mesma arte, como guia para a conservação e produção de doces538. Enquanto até o início do século XIX tinham sido publicados dois livros de receita e três que tratavam de alimentação, o número de publicações sobre esse tema aumenta consideravelmente no decorrer do mesmo século. Paralelamente a livros de receita, publicamse também conselhos sobre economia doméstica e conselhos para a produção de gêneros alimentícios e criação de animais539 Em 1841, publicou-se “Arte do Cozinheiro e do Copeiro”, editado pelo Visconde de Vilarinho de São Romão540. Em1849, surgem “O Cozinheiro Completo” e “O Cozinheiro, Confeiteiro e Licorista Moderno”

541

, em 1860, foi

editado o primeiro livro de receitas com referência regional: “O Formulário para Cozinha e Copa Coordenado por hum Curioso da Província do Minho”

542

, em1870, “O Cozinheiro dos

Cozinheiros”, de Paulo Plantier e, em 1876, “Arte de Cozinha”, do conhecido cozinheiro português João da Mata543. Muitos desses livros de receitas chegaram ao Brasil através da Biblioteca Imperial e da contínua imigração de portugueses para o Brasil.

5. A Cozinha no Império Brasileiro 5.1 Alimentação do Povo Antes de mais nada vale lembrar que a situação das fontes sobre alimentação da população é difícil. Primeiramente, a maior parte das receitas foi transmitida de forma oral, e, por outro lado, o plano alimentar, era influenciado sobretudo de acordo com a época e a região, submetendo-se, portanto, a fortes variações.

538

Ver Braga, A arte nova e curiosa para conserveiros, confeiteiros e copeiros, e mais pessoas que se ocupam em fazer doces e conservas com frutas de varias qualidades e outros muitas receitas particulares que pertencem a mesma arte, Lisboa, 1788. 539 Ver sobre as publicações dos livros em Portugal principalmente Rego, (org.), Livros Portugueses de Cozinha. 540 Trata-se aqui de uma tradução do livro francês La Maison de Champagne de 1822, ver Rego, (org.), Livros Portugueses de Cozinha, p.12. 541 Ambas as obras se baseiam no resumo e transcrição de receitas de obras mais antigas, ver: Rego, (org.), Livros Portugueses de Cozinha, p.13. 542 Ver Rego, (org.), Livros Portugueses de Cozinha, p.12. 543 Ver Rego, (org.), Livros Portugueses de Cozinha, p.13. João da Matta tinha um restaurante em Lisboa, Casas de Pasto Matta. Esse restaurante é mencionado no guia de viagens Novíssimo Guia do Viajante em Lisboa, de 1863.

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A alimentação no Império brasileiro foi influenciada duradouramente desde a colonização portuguesa e as respectivas influências regionais. Ela se tranformou ao longo do período imperial de forma lenta com o aumento do comércio através da melhoria dos caminhos de transporte. De modo especial, a população normal se alimentava preponderantemente de produtos locais como toucinho de porco, feijão, e também de farinha, complementando esta com carne seca ou peixe seco proveniente do comércio extra regional. Os principais fornecedores de carboidratos eram as farinhas, feitas especialmente de mandioca ou de milho. Apenas ao longo do século XX, o arroz se desenvolveu como um produto cotidiano difundido em todo o Brasil, e permaneceu primeiramente limitado como alimento nas regiões em que era cultivado. Através do comércio difundido em todo o Brasil, ele era tido, no entanto, como um alimento caro e especial. O trigo também passou um desenvolvimento semelhante, já que além das regiões de plantio no sul era obtido através da importação. Ele era processado e consumido na forma de farinha, massa e pães. O consumo de pão e massas aumentou na segunda metade do século XIX. Por exemplo, no Batalhão de Polícia em Belém do Pará em novembro de 1883, consumiu-se macarrão a cada dois ou três dias. Pode, também constatar-se nas estatísticas, o hábito português de consumir todas as sextas feiras bacalhau com batatas e azeite de olivas544. Este fato salta aos olhos, principalmente levando-se em consideração a riqueza de peixes da região. O consumo de peixe seco importado, ao invés do consumo do peixe fresco, é impressionante, mas mostra ao mesmo, tempo a importância da tradição de comer bacalhao. O característico consumo de leguminosas na forma de feijão era, da mesma forma, uma manifestação típica da alimentação cotidiana no Brasil. Elas eram apreciadas igualmente por escravos, pobres e ricos e pertenciam à alimentação trivial. Estes pratos preparados com feijão foram mencionados por quase todos viajantes e feijão era tido indiscutivelmente como a comida mais típica no Brasil, como comentou, por exemplo, o viajante Karls Seidler: “O feijão, sobretudo o preto, é o prato nacional predileto dos brasileiros; figura nas mais distintas mesas, acompanhado de um pedaço de carne de res seca ao sol e de toucinho à vontade. Não há refeição sem feijão, só o feijão mata a fome” 545. Da mesma forma, comentou o viajante bávaro Von Spix e von Martius: 544

Corpo militar de Polícia do Pará, quadro demonstrativo dos gêneros consumidos no mês de Novembro de 1887. 545 Ver Siedler, Dez Anos no Brasil, pág. 10. O número de comentários sobre o feijão é grande e aparece nos relatórios de viagens de diferentes regiões, muitas vezes o consumo de feijão também foi tido como impróprio para o estômago europeu.

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“A farinha de mandioca (cassava), a farinha de milho e o feijão preto, que, na maioria das vezes, é cozida com toucinho de porco e carne de boi seca ao sol e salgada, são a parte mais importante de sua alimentação saudável, não interessa se crua e de difícil digestão, mas sim, em movimento forte e com o prazer do vinho português ou da aguardente de cana”. 546 O feijão era cozido e comido com farinha de mandioca. Ainda hoje, o feijão é um acompanhamento obrigatório em todo o Brasil e representa juntamente com o arroz o alimento fundamental brasileiro. Com exceção destas generalidades, pode-se analisar a população no tocante à alimentação de forma diferenciada, dividindo-a em três grupos: população livre simples, escravos e população indígena.

5.1.1 População livre

No tocante às diferenças regionais dentro da população livre, devem ser observadas também as diferenças entre habitantes das cidades e habitantes do campo. De fato, muitos habitantes das cidades dispunham no século XIX, de pequenas áreas de plantio no jardim ou no quintal, no entanto, a população urbana era claramente dependente do abastecimento através do comércio. Da mesma forma, existia, nas adjacências da cidade, um abastecimento direto com alimentos básicos, como legumes e carne fresca. Este desenvolvimento era ainda mais característico nas metrópoles do que nas cidades de porte médio e pequeno. Paralelamente a isso, o grau de estabelecimentos de gastronomia e alimentos processados aumentava com o tamanho da cidade. Nesta proporção, comerciantes de rua negras vendiam, por exemplo, doces apreciados por todos no cotidiano. Além disso, existiam quiosques que vendiam bebidas, entre elas álcool e café como também pequenos alimentos chamados quitandas 547. O comércio regional e extra-regional complementavam a oferta de alimentos nas cidades com os produtos necessários como sal, farinhas, açúcar, feijão, carne seca, caça e peixe. Como produtos internacionais foram ofertados no comércio entre outros vinho, azeite de olivas, bacalhao ou temperos. Contudo, estes produtos eram muito caros para a população simples no consumo diário. Em uma variedade de exemplares de jornais da época os comerciantes publicavam suas ofertas de alimentos.

546

Ver von Spix, Von Martius, Viagem no Brasil nos Anos 1817-1820, pág. 109. Ver artigo sobre o desenvolvimento da cultura de quiosques no Brasil e especialmente em São Paulo em http://www.mp.usp.br/cafe/textos/Joana%20Monteleone.pdg, Joana Monteleone, Cafés, Quitandas, Quiosques. 547

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A situação alimentar nas regiões rurais era caracterizada pela economia de subsistência e caça, que, da mesma forma, era suplementada pelo comércio. Pequenas fazendas produziam para o mercado local e forneciam para plantações e minas voltadas para a exportação548. Nestas pequenas fazendas, na maioria das vezes, empresas familiares com um pequeno número de escravos, a situação alimentar era para todos os habitantes frequentemente igual. No entanto, mostravam-se aqui as diferenças na alimentação no tocante à região, de forma especialmente clara com base na produção agrária local.

5.1.2 População não Livre Uma representação geral da população escrava deve conter, da mesma forma, algumas diferenciações fundamentais. Neste sentido, devem ser observadas as diferenças entre cidade e campo, bem como a integração econômica dos escravos. Esta podia ocorrer entre outras em um estabelecimento familiar como escravo doméstico ou de forma suplementar como força de trabalho. Ao contrário disso, estava a integração em uma forma de economia mais dispendiosa como a mineração ou latifúndios, onde teriam que ser abastecidos centenas ou até dezenas de escravos549. A situação alimentar também variava de acordo com as condições financeiras e a boa vontade do proprietário, bem como com a região. No geral, a alimentação dos escravos consistia em uma base de farinha de mandioca ou farinha de milho, feijão e algumas vezes carne seca ou toucinho, bem como peixe seco, complementada através de frutas abundantemente existentes como bananas e laranjas. A farinha ou foi dissolvida em água e bebida como chibe, ou foi cozida como pirão e farinha de milho, assim chamado, fubá, na forma de angu, dependendo da região. O consumo do feijão fornecia proteínas animais, que, em parte, foi complementado através de proteínas animais. Este prato diário era ocasionalmente complementado em dias de festa, quando o proprietário do escravo oferecia ou um boi ou um porco para o abate. Para a complementação da situação alimentar precária, a coroa portuguesa dispôs, já no século XVIII, que os escravos teriam garantida uma área de plantio e de tempo para o cultivo. Os escravos utilizavam esta área, por um lado, para a plantação dos tipos de legumes preferidos, que foram utilizados na cozinha afrobrasileira e representaram uma parte importante de sua identidade. Especialmente em regiões com um alto índice de população 548

Sobre o significado das pequenas fazendas sobre o abastecimento dos mercados ver também Del Priore, Venâncio, Uma Historia da Vida Rural no Brasil, pág. 47-52 e Campos, Maylena (eds.) Terra e Alimento, Panorama dos 500 Anos de Agricultura no Brasil, pág. 56. 549 Ver também RIHGB n. 411 abr/jun.2001 Costa, Iraci del Nero da , Marcondes Renato Leite, A Alimentação no Cativeiro: Uma Coletânea sobre os Regimes Alimentares dos Negros Afro-Brasileiros, pág. 199.

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escrava, este desenvolvimento se fez perceptível de forma duradoura, como se comprova na cozinha regional da Bahia. Por outro lado, a área de plantio foi utilizada para a criação de bichos como galinhas e porcos. Os produtos aqui produzidos eram vendidos em mercados locais e em alguns casos aos próprios senhores de escravos. A situação alimentar foi muitas vezes complementada pela caça a pequenos animais e répteis, que representavam no Brasil um tipo de caça normal. Nas regiões próximas à água, o plano alimentar foi melhorado com o peixe e outros frutos do mar. Nos livros de agricultura da época, como o Manual do Agricultor Brazileiro, Segunda Edição, de C.A. Taunay, publicado em 1839, no Rio de Janeiro, foi explicitamente mencionada a alimentação dos escravos nos estabelecimentos rurais sob a perspectiva do senhor de escravos. A manutenção da força de trabalho dos escravos estava em primeiro plano. Assim, foi mencionado na página 9: “Partindo deste princípio, hum negro não deveria receber por dia menos de hum décimo da quarta do alqueire razo de farinha de mandioca, meia libra de carne fresca ou quatro onças de carne salgada ou peixe, e duas onças de arroz ou de feijão, subentendendo-se que, segundo as localidades, se admitirião os equivalentes em fubá, arroz, toucinho, peixe etc.” Além disso, foi aconselhado servir a aguardente de cana de açúcar no café da manha. Ver na página 10: “A comida de manhã pode ser leve: bastará hum punhado de farinha ou bolo de milho com huma fruta ou hum calix de cachaça; ao meio dia, carne ou peixe com pirão de noite jeijoes, abóboras, arroz, carurus, etc. os productos abundantissimos de hortaliças, legumes e frutas, permitem de dar, sem maior despeza, huma comida variada e saudável;...” Um outro aspecto relativo à alimentação da população escrava é representado pela utilização deles em áreas nas quais se trabalhavam com alimentos. Assim sendo, os escravos trabalhavam na cozinha, como se pode depreender da maioria dos anúncios de jornais da época550. Neles, na maioria das vezes, se explicita, de forma clara, que a pessoa que vende, aluga ou respectivamente é procurada tinha que dominar a arte de forno e fogão. Por exemplo, no jornal Dezesseis de Julho, de 1.1.1870, de Ouro Preto, sob a rubrica, Annuncios, na página 3, foi publicado o seguinte anúncio: Aluga-se um preto que cozinha o trivial e faz todo o serviço, e serve para ajudante, por 30$ na Rua Espírito Santo 11”. 550

Ver Freyre, O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX, pág. 116-117. Ver também pesquisa do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro em Estudos Históricos, Rio de janeiro, n. 33, Alimentação, 2004, El-Kareh, Almir Chaiban, Bruit, Hector Hernan, Cozinha e come, em Casa e na Rua: Culinária e Gastronomia na Corte do Império do Brasil, pág. 77-81.

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Da mesma forma, se fez referência à atividade da pessoa como quitandeira, ou seja, a capacidade de trabalhar com o comércio ambulante de alimentos nas ruas. Deve-se partir do pressuposto de que as pessoas que estavam ocupadas com a produção ou o comércio de alimentos tinham uma situação de abastecimento melhor. Isso ocorria da mesma forma nas plantações de açúcar, onde os escravos durante o trabalho levavam para si a energética cana de açúcar fresca.

5.1.3. População Indígena

A alimentação da população indígena prosseguia nos moldes por eles conhecidos e diferenciava-se essencialmente da do período colonial. A economia de subsistência na forma de queimadas, ligada à agricultura de espécies fornecedoras de carboidratos e leguminosas, como a mandioca, bem como hortifrutos, milho e batata doce foi complementada através da caça, da pesca e da coleta anual das frutas e dos legumes. Da mesma forma, insetos, lagartas, formigas e sapos e cobras foram utilizados na alimentação da população indígena, bem como a caça551 e todo tipo de pesca. No âmbito desta utilização dos recursos locais, a alimentação da população indígena foi fortemente influenciada de forma regional. Dever-se-ia diferenciar ainda o acesso a produtos não indígenas no âmbito de um comércio e troca entre tribos indígenas nas proximidades das aldeias ou cidades.

5.2. A Cozinha da Alta Sociedade

A alimentação da alta sociedade no Império brasileiro já havia se transformado com a chegada da corte portuguesa, em 1808, de forma duradoura. Os hábitos à mesa haviam se europeizado, os ideais alimentares e de paladar também assim como a oferta de produtos. Esse desenvolvimento se fortaleceu com a proclamação da independência e com a instituição do Império Brasileiro, em 1822. Entre 1808 e 1822, Portugal ainda servia de ponto de orientação como principal importador da Inglaterra. O poder de radiação da cultura francesa já existia ao fundo e este desenvolvimento se fortaleceu crescentemente a partir de 1822. Para negar a dominação colonial portuguesa e a intervenção militar, estabeleceu-se um forte apoio na cultura de mesa francesa.

551

Ver Zeron (org.), Equipamentos, Usos e Costumes da Casa Brasileira, Vol.1, Alimentação, pág. 184-186.

134


Entretanto, o desenvolvimento da cozinha no Império deve ser observado de forma diferenciada. A elite social nas metrópoles tinha, através das ligações comerciais e da gastronomia, facilidade para fazer refeições regulares. O Rio de Janeiro, como capital, sede da corte e cidade grande, teve neste contexto um papel precursor.

5.2.1 Influência Européia

Uma influência européia relativa à alimentação e à cozinha do período colonial se perpetuou no Rio de Janeiro com a chegada da corte portuguesa, de todo o funcionalismo da corte e de partes da elite social de Portugal. Foram introduzidos não só hábitos europeus, tradições, costumes e ideais, mas também cozinheiros e livros de receitas, bem como produtos em grande quantidade no Brasil. Este processo foi aumentando à medida que aumentava o uso da navegação a vapor, a partir de 1850. Por exemplo, a cerimônia inglesa de tomar chá na parte da tarde passou a encontrar grande aceitação a partir do século XIX552. Os europeus que viviam no Rio de janeiro forçaram a criação de um mercado que absorvesse produtos europeus, bem como o surgimento da gastronomia, da qual eles, em parte, participavam. Os comerciantes ofereciam uma ampla variedade de sortimentos internacionais553. Além de conservas, doces, frutos processados, salsichas, presuntos, manteiga, queijo, chá e temperos eram oferecidos, sobretudo, bebidas na forma de vinhos, aguardentes ou cerveja, entre outros, através de anúncios feitos em jornais. 554 A gastronomia se desenvolveu. Surgiram restaurantes chamados casa de pasto. O número de hotéis aumentou e eles serviam ao mesmo tempo pratos555. Padarias e confeitarias ofereciam, 552

Além da menção em relatórios de viagem, como, por exemplo, Graham, Diário de Uma Viagem ao Brasil, pág. 320, que descreve a trabalhosa e bem encenada cerimônia do chá na casa da Baronesa de Campos, ver também Anais do Museu Paulista, História e Cultura Material, Vol. 5, Jan./Dez. 1997, São Paulo. Lima, Chá e Simpatia: Uma Estratégia de Gênero no Rio de Janeiro Oitocentista e Figueiredo, Comidas Meu Santo!, pág. 157-159. 553 Na tese de Silva, Papagaio Cozido com Arroz: Livros de Cozinha e Recitas Culinárias no Rio de Janeiro do Século XIX, a autora acentua a orientação internacional da cozinha no Rio de Janeiro já no século XIX. Ver também na mesma obra: pág. 92:”Mas, com o incentivo das importações e o constante fluxo de estrangeiros, novos produtos alimentares e modos de comer passavam a fazer parte do cotidiano carioca. Paês de trigo, azeite doce, vinhos de diferentes qualidades, massas, embutidos e presuntos, bem como manteiga e sorvetes passam a ser importados. Trata-se, pois, de uma infinidade de produtos exóticos que chegam aos trópicos, bem como os costumes de comer fora de casa ou de contratar um cozinheiro profissional para fazer um jantar especial.”. 554 Ver Renault, O Dia-a-Dia no Rio de Janeiro segundo os Jornais 1870-1889, pág. 16 e Revista do Arquivo Público Mineiro, Ano XLIV, No. 1, Janeiro-Junho 2008, Belo Horizonte, Godoy, Marcelo Magalhães, Comércio e Propaganda nos Periódicos Oitocentistas, pá.g 90-111. Ver sobre a importância de produtos importados como processo civilizatório, Couto, Arte de Cozinha, Alimentação e Dietética em Portugal e no Brasil, pág. 89-91. 555 Ver sobre o desenvolvimento da gastronomia, O dia-a-dia no Rio de Janeiro segundo os Jornais 1870-1889, pág. 58-60 e Estudos Históricos, Rio de Janeiro, no.33, Alimentação, 2004, El-Kareh, Almir Chaiban, Bruit,

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além de café da manhã, pratos, pão, bem como bolos e outros produtos e desde 1834 também sorvetes556. Além disso, desenvolveu-se também a possibilidade de encomendar pratos e cozinheiros no âmbito doméstico557. Cozinheiros europeus e padeiros eram mão de obra valorizada, que era procurada através de anúncios de jornais e às quais se oferecia em parte altos salários558. Essa tendência aumentou ainda mais com a abolição da escravatura em 1850559. Muitos estabelecimentos gastronômicos foram administrados por estrangeiros, especialmente por franceses, italianos, ingleses e alemães560. O ponto forte do desenvolvimento ocorreu no Rio de janeiro, no entanto, este também ocorreu nas outras metrópoles do Brasil. A introdução de produtos, pessoas e hábitos europeus aumentava nas cidades portuárias e no interior do país, comerciantes possibilitavam acesso a bens de consumo europeus. Este processo acabou abrangendo as elites regionais no interior. Dependendo da participação em segmentos da economia bem sucedidos da época, como a produção do café ou da borracha, ou da mineração, isto poderia ser intensivamente característico. No tocante ao consumo de produtos importados, von Eschwege relatou, por exemplo, em Pluto Brasiliensis sobre a venda e o consumo de diferentes vinhos europeus e cervejas inglesas em Minas Gerais561. Da mesma forma, Saint-Hilaire, que mencionou vinhos das mais variadas categorias de preços nas refeições na casa do governador de Goiás.562 O livro como meio de mídia, juntamente com o pessoal especializado e produtos, servia como importante meio de divulgação e transmissão do modelo cultural da alimentação como parte de um estilo de vida regular no interior do país. Assim, da mesma forma, valores culturais e normas foram transmitidos além da alimentação. Esta forma de manual de comportamento e aconselhamento era bastante divulgada no Brasil do século XIX563. Assim foram publicados Hector Hernan, Cozinha e come, em casa e na rua: culinária e gastronomia na Corte do Império do Brasil, pág. 82-83. 556 Ver Folhetim do “Jornal do Commercio”, Rio de janeiro, 11.9.1964, Helio Viana, O que comia o Imperador, segundo o qual a venda de sorvetes começou com a chegada do navio americano em 1834, e o jovem imperador em 1835 teria comido o seu primeiro sorveite na Confeitaria Carceler. Ver também Figueiredo, Comidas meu santo! pág. 140-143, que menciona que já após poucos anos várias confeitarias já vendiam sorvete. 557 Ver Renault, O Dia-a-Dia no Rio de janeiro segundo os Jornais 1870-1889, pág. 20-21. 558 Ver Silva, A Gazeta do Rio de janeiro (1808-1822), pág. 35 e Estudos Históricos, Rio de janeiro, no.33, Alimentação, 2004, El Kareh, Almir Chaiban, Bruit, Hector Hernan, Cozinha e come, em casa e na rua: culinária e gastronomia na Corte do Império do Brasil, pág. 88, ver ainda Filho, O Rio de Janeiro Imperial, pág. 337-338. 559 Ver em Estudos Históricos, Rio de Janeiro, no. 33, Alimentação 2004, El-Kareh, Almir Chaiban, Bruit, Hector Hernan, Cozinha e Come, em Casa e na Rua: Culinária e Gastronomia na Corte do Império do Brasil, pág. 80. 560 Ver Vidal, Luca, Franceses o Brasil, pág. 194. 561 Ver Eschwege, Pluto Brasiliensis, pág. 206. 562 Ver Saint-Hilaire, Viagem à Província de Goiás, pág. 55. 563 Ver Siulva, Papagaio Cozido com Arroz: Livros de Cozinha e Receitas Culinárias no Rio de Janeiro do Século XIX, pág. 95-97.

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livros como: Armazém de Conhecimentos Úteis nas Artes e Officios; ou Collecao de Tratados, Receitas e Invencoes de Utilidade Geral, Destinado a Promover a Agricultura e Industria de Portugal e do Brasil, 1855; O Conselheiro da Família Brasileira, Encyclopedia dos Conhecimentos Indispensáveis na Vida Pratica, 1883; O Vade-Mecum dos Curiosos, Collecao de Receitas Practicas, Applicadas As Artes, Officios e A Economia Domestica, 1868; Thesouro Inesgotável ou Collecao de Vários Processos e Receitas com Appilicacão as Sciencias, Artes, Industria, Agricultura e Economia Domestica, obra utilíssima a todas as classes da sociedade, 1860; ou O Conselheiro da Família Brasileira, Encyclopedia dos Conhecimentos indispensáveis na vida pratica, 1883. Também o livro de culinária Cozinheiro Imperial continha em edições posteriores uma introdução quanto à recepção ordinária de hóspedes e convidados no âmbito da orientação para empregados domésticos.

5.2.2 Influências Regionais versus Metrópole

Assim como as elites regionais estavam empenhadas em manter uma autonomia no desenvolvimento político do Império Brasileiro, processo semelhante se mostrava com relação à alimentação brasileira. Na alimentação trivial, preponderava nas elites regionais a característica local na utilização dos alimentos e pratos da região. Esse dado pode ser encontrado em vários relatórios de viagem, que descreviam a alimentação e os pratos de diversas regiões do Brasil. Os pratos se diferenciavam das classes mais baixas muito mais pela quantidade e qualidade propriamente ditas do que pela maneira de preparo como tal. A educadora Ina von Binzer descreve a alimentação diária em uma fazenda com 200 escravos: “Já fiz boa camaradagem com o feijão preto e com seu inseparável bolo de fubá sem sal, o angu: já ando namorando a farinha de milho e a de mandioca, que vem à mesa em cestas de pão e que os brasileiros misturam com feijões cheio de caldo, não demorando muito apaixonar-me pela carne de carneiro seca pelo sol, com qual a qual nos regalam freqüentemente ao almoço.”564. De fato, ela se engana quanto à proveniência da carne seca, que certamente é carne de boi e não de carneiro, mas, entretanto, o seu comentário é elucidativo no tocante à alimentação de

564

Ver Binzer, Os meus Romanos, Alegrias e Tristezas de uma Educadora alemã no Brasil, pag.25.

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uma família da classe alta, que mantém os próprios escravos, e, ao mesmo tempo, ainda pode se dar ao luxo de ter uma educadora européia. Feijão e farinha estavam representados em todas as mesas de todas as classes sociais, da mesma forma que as variações dos alimentos básicos. Assim, devem ser entendidos o açaí no norte, ou a canjica em São Paulo e Minas Gerais, cuja utilização é mencionada nos relatórios de viagens. Neste sentido, volta a ser levada em consideração as diferenças regionais. No nordeste, como já apontado, o feijão era cozinhado com o leite de coco e feijões jovens eram utilizados. No Rio de Janeiro preponderava o feijão escuro, enquanto em Minas Gerais, o feijão marrom era preferido. Também no tocante às farinhas, pode-se apontar bem as diferenças regionais. No Sul dominava a farinha de milho, no Nordeste a farinha clara da mandioca e no Norte mais a farinha amarela da mandioca. Assim mesmo, em todo o Brasil a farinha tinha a mesma importância fundamental565. Ao mesmo tempo, toda região possui especialidades alimentares próprias, que estão associadas à identidade regional e à tradição, e são representadas como expressão da regionalidade. Este reportório foi utilizado pelas elites em ocasiões especiais como uma sextafeira ou em uma recepção de uma visita. Na verdade, o primeiro livro de culinária regional no Brasil, Doces Mineiros, Collecao Completa de Variadissimas Receitas de Doces, Obtidas das mais Afamadas Fabricantes Mineiras, surgiu em 1906, assim sendo, comparativamente tarde, mas, no entanto, receitas regionais ganham reconhecimento na medida em que são incorporadas aos livros de culinária que surgiam. È interessante assinalar que nisso se reflete a importância política das respectivas regiões. Enquanto, por exemplo, receitas de Minas Gerais e Pernambuco foram mencionadas em primeiro lugar no Cozinheiro Imperial, faltavam receitas típicas do norte do Brasil. A explicação para isso está na importância dos estados para a economia, sociedade e política brasileira, bem como de sua percepção interna. Minas Gerais e Pernambuco, são neste sentido, estados importantes, enquanto os subrepresentados estados do Pará ou do Espírito Santo não alcançaram uma importância comparável na percepção da época e devido à sua característica indígena terem sido vistos como atrasados ou não civilizados. Ao todo, existia nas elites regionais, entretanto, um esforço de um desenvolvimento civilizatório, em geral, de não ficar atrás do Rio de janeiro. Neste sentido, é que os produtos europeus, caros, símbolo de prestígio, com os quais se podia simbolizar uma vida ordinariamente moderna, tiveram efeito. No decorrer do século XIX, desenvolveu-se a

565

Ver Silva, Farinha, Feijão e Carne-Seca, Um Tripé Culinário no Brasil Colonial, pág. 80-98.

138


crescente tentativa de assumir os costumes, hábitos, e tradições da elite na capital e ter a Europa como uma orientação e um modelo a ser alcançado. Isso servia para a representação da própria posição social, econômica e política para fora.

5.2.3 Recepções Festivas O desenvolvimento da cozinha da alta sociedade brasileira se mostrou principalmente no âmbito das recepções festivas. Estas serviam como oportunidade para demonstrar prestígio à mesa. Especialmente a elite no Rio de janeiro encenava em tais momentos. Para essas ocasiões, os menus eram preparados de forma artística, nos quais a seqüência de pratos e as bebidas correspondentes eram especificados. Uma das fontes mais antigas encontradas foi representada pelo cardápio de um jantar servido no dia 01 de agosto de 1858, no Clube Fluminense, oferecido pelo senador Nabuco de Araújo. O cardápio estava escrito em francês e listava entre outros 24 hors d’oeuvre e 8 hors d’oeuvre de cuisine como entradas, punch au champagne vanille, bem como muitas outras delícias. Como sobremesa, foram oferecidas uma ampla variedade de doces, entre outros, o queijo de Minas Gerais, bem como a sobremesa típica fios de ovos566. De 30.5.1873 é o cardápio elaborado em português do jantar da Baronesa do Loreto. Nesta ocasião, serviu-se um menu brasileiro, entre outros, com um vatapá como entrada e um peru à brasileira como prato principal. Este prato se desenvolveu como um prato da alta sociedade brasileira e foi servido em muitas ocasiões da sociedade elitista. Tratava-se de um peru recheado com farofa. Hoje em dia, este prato representa um prato brasileiro clássico para o natal. Além disso, eram servidos pratos relacionados a pessoas como robalo a Márquez de Paranaguá, gateau de camarões a Mathilde ou língua com ervilhas a Amandinha. Também não faltava a cozinha internacional, como já se podia ler do prato gateau e, por outro lado, se refletia no servido Roastbeaf (sic.). Para sobremesa eram servidos doces relacionados a pessoas como acaçás a Tesinho, manaues a Serafim, bons bocados a Julio, cocadinhas a Franklin e suspiros a Alfredo. O que se percebe nisso é a relação atípica com nomes masculinos, já que em todos os livros de receitas trabalhados para doces sempre se estabeleciam relações a nomes de mulheres. Era servido também, além disso, um bolo de mandioca, doces diversos e frutas da época. A menção do bolo de mandioca não é habitual neste contexto, já que o bolo de mandioca pode ser considerado como pão da população

566

Ver 1.8.1858 Jantar no Club Fluminense do Senador Nabuco de Araújo.

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brasileira em geral. Assim sendo, trata-se de um menu de característica amplamente “nacional", para o qual, entretanto, não se podia perceber um motivo especial. Da Baronesa de Loretto, ainda existem alguns cardápios do período de 1886-1889. Os demais são escritos em francês e contêm os pratos típicos como, por exemplo, de 25.04.1888, o dinde à la bresilienne.567 Nesta coleção de conotação, na maioria das vezes uníssona, salta aos olhos, ainda, o cardápio de outubro de 1886. Ele contém duas páginas, a primeira contém o serviço à brasileira e, a segunda o serviço à franceza. Aqui foram servidos pratos tipicamente brasileiros, como exceção absoluta nos cardápios analisados, como galinha de molho pardo com angu de fubá arroz, empadas de galinholas com palmito, lombo de cebado a cahypira, peru com tuba vas, macuco perdiz culia e uru e jacu. Como sobremesa serviram doces a paulista e frutas como uvas, abacaxi, laranjas e maçãs. Do lado francês, existia ao lado de uma grande quantidade de pratos com filet e champignons ainda o obrigatório dindon a la bresilienne568. Dinde a la bresilienne é também um prato mencionado com muita freqüência também em cardápios de outras pessoas. Por exemplo, no banquete para o General Osório oferecido pelo Club da Reforma, em 26.5.1877, ou no Cardápio da Casa Paschoal, de 21.2.1888 e no de 24.6.1889. Um prato que também aparece com freqüência em muitos cardápios é o jambon d’York como prato principal ou aspereges au beurre noir ou sauce hollandaise, e como sobremesa bavaroise a vanille. Estes pratos correspondem à alta cozinha internacional. Uma outra exceção é um cardápio escrito em portugês feito por ocasião do almoço para o Márquês do Herbal, oferecido pelo Barão de Nazareth, em 7.11.1877, do qual o herói de Guerra General Osório também participou. O cardápio contém duas páginas. Na primeira página estavam as entradas e pratos principais. Como entradas, foram mencionados vários pratos com camarão, além de paca assada e peixe grelhado. Foram servidos ainda diversos legumes como aspargos, ervilhas e batatas e, como prato principal, oito pratos, entre outros, fiambre, peru recheado, leitão e lombo de carneiro e vitelo à moda polonesa.

567

Dinde à la bresilienne é uma tradução do peru à brasileira, que também foi caracterizado como dindon a la bresilienne. Tratava-se, como mencionado, de um peru recheado. 568 Ver 1886-1889 Cardápios Baronesa de Loretto, Outubro 1886 Fazenda da Pauticea, também em 13.9 e em 7.11.1886 Dinde a la bresilienne foi servido como prato principal. Frequentemente, em combinação com Jambon d’York. No geral, a coleção totaliza 60 cardápios em parte também de Paris. Em 31.5.1883, no menu do Service Confeitaria Ouvidor o Dindon a la bresilienne foi oferecido como prato principal e como alternativa mais uma vez o jambon d’York.

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A segunda página da seqüência de pratos contém apenas sobremesas. Além de frutas, como uvas, laranjas, bananas, limas, limões doces, sapotis, abacaxis, figos, mangas de Itamaracá e ameixas foram servidas ainda como sobremesa natural nozes. Havia ainda frutas conservadas em xarope de diferentes qualidades, Nougat como coroa do marquês do Herbal, Aletris de ovos filados, pudim de laranja, tortas de frutas, pudim de pão, tortas doces e outras sobremesas semelhantes, mas também havia doces típicos portugueses, como pastéis de nata, toucinho do céu e papos de anjos 569. Em 01. de setembro de 1880, foi oferecido um jantar pelo Barão de Massambara na cidade de Vassouras, localizada na região produtora de café, nas proximidades do Rio de Janeiro. O cardápio para o menu de 10 pratos foi redigido em francês. Não foi usado absolutamente nenhum tipo de ingrediente brasileiro e as bebidas servidas como acompanhamento eram, da mesma forma, vinho europeu da Madeira, Xeres, Bourgogne, Porto ou Rhin. Serviu- se Rhum Jamaique

e

Champagne

Frappé570.

Enquanto

em

alguns

eventos

serviam-

se

preponderantemente produtos e pratos europeus, comidas a la bresilienne se estabeleceu na alta cozinha. Por ocasião de um baile no vigésimo aniversário do bem freqüentado Jockey Club no Rio de Janeiro, foram servidos petits patês a la bresilienne como entrada571. Hoje em dia, os denominados salgados são um petisco tradicional e parte integrante de qualquer grande festa. Comida ao modo brasileiro também entrou em cardápios de característica até então tipicamente francesa572. Em 15.5.1883, isso foi praticado, por exemplo, no hotel Orleans Soirée, em Petrópolis, com o oferecimento da Condessa de Barral. Lá foi servido como prato principal dinde truffee e a la brezilienne573. Um outro exemplo seriam as entradas poulet a la bresilienne, no jantar a 12.11.1886, no Palais de la Presidence, São Paulo574. Como última festividade da alta sociedade no Império, foi realizada pelo presidente do Conselho de Ministros e Visconde de Ouro Preto, Afonso Celso de Assis Figueiredo, uma recepção pomposa com cardápio e dança para os oficiais do navio chileno, o Cruzeiro Lord Cochrane, em 9.11.1889, na Ilha Fiscal. A recepção entrou para a história do Brasil como o

569

Ver 7.11.1877, Cardápio General Osório Almoço offerecido ao Exmo. Sr. Márques do Herbal pelo Barão Nazareth. Em sua chácara da Passagem da Magdalena, no dia 7 de novembro de 1877. 570 Ver 1.9.1880, Cidade de Vassouras, jantar offerecido pelo Barão de Massambara. Especialmente notável é que foi oferecido o rum da Jamaica, ao invés de se oferecer a aguardente de cana-de-açucar local. 571 Ver 16.7.1888 Baile do 20° Aniversario Jockey Club. 572 Ver 26.9.1889 Confeitaria Cailtau Menu Déjeuner, Dinconneau truffe et a la bresilienne. 573 Ver 15.5.1883 Petrópolis, Hotel Orleans Solirée, offerecida pela Sra. Condessa de Barral. 574 Ver 12.11.1886 Diner Palais de la Presidence, São Paulo.

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“último baile da Ilha Fiscal” 575. A festa, para a qual milhares de pessoas foram convidadas, e da qual além da elite do Rio de Janeiro também a família imperial participou, custou 10% do orçamento anual do Rio de Janeiro. No Buffet, trabalharam mais de 40 cozinheiros e 50 ajudantes da afamada Casa Paschoal, durante três dias. Entre outras coisas, foram utilizados 18 pavões, 25 cabeças de porco, 64 faisões, 580 perus, 100 línguas de boi, 650 galinhas, 800 quilos de camarão, 600 latas de trufas, 1000 peças de caça e 1200 latas de aspargos. Além disso, foram servidos 10000 sanduiches e 12000 sorvetes. 10000 litros de cerveja foram servidos e 258 caixas de vinho e champagner foram consumidas. De fato, o que impressionava na festa não era apenas a quantidade. A carta de vinhos do cardápio representava um conjunto dos melhores vinhos internacionais. 33 tipos de vinhos, entre os quais, Madeira, Sherry, Marsala, Liebfrauenmilch, Marcobrunner, Chablis, Moscato, Chateau Lafitte, Chateau Leoville, Chateau Becherel, Tokaz ou Moscatel. Dois vinhos do Porto, um de 1834 e 4 tipos de Champagner completavam a lista de bebidas. A lista dos pratos elaborada em francês era igualmente abrangente. Bem notáveis eram as pombas selvagens à la guanabara e a galatine à la Province de Minas, cabeças de porco recheadas, que foram servidas como peça ornamental sobre as mesas. Estes pratos demonstram com sua denominação uma relação regional com a baia do Rio de Janeiro e com o estado de Minas Gerais. Os demais pratos eram parte da mais fina cozinha internacional576.

5.2.4 Cadernos de Receitas

Um outro tipo de fonte sobre a cozinha da alta sociedade no Império brasileiro era representada por cadernos de receitas anotados à mão. Essas anotações, feitas por mulheres, representavam um interessante tipo de fonte, que, na maioria das vezes, se encontram na mão das famílias, e, por isso, são de difícil acesso577. Além disso, deve ser levado em consideração, que o número de analfabetos do sexo feminino no Império era especialmente alto e com isso o número de mulheres aptas a fazer anotações relativamente pequeno. Assim 575

Ver sobre “o último baile da Ilha Fiscal” , Lopes, A Canja do Imperador, pág. 266-271; Folhetim do “Jornal do Commercio”, Rio de Janeiro, 11.9.1964, Helio Viana, O que Comia o Imperador, Figueiredo, Comidas, meu Santo!, pág. 150-151 ou também Gourmet Internacional, Ano IV, Novembro , No 41, São Paulo, 1989, Nobres Delícias do Baile Final, Salem Jezebel, O Ultimo Grande Banquelte do Império, ver para a compreensão geral e para o contexto da política externa, Vaingas, Dicionário do Brasil Imperial, pág. 69-71 576 9.11..1889 Menu da Festa Oferecida pelo Presidente do Conselho de Ministros, Afonso Celso de Assis Figueiredo, Visconde de Ouro Preto, a Oficialidade do Encouraçado Chileno Almirante Cochrane.. 577 No âmbito dos trabalhos de pesquisa, inclusive o convite a participação em uma revista de gastronomia, puderam ser obtidos dois livros de receitas de Pernambuco, uma coleção de receitas do Rio Grande do Sul, e dez livros de Receitas de Minas Gerais. O que se mostrou mais difícil, neste sentido, foi o período de pesquisa, de forma que também foram levadas em consideração receitas que surgiram no período do término do Império.

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sendo, a fixação escrita de receitas serve como parâmetro para a classificação como parte da alta sociedade. Um outro aspecto é também o processo de surgimento destes cadernos de receitas. A tradição da transferência de receitas se dava no âmbito familiar e de forma oral. A mãe passava a receita para a filha. Algumas mulheres eram famosas por suas especialidades, e a receita recebia o seu nome. Em todo o Brasil exemplos conhecidos eram o Bolo Mãe Benta e o Bolo Souza Leão. De fato, esta titulação deve ser entendida em um contexto local, por exemplo, como a receita da vizinha ou da cunhada. Apenas mais tarde é que surgiram cadernos de receitas escritos à mão. Neles foram registradas gerações de tradição oral culinária. O processo de surgimento de uma coleção de receitas anotadas à mão se prolongava por anos, como pode ser reconhecido nos registros de datas. Um registro exato de datas das coleções é, no entanto, impossível. Um outro aspecto é que as coleções de receitas foram colecionadas primeiramente de forma oral, e depois anotadas em um determinado momento da vida. Ao longo do tempo eram incluídas outras receitas, por exemplo, uma receita de um bolo de um parente. Algumas receitas se repetiam frequentemente nestes cadernos de receitas. Como exemplo, a receita para o Bolo Mãe Benta foi repetida cinco vezes em Receitas de Doces e Salgadinhos, de Boadina Tostes Cortes578. No entanto, todo caderno de receitas deve ser entendido como uma peça única. As receitas das irmãs Luisa e Laurenciana da Veiga, de Ouro Preto, datam de 1874. Elas estão escritas em parte em francês e em parte em português, dependendo de como a receita pode ser classificada579. Ali se encontram clássicos internacionais da cozinha, como gnocchis de pommes de terre, uma receita de três páginas para entrecote grille, bem como beurre maitre d’hotel nas anotações. Da mesma forma foi anotada uma receita de cuscuz de duas páginas, na qual se utilizava grão de trigo duro moído. Isso era para a região de Minas Gerais um tanto quanto atípico, já que lá a base dos pratos era costumeiramente feita com a farinha de milho. Além disso, foram anotadas receitas de pães franceses como brioche ou kougleauph (sic.). Essas receitas são atípicas em comparação com as outras coleções de Minas Gerais e levantam outras questões sobre o contexto das redatoras. De fato, algumas receitas típicas foram anotadas, como rosquinha e ambrosia, da mesma foram que uma receita de cuscus paulista, no entanto, preponderavam receitas francesas internacionais. Atípica era também a característica preponderantemente salgada dos pratos. Para o entendimento geral, deve-se 578 579

Ver Receitas de Doces e Salgadinhos, Boadina Tostes Cortes, Juiz de Fora. Ver Receitas registradas pelas senhoras Luisa e Laurenciana da Veira, Ouro Preto, ~1874.

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ainda mencionar, que, nas coleções de receitas, na maioria das vezes não entravam receitas triviais, mas, sim, na maioria das vezes, apenas receitas especiais e doces, que precisam de uma manutenção precisa das quantidades para que sejam bem sucedidas. Com base nos livros regionais, pode-se fixar alguns pontos fortes. As coleções de Minas Gerais são caracterizadas pela panificação de todo tipo, enquanto no Nordeste prepondera a preparação das frutas típicas do Nordeste em conserva, e, no Sul, frutas regionais como o pêssego terem tido um papel importante, bem como doces preparados com açúcar. Neste sentido, no diário das irmãs Maria do Carmo e Maria Isabel Cordeiro, nascidas em 1870 e 1873, são mencionadas diversas receitas com pêssego580. Pêssego seco, doce de pêssego ou pessegada, apesar de no doce, para cada 11 quilos de pêsego serem usados, 5 quilos de açúcar. Também neste livro de receitas preponderavam claramente receitas doces. Interessante era aqui uma receita para um bolo de casamento, com a utilização de álcool e temperos, o que nesta forma e combinação de ingredientes era uma coisa única. O componente regional tem uma importância nos livros de receitas de Pernambuco tão grande como os elementos da cozinha francesa. No Caderno de Receita de Maria Gaudina Regalo Braga, redigido aproximadamente em 1877, foram mencionadas receitas como bolinhos de macacheira, a designação regional para mandioca. Também foi mencionado o clássico regional, bolo de Souza Leão, da mesma forma que o pé de moleque ou o creme de tapioca. Foram enumerados ainda pratos como roast-beef assado, patê de foie gras, bem como empadinhas de galinha com palmito. Da mesma forma, existiam pratos com as entranhas, como miolo au gratin e pratos clássicos da cozinha afrobrasileira, como caruru e vatapá. Aqui a receita de Pernambuco foi completada da seguinte forma: “Um vatapá genuine da Bahia, leva mais o seguinte: gergelim, quitoco, semente de imbira, pimenta da costa, castanha de caju assado e gengibre. Mais ou menos 150 g cada coisa.”581. Relevante é a percepção, de que era uma variante de uma especialidade regional de uma outra região. O livro de culinária Receitas de Açucarados de Pernambuco mostra seu caráter único, por um lado, através da utilização de plantas autênticas do nordeste e especialmente do sertão, bem como, por outro, através de sua constituição. O livro, escrito por um autor supostamente desconhecido, no final do século XIX, tem mais de 400 páginas. Em seu surgimento, havia mais do que uma pessoa envolvida, como pode se perceber das diferentes grafias com as quais o livro foi escrito. O que mais salta aos olhos neste livro, no entanto, é que a parte da frente foi redigida com certa estrutura, as receitas foram organizadas em parte em ordem alfabética e 580 581

Ver Diário das Irmãs Cordeiro, Maria do Carmo, Maria Izabel, Pelotas, ~1905. Ver Caderno de Receitas, Maria Gaudina Regalo Braga, Pernambuco, ~1877.

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organizadas de acordo com a forma de preparo, como, por exemplo, frutas em conserva foram organizadas em um capítulo, seguido por frutas seccas e crystalisadas, e compotas, bem como muitos outros capítulos seguintes. Na parte de trás, após uma constante troca de grafias visível, tratava-se de uma cópia do livro Doceira Nacional. Assim é relevante especialmente a parte da frente do livro. Aqui, de fato, se mostra a utilização de frutas locais e tipos de legumes que são utilizados para o preparo de doces. Desse modo, deve-se levar em consideração que se tratava de um método de conservação. Além de frutas típicas, como caju, foram trabalhadas, entre outras, abóbora d’água, pequenos e grandes tomates preparados em xarope, da mesma forma que pepino ou mandacaru em calda. Receitas individuais foram assinaladas com especial capricho e cuidado, como, por exemplo, na pág. 50, a receita para maracujás grandes inteiros em calda582. O número de receitas é muito grande, algumas receitas também foram comentadas, como na pág. 55, doce de umbu em calda: “O umbu é uma fruta deliciosa com que se confecciona um dos melhores doces do Brazil.” Entretanto, isto podia ser também uma referência de que as receitas eram copiadas de um tal livro, já que lá tais comentários apareciam com certa freqüência. Da mesma forma, rico em detalhes para a compreensão regional dos pratos da época, é o comentário sobre o Capítulo Compotas, na pág. 75: “Compotas são fructas confeitadas com um pouco de assucar e preparados para se comerem logo e nao para se guardarem. Deixao-se as fructas inteiras, cortao-se em pedaços ou reduzem-se também a uma polpa ou massa, antes que se misturem com o assucar. Usao-se muitas vezes destas compotas com assados em lugar de saladas e principalmente com caças e aves aquáticas.” As receitas deste capítulo contêm, principalmente a base de fruta, também temperos como cravo, canela ou aguardentes como cognac. Elas se parecem com chutneys da cozinha britânica colonial. Além disso, a rejeição ao uso de legumes frescos crus na forma de salada deve ser pensada para a compreensão desta receita. A partir do capítulo geleas, pág. 90, as receitas começam a ser caracterizadas com a característica “nacional”, como, por exemplo, na gelea nacional, da pág. 97 ou da pág. 105, cara ou doce nacional, pág. 119 creme à Brasileira, bem como especialidades regionais, como suspiros a mineira, petiscos da Bahia, ou bolos de arroz a paulista. Contudo, trata-se, aqui, de uma transição fluida para o capítulo do livro Doceira Nacional.

582

Ver Receitas de Açucarados, Pernambuco, Cleção Fundação Joaquim Nabuco, Ex Coleção do Museu de Açúcar, Recife, e Ex Coleção Gil Maranhão.

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Os livros de culinária de Minas Gerais têm seu ponto forte na anotação de receitas de quitandas e doces, apenas poucos abordam os quitudes. Perceptível é a conotação de muitos bolos e pães com nomes femininos, como as supostas criadoras ou especialistas para a respectiva receita. Nos livros de culinária, estão registradas centenas de variantes de biscoitos e bolos ou de broas típicas, bem como pudins e licores583. Atípica era, por exemplo, a utilização de açúcar de Hamburgo para a produção de um licor de cação584. De Campinas, foram mantidos livros de culinária de uma plantação de café do século XIX e começo do século XX585. As receitas lá mantidas parecem conter uma mistura equilibrada de frutas em conserva, doces à base de ovos e também de alguns tipos de pães. Ao todo pode-se constatar pontos de contato no tipo de fonte dos livros escritos a mão, apesar das respectivas características individuais. O ponto que mais salta aos olhos destes livros de culinária escritos quase exclusivamente por mulheres é a dominância do doce. De fato, até aparecem algumas receitas para entradas e pratos principais, no entanto, a porcentagem desta parte fica abaixo dos 10%. Isso se torna ainda mais interessante, na medida em que as fontes avaliadas provêm das mais diferentes regiões, entretanto, o aspecto do doce domina. Isso se mostra na diversidade das receitas inspiradas pelo sabor doce. Assim sendo, frutas e plantas classificadas como legumes eram trabalhadas com açúcar, em parte para a conservação, e, em parte, para a preparação do sabor. Da mesma forma, existem doces à base de ovos, doces com gelatina, doces à base de leite, até parfaits semi-gelados e sorbets. Com base na freqüente denominação, mostra-se tanto a criatividade das cozinheiras e panificadoras como também a importância cultural de doces. Como um outro padrão de explicação, deve ser observada ainda a prática de cozinha. Enquanto na preparação de pratos salgados triviais a experiência determina a quantidade dos ingredientes, complementada pela improvisação e as provas, na preparação de pratos não triviais, como o doce, a manutenção das quantidades é importante para que a receita dê certo, e, por isso, a anotação de receitas experimentadas tem um valor prático. Um outro aspecto é a utilização do açúcar propriamente dito. As medidas das receitas são para os padrões atuais extremamente doces. Receitas com mais de um quilo de açúcar não eram raridade. Relevante é ainda a qualidade do açúcar. Utilizava-se menos rapadura do que o açúcar refinado e em 583

Ver Beraldina Motta, Ouro Preto, 1906, Coleção Completa de Receitas, assim 104 receitas para biscuitos e 20 receitas para pudin. 584 Ver Elvira de Oliveira Coimbra, Muzambinho, 1905. 585 Dos livros mantidos no Centro de Memória da Universidade de Campinas, Unicamp, surgiram uma coleção de receitas editadas em 2007 como livro de culinária. Ver Abrahão (org.), Delícias das Sinhás, História e Receitas Culinárias da Segunda Metade do Século XIX e Início do Século XX.

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alguns casos, até o açúcar importado da Europa. A utilização do açúcar de Hamburgo em receitas de Minas Gerais mostra não a qualidade especial do açúcar, mas, sim, muito mais do que isso, o prestígio especial de se utilizar açúcar importado, em um país que era ele mesmo um dos maiores exportadores de açúcar do mundo. A importância do componente regional se apresenta da mesma forma. Por um lado através da utilização de frutas regionais, como no Rio Grande do Sul e Pernambuco e, por outro, nos modelos culturais, como, por exemplo, nas quitandas de Minas Gerais. Assim é que se tem como típico para Minas Gerais a grande diversidade de tipos de pães e bolos, e isso é historicamente justificado, como se mostrou nos livros de culinária. Da mesma forma interessante e notável, em uma comparação além do regional, é a existência de receitas francesas em alguns livros de receitas, como em Pernambuco e Minas Gerais. Com isso, mostra-se a influência da alta cozinha em clássicos como a beurre maitre d’hotel e patê de foie gras, ainda que a última tenha sido preparada com um fígado de vitelo.

5.2.5. Cozinha e Alimentação nos Jornais No variado meio de comunicação jornal, no final do período imperial, não só a alimentação e o complexo cultural cozinha foram tematizados, mas ainda alguns livros de culinária foram publicados. No que diz respeito aos artigos sobre alimentação e cozinha, bem como a receitas fornecidas nos jornais, vale a literalidade como parâmetro para a classificação do autor, bem como dos leitores em pertencentes à alta sociedade, ainda que estes nem sempre tenham sido tidos como grupo alvo. A alimentação tinha, nos artigos de jornais da época, um papel secundário, por isso este tipo de fonte, no geral, não é encontrado com freqüência. As receitas propriamente ditas representavam a exceção. A temática alimentação foi, neste sentido, tratada de diferentes pontos de vista. Um artigo que se ocupava da alimentação foi publicado na primeira edição da Revista Popular, de 1859. Lá se abordou o assunto da higiene no trato de alimentos. Além disso, foram tratados temas como subnutrição e carências alimentares, além de sobrepeso, bem como foram dadas sugestões alimentares no âmbito de uma dieta. De acordo com isso deverse-ia manter parcimônia e utilizarem-se certos alimentos preferencialmente: “Rigoroso dieta, diminuído a quantidade dos alimentos. Fazer uso de alimentos leves e poucos nutritivos como: feijões verdes, azedas, espinafres, sinouras, espargos, alcachofras, couve-flores; tudo cozido na água, e bem salgado e avinegrado ou assucarado, conforme a natureza da 147


substância.”586. Da mesma forma, foram dados outros conselhos úteis, como a retirada da gordura supérflua na carne e outras indicações de benefícios da carne branca, para se aproximar do ideal de beleza da mulher esbelta da epoca. Na sétima edição de 1860, o jornal tratava da temática da economia doméstica. Para se poupar os caros produtos importados, argumentava-se a favor dos produtos locais sob a rubrica “Economia domestica”: “Não domina n’ella o gosto estrangeiro; os pratos exquisitos de manjares, que muita gente entre nos finge saborear, e aos quaes eu nal me posso avezar são substituídos pelos nossos adubados segundo a recomendação de Raspaille, que parece ter provado de nossos quitutes.”587. Nesse sentido, se incluiu a receita de fios d’ovos e então se comentou: “Dizem que e uma das sobre-mezas peculiares da nossa terra, como outros tantos pratos delicados, que tu podes aprender a fazer, te libertando das confeitorias que os vendem a pezo de dinheiro.” 588. Todo o artigo foi redigido como uma espécie de carta e se declarava a favor de uma cozinha brasileira e contra tantas influências francesas. No tocante ao conteúdo, pode-se classificar o público alvo do jornal como a classe média. Ai se abordava a própria dona de casa que ficava no fogão e, ao mesmo tempo, a classe social que tentava alcançar prestígio social através do preparo de pratos estrangeiros. Esta deveria, no sentido nacionalístico, ser levada a uma reflexão sobre os pratos locais, na medida em que pratos típicos brasileiros alcançavam uma valorização pública e ao mesmo tempo, do ponto de vista econômico, eram mais baratos para o orçamento doméstico. Na edição X de 1861, argumentava-se da mesma forma, ou seja, que as bebidas seriam muito caras, e manuais de como produzir bebidas foram publicados. Por isso, pode-se também classificar este artigo como destinado à classe média, já que as classes mais baixas eram, na maioria das vezes, analfabetas, e normalmente não possuíam meios para adquirir jornais. Além disso, pode-se constatar a ligação do conceito cultural de cozinha com a argumentação nacionalísta. Os autores, nos exemplos mencionados, argumentam que o que se buscava com o sabor estrangeiro era impressionar, e fazem menção à utilização de temperos locais. Por outro lado, no segundo exemplo, escolheu-se a formulação nossa terra. Ambos exemplos são

586

Ver Revista Popular, 1º anno, Tomo I, Rio de Janeiro, 1859, pág. 238. Ver Revista Popular, Tomo VII, 1860, pág. 243. 588 Ver, da mesma forma, pág. 246. 587

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dos anos 60, do século XIX, e são, assim, os precursores de um desenvolvimento culinário nacionalístico em cujo ápice se publicou então o livro de culinária Cozinheiro Nacional. Um outro exemplo para este desenvolvimento foi publicado no jornal de Ouro Preto A Província de Minas, em 30.11.1879. O autor se refere a um artigo do jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro. No referido artigo, fazse menção a um texto no qual um senhor de nome L. Figuier589 se expressa sobre a alimentação no Brasil, e o autor se manifesta indignado como da forma seguinte: “L. Figuier, tratando no seu último annuario da nossa mandioca, diz o seguinte: “A farinha de mandioca, da farinha apenas tem o nome. ... cozida com leite ou caldo de carne, a farinha de mandioca fornece uma boa sopa, que seria muito melhor, si a farinha fosse raspada mais fina. O prato nacional, a feijoada, e um manjar feito diluindo farinha de mandioca no caldo negro que se obtem cozinhando em muita água e com grande fogo o feijão preto com toucinho e um pedaço de carne secca. (carne seccada ao sol). O pirão do Brazil não é senão farinha de mandioca frita na manteiga, emprega-se para recheiar aves.” Ate ahi o sabio autor. É assim que os melhores descrevem na Europa as nossas cousas. Será, pois, de admirar que Europa esteja tão bem informada o nosso respeito? Não haverá algum patriota que se anime a enviar ao Sr. L. Figuier uma lata de farinha de Suruhy, para que possa reformar um pouco o juízo acerca deste producto? Em todo o caso o informante deve ter comido em mesas singulares para conhecer tão bem a nossa farinha, o nosso pirão e a nossa feijoada.”590. Este curto artigo se mostra de peso, por um lado, ele menciona pratos da época, a utilização da mandioca, presente em todas as mesas, seja para engrossar cozidos ou para rechear aves na assim chama garnitur “a la bresilienne”. Além disso, o artigo caracteriza a feijoada como prato nacional e devolve a versão original. Por outro lado, ele mostra também até que ponto o autor do artigo se sente ligado em sua identidade nacional a pratos e produtos por ele conhecidos. Magoado, ele se pergunta pela percepção de sua pátria na Europa. Assim, o autor pergunta por patriotas, que formalmente estejam dispostos a reestabelecer a honra nacional, mandando ao aparentemente mal conhecedor que comeu em uma mesa ruim uma lata da mais fina farinha de mandioca.

589 590

Tratava-se de um cientista francês Louis Figuier, que lançou um livro anuário, ao qual aqui se refere. Ver A Província de Minas , Ouro Preto, 30.11.1879, pág. 3.

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Uma outra importante fonte representam os jornais familiares, que se ocupavam com alimentação e cozinha das mais variadas perspectivas. A partir de 1897, surgiu, no Rio de Janeiro, o jornal Mãe da Família, que, na sua quarta edição, pela primeira vez, fazia referência à alimentação de crianças e à preparação de certos pratos, bem como sugeria a utilização de certos ingredientes591. Da mesma forma, em edições seguintes, a alimentação foi tratada à margem, como no exemplo da recomendação de se tomar cerveja para mães que estão amamentando.592 Quatro anos mais tarde, surgiu a mãe da família como revista e continuava tematizando em pequena proporção a alimentação. Por exemplo, no que se refere à digestão de vários tipos de carne. Ali foi mencionado: “A caça possue uma carne muito saborosa, mas não se digere bem senão quando já está um pouco faisandée. As raes e tartarugas pouco nutrem.”593 Os curtos comentários permitem reconhecer uma perspectiva e uma percepção do conceito cultural de cozinha. Caça como como prato usual foi um prato elogiado pelo sabor, mas seria de digestão mais fácil se o deixasse entrar em um processo de decomposição e soltasse um odor próprio, o processo do Hautgout. Característico é, neste caso, por um lado, a assunção da nomenclatura francesa e do conceito de cozinha, sobretudo diante do contexto, de que no Brasil a carne não é dependurada, mas, sim, é consumida fresca e até hoje o é. Além disso, fez-se menção ao consumo de sapos e tartarugas, mas que não foi avaliado como nutritivo. A utilização destes ingredientes era bastante usual em várias regiões, no entanto, não corespondia aos ideais alimentares urbanos modernos “civilizados” da perspectiva dos autores. Nas edições da Mãe da Família, do ano de 1884, foi introduzida pela primeira vez a rubrica “petisqueiras” e se apresentou aos leitores pela primeira vez receitas. Uma das primeiras receitas foi : língua fresca de espetada594. Na edição seguinte, foram publicadas duas receitas sob esta rubrica. Duas receitas doces com sabor de baunilha creme de baunilha, à Elbira e biscoutos de baunilha à Ernestina.595 Em outras edições pesquisadas, a rubrica não estava mais presente. Estas receitas são ainda assim bastante informativas e estão no mesmo contexto como as coleções particulares de receitas. Mais receitas doces do que salgadas e de novo a relação das receitas doces com um nome de mulher. No ano de 1885, foram publicados artigos isolados sobre alimentação e também dicas sobre conservação e higiene.

591

Ver Mãe da Família, Rio de Janeiro, 1. Anno, No.4 Fevereiro 1879, pág. 32. Ver Mãe da Família, Rio de Janeiro, 1 Anno Nr. 9 Maio 1879, pág. 66. 593 Ver Revista Mãe da Família, Rio de Janeiro, 4 Anno, N. 19 Outubro 1882, pág. 149. 594 Ver Revista Mãe da família, Rio de Janeiro, 6 Anno, N.1, 15. Janeiro 1884, pág. 11. 595 Ver Revista Mãe da Família, Rio de Janeiro, 6 Anno, N. 3, 15. Fevereiro 1884, pág. 19. 592

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Na mesma linha publicistica, surgiram também em Belém uma revista de família, que frequentemente, mas não regularmente, publicava receitas. Da mesma forma, surgiu em A Revista Famliar, Periódico dedicado as Famílias, de 4.2.1883, uma receita de doce à base de amêndoas: “receita para doce, mana de convento.”596 A receita deve ser vista diante do contexto da grande comunidade portuguesa que existia em Belém, já que uma receita local teria utilizado a abundantemente existente castanha-do-Pará, ao invés da usual amêndoa utilizada em Portugal, e que tinha que ser importada para o Brasil. Na semana seguinte, foi publicada uma outra receita: “Biscoutos Princeza Izabel: Juntem-se dous pratos de polvilho, um de fubá mimoso, um de queijo do Reino ralado, doze ovos, meia chícara de gordura, uma colher de manteiga e leite quanto baste para ligar a massa, que deve ser sovada até ponto de bolha, feito o que, cortamse a carretilha biscoutos de formas variadas, que em bandeijas untadas, são levadas a forno regular.”597. A receita parecia ser dedicada à Princesa Izabel. É uma receita interessante, já que se usam ingredientes da região como polvilho com queijo português e o resultado final tinha uma relação com um nome brasileiro. Nas edições seguintes, foram publicadas outras receitas de doces. Em 27.de maio de 1883, o repetório foi um pouco ampliado: “Receitas Diversas D’um almanack yankee extrahimos as seguintes: Pudim índio – Um quartilho de leite fervido, misturando-se-lhe sete colheres grandes de farinha de milho; uma colher grande de assucar mascavado, meia chicara de melaço, uma colherinha de sal, uma chicara de leite frio. Cozinha-se meia hora.”. A receita talvez tenha chamado a atenção do editor por causa do nome dado. Originalmente, ela provinha de um almanaque norteamericano e foi denominada Pudim Índio por ser a base de milho. O estado do Pará tem uma grande população indígena, que todavia foi marginalizada. No entanto, a autenticidade da receita é de menor importância, decisivo é mais do que isso, que uma receita com um nome desses tenha sido publicada, e, ao mesmo tempo, não se tenha feito referência a qual etinia regional. Devia ser para despertar a curiosidade dos leitores. Ainda no âmbito das curiosidades culinárias, deve-se ainda mencionar a Gazeta Gastronômica, surgida no Recife, em 1888. Fundada em 1885, ela deve ter sido publicada 596 597

Ver A revista familiar, Periódico dedicado as Famílias, Belém, 4.2.1883, pág. 7. Ver A revista Familiar, Periódico dedicado às Famílias, Belém, 11.2.1883 pág. 7.

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anualmente598 . A própria revista se intitulava como “Orgão dos Interesses EconômicoDomésticos Pernambucanos” e se referia em seu discurso interno, contudo, principalmente, à abolição. Causava a impressão de que os editores tivessem feito um tipo de sistema de doações para o apoio à libertação dos escravos, no qual após a entrega de uma determinada soma, pacotes de alimentos fossem comprados em em um determinado café599. Deve-se lembrar, neste contexto, que o abolicionista mais importante, Joaquim Nabuco, vinha do Recife. Em Pernambuco, um estado com uma concentração de escravos relativamente alta, a questão da abolição da escravatura foi defendida por uma parte da elite social no final do século XIX. Nas edições existentes da revista, não se pode constatar nenhuma relação do conteúdo da revista com gastronomia ou cozinha. Da mesma forma, localizado no campo das curiosidades culinárias, está o resumo político do que foi publicado no jornal O Auxiliador da Indústria Nacional, Periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, em junho de 1889, em um artigo de várias páginas sobre a importância da alimentação, com o título “Physiologia Industrial”600.

Em termos de

conteúdo, o autor se refere ao abastecimento da classe trabalhadora com proteínas e carbohidratos. Além disso, foram tematizados os métodos de preparo, através dos quais se poderia obter o maior valor nutritivo dos alimentos. Neste sentido, dever-se-ia por exemplo, preparar os legumes no vapor. Especial atenção foi dada aos produtos de origem animal. No tocante à forma de preparo, dizia-se: “Que as substâncias animaes, principalmente as carnes, são mais nutritivas e saborosas assadas do que cozidas.”601. O autor tratou a importância do consumo de carne da seguinte forma: “Os grandes crimes e atrocidades observados em vários paízes da Europa, nas grandes épocas revolucionárias, foram practicados geralmente por indivíduos que talvez nunca houvessem comido carne.”602. Assim sendo, o autor atribui ao consumo de carne um papel especial no sentido de que a classe baixa suficientemente abastecida com carne talvez fosse mais pacífica e satisfeita. No sentido contrário, ele conclui que os crimes e atrocidades das revoluções européias deveriam ser atribuídos a pessoas que talvez jamais tivessem comido carne. O pensamento por trás desta assertiva diz respeito ao abastecimento da classe trabalhadora brasileira, naquela época, 598

Ver Nascimento, História da Imprensa de Pernambuco, pág. 205. Ver Gazeta Gastronômica, Recife, Anno 1888, Número Único. O sentido mais profundo do contexto da única edição encontrável permaneceu até então infelizmente desconhecido. 600 Ver O Auxiliador da Indústria Nacional, Periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, sob a Direccao e Redaccao do Conselheiro Dr. Nicolau Joaquim Moreira, Volume LVII, Rio de Janeiro, 1889, nr. 6 Junho, pág. 122-128. 601 Ver, também, no mesmo lugar, pág. 128. 602 Ver, também, no mesmo lugar, pág. 125. 599

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os escravos, com carne como base alimentar saudável, a fim de evitar uma situação semelhante no Brasil.

5.3 Literatura de Livros de Culinária

Já antes da chegada da corte portuguesa, pode ser que existissem livros de culinária européia no Brasil em pequena quantidade. Os funcionários do alto escalão português traziam consigo para o país não só empregados de cozinha como também literatura correspondente. Da mesma forma, pode ser que a elite brasileira que viajava para Portugal e o resto da Europa trouxesse na bagagem de viagem literatura culinária como elemento civilizatório603. Essa tendência continuou após a chegada da corte portuguesa e da biblioteca real. Pode-se encontrar no Brasil do século XIX muitos livros diferentes de culinária européia. A maioria provém de Portugal, como os livros separados por ordem cronológica, a seguinte, dos quais alguns foram encontrados em diferentes edições: - Arte de Cozinha, dividida em três partes. A primeira trata do modo de cozinhar vários guisados de todo gênero de carnes, conservas, tortas, empadas e pastéis. A segunda, de peixes, mariscos, frutas, ervas, ovos, laticios, doces, conservas do mesmo gênero. A terceira, de preparar mesas, em todo o tempo do ano, para hospedar príncipes e embaixadores por Domingos Rodrigues, Lisboa 1693, 1758, 1765, 1794 - Cozinheiro moderno o nova arte de cozinha, onde se ensina pelo methodo mais fácil , e mais breve o modo de se prepararem vários manjares..., dado à luz por Lucas Rigaud, Lisboa, 1780. 1826 - Arte de cozinheiro e do Copeiro compilada dos melhores auctores que sobre isto escreveram modernamente, sendo a parte principal extrahida da obra que tem por titulo: A Casa de Campo, publicada em 1822 por M.me Aglae Adanson dada a luz por uma amiga dos Progressos da Civilisacao Segunda edição, augmentada com muitas receitas novas pertengentes a copa, Lisboa 1845 - O Cozinheiro completo ou nova arte de cozineiro e de copeiro em todos os seus gêneros 11. décima primeira 1879 (Editor j.j. bordalo) travessa da victoria, 41, Lisboa - Arte de cosinha, João da Matta, Lisboa 1888, terceira edição 603

Essas elocubrações são hipotéticas, contudo reproduzem o desenvolvimento no século XIX, por um lado com base nos cardápios da Europa, e, por outro, a boa intenção da literatura culinária para um interesse também existente no Brasil por livros de culinária européia. Assim, foram encontrados nas pesquisas no Brasil livros de culinária dos séculos XVIII e XIX., no entanto, não se pode, por isso, dizer com exatidão, quando foi que esses livros chegaram lá.

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- Novíssima Arte de cozinha, Lisboa, 1889 Livros de temáticas que se ocupavam com alimentação, gastronomia e hábitos à mesa: - O Fazendeiro do Brasil, por Fr. Jose Mariano da Conceição Velloso, Lisboa 1° Tomo I Parte 1. Da cultura das canas e factura do assucar, 1798 3° Tomo I Parte I. Do Leite, Queijo e Manteiga, 1801 7° Tomo III Parte I Bebidas Alimentosas, 1800 9° Tomo III Parte III Bebidas Alimentosas Cação, 1805 10° Tomo IV Parte I Especierias, 1805 - Guia do Criado de Servir, Livro útil a Criados e a Donos de Casa, Lisboa, 1851 - Thesouro Inesgotável ou Colleção De Vários Processos e Receitas Com Appilicao as Sciencias, Artes, Industria, Agricultura E Economia Domestica, obra utilíssima a todasas classes da sociedade. Publicada por Agostinho daSilva Vieira, Pharmaceutico de primeira Classe, Porto, 1860 Livros em língua portuguesa impressos na França: - Manual de Confeitaria Por Candido Borges da Silva, Paris, Livraria de Vva j. P. Aillaud, Guillhardt e cia, 1866 E livros de culinária franceses: - Le Cusinier Parisien, ou Manuel Complet d’Economie Domestique, B. Albert, Paris, 1833 - Lês 366 Menus du Baron Brisse, Avec 1200 Recettes et um Calendrier Nutritif, 4. Ed. Paris, 1869 A forte predominância da literatura culinária em língua portuguesa deve-se tanto primeiramente à língua, já que muitos portuguesses viviam no Brasil e, ao mesmo tempo, aos brasileiros que na maioria das vezes iam a Portugal. Os livros de culinária européia serviam como uma referência cultural para á elite brasileira, a fim de realizar a culinária européia nos trópicos. No entanto, desenvolveu-se também uma literatura culinária brasileira própria.

6. Os Livros de Culinária do Período Imperial

6.1 Cozinheiro Imperial No ano de 1840, quando o jovem Pedro II foi nomeado imperador, surgiu no Brasil o primeiro livro de culinária, editado no Brasil. Os irmãos alemães Eduardo e Henrique Laemmert, situados na Rua da Quitanda e, a partir de 1874, na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, editaram o livro de culinária sob o pseudônimo R.C.M.: 154


“Cozinheiro Imperial ou Nova Arte do Cozinheiro E Copeiro Em todos Os Seus Ramos contendo differentes sopas e variadíssimos manjares para com perfeição e delicadeza se prepararem caris, vatapás, carurus, angus, moquecas e diversos quitutes de gosto esquisito: de aves, peixes, mariscos, legumes, ovos, leite; o modo de fazer massas e doce Precedido Do Methodo Para Trinchar E Servir Bem À Mesa. Com Uma Estampa Explicativa E Seguida de Um Diccionario Dos Termos Techinicos Da Cozinha.604 O livro surgiu em edições seguintes, complementadas a partir da 1ª Edição, em 1840; 2ª. Edição, em 1843; 3ª. Edição, em 1852; 4ª. Edição, em 1859; 5ª. Edição, em 1869; 6ª. Edição, em 1874; 7ª. Edição, em 1877; 9ª. Edição, em 1884; 10ª. Edição, em 1887; e a última edição foi a 11ª. Edição, de 1900. A partir da 4ª. Edição, o livro foi aumentado da seguinte parte: A Guia Do Criado De Servir ou Observações Úteis A Criados E A Donas De Casa Por Constança Olívia de Lima. Nesta edição, ele continha 432 páginas605. No mais, o Cozinheiro Imperial dispunha de muito poucas ilustrações. O livro foi aumentado e complementado ao longo das edições seguintes com outras receitas mais modernas e mais brasileiras. Isso ocorreu nas três primeiras edições ao longo do texto, enquanto na 7ª. Edição foi acoplado ao livro um apêndice com novas receitas no final do livro. O livro Cozinheiro Imperial, na 4ª. Edição, é dividido em 29 capítulos, contando com o prefácio e capítulos complementares. Um aspecto importante do Cozinheiro Imperial consiste no fato de que a maioria das receitas foi em parte copiada literalmente dos livros de culinária portugueses. Isso explica a autoria até hoje desconhecida. Também a parte complementar Guia do Criado é cópia completa do livro português de mesmo nome. No entanto, aqui foi mencionada Constança Olívia de Lima como autora do mesmo. A mesma mulher foi citada como autora de um outro livro de culinária dos editores Laemmert.

6.1.1 Prefácio No prefácio, escrito da perspectiva do editor, faz-se logo nas primeiras linhas remissão à arte culinária como arte útil e indispensável ao homem civilizado, que serve também à saúde e ao corpo. O conhecimento culinário foi relacionado com aqueles que vivem nas nações européias, progressistas em civilização e indústria, e que, por isso, serviriam como exemplo, e também ao meio livro de culinária como meio.:

604

Assim era o título da 4ª. Edição de 1859. É bem provável que o título da primeira edição tenha sido parecido. Neste trabalho abordar-se-á até a 4ª. Edição e no decorrer dele a 7ª. Edição de 1877. 605 Assim, o Cozinheiro Imperial, na 2ª. Edição, de 1843, tinha apenas 291 páginas.

155


“As nações as mais adiantadas em indústria e civilização cultivao assiduamente essa nobre sciencia, e fazem apparecer os seus misteres em numerosas publicações, que formam o manual dos artistas em cozinha.”606

Na seqüência, constatou-se a falta de uma obra como tal para o Brasil e fez-se remissão a dois outros livros de culinária portuguesa, que haviam sido publicados há muito tempo e de uma perspectiva conteporânea estavam desfasados. Esta remissão torna-se ainda mais interessante, se se levar em consideração, que uma grande parte das receitas do Cozinheiro Imperial também havia sido retirada literalmente de ambos os livros de culinária portuguesa Arte de Cozinhar e Cozinheiro Moderno607. Para verificar isso, seria necessária uma comparação direta e como ambos os livros eram raros no Brasil, pode ser que assim tenha passado despercebido para a maioria dos leitores brasileiros. O livro Cozinheiro Imperial deveria, assim, cobrir essa lacuna e auxiliar o artista brasileiro a lidar com os recursos naturais: “... os Artistas Brasileiros poderão tirar todo o proveito que desejao dos productos naturaes deste bello e fértil paiz. Os peixes, as aves, as frutas do Brasil gozao de uma reputação que corresponde a sua variedade, sabor e delicadeza.”

As 1200 receitas, segundo o prefácio, também tinham como objetivo alcançar uma amplitude de leitores, na qual tanto paladares mais apurados quanto sabores mais simples e das classes humildes pudessem ser servidos. Então, o contetúdo do livro foi apresentado, como pães, doces, molhos, como também xaropes medicinais. Atenção especial recebeu por parte dos editores, a classificação dos pratos relativos a dias de festas: dias de jejum e os dias de carne, o que já havia nas duas edições portuguesas. Além disso, o livro contém sugestões para os banquetes festivos das grandes casas nas metrópoles. O prefácio da primeira até a quarta edição termina com um poema, que esteja relacionado à arte culinária. A partir da quinta edição os editores complementaram o prefácio geral com um prefácio especial para a quinta edição. Nele, eles faziam referência à venda rápida das edições anteriores de 1840, 1843, 1852, e 1859. Da mesma forma, as atualizaçoés e melhorias das 606

Ver Cozinheiro Imperial 6ª Edição, pág. V , também as citações seguintes são deste mesmo prefácio, pág. VVIII. 607 Isso ainda será representado em exemplos individualizados. No entanto, deve se fazer remissão ao trabalho de Couto, Arte de Cozinha, Alimentação e Dietética em Portugal e no Brasil (séculos XVII-XIX), que também percebeu a herançca portuguesa. Ver, também, ali, pág. 123-132.

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respectivas edições foram explicadas, especialmente porque a quinta edição foi complementada explicitamente com receitas brasileiras: “...mais correcta e novamente augmentada de novos objetos incitadores do appetite, entre os quaes se encontrarão muitos e saborissimos quitutes brasileiros, como sejao vatapás, carurus, caris, moquecas ou moquecas de peixes, massas de gosto esquisito, etc.,...”. A partir da quarta edição, o livro foi complementado com a parte Guia do Criado de Servir ou Observações úteis a criados e a donas de casa. De fato, isto foi mencionado no prefácio da quinta edição, mas, no entanto, esta parte adicional já existia anteriormente. A sexta edição, na qual o livro foi caracterizado como digno de proteção da dona de casa foi da mesma forma complementada com um pequeno prefácio. Esta remete à transformação do grupo alvo de leitores e distanciando-se com isso cada vez mais dos sabores esnobes em direção à dona de casa de classe média que cozinha ela mesma. Na Europa, desenvolveu-se desta forma, a cozinha burguês, e este processo se mostra também no livro Cozinheiro Imperial, no qual alguns pratos foram caracterizados como de estilo burguês e acrescentadas à coleção. Neste sentido, deve-se entender também o pequeno prefácio à sétima edição: “... Os Editores, sempre solícitos em melhorar este livro predilecto das donas de casa,...”. Seguindo o prefácio, está um manual de cinco páginas de como partir e servir os variados tipos de carne e suas partes, bem como aves e peixes. Na seqüência, está um apêndice de cinco páginas, no qual se faz referência ao comportamento correto à mesa. A mulher, por exemplo, deveria servir. Arrotos, ruídos com o alimento, ou ainda temas pesados, deveriam ser evitados à mesa608. Aqui se mostra a percepção contemporânea da alimentação como acontecimento social, que deveria seguir uma determinada etiqueta. Neste sentido, as exposições devem ser entendidas como modelo civilizatório.

6.1.2 Receitas A parte das receitas começou com o capítulo para sopas, caldos e cozidos609. O capítulo ia da página 11 até a 41 e continha 110 receitas. Segundo o entendimento da época, foram colocadas neste capítulo também receitas com arroz e macarrão, bem como pratos especiais para o período de jejum e dias de peixe, como, por exemplo, o caldo para dias do peixe610 ou 608

Ver o Cozinheiro Imperial, 4. Ed, pág. 5-7. No título do capítulo, também é enumerada a categoria panadas. Para isso, é colocada uma receita na qual o pão é cozido com água e então é engrossado com gema de ovo. A receita é recomendada tanto para idosos como para crianças e deve proteger o estomago. Ver também aí pág. 21-22. 610 Ver, também, ali, pág. 38. 609

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sopa para dias de carne611. Entretanto, estas receitas já existiam nos livros portugueses anteriores. Deve-se resaltar especialmente, correspondendo ao entendimento da época, inúmeras receitas medicinais. A utiliação doméstica de caldos, como tratamento terapêutico era difundida e muitos sintomas de doenças foram tratados desta forma. O capítulo contém ao todo 15 sopas medicinais, entre as quais: caldo amargoso para as moléstias do peito e vômitos612; caldo para purificar a massa do sangue613; caldo de raâs e caracoes para tosses seccas614, ou caldo para vapores e flatos que sobem à cabeça615. Da mesma forma, pratos que tinham uma relação nacional foram introduzidos, como arroz a turca616; sopa à franceza617; sopa à italiana618, à portugueza619 e sopa de abóbora à brasileira620. Diferentes tipos de sopa de abóbora foram citados, sendo que uma foi classificada como à brasileira, já que fora utilizado um tipo de abóbora local, a abóbora dé água. Com isso, era a primeira vez que se intitulava uma receita de à Brasileira, em 1859. Além disso, a receita não fora copiada de um livro de receitas português. Dentro das 110 receitas, duas devem ser especialmente destacados. Como uma das primeiras receitas é citada a sopa de tartaruga621. De acordo com o manual de uso, utiliza-se, para tanto, entre outras coisas, a cabeça de um bezerro, entranhas de um bezerro, ostras, essência de anchova, e entranhas de aves, que são cozidos de forma trabalhosa, para se preparar a sopa. Como recheio, são colocadas nesta sopa bolinhas de carne, que, pelo tamanho, deveriam corresponder a ovos de tartaruga. Esta sopa, juntamente com as bolinhas, deveria ser servida em um casco de tartaruga. A relação com a tartaruga foi descrita da seguinte forma: “E a isto que se dá o nome de sopa de tartaruga, porque se servem, para a fazer, de uma concha ou casco deste animal amphibio em qual vai ao forno para corar. ...Segundo este methodo pode qualquer pessoa preparar a verdadeira sopa com o animal de que torno o nome, uma vez que tenha posses para isso.” Interessante aqui é a preparação trabalhosa e despendiosa em ingredientes, que a não ser na forma de servir não contêm nenhuma parte da tartaruga. A última frase citada acima contém a 611

Ver, também, ali, pág. 18. Ver, também, ali, pág. 41, sopa amarga para doenças do peito e vômito. 613 Ver, também, ali, pág. 39, sopa para limpeza do sangue, receita em Cozinheiro Moderno. Ed. de 1807, pág.208. 614 Ver, também, ali, pág.40, sopa para vapores e flatulos que sobem a cabeça, Cozinheiro Moderno, pág. 208. 615 Ver, também, ali, pág. 12. 616 Ver, também, ali, pág. 20. 617 Ver, também, ali, pág. 19, a receita desta sopa provem, por exemplo, como muitas outras, literalmente do livro de culinária português Arte de Cozinha escrito em 1680 por Domingos Rodrigues. 618 Ver, da mesma forma, pág. 26. 619 Ver, da mesma forma, pág. 22. 620 Ver, da mesma forma, pág. 12. 621 Ver, da mesma forma, pág. 123, sopa de tartaruga. 612

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confissão de que a mencionada sopa, na verdade, não é autêntica. Neste contexto, deve-se pensar o importante papel que a tartaruga representava, sobretudo no norte e tamém no nordeste como fornecedor de carne. Assim sendo, a trabalhosa maneira de preparo e os inúmeros ingredientes “civilizados” deve ser vista como uma forma de distanciamento da maneira “original” indígena de preparo com as partes da tartaruga. Entretanto, ao menos o casco da tartaruga deveria ser utilizado. Esta receita não foi copiada dos famosos livros de receitas portuguesses. No entanto, devido ao grande número de receitas copiadas, torna-se difícil atribuir a originalidade desta receita genuinamente ao autor. A receita que mais salta aos olhos neste capítulo é, no entanto, uma tentativa protoindustrial para a produção de sopa em cubos. Do nome da receita se depreende: Caldo em pastilhas ou de conserva para se transportar, ou por mar ou por terra, a paízes desertos em jornadas dilatadas; para commandantes de exércitos, governadores de praças sitiadas, cidades afflictas da peste e outros acidentes que podem sobreviver, e em que por nenhum dinheiro se podem encontrar nem galinha nem carne622.

Os ingredientes e as quantidades demandam uma cozinha de grande porte, provida de panelas de dimensões enormes, para que se possa cozinhar as centenas de quilos de ingredientes. Aqui são colocadas entre outras coisas, a perna de um boi, seis kapauen, duas pernas de bezerro, oito patas de carneiro, quatro perus, doze galinhas, vinte e quatro Rebhüner, dois quilos e meio de presunto, quatro quilos de veado, bem como legumes suficientes. Tudo isso deveria ser cozido junto, coado, resfriado, e, então, a gordura deveria ser retirada. Este caldo básico deveria ser misturado com claras de ovo e, então, cozido cuidadosamente em uma panela até ser reduzido, formando uma espécie de mingau grosso. Esta redução seria então, ao final, resfriada. A massa assim bem unida seria partida em pedação de trinta gramas, e embrulhada em papéis. Como próximo passo, as porções seriam secas ou colocadas ao vento norte. Este cubo de sopa ressecado deveria apenas ser aquecido em água para o preparo. A receita é de grande importância por que ela descreve um método de conservação que torna um prato duradouro por muito tempo. Além disso, a sopa produzida em cubo é um alimento altamente nutritivo, que pode ser facilmente transportado. A finalidade de uso já fora mencionada logo no título expressamente. Entretanto, tal receita, nas quantidades indicadas, é até mesmo em uma cozinha de grandes proporções irrealizável. Ela servia mais para a produção profissional de sopa em um manual protoindustrial especial. Esta receita que salta

622

Ver, da mesma forma, pág. 36-37.

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aos olhos, que faz menção ao vento de uma determinada direção, também foi citada com as mesmas palavras no livro Cozinheiro Moderno623. O próximo capítulo abrange os pratos com carne de boi. Na introdução do capítulo, mencionou-se explicitamente que em uma boa mesa se servem entranhas, mas que a parte mais valorizada seria o quadril do boi624. Foram citadas 80 receitas, parcialmente denominadas de acordo com o método de preparo ou com os ingredientes complementares, bem como com os molhos. Algumas receitas foram mais uma vez denominadas de acordo com nações, como, por exemplo, peito de vacca a alemã625. A receita continha um peito de vaca cozido com repolho branco em uma dúzia de salsichinhas, o que se explica pelo uso do último ingrediente “supostamente alemão”. Da mesma forma, existia uma receita de língua de vacca a poloneza, denominada, desta forma, ainda em uma época em que na data da publicação, não existia o estado da Polônia626. Como receita genuinamente brasileira, foi citado o angu a brasileira627. A carne de boi foi era cortada em pedações pequenos, cozida em água com sal, e, então, era coada em uma peneira. Aos cubos de carne se acrescentavam ervas, chamadas caruru do porco, e, então, cozinhava-se tudo junto. Por fim, a carne e as ervas eram misturadas com uma porção de toucinho, gilós, bem como outros legumes e temperos, entre os quais também cumari e azeite de dendê. Ai, a mistura era engrossada com farinha de mandioca, como acompanhamento se recomendava um mingau de milho, mandioca, ou à base de arroz. O prato é uma receita brasileira autêntica, por um lado, pela utilização de ingredientes típicos, como giló e pimenta cumari, por outro, pela utilização de farinha de mandioca como forma de engrossar. Também a recomendação de acompanhamento contém a forma típica de servir que é um mingau. A utilização de azeite de dendê, bem como a recomendação de acompanhamento permitem fazer uma associação do prato com o contexto da cozinha afro brasileira, já que o azeite de dendê era usado na alimentação dos escravos e o aconpanhamento de mingau foi utilizado como base alimentar das classes mais baixas. Da mesma forma salta aos olhos no capítulo sobre carne de boi a menção a receitas inglesas para beef-steak (bif-stec(sic.)) e roastbeef. Desta forma, a tradição inglesa do consumo da 623

Ver http://pul.pt;14538/2/ (18.9.2009), Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinhar, onde se ensina pelo methodo mais fácil.../ dado à luz por Lucas/Rigaud. -4ª. Ed. Correcta, e aumentada. – Lisboa: Typ. Lacerdina, 1807, pág. 204-205. No entanto, a origem da receita deve ser questionada, Portugal à mesa, Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade 1800-1850, na nota de rodapé 195, na pág. 91, faz-se referência a receita que provem do livro de culinária de Leonardo da Vinci. 624 Ver Cozinheiro Imperial, 4. ed., pág. 43-44. 625 Ver também, pág. 49. 626 Ver também, pág. 55. 627 Ver também, pág. 61.

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carne de boi foi tão aceita e utilizada, que a receita foi citada na denominação bem como a caligrafia original. Além disso, é perceptível a referência de que a carne deveria ser de dois dias, o que remete ao costume europeu de dependurar a carne. Para isso armazena-se a carne recém abatida do animal por alguns dias dependurada em um gancho em um quarto escuro e resfriado. Através deste procedimento, ocorre um processo de amadurecimento, no qual as proteínas tornam-se mais suportáveis para o sistema digestivo humano. No Brasil, este costume de dependurar a carne é, no entanto, pouco usual. A carne é degustada fresca, e, por isso, é feita aqui uma anotação na receita. O capítulo seguinte continha receitas culinárias à base de carne de vitelo. Foram citadas mais de 20 receitas com todas as partes do bezerro, entre outras, com cabeça, olhos, orelhas, rins, também a glândula de crescimento, a hipófise de vitelo. O mais perceptível era, contudo, a primeira receita mencionada no capítulo Churrasco à Hespanhola e que estava escrita da seguinte forma: “O guisado chamado churrasco, de que muito gostao os hespanhoes da América do Suo, e feito pelo methodo seguinte: depois de morta uma vitela, corta-se-lhes, com couto, um pedaço de peito e costellas, tempera-se de sal. Pimenta do reino, alho, louro, cominhos, vinagre, e manteiga de vacca; e assim vai assar no forno, sem tostar muito. Serve-se depois, com couro, sobre um prato travessa628.” Com esta receita, que estava relacionada com os vizinhos republicanos do Brasil imperial se descrevia o método de fermentação que também foi utilizado no sul do Brasil. A carne deveria fermentar como couro, de forma que ela se tornava mais suculenta. Para isso, utilizava-se nesta receita uma grande quantidade de temperos. O mais interessante é, no entanto, a formulação: “após a morte de um bezerro”, como se um animal falecido tivesse que ser degustado. O consumo de carniça era tido como não civilizado e deve, neste sentido, ser entendido como uma observação depreciativa.

Seguia, então, um longo capítulo com receitas sobre ovelha, carneiro e bode, apesar de os pratos terem sido, na maioria das vezes, denominados conforme a forma de preparo e os ingredientes. Da mesma forma, algumas receitas foram denominadas de acordo com as nações, como, por exemplo, pa de carneiro à ingleza629. Perceptíveis eram aqui as receitas como carneiro mourisco, na qual se utilizava toucinho de porco, da mesma forma como uma receita que já havia sido mencionada no livro Arte de Cozinha. A receita, que, devido ao 628 629

Ver também, pág. 63-64. Ver também, pág. 84.

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nome, estabelece uma relação “moura”, é, através da utilização do toucinho, contrária ao tabu alimentar religioso dos mouros islâmicos. Este fenômeno da adição da carne de porco em receitas que são denominadas segundo os mouros ou os judeus aparece mais frequentemente na cozinha portuguesa. Metaforicamente, cristianiçava-se desta forma, os pratos dos não cristãos. O capítulo seguinte foi dedicado ao porco e abrange explicitamente o leitão e o presunto. O porco, que deveria preferencialmente ter gordura e idade média, foi caracterizado nas frases iniciais como saboroso, e conforme isso seria impensável uma boa cozinha sem carne de porco630. A caracterização das receitas se orientava mais uma vez pelos ingredientes e pelo modo de preparo. Novamente alguns pratos estabeleciam uma relação nacional, como, por exemplo, o presunto à alemã, mesmo que estas receitas aparecessem raramente. A denominação se orientava, na maioria das vezes, pela parte da carne utilizada, apesar de também aqui saltar aos olhos, que todas as partes eram utilizadas, as entranhas, como orelhas, língua, pés e rabos. Curiosa parecia a receita maus de porco de judeu631, na qual se servia quadris de porco frio. Nesta receita, da mesma forma copiada do livro Arte de Cozinha, a relação com a religião também tem um papel importante. Exatamente os quadris do porco representam a característica de reconhecimento, por que para o judeu é proibida a ingestão do quadril do porco, como um animal com quadris separados, e que não regorgita. E exatamente esta receita é preparada à moda judaica, e servida fria, o que remete ao costume judeu de comer comida fria no Sabbath. Aqui deve se levar em consideração, que esta receita já estava inserida em um livro de culinária em 1680. Assim mesmo, no capítulo estão inseridas algumas receitas tipicamente brasileiras. Um exemplo seria o prato carne de leitão ou porco com quiabos632, no qual a carne de porco é cozida com quiabo, chamados também de quingombos, e é recomendada como acompanhamento a farinha de mandioca. O prato foi pela primeira chamado de quitute e permite, da mesma forma, devido à denominação, que até hoje é usual no Brasil, estabelecer uma relação com um prato tipicamente brasileiro. Quiabos, foram trazidos da África para o Brasil, foram tidos por muito tempo como prato dos escravos e são utilizados em pratos típicos do camdonblé. Isso remete, ao lado da sugestão de acompanhamento, a um prato tipicamente brasileiro, ainda que pelo nome ele não tenha sido caracterizado como tal. Em contrapartida, um outro prato muito semelhante no âmbito nacional foi mencionado: carne de

630

Ver também, pág. 107. Ver também, pág. 120. 632 Ver também, pág. 113. 631

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porco com quiabo à brasileira633, apesar de não se poder vislumbrar uma diferença real. Faltava ainda a sugestão de acompanhamento e isso foi suplementado com a indicação de que por este modo de preparo muitos outros pratos poderiam ser preparados, por exemplo, com galinha ou com camarões, bem como os carurus podem ser preparados da mesma forma. Entretanto, em ambas as receitas muito semelhantes, também a ordem era da mesma forma muito importante. Parece que a primeira receita já havia sido mencionada em edições anteriores, enquanto a receita à moda brasileira foi inserida no final do capítulo. Neste sentido um prato de origem afro-brasileira foi, portanto, incorporado à cozinha nacional, uma vez que foi caracterizado como “à brasileira”. Por motivos práticos, foi então anexado ao final do capítulo e essa prática demostra, com isso, um aspecto da construção da cozinha típica do país. Neste sentido, um outro prato inserido, que em virtude da sua maneira de preparo, poderia ser tido como um prato tipicamente brasileiro, já que, por um lado, não aparecem em ambos as obras de referência da cozinha portuguesa, e, por outro, utiliza produtos típicos do país, é: “vatapá de porco”634. Na receita de vatapá, trata-se de um mingau temperado com pequenos pedaços de carne de porco. Na receita utiliza-se gengibre, que era caro, e o oneroso tempero cardamomo, que era importado. Na utilização destes temperos parece tratar-se de um refinamento da receita normal, para distanciar o prato da cozinha trivial cotidiana. O caldo era engrossado com amendoins torrados e farinha de mandioca, e como outro tempero se utilizava o azeite de dendê. Estes ingredientes típicos são indispensáveis para se estabelecer uma relação com a cozinha tipicamente brasileira. Vatapá é um mingau que é utilizado de várias formas na cozinha portuguesa, especialmente à base de peixe, no entanto, na maioria das vezes ele é engrossado com pão. Desta forma, trata-se, na receita, de uma versão brasileira de um prato clássico da cozinha portuguesa. Isso provavelmente explica por que essas receitas mantiveram seus nomes originais e não foram nacionalizadas. Nos capítulos seguintes foram citadas receitas como caça vermelha, coelho e lebre. Seguiu-se, então, um capítulo sobre aves, devido à valorização da época, que era muito característica, com muitas receitas, no qual o primeiro prato foi denominado gallinha com quincombos635. Este prato é muito difundido em Minas Gerais, utilizando quiabo e galinha, e, segundo a receita, era preparado em uma panela de cerâmica.

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Ver, da mesma forma, pág. 122. Ver, da mesma forma, pág. 122. 635 Ver, da mesma forma, pág. 136. 634

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Como uma das proximas receitas, foi citado o prato manjar branco636, que apresenta exatamente o mesmo texto como no livro Arte de Cozinha, de 1680, e que já havia sido mencionado na coleção de receitas da Infanta Dona Maria de Portugal. O modo de preparo deste prato, com a mesma base de ingredientes de peito de galinha, açúcar, leite e farinha de arroz, já existia até o final do século XIX. Este prato apareceu em todos os livros de culinária brasileiros da época, e pode-se, por assim dizer, que alcançou certo apreço. As receitas seguintes tratavam de outras variações de manjares. Dentre as várias receitas de aves foi incluída ainda uma receita asiática de galinha ao curry, caril de gallinha à asiática637. Aqui, utilizavam-se ingredientes como o leite de coco, temperos e manga. Como parte das receitas internacionais, foi citado o famoso prato olha podrida, no qual diferentes pedaços de carne, no entanto, sempre de ave, são cozidos em um caldo de sustância que é servido com pão. Uma outra receita interessante era a frangos doces638 , que, da mesma forma, foi retirada literalmente do livro Arte de Cozinha. Para isso, servia-se a galinha assada com amêndoas, açúcar e canela. Um prato, que, por sua orientação de sabor, porderia ser atribuído à cozinha persa. Essa influência dos pratos doces preparados com aves deve ter vindo com os árabes para Portugal. Prosseguindo na seqüência às receitas de galinhas, estavam as receita com peru, que na introdução, foi elogiado e cuja fama foi mencionada em toda América. Segundo o texto, o peru deveria ser dependurado por 24 horas após o abate. Era o único animal para o qual se recomendava este processo de amadurecimento. Depois são citadas receitas para ganso, pato, codorna, pombos, faisão e pássaros que cantassem. O que se percebe no capítulo sobre aves é que apesar da grande variedade de receitas que também frequentemente indica uma relação nacional, não foi incluída nenhuma receita à moda brasileira, e, com exceção da primeira receita, também não se mencionou o modo de preparo, que permitisse estabelecer uma ligação com um contexto brasileiro, devido às receitas ou às técnicas de preparo. Aves, como já foi mencionado, eram tidas como um ingrediente oneroso e de símbolo de prestígio, que só era servido em ocasiões muito especiais. A instrumentalização deste grupo de ingredientes foi aparentemente desconsiderada neste

636

Ver da mesma forma pág. 137. Ver da mesma forma pág. 138. 638 Ver da mesma forma pág. 153-154. 637

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grupo de ingredientes no Cozinheiro Imperial. A degustação de aves foi mencionada em muitos relatórios de viagem, da mesma forma que especialmente o Peru “a la brasileira” aparecia muito frequentemente nos cardápios. Entretanto, estes eram pratos da alta sociedade, e estes foram preparados com muita freqüência pelas classes mais baixas, de forma que se pudesse assim promover uma ampla identificação com estes pratos, como era o caso dos pratos preparados com a carne de porco. Neste sentido, o livro se relaciona mais com uma classe média que cozinhava ela mesma. O capítulo seguinte tratava tanto de peixes de água doce como de peixes de água salgada. Ainda na introdução foi enumerado e comentado um grande número de peixes. Entre outros, havia receitas para enguia, carpas, sardinhas, bacalhau, merluza, salmão trutas, arraias, atum, caviar, nove olhos e dourado. Deve-se mencionar aqui que uma boa parte dos peixes mencionados não existia no Brasil e que as receitas, mais uma vez haviam, sido retiradas dos livros de culinária portuguesa. Foram incluídas receitas como lampreia guisada com molho doce, na qual o peixe era partido, o sangue era recolhido e os pedaços de peixes eram cozidos com açúcar e canela no vinho, para ao final serem temperados com o sangue. Esta receita provinha, da mesma forma, do livro Cozinheiro Moderno. No entanto, no capítulo, estão elencadas várias receitas brasileiras autênticas, como, por exemplo, se faz referência ao merluz ou merluza: “O merluz e o que em portuguez chama-se vulgarmente bacalhau; ordinariamente e de salmoura ou secco, este e o que comumente nos trazem os Inglezes, o melhor era o da Terra Nova, porém hoje vai aparecendo um vindo da Suécia, muito superior em gosto, tamanho e arranjo, pelo seu estado frescal, gosto e barateza, e de todos o mais especial, e aplicável a dos guisados que este peixe fornce639.” As receitas com bacalhau que estão vinculadas a este capítulo são de especial importância. Bacalhau é o peixe mais importante para os países de língua portuguesa. Mesmo assim, ele era tido como o peixe dos pobres, e, por isso, não foi inserido no livro Arte de Cozinha. No Cozinheiro Moderno, se abordou o bacalhau. O refácio citado acima foi retirado deste livro, completado a parte de “... porém hoje...” A seqüência das receitas no Cozinheiro Imperial é identida a do Cozinheiro Moderno. À introdução se seguem as receitas bacalhau a provençal, bacalhau a bexamela, e bacalhau assado nas grelhas640. Na seqüência à essas receitas começava a parte de receitas autêntica que 639 640

Ver também, pág. 211. Ver, da mesma forma, pág. 211-213 e em comparação http:puri.pt/14538/2/(18.9.2009).

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aparecem no Cozinheiro Imperial para bacalhau. Depois, vinham as receitas bacalhau ensopado e, então, bacalhau ensopado com quiabos641. Segundo a receita, além de quiabos, foi também utilizado azeite de dendê, o que permite fazer uma associação com um prato afro brasileiro e que deve ser entendido especialmente diante do contexto de que o bacalhau servia para a alimentação dos escravos. Prosseguindo-se a uma outra receita, bacalhau ensopado com camarões, vinha a receita vatapá de bacalhau642. Nesta receita foram utilizados muitos ingredientes brasileiros como quiabos, azeite de dendê, farinha de mandioca, amendoin torrado. A sugestão de acompanhamento era da mesma forma de influência brasileira. A menção ao amendoin é da mesma forma pouco usual, e pode-se, por isso, da mesma forma como os outros ingredientes, estabelecer uma relação com a cozinha afro-brasileira. O amendoin proveniente do Brasil foi utilizado muito raramente em pratos salgados. O prato mais famoso, e quase o único, é o caruru, e provém, da mesma forma, da cozinha afrobrasileira. A farinha de amendoin, durante o cozimento dos alimentos, engrossa o caldo, tornando a refeição bastante nutritiva643.

Especialmente notável era, no entanto, a receita de bolinhos de bacalhau. Foi colocada uma receita com o nome bacalhau em almondeguinhas ou bolos644, na qual o peixe levemente cozido deveria ser misturado com ovos, passas, e açúcar, para então ser frito em óleo ou gordura de porco. A última frase aparecia então: “Nos os Brasileiros e Portuguezes fazemos estas almôndegas ou bolos do modo que se segue, que não deixa de ser mais grato ao paladar: Bolos ou almôndegas de bacalhau à Brasileira”. Esta citação é característica no que diz respeito à autopercepção da cozinha brasileira no Cozinheiro Imperial, de 1859, já que através da respresentação: “nós brasileiros e portugueses...” se fazer referência às raízes comuns aos brasileiros e portugueses e às interseções da cozinha brasileira. Seguia uma receita na qual o peixe, cozido e retirados os espinhos, era socado em um pilão. Pela primeira fez, foi mencionada, assim, a técnica de trabalho dos indígenas de socar com um pilão. Após acrescentar temperos, legumes, bem como ovos, deveriam ser formadas

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Ver Cozinheiro Imperial, 4. ed., pág. 212. Ver, também, pág. 213. 643 Como acima mencionado, o amendoim quase não é utilizado na cozinha brasileira. Isso se torna mais interessante, se se pensar como a manteiga de amendoin encontrou aceitação nos países anglofonos. Neste contexto, deve-se mencionar ainda a importância do amendoin para a culinária da Indonésia. Lá o amendoim é da mesma forma utilizado para o preparo de molhos, como por exemplo, o prato nacional gado-gado. Supostamente, os holandezes trouxeram o amendoim para o Brasil em sua região colonial. Este aspecto ainda não foi pesquisado. 644 Ver também pág. 213-214. 642

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bolinhas, que deveriam ser roladas em farinha de trigo e, então, fritas. Por fim, dizia-se de forma bem característica: “É deste modo que são mais saborosos.”645 Outras receitas de bacalhau estão elencadas, como bacalau em pastel ou bacalhau de escabeche, e uma receita chamada: bacalhau cozido a brasileira e portugueza. A diferença se manifestava nos ingredientes e foi representada da seguinte maneira: “O Bacalhau cozido a Brasileira leva quiabos, cebolas fendidas, machiches, gilos e bananas da terra quase maduras, e come-se com um molho de azeite, vinagre e pimenta cumari. O Bacalhau cozido a Portugueza leva batatas, cebolas fendidas e um molho de couves, que servem também para atrahir o sal. Come-se com um molho de azeite, vinagre, alhos e pimenta do reino: e alguns deitao no nolho cebolas cruas picadas miudamente646”. Nesta classificação, mostra-se clara a importância destes ingredientes típicos como parâmetro da identificação. É interesante que a batata é considerada, neste sentido, como um ingrediente português, enquanto, na versão brasileira, a banana de cozinhar forma a base de carbohidrato. Percebe-se, também, a contraposição da pimenta cumari brasileira à pimenta do reino. Outras receitas com uma relação brasileira eram: eiró frito à brasíleira, enguia ou cobra d’água do Brasil, bem como enguia ou mossum do Brasil, por outro lado a classificação e a denominação se davam de acordo com os ingredientes típicos. Na receita eiró frito à brasileira, ao contrário, trata-se de uma ampliação lingüística da receita eiró frito à basílica do Cozinheiro Moderno. Neste capítulo sobre peixes, apareciam também as receitas à base de tartaruga e mais uma vez se orientavam no exemplo do Cozinheiro Moderno. Isso se mostra na introdução do prefácio exatamente idêntico, onde se aborda a especialidade da tartaruga e onde também esta já havia sido caracterizada como réptil. Em três subgrupos, as tartarugas foram divididas em tartaruga de água doce, de terra e de mar. Assim sendo, não se pode, aqui, falar de uma percepção da natureza brasileira. As receitas eram idênticas. tartaruga de fricasse, tartaruga de molho pardo, e tartaruga para dia de carne. Especialmente a última receita declara a extinção da tartaruga, já que estas eram vistas pelos portugueses religiosos como peixe, e, assim poderia ser comida nos dias de jejum. Nos dias de carne, deveria ser acrescentado o bacon e a carne de boi às receitas647. Apesar de a tartaruga, em algunas regiões do Brasil, ter sido considerada como o principal fornecedor de carne, não se estabeleceu neste capítulo nenhuma relação com o Brasil, já que pelos editores o consumo

645

Ver, da mesma forma, pág. 214. Ver, da mesma forma, pág. 214. 647 Ver, da mesma forma, pág. 215-216. 646

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de tartaruga era atribuído às regiões mais atrasadas do país. Desta forma, o curto capítulo foi apenas aproveitado. Na seqüência, após algumas receitas de peixe, vinha novamente uma receita tipicamente brasileira. Esta foi intitulada com o nome: zôrô, zônzôrô, ou zôrôrô. A receita foi descrita da seguinte forma: “Este guisado brasileiro e o mesmo caruru, porem feito como este, quiabos cortados em rodas finas, bagres da Laguna, bredos, e beldroegas, ou ainda ora-pro-nobis, e grelos de abóbora, tudo bem aferventado648.” Aqui se tratava de uma receita brasileira, que se caracterizava pela utilização de ingredientes como quiabo, ou também ora-pro-nobis e grelos de abóbora. O capítulo de peixes é encerrado com uma grande sugestão de banquete para os tempos de jejum. Na seqüência, aparece o curto capítulo sobre frutos-do-mar e crustáçoes. Aqui, aparecem, além de ostras, mexilhões, lagosta, camarões e polvo também crustáçoes. Lagostas e camarões foram usados, por exemplo, para a preparação de lingüiças. Como única receita brasileira, apareceu aqui camarões com cajus à brasileira649, na qual a adição do caju como fruta típicamente brasileira deu a conotação da relação nacional. Seguiu o abrangente capítulo sobre legumes, no qual tanto plantas brasileiras como plantas européias foram tratadas. Mais uma vez, uma parte das receitas foi retirada do livro Cozinheiro Moderno. Contudo, o capítulo sobre legumes no Cozinheiro Imperial é três vezes mais abrangente do que a edição portuguesa. Nele, é relevante o fato de que algumas plantas foram preparadas como parte abrangente de pratos principais e, por isso, penetraram aqui. Neste sentido, são enumeradas receitas como feijões verdes com camarões à brasileira, no qual a farinha de mandioca é utilizada para dar liga. De importância, especial era a receita tutu ou feijão a mineira.650 Este prato feito de feijão foi engrossado com a farinha de mandioca. O tempero foi feito com a pimenta cumari e, como sugestão de acompanhamento, foram apontados lombo de Minas, bem como linguiça. Este prato vale até hoje como uma especialidade de Minas Gerais e era um dos pratos regionais no Cozinheiro Imperial, no qual ainda se fez menção a um outro ingrediente e especialidade regional, o lombo de porco de Minas Gerais. Segue ainda a outra especialidade regional, feijão preto com leite de coco a bahiana651. A preparação de feijão no leite de coco no nordeste do Brasil foi descrita em relatórios de viagem. Como sugestão de acompanhamento na receita, era recomendada carne seca, o que, nesta combinação, também sugere um prato da cozinha afro-brasileira. A primeira 648

Ver, da mesma forma, pág. 217. Ver, da mesma forma, pág. 223. 650 Ver, da mesma forma, pág. 239. 651 Ver, da mesma forma, pág. 239-240. 649

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menção a pratos regionais mostra a percepção supraregional da cozinha regional. Estes são parte de uma identidade regional, a qual aqui se faz um tributo. O próximo capítulo no Cozinheiro Imperial tratava de molhos, pimentas e essências, e com isso, de uma importante parte integrante dos temperos dos pratos. Mais uma vez, uma grande parte das receitas aqui foi retirada do livro Cozinheiro Moderno. Para isso, dois capítulos da edição foram resumidos em um. Da mesma forma, muitos dos pratos com relação nacional deveriam ser entendidos como parte da cozinha internacional contemporânea. Os molhos tinham nomes que soavam de forma notável, como molho de pobres, para o qual se usavam três variantes diferentes e provieram da edição. Em todo o capítulo, não há sequer uma receita autenticamente brasileira. Exatamente, se se levar em consideração a importância do tempero como característica de uma cozinha, a falta de uma relação com o Brasil torna clara a construção artificial e a composição do Cozinheiro Imperial. Ovos eram a base das receitas do capítulo seguinte. Estes eram preparados na forma de ovos mexidos, omeletes, pães e biscoitos e todo tipo de outros pratos, contudo, sem receitas autênticas, e, mais uma vez, sem uma orientação no modelo português. O capítulo seguinte tratava da conservação do alimento, frutas e peixes vivos. As receitas aqui publicadas não provêm de ambos os livros portugueses, mesmo assim, havia um grande número de livros contemporâneos, que tratava da temática da conservação. Como exemplos, deve-se mencionar: O Vade-Mecum dos Curiosos, Collecao de Receitas Praticas, Applicadas As artes, Officios E A Economia Domestica; Thesouro Inesgotável ou Collecao De Vários Processos e Receitas Com Appilicao as Sciencias, Artes, Industria, Agricultura E Economia Donestica, obra utilíssima a todas as classes da sociedade e o chamado Conselheiro da Família Brasileira, Encyclopedia dos Conhecimentos indispensáveis na vida pratica. Devido á pratica da ampla incorporação das receitas de outros livros até aqui, fica a suposição de que aqui também as receitas foram copiadas. O capitulo sobre a conservação de alimentos na época em que não existiam refrigeradores era importante e de utilidade prática. Em cinco páginas foram citadas 43 receitas. Pode-se ver aqui uma receita para a produção de molho de tomate. Segundo a indicação, esta foi exportada para a Ásia652, no entanto, é questionável se este comentário foi, da mesma forma, copiado de edições anteriores, ou se, de fato, se tratava de um negócio brasileiro. Mais uma vez, fortemente influenciado pelo livro Cozinheiro Moderno, era o capítulo sobre leite, no qual apareciam várias receitas para biscoitos, pães e cremes, contudo, sem se

652

Ver, da mesma forma, pág. 294-295.

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estabelecer uma relação com o Brasil. O capítulo seguinte, sobre massas em geral, era, da mesma forma, orientado no Cozinheiro Moderno, no qual foram utilizadas receitas do livro Arte de Cozinhar. A receita para cuscus653, era quase literalmente idêntica a receita cuscuz como se faz. A única mudança consistia na adaptação da farinha-da-terra em farinha de trigo. Em Portugal, a farinha-da-terra era automaticamente tida como farinha de trigo, e para o Brasil isso foi descoberto especialmente, já que as farinhas usuais ou eram de mandioca ou de milho. No entanto, a receita tem ainda certa relevância, já que no Brasil foram preparadas diferentes variações de cuscus. Ao invés de se usar o trigo moído usou-se também o milho ou polvilho grosso para a preparação do cuscus, única técnica que foi mantida. O cereal, neste caso, era cozido no vapor. Para isso, usava-se uma panela própria chamada cuscuzeiro. No demais, faltava nas receitas para pães e biscoitos, da mesma forma, uma relação com o Brasil, principalmente por que nas receitas usava-se exclusivamente farinha de trigo. O último capítulo culinário, na versão de conteúdo completo do Cozinheiro Imperial, trata as receitas de doces. É de se admirar a pequena abrangência que foi dada a este capítulo. Contudo, deve-se levar em consideração que já no capítulo sobre leite, ovos, conservação e pães e biscoitos foram colocadas muitas receitas doces. Da mesma forma, foram utilizadas mais uma vez, muitas receitas das edições portuguesas, como, por exemplo, a receita para preparação de chocolate, que advém do livro Arte de Cozinhar. A primeira receita mencionada no capítulo era a de um doce que deveria estabelecer autenticidade: Doce do Brasil654 “ Pega-se em massarocas de milho ainda em leite, tirao-se os grãos todos do carolo e pisaose mui bem n´um gral, sendo depois passados em uma peneira, e pesa-se este polme com igual peso de assucar, pondo-se este em ponto de voar, deita-se o polme e dexa cozer a por em ponto subido; tira-se para fora do lume até esfriar para se lhe juntar três gemmas batidas de ovo por cada arrátel de polme; deita-se em uma tigelinha com canella em pó por cima e mete-se no forno brando a tostar; depois tira-se e come-se. Esta receita nunca pode ser má; experimente-se, porém não é afiançada sem que se lhe tire a prova.”

653

Ver, da mesma forma, ali, pág. 326-327. Também no livro de receita português O Cozinheiro Completo foi introduzida na pág. 189 uma receita com o nome doce do Brasil, que também se baseia nos mesmos ingredientes. 654 Ver aí também, pág. 328. Também na 2ª. Edição de 1843 esta receita foi colocada em primeiro lugar, ali na pág. 228.

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Interessante nesta parte, era, por um lado, a utilização de ingredientes locais como o milho como base de uma receita de doce típico e, por outro lado, o comentário de que esta receita nunca pode ser ruim, sem se discutir este aspecto mais detalhadamente. No capítulo, foram também colocadas outras receitas com milho, como, por exemplo, para broas. No mais, grande parte das receitas para pães e biscoitos se baseava em farinha de trigo. A farinha de mandioca não foi usada em nenhuma receita para panificados. Ao final de muitas receitas de doces, foram colocadas rimas curtas, o que também demonstrava a importância e o caráter de prestígio destas receitas. Na quarta edição, já foi agora, então, inserido um capítulo complementar sob o título moderno, Supplemento Collecao de Receitas Modernas655. Foram inseridas diversas receitas, como por exemplo, peru a camponeza ou repolho á burgueza. Especialmente, o repolho mencionado por ultimo, mostra a influência da cozinha burguesa emergente. Neste parágrafo, não foram colocadas receitas autenticamente brasileiras. Seguiam, então, sugestões de banquetes e recomendações de cardápios como capítulo próprio. Aqui, mais uma vez, recorreu-se ao livro Arte de Cozinha, como modelo.

6.1.3 Guia do Criado e Dicicionario dos Termos Technicos da Cozinha

A parte A Guia Do Criado De Servir ou Observações Úteis A Criados E A Donas De Casa Por Constança Olívia de Lima estava ligada ao capítulo das receitas e representa um exemplo especial da forma de lidar e da incorpora;cão de edições portuguesas. Esta parte foi retirada completamente do livro Guia do Criado de Servir, Livro Útil a Criados e a Donos de Casa, publicado em Lisboa, em 1851. Literalmente seguem as recomendações que parecem ser de um outro mundo. Entre outras se recomenda que três garrafas de Champagner deveriam ser resfriadas em cinco quilogramas de neve misturada com sal656. Ainda hoje se utiliza essa maneira de resfriar bebidas misturando sal com gelo para se obter um efeito maior. Entretanto, fica em aberto a questão, de quem é em Lisboa que dispunha de cinco quilos de neve, e da mesma forma também é questionável tal recomendação para o Rio de Janeiro de 1859. A partir dos anos 40, ocorreram vários fornecimentos de gelo no Rio de Janeiro, depois de, em 1834, pela primeira vez, gelo ter sido trazido para o Rio de Janeiro em um navio norte americano. Ainda assim, a utilização de tal 655 656

Ver também a pág. 343. Ver ali pág. 388. Maneira de gelar o vinho de champanha.

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recomendação deve ter se mantido restrita a um pequeno circulo da elite. Esta recomendação foi até mesmo reforçada: “Aconselhamos, sem hesitar, a aquisição de uma sorveteira familiar, chamada congelador; nós mesmos operamos com este aparelho, do qual dentro em dez minutos tiramos o melhor resultado.” 657 Pode-se partir da premissa de que apenas um circulo extremamente restrito de pessoas no Brasil do século XIX tinha acesso a refrigeradores. Ao contrário, no que diz respeito à história da técnica de maquinas de sorvete e de refrigeradores, a passagem é bastante elucidativa. A recomendação de compra comprova a existência de tal máquina e, com isso, os primórdios da descoberta mais importante na conservação de alimentos. Além disso, a passagem mostra que, em certa medida, já existia uma produção, bem como uma oferta de tais aparelhos, e que estes eram relativamente potentes. A refrigeração de uma garrafa demora ainda hoje na maioria das vezes mais do que dez minutos, assim sendo, esta assertiva pode ser tida como um tanto quanto exagerada. Interessante era também a conduta dos editores em atribuir esta parte à autora Constança Olívia de Lima, já que no português não tinha sido apontado o autor. A conclusão do Cozinheiro Imperial forma o capítulo do glossário: Diccionario Explicativo de varias Palavras Empregadas no Cozinheiro Imperial. Em ordem alfabética, foram explicados uma variedade de conceitos úteis para as técnicas culinárias. Este capítulo não advém de ambos os livros de culinária portugueses, no entanto, aqui também deve se duvidar da autenticidade. Por um lado, só se estabeleceu a relação com o Brasil duas vezes, relativamente à unidade de medida Arrátel e Selamim. Além disso, não foi citada nenhuma explicação de produto com relação ao Brasil. Por outro lado, existiam explicações que negavam um contexto brasileiro, como, por exemplo, a utilização do conceito de farinha, sob o qual sempre se devia entender a farinha de trigo658. Na verdade, exatamente o fato das variações de farinha no Brasil é impressionante, já que ainda no livro Ancora Medicinal, a utilização da farinha de mandioca brasileira se tornou conhecida em Portugal. Por isso é que aqui parece que esta parte, incorporada ao livro, deveria advir de uma edição até então desconhecida.

657 658

Ver, da mesma forma, pág. 338. Ver também aí, pág. 405.

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6.2 Doceira Brasileira

No ano de 1851, foi publicado o segundo livro de culinária do Brasil. O título era: Doceira Brasileira, Ou Nova Guia Manual Para Se Fazerem Todas As Qualidades De Doces Seccos, de calda, cobertos ou confeitados; compotas, sopas doces, conservas de doces, natas e cremes de leite; geleas,: fabricação de pastilhas. Flores e frutas, e differentes figuras e objectos de assucar; conservação das frutas em aguardente e calda; depuração e refinação do assucar, do mel e da rapadura; preparaҫão do nosto para os doces; fabricação dos xaropes; ratafias, ou licores de sumo de frutas, por infusão, a frio, gelos artificaes em todo o anno; e sorvetes de todas qualidades; Com Muitas Observações Sobre Taes Assumptos. Obra nova e utilíssima para todas as pessoas em geral: extrahida de diversos autores e de muitas receitas particulares, não impressas até ao presente. Terceira Edição Mais Correcta E Accrecentada Com Numerosas Receitas Novas Por Constança Oliva de Lima659.

Os editores eram, como no Cozinheiro Imperial, os irmãos Eduardo e Henrique Laemmert, que administravam sua editora no Rio de janeiro. Em 1856, surgiram a 2ª.Edição, em 1862, a 3ª Edição, em 1875, a 4ª. Edição, em 1893, a 8ª. Edição e, por fim, em 1896, a 9ª. Edição. Como autora desta obra abrangente, foi apontada Constança Olívia de Lima e já no título fezse remissão ao fato de no livro terem sido incorporadas receitas de outros autores.660 Neste contexto, deve-se considerar que em Portugal já haviam sido editados livros sobre a produção de doces e que estes talvez tenham servido como modelo. No entanto, deve-se ainda acentuar que muitas receitas à base de ingredientes brasileiros foram introduzidas, e, assim, existiam mais receitas autênticas. O livro era dividido em nove capítulos e continha 530 receitas em 257 páginas, bem como um prefácio. Nas edições seguintes, o livro foi acrescentado de outras receitas. Surgiu, por exemplo, na 8ª. Edição de 1893, ou seja, já em tempos da república, uma receita para pastéis republicanos.661 Isto pode ser entendido como mais um exemplo de como a alimentação era instrumentalizada para o desenvolvimento político e ao mesmo tempo foi por ele influenciado. 6.2.1 Prefácio O prefácio é um importante instrumento dos editores para aproximar o livro que, em sua maioria, tem receitas copiadas de receitas de Portugal, de seus leitores brasileiros.

659

Ver Doceira Brasileira, aqui utilizada na 3ª. Edição de 1862. Onde se lê:”… extrahida de diversos autores…” 661 Ver Doceira Brasileira, 8ª. Edição, pág. 295. 660

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Isto começou com a remissão de que não existiria ninguém no mundo que não gostasse de comer bons doces. Entretanto, a dificuldade seria produzi-los. Na seqüência, este livro se dirige, na segunda frase, a seu público feminino: “Foi por isso que nós, impellida do desejo de sermos útil às nossas patrícias em particular, e em geral a todos os habitantes deste precioso Brasil, ...662

Esta frase tem um grande peso, no que diz respeito ao intuito de construir um âmbito nacional. O desejo dos editores de serem úteis às patrícias, bem como a todos os habitantes do precioso Brasil, os teria levado à publicação do livro. O livro foi entendido como uma complementação para o “... perfeito Cozinheiro Imperial...” a fim de suprir a lacuna relativa aos doces. Além disso, o papel da mulher foi acentuado:”...justo era que uma mulher tomasse a peito a empreza de dar à luz do dia uma Doceira Brasileira663.” Isso deve também ser visto diante do contexto de que na cozinha profissional trabalhavam mais os homens, enquanto na confeitaria mais mulheres estavam envolvidas, e o livro, portanto, dirigia-se também a essas. Esta dedicatória mostra, por um lado, que, assim sendo, existia um público leitor feminino, que se dedicava à preparação de doces, bem como se podia depreender dos cadernos de receitas anotados à mão. Por outro lado, isso mostra também a transformação social, já que uma mulher era a autora deste livro e a Doceira Brasileira, com isso, deveria ter autenticidade. Difícil se mostra, contudo, atribuir o livro a uma determinada classe social, já que a prestigiosa produção de doces era prerrogativa da mulher em todas as classes, e mesmo as senhoras da alta sociedade preparavam, elas mesmas, os doces. No prefácio, foram, na seqüência, criticados os livros caros que vinham de fora, e que, mesmo assim, não satisfaziam as exigências e condições brasileiras. Esta colocação é ainda mais interessante, se se pensar que exatamente o que era criticado era usado, como, por exemplo, as receitas com nome inglês, como ainda deverá ser mostrado. Da mesma forma, no prefácio, fez-se menção mais uma vez às amplas variações de doces já surgidas no título do livro, e à circunstância de que, dependendo da dose, poder-se-ia produzir uma quantidade aleatória de uma das mesmas outras coisas, provavelmente, com a idéia de sugerir uma produção caseira para a venda.

662 663

Ver, da mesma forma, Doceira Brasileira, 3ª. Edição, S III. Ver, da mesma forma, ali, P. IV.

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6.2.2 Receitas O primeiro capítulo tinha o nome: Da depuração e refinação do assucar, do mel e da rapadura e do modo de fazer ao assucar cândi e os xaropes e tratava, ao lado das técnicas fundamentais para a limpeza de açúcar, principalmente da fabricação de xarope. Aqui, era notável a grande quantidade de receitas com uma finalidade medicinal, como, por exemplo, de agrião. Além disso, existia, além de receitas para a fabricação de xarope de framboesa ou de xarope de vinagre, uma receita para a fabricação de xarope de éter. O segundo capítulo, em seu conteúdo, o mais abrangente, tinha o nome Dos Doces em geral que não são de calda; das massas para doces e para folhadas; das murcelas e diversas sopas doces. O capítulo, que ia da página 23 até a 158, abrangia uma grande variedade de doces. Foram colocadas muitas receitas de doces portugueses tradicionais, como, por exemplo bem casados e arroz doce. Da mesma forma, foram utilizadas receitas francesas como blanc manger ou o inglês gingerbread e muffins. Assim mesmo, as receitas de doces foram copiadas literalmente, como, por exemplo, a receita de manjar branco. Essa foi complementada de outras variações, pela primeira vez à base de pêros664. Dentro da grande variedade, foram colocadas diferentes receitas que mostravam uma autêntica relação com o Brasil. Essas ou eram caracterizadas com tais nomes ou utilizavam ingredientes típicos locais, como uma receita para um doce à base de gemas, açúcar e coco, chamado brasileiras665. Da mesma forma, a receita do doce do Brasil foi retirada do Cozinheiro Imperial. Frequentemente, no entanto, apareciam, neste capítulo, receitas que podiam ser atribuídas ao Brasil por meio dos ingredientes. Cocada branca de ovos666, produzida à base de coco ralado e açúcar, seria um exemplo de um doce típico do nordeste do Brasil. Da mesma forma, tipicamente brasileiros, parecem ser os manaués, que foram citados em diferentes variações, como por exemplo, manaués de aipim, de carimâa, de cará, do Pará667. De acordo com a receita, a massa de farinha deveria ser coada em uma peneira de taquara (urupemba ou urupêna), um tipo de bambu existente no Brasil. Também a denominação que foi colocada entre parênteses leva a concluir tratar-se de uma denominação indígena para a planta da qual a peneira é produzida. 664

Ver, também, ali, pág. 96. Isto é um fato interessante. Por muitos séculos, o famoso manjar branco foi preparado com o peito de galinha. No final do século XIX, é que ocorreu a transição para o manjar branco dos dias atuais, no qual se retirou a carne da receita do doce e um amido vegetal deu forma ao pudim. A utilização de pectina deve ser entendida como passo transitório. Pêros é a denominação botânica que se dá para a maçã de ponta dos dias atuais. 665 Ver, da mesma forma, pág. 61. 666 Ver, da mesma forma, pág. 64. 667 Ver, da mesma forma, pag. 90-94.

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Os manaués de aipim baseavam-se em uma massa de mandioca mansa, os de carimâa em uma massa que era baseada na farinha de carimâa. Esta é produzida com a mandioca fresca ralada. Os manaués de cará se baseiam em uma massa feita de cará, que era suplementada com o queijo de Minas Gerais. Ele foi explicitamente mencionado nesta receita e mostra, assim, o acesso extraregional deste produto. O queijo era vendido em todo o país, como é comprovado por anúncios de jornais do norte ou do sul do Brasil. A receita de manaués do Pará, à base de farinha de arroz e ovos, era a primeira receita com uma relação regional interna com o país. Uma outra receita com um contexto interessante é o doce feito à base de amendoim e mel, o pé de moleque668, que era preparado em uma grande massa. Devem ser considerados aqui diferentes aspectos. O nome do doce significa pé do moleque, o que, eventualmente, deve ser atribuído ao vendedor. O doce tem, em virtude do uso do amendoim, uma superfície irregular, e, por isso, em uma analogia a ele, as ruas de pedras irregulares também eram chamadas de pé de moleque. A semelhança da superfície do doce com as ruas é impressionante. Pé de moleque é conhecido em todo o Brasil como o nome de um doce, mas, mesmo assim, o produto é diferenciado de região para região. A receita é baseada no sudeste do Brasil em rapadura, o que corresponde à analogia. No Maranhão, o pé de moleque é baseado em uma massa de mandioca doce, que é frito em gotas. No Nordeste, com o ponto forte em Pernambuco o pé de moleque é um bolo feito com castanha de caju, as castanhas locais, bem como com uma massa de mandioca. Assim sendo, trata-se de três doces completamente distintos com o mesmo nome669, e a receita aqui colocada representa mais uma variação. A transição da receita do Sudeste com a troca do mel para a rapadura é, no entanto, variável, já que na receita do livro também o melaço poderia ter sido tido como referência, que até então era tido como o mel do engenho. Uma outra receita que utilizava ingredientes locais típicos seria, por exemplo, o podim de aipim670. Utilizando a mandioca mansa, eram citados dois modos de preparo diferentes. No primeiro, a mandioca era descascada, ralada, moída e, então, colocada no sol para secar até se tornar farinha, que deste modo, servia como a base para um pudim. Isto era, na maioria das vezes, tendo como base a mandioca brava, uma das técnicas típicas para a produção da farinha. O segundo método, contudo, foi ressaltado, já que ele daria o melhor sabor, o que em 668

Ver também, pág. 121. No sul do Brasil, a receita é semelhante ao nordeste, contudo, ela é acrescentada de água, o que no sudeste seria um pecado. Engraçado é o fato de nas respectivas regiões ser inconcebível de a receita em outras partes do país poder ser tão diferente, e que cada região achar que ela possuía a versão correta. 670 Ver também, aí, pág. 124. 669

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toda preparação de uma receita é o que se almeja. De acordo com ele: “Outro methodo que nos parece produzir um pudim de muito melhor sabor, é o de assar no forno o aipim, descacá-lo depois,...” apesar de assim se recorrer ao método indígena, posteriormente rural, de colocar a mandioca no forno com a casca para assar e depois descascá-lo. A vantagem deste método é que a mandioca seca fermenta e conserva todo o seu sabor. Além disso, esta forma de preparo é relativamente simples e descascar a mandioca cozida vai mais rápido e com menos perda da massa. Em muitas regiões rurais, a mandioca preparada desta forma era tida como um substituto do simples pão e como base alimentar. Em esguida, foram preparados diferentes tipos de confeitos à base de ingredientes brasileiros, como, por exemplo, roscas de corujas671, na qual o polvilho e o angu de farinha de mandioca, ambos farinhas à base de mandioca, foram utilizados. Ao todo, foram citadas ainda outras receitas de pães e biscoitos feitos à base de mandioca e também de farinha de milho, correspondendo, assim, perfeitamente, à realidade alimentar brasileira. O capítulo seguinte, bem mais curto: Das geleas de fructas, e outras, tematizava a produção de geléias. Essas tinham, em parte, um contexto medicinal e algumas podiam ser consideradas como autenticamente brasileiras, como, por exemplo, a geléia à base de tapioca, que era o amido da mandioca. O quarto capítulo tinha o nome: Dos doces e fructas de calda, ou compotas, e dos cremes, ou natas de leite. Além de um grande número de receitas para cremes, foram ali colocadas receitas tradicionais como para a produção de doce de leite672, um método de conservação do leite. Em seguida, foram citadas receitas para o preparo e conservação de frutas cítricas, bem como receitas inglesas como orange fool e pancakes. O quinto capítulo: Dos Doces e fructas cobertas ou confeitadas, e do modo de fazer algumas conservas,

se

ocupava

intensivamente

com

os

métodos

de

conservação

Contudo, aqui se mencionou, de forma significativa, a cultura regional de doces de Pernambuco. Da página 197 até a 200, dando continuidade à receita de nome doce de abacachy de Pernambuco, foram citadas varias receitas com diversas frutas com o nome de Pernambuco. Como frutas foram mencionadas babosa, bacury, caju, guajiru, mangaba, murity, perlucho, pitomba, e saputy. Algumas dessas frutas existem especialmente no Nordeste, enquanto bacuri, por exemplo, também é difundida na região Norte e é muito apreciada. Neste contexto, é importante a relação com Pernambuco, uma das regiões produtoras de açúcar mais tradicionais do Brasil com uma cultura de doces muito

671 672

Ver, também ali, pág. 137. Ver, também ali, pág. 186.

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característica. Essas receitas são as únicas que aparecem como um contexto regional de receitas e prestam, assim, tributo e reconhecimento à cultura de doces de Pernambuco. O sexto capítulo: Do fabrico das pastilhas, flores e differentes figuras e objectos de assucar se relaciona, por um lado, com a produção de balas e, por outro lado, de confeitos, que vieram como uma relíquia árabe trazida com os portugueses para o Brasil e que alcançaram nova importância na alta gastronomia internacional com o cozinheiro francês Careme. No sétimo capítulo: Do méthodo de conservar as fructas em calda de aguardente e assucar reproduziu-se a técnica de conservação de imersão no álcool de posse de algumas receitas. O oitavo capítulo: Dos ratafinas ou licores feitos por infusão tratava da produção de licores e aguardentes de frutas, que, no Brasil, eram muito valorizados. Até os dias atuais produzem-se licores de variadade quantidade de frutas. No último capítulo: Do systema pelo qual se obtem gelo artificial para todo o anno, e modo de fazer sorvetes, descrevem-se a produção de sorvete à base química673. Até que ponto estas receitas de fato foram colocadas em prática na realidade brasileira do meio do século XIX, é uma questão a der discutida.. O fato de o conhecimento técnico ter sido difundido é já bastante surpreendente. O método para a produção artifical da neve à base de sulphato do soda e muriato ammoniacal, bem como muriato potassa advêm de Paris. A mistura dos produtos químicos provocava uma baixa da temperatura em 40º e, com isso, fazia a água congelar.

6.3 Doceira Domestica Em 1875, surgiu o terceiro livro de culinária brasileiro no mercado674: A Doceira Domestica, ou Colleccao de Receitas pela maior parte novas, de doces, pudins, tortas, conservas, pasteis, licores, e em geral tudo quanto pertence a arte do confeiteiro e pasteleiro, apropriadas ao uso das cozinhas particulares por, D. Anna Correa675. O livro impresso em Paris foi redigido por Dona Anna Correa e publicado pelo editor J. G. de Azevedo, uma editora pequena com sede no Rio de janeiro. A Doceira Domestica tem 251 páginas e os capítulos são organizados por ordem temática.

673

Ver, da mesma forma, pág 244-247. Assim, a primeira edição do livro de culinária, A Doceira Domestica, foi datada no ano de 1875, enquanto a primeira edição do livro de culinária Cozinheiro Nacional permanece incerta, ainda que provavelmente tenha surgido no mesmo ano. Por isso aqui tratou-se primeiro do livro A Doceira Domestica. 675 Aqui utilizadas na 4ª. Edição de 1895. Durante as pesquisas constatou-se, que a primeira edição surgiu em 1875 e a segunda em 1877. 674

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6.3.1 Prefácio No prefácio dá primeira edição de apenas uma página, assinado pela autora, anunciou-se a publicação de uma série de livros que deveriam ter o nome de Bibliotheca da casa brazileira, e com isso, ser dedicado á dona de casa brasileira. As novas receitas, seguindo o gosto brasileiro, deveriam ser experimentadas pela autora. Além disso, o livro deveria ser completado com as melhores receitas estrangeiras que surgiriam em inglês, alemão, francês e italiano. Nos prefácios às edições posteriores não se complementou, em muito, o prefácio à primeira edição, de forma que, em seguida, se passou diretamente ás unidades de medida e aparelhos utilizados.

6.3.2 Receitas Na parte de receitas, abordou-se, primeiramente, a limpeza do açúcar. Como receita vieram primeiro uma receita para pudim imperial seguida de pudim de farinha d´água676, à base do ingrediente brasileiro, a farinha de mandioca, no qual a mandioca antes da produção deveria ser molhada. De importância especial, era a receita para manjar branco677 , apesar de ter sido a primeira vez que se abriu mão, na preparação do doce com este nome, da utilização do peito de frango e como amido se utilizou farinha de arroz. Esta foi uma mudança importante do ponto de vista nutricional. A receita foi preparada com carne desde a sua primeira denominação no século XVI. A passagem para a variante do doce sem carne e feita com um amido vegetal deve ser entendida como uma transformação cultural, na qual a carne como ingrediente óbvio de uma sobremesa desapareceu na trasnposição para o século XX. Esta mudança ocorreu em um processo longo e até hoje sobremesas são preparadas com a utilização de liga animal, como a gelatina. No entanto, na maioria das vezes, quem tem consciência da utilização deste ingrediente animal são apenas vegetarianos bons conhecedores de alimentação. Aparecia, em seguida, como sobremesa tipicamente brasileira, uma receita para bananas de forno. Neste contexto, tematizou-se a difenrenciação entre a banana como fruta e a banana de cozinhar, denominada banana da terra. Além disso, foram adicionadas receitas regionais individuais, como, por exemplo, pamonhas a maranhense678 . Na receita de cuscuz, pela primeira vez, mencionou-se a variante brasileira,

676

Ver A Doceira Domestica, 4 Ed. Pág. 19. Ver, também ali, pág. 31. 678 Ver, também ali, pág. 51. 677

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feita á base de milho com fubá de milho. Além de receitas, como anunciado, com uma relação internacional, como, por exemplo, bolo à bismark679 , foram colocadas outras receitas com uma relação com produtos brasileiros, como conserva de bacuri680 e também receitas para a fabricação de sorvete681.

6.4 Cozinheiro Nacional O livro mais importante e mais autêntico sobre a cozinha brasileira no período imperial foi: Cozinheiro nacional, ou Colleccao Das Melhores Receitas das Cozinhas Brasileira e Europeas Para a Preparação deSopas, Molhos, Carnes, Caça, Peixes, Crustáceos, Ovos, Leite, Legumes, Podins, Pasteis, Doces de Massa E Conservas Para Sobremesa; Acompanhado Das Regras De Servir A Mesa E de Trinchar. Ornado Com Numerosas Estampas Finas682. Na literatura técnica683, a autoria do livro é atribuída a Paulo Salles, que publicou outros livros pela editora dos irmãos Garnier. Entretanto, este fato não pode ser comprovado, já que no caso deste nome, pode-se tratar de um pseudônimo, sob o qual uma variedade de obras sobre diversos temas foi publicada684. Da mesma forma o ano de publicação da primeira edição não é claro, já que nos livros não foi anotado um ano de publicação. A biblioteca nacional francesa, que possui alguns exemplares dos editores francesses Garnier, datou a segunda edição do ano de 1885, a terceira de 1889 e a quarta edição de 1892. A sétima edição surgiu em 1910 e em 2008 surgiu em São Paulo uma reimpressão da quarta edição. As diferentes edições permaneceram idênticas no que diz respeito ao numeração das páginas, apesar de na capa estar indicado que a edição teria sido revisada e melhorada. Apenas a cor da capa do livro mudou da cor azul para verde e vermelho. O livro Cozinheiro Nacional abrangia 23 capítulos com 450 páginas.

679

Ver também ali pág. 103. Ver também ali pág. 162. 681 Ver também ali pág. 148-153. 682 Aqui utilizada a 3ª. Edição de 1889. 683 Ver, por exemplo, no prefácio de Carlos Alberto Dória da 9ª edição do Cozinheiro Nacional, 2008, pág. 8, que se refere ao fato de Paulo Salles, em algumas edições, ser citado como o autor, o que não pode ser verificado. 684 Desta forma, tanto o Manual do Gallinheiro, 1887, O Jardineiro Brazileiro, 1887, como também a Doceira Nacional e O Porco, Charcuteiro Nacional, 1886, bem como Fabricação do queijo da manteiga, 1887, todos publicados pela editora Garnier, e atribuídos ao autor Paulo Salles. Em São Paulo, há um pesquisador particular que se ocupou especialmente da pessoa Paulo Salles e até hoje permaneceu sem resultados concretos. Notável nas publicações a eles atribuídas é o período em que foram publicadas. Parece que os editores Garnier tiveram a iniciativa de marcar presença fortemente de uma só vez no mercado de livros. 680

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Com o livro Cozinheiro Nacional, editado em Paris, a Editora dos Irmãos Garnier, com sede no Rio de Janeiro com uma filial na Rua do Ouvidor 71685, participava então do lucrativo mercado de livros de culinária no Brasil.

6.4.1 Prefácio O livro começou com um prefácio de várias páginas, no qual as razões que motivaram a publicação do livro foram elencados bem como a importância nacional da obra: “ Cozinheiro Nacional tal é o titulo que escolhemos para esta nossa obra; e quão grandes são as obrigações ele nos impõe! Não iremos por certo copiar servilmente os livros de cozinha que pululam nas livrarias estrangeiras, dando-lhes apenas o cunho nacional, pela linguagem em que escrevemos; nem tampouco, capeando a nossa obra com um rótulo falso, iremos traduzir literalmente livros que se encontram em todos os paises, tomando a estranha vereda de um plagiato vil que venha cortar pela raiz a importância que ligamos ao nosso trabalho e à utilidade que o público tem direito de esperar dele. Nosso dever é outro; nosso fim tem mais alcance; e uma vez que demos o titulo „nacional“ à nossa obra, julgamos ter contraído um compromisso solene, qual o de apresentarmos uma cozinha em tudo brasileira, isto é: indicarmos os meios por que se preparam no pais carnes dos inúmeros mamíferos que povoam suas matas e percorrem seus campos; aves que habitam seus climas diversos; peixes que sulcam seus rios e mares; répteis que se deslizam por baixo de suas gigantescas florestas, e finalmente imensos vegetais e raízes que a natureza com mão liberal e pródiga; espontaneamente, derramou sobre seu solo abençoado; …, plantas e raízes inteiramente diferentes dos da Europa, em sabor, aspecto, forma e virtude, e que por conseguinte exigem preparações peculiares, adubos e acepipes especiais, que somente se encontram em que abundam aquelas substancias, e que são reclamados pela natureza, pelos costumes e ocupações de seus habitantes.“686

Aqui fica clara a relação com o valioso, variado e independente fundamento nutricional brasileiro com base na fauna e flora, que, aqui, de forma inflamada, foi descrito de acordo com o discurso da época. Além disso, pela primeira vez, o conceito de cozinha brasileira foi

685

As Editoras Laemmert e Garnier eram os maiores editores no Brasil imperial, com uma dominância no mercado de mais de 60%. Ambas editoras abriram na prestigiosa Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, suas filiais relativamente perto uma da outra. 686 Ver Cozinheiro Nacional, 3ª. Edição, pág. 1-2.

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construído em um contexto que se distanciava claramente do ponto de relação europeu. Isso foi representado no contexto da época de necessidade de civilização: „E se é verdade o que dizem muitos filósofos, que a arte culinária é a bitola que serve para marcar o grau a que se tem elevado a civilização de um povo, seremos forcados a tirar a ilação necessária: que, mesmo debaixo deste ponto de vista, o Brasil ocupa um lugar honroso entre as nações cultas e civilizadas; pela apresentação de um livro em que se acham enumerados os diversos adubos de suas imensas produções.“

Depois de terem construído com isso uma base de legitimação para a uma comparada independência brasileira, a suposta dependência da Europa deveria ser definitivamente extinta: „E tempo que este paiz se emancipe da tutella Europea debaixo da qual tem vivido ate hoje; e tempo que elle se apresente com seo caráter natural, livre e independente de influencias estrangeiras, guisando a seo modo os innumeros productos de sua importante Flora, es exquisitas e delicadas carnes de sua tão variada Fauna, acabando por uma vez com este anachronismo de accommodar-se com livros estrangeiros, que ensinao a preparação de substancias que não se encontram no paiz, ou so custosamente podem ser alcançadas.“687 Abordou-se, de forma indireta, ao livro Cozinheiro Imperial: “... mandam comprar um livro que os guie”, que recomendava produtos desconhecidos e não existentes e o critica da seguinte forma: „Vêem-se portanto forcadas a renunciar a semelhante obra que lhes fala de túbaras, cogumelos, alcaparras, objetos estes que nunca viram, nem podem alcançar, e cuja substituição não sabem fazer; da mesma maneira falam em faisão, cotovia, galinhola, lebre, truta, tenca, salmão, carpa etc., sem nem sequer dar o nome do animal do Brasil que lhes corresponda, e cuja preparação possa ser idêntica.“.

Partindo-se daí, foi elencada uma lista com 27 ingredientes vegetais, na qual os ingredientes brasileiros foram contrapostos aos pretensos equivalentes europeus, que poderiam ser substituídos, por exemplo:

687

Ver, também ali, S.2.

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Mandioca

-

Batatas

Amendoim, sapucaias, castanha do para

-

Amêndoas, nozes, avelãs

Bananas

-

Maҫãs

Jiló

-

Berinjela

Pinhões

-

Castanhas

Mamão

-

Melão

Pimentas, cumaris ou kaviks

-

Pimenta da Índia

Tomates

-

Uvas Verdes688.

A substituição de mandioca por batata, amendoim e castanha-do-Pará por amêndoas e avelã, jiló por berinjela, pinhões por castanha e pimenta em vagem por pimenta cumari em lugar da pimenta preta faz sentido do ponto de vista culinário, já que as plantas ou têm sabor semelhante ou têm a mesma consistência. Outras sugestões, por outro lado, pareceram questionáveis, já que não era porssivel reconhecer uma relação, como, por exemplo, na substituição de maçãs européias por bananas, ou de uvas verdes por tomates. Mesmo, se no entendimento daquele tempo, o tomate ainda fosse tido mais como fruta do que como legume e existissem algumas sobremesas feitas com ele. Concluindo, mais uma vez, abordou-se o desenvolvimento e a percepção do Brasil no âmbito mundial, como segue: „Porque é tempo que o Brasil se dispa de suas vestes infantis, e que, abandonando os costumes de imitar as mais nações, se apresente aos olhos do mundo, ocupando o lugar distinto que a natureza lhe marcou.“ e se fez referência ao fato de que o livro, de posse da lista para substituições, poderia ser usado em outros países. Dando seqüência ao prefácio, seguiu uma reprodução de verdades sobre a mesa fazendo referência a Brillant-Savarin e uma explicação em parte ilustrada com muitos utensílios de cozinha úteis689. Recomendou-se a utilização de forno de ferro, que já era utilizado na Europa e no litoral do Brasil. Contudo, o transporte para o interior do país se mostrou complicado, devido ao peso, de forma que lá se recomendou a utilização de trempes de ferro. Entre outros, recomendou-se a utilização de uma máquina de virar que poderia grelhar uniformemente a carne no espeto. No Brasil de hoje, tais espetos automáticos são amplamente difundidos para churrasco. A recomendação de utilização de tais máquinas, baseadas em um tipo de mecanismo de relógio, no final do século XIX, mostra exemplarmente o desenvolvimento histórico de hábitos atuais. 688 689

Ver também ali, S.3-4. Ver também ali pág. 9-15.

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O capítulo seguinte é sobre o comportamento para servir à mesa em diferentes situações. Além do código de comportamento para anfitriões e empregados, discutiu-se também como, a mesa deveria ser posta, e entre outros, recomendou-se como resfriar o vinho com gelo.

6.4.2 Receitas O livro de receitas Cozinheiro Nacional começou a parte de receitas com o capítulo sobre sopas, que foi subdividido. Em primeiro lugar apareceram as sopas gordas, como caldo de frango para doente, caldo de galinha ou também sopa de Santa Catarina690 á base de pão de centeio. No frio estado de Santa Catarina, o centeio foi plantado e utilizado, sobretudo, por imigrantes alemães. Ao todo foram nomeadas 37 receitas para “sopas consistentes”. Seguiram 26 receitas para sopas magras, precedidas por uma receita com o nome característico de caldo de água, á base de água, algumas fatias de pão seco, um pouco de salsinha, manteiga e claras. Da mesma forma, característica era a receita mingao do Ceará691 , á base de água , um pouco de gordura e sal, engrossado com farinha de trigo. Uma papa mais pobre, que permite estabelecer uma relação com o atraso do Ceará, em que pese o fato de a utilização da farinha de trigo em uma região rica em mandioca contradizer a afirmação. Outras receitas de características regionais eram mingao de paulista692, à base de fubá fino e sopa de cebola à mineira693, engrossada ou com farinha de trigo ou com fubá, na qual, ao final, ainda se acrescentava a farinha de mandioca. Outras receitas interessantes eram a sopa de canjiquinha, baseada em milho triturado e amendoim amassado, ou a sopa dos colonos, com repolho, bacon e batatas, engrossada com fubá. Seguiram mais 20 receitas de sopas magras com vinho, sendo que especialmente a sopa cuiabana694 recebeu atenção, já que neste caso se tratava de uma bebida. Esta se baseava em guaraná, açúcar uma garrafa de cerveja, um copo de vinho branco, bem como limão esprimido, que deveria ser comido frio para refrescar. Ela foi denominada de acordo com a capital de Mato Grosso. Além disso, foi colocada uma receita de sopa de tartaruga, na qual a carne da tartaruga servia como base. Completada com carne de vitelo e de carneiro, a sopa deveria ser servida em um casco de tartaruga. 690

Ver ali a pág, 26. Ver ali a pág. 29. 692 Ver ali a pág. 30. 693 Ver ali a pág. 31. 694 Ver ali pág. 35. 691

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Em seguida, vieram 25 sopas de leite, entre outras, com curau ou mingao de milho verde, mingao à mineira ou sopa de pepinos com leite. Perceptível nesta receita, era a frequente e abundante utilização do açúcar, de forma que a maioria das receitas eram mais doces do que salgadas. Também no capítulo sopas de Frutas, com 22 receitas para sopas com frutas e legumes, o açúcar foi utilizado frequentemente. Conclusiva era a sopa de feijão-preto695. Que era servida sobre biscoitos de polvilho, e pãezinhos à base de amido de mandioca. Em virtude de seus ingredientes, esta sopa pode ser tida como tipicamente brasileira. O capítulo de sopas terminava com o subcapítulo sopas medicinais, no qual eram mencionadas 7 receitas de sopas com um contexto medicinal como para a limpeza do sangue. O segundo capítulo do Cozinheiro Nacional foi dedicado à carne de boi, e, assim, denominado A Vacca. Seguia uma curta explicação sobre a utiliação da carne de boi e os diferentes cortes na cozinha, antes de se iniciar o verdadeiro capítulo de receitas. No subcapítulo desmembrado em carnes cozidas, carnes de vacca fritas, assadas e guisadas, costelas de vacca e línguas de vacca continha, ao todo, 114 modos de preparo. A maioria das receitas foi denominada de acordo com a forma de preparo ou com os ingredientes. Como receita brasileira autêntica, citou-se o caruru de carne de vacca696 , que eram cubos de carne de boi cozidos com quiabo e, como sugestão de acompanhamento, citouse o angu de fubá de moinho ou o pirão de farinha de mandioca. Com isso, em virtude dos ingredientes, este era um prato com origens afrobrasileiras. Na receita carne sepultada697, pela primeira vez em um livro de culinária brasileira, utilizou-se um método de cozinhar indígena. A carne, enrolada na folha da bananeira, era colocada em um buraco, este era coberto com terra e em cima do buraco tampado se fazia o fogo. O prato cozinhava assim sob o fogo e necessitava de um tempo de preparação de 6 até 8 horas. Uma outra receita com relação indígena era moqueca de carne de vacca, na qual a carne novamente era embrulhada em folhas, que eram cobertas com as brasas. A introdução destas receitas no Cozinheiro Nacional simboliza uma tranformação com relação à percepção social dos habitantes originários brasileiros. Desta forma, também este prato pode ser visto como uma receita da cozinha autenticamente brasileira. Entretanto, nas receitas, o contexto indígena dos métodos de preparo não era mencionado, provavelmente, por aspectos civilizatórios, como também ao longo de todo o livro, apesar da relação, as etnias indígenas também não foram mencionadas.

695

Ver ali pág. 43. Ver, ali também, pág. 52. 697 Ver, ali também, pág. 53. 696

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Na receita churrasco à moda do sertão698 , que era atribuída aos sertanejos, a carne deveria ser dependurada sob o fogo aberto para ser assada. Desta maneira, a carne permanecia ainda suculenta por dentro. Interessante com relação aos hábitos alimentares brasileiros atuais, é a receita vacca de grelha a brazileira699, sendo a primeira vez no Cozinheiro Nacional que um prato foi caracterizado como brasileiro. Segundo a instrução de cozinhar, a carne deveria ser cortada de forma fina e assada dos dois lados. Ainda hoje, no cotidiano no Brasil, a carne é preparada dessa forma e é mais frequentemente consumida assim. Outras receitas tradicionais brasileiras neste capítulo eram mocotó com arroz e mocotó de vacca700, bem como paçoca de carne-seca à moda do sertão701. Para esta última receita, utilizou-se a carne de sol, comum no Nordeste, que era socada com a farinha de mandioca.

O terceiro capítulo, A Vitella, continha 104 receitas, em que pese ter sido dispensada uma subdivisão. Perceptível para o capítulo era que todas as partes do vitello eram utilizadas. Existiam, por exemplo, cinco receitas para a cabeça do vitelo, bem como uma ilustração de como partir a cabeça. Uma oura receita era orelhas com inhame702 , na qual as orelhas do vitelo eram cozidas e, então, recheadas com presunto, pão e temperos, e refogadas na frigideira. Aqui, acrescentou-se ainda o tubérculo inhame. A maioria das receitas foi denominada de acordo com o pedaço da carne, que frequentemente era preparado com os legumes tipicamente locais. Apenas uma receita tinha uma relação regional, costelletas à goyana703, na qual as costeletas do vitelo eram passadas na farinha de milho. O quarto capítulo, Carneiro, tratava de 109 pratos com carne de ovelha ou de carneiro. As receitas eram, da mesma forma, denominadas de acordo com o sabor predominante e os pedaços de carne, bem como os métodos de preparo. Como única receita com uma relação regional, citou-se a perna de carneiro com palmito à goyana704, apesar de os palmitos servirem apenas como enfeite. Além disso, existiam várias receitas com outros ingredientes tipicamente brasileiros, como grelos de samambaia, taioba ou talos de bananeira. Comparando-se, entretanto, no capítulo, foram mencionadas muito mais receitas com uma relação 698

Ver ali também a pág. 53. Ver ali também a pág. 62. 700 Ver ali também a pág. 69. 701 Ver também ali pág. 74. 702 Ver ali a pág. 86. 703 Ver ali a pág. 79. 704 Ver ali a pág. 113. 699

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internacional, como, por exemplo, cordeiro ou cabrito à italiana ou quarto de cordeiro à alemã.

O quinto capítulo, O Porco, continha 93 receitas à base de carne de porco e leitão. A introdução do capítulo tematizava a alimentação dos estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, e Mato Grosso, que se alimentavam quase exclusivamente apenas de carne de porco. Neste capítulo, foram colocadas altumas receitas com relação regional, como leitão assado no espeto à mineira705 ou vatapá à bahiana706 . O que salta aos olhos é que a maioria das receitas regionais com porco provém de Minas Gerais. Além disso, existiam duas receitas com relação ao Brasil: conserva da carne fresca à brazileira707 e lingüiças à brazileira708. Para a lingüiça, a carne de porco deveria ser marinada e temperada, enchida na tripa do próprio animal e defumada por três dias. Se armazenadas na banha, elas poderiam durar por seis e até sete meses. Ao todo, no capítulo, utilizaram-se todas as partes do porco e os nomes das receitas se orientavam pelos ingredientes utilizados, método de preparo ou demonstravam uma relação geográfica. O sexto capítulo, Aves Domesticas, continha 89 receitas à base de galinha. Aqui, não foram citadas receitas com uma relação regional. Mais do que isso, as denominações se orientavam pelo modo de preparo e ingredientes, apesar de muitos legumes locais típicos terem sido utilizados.

No sétimo capítulo, Peru, foram descritas 112 receitas com peru, ganso, pato e pombos. Nas 43 receitas de peru tinham muitas receitas nas quais o peru era servido recheado. O prato peru à brasileira, que, frequentemente, aparecia nos cardápios, no entanto, não foi mencionado. Apenas uma receita se referia a uma região: peru assado no espeto à fluminense709. Da mesma forma, não existia para os outros tipos de aves receitas com denominação regional ou nacional brasileira. Os nomes das receitas se baseavam, por isso, em ingredientes ou maneiras de preparo.

705

Ver ali a pág. 134. Ver ali a pág. 155. 707 Ver ali a pág. 128. 708 Ver ali a pág. 136. 709 Ver, ali também, pág. 183. 706

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O oitavo capítulo, Caça de Cabello, em virtude do conteúdo, pode ser entendido como o centro do Cozinheiro Nacional. Sob a rubrica “caça peluda” a caça local do Brasil foi utilizada como base para os pratos. Foram citadas receitas para 23 tipos de animais diferentes em ordem alfabética, entre os quais também répteis. As receitas começavam com anta e se orientavam pelo modo de preparo dos tapirs. Seguiam capivara, coelho, cotia, irara, onça, tamanduá, lebre, lontra, ariranha, macaco, paca, queixado ou porco do mato, caititu, preá, caxinguelê, gambá, coati, cobra, lagarto, ra, tatu veado. Muitas receitas parecem hoje duvidosas, como, por exemplo, o picadinho de jaguar710, ou o macaco cozido com pepinos711. Para cada animal, foram citados pelo menos umas quatro maneiras de preparo, que se asemelhavam na forma de preparo, na técnica de cozinha, a não ser no tipo de caça usado. Em nenhum outro livro de culinária brasileiro, esses animais locais foram mencionados712. Inúmeros relatórios de viagem comprovam a preparação destes pratos “exóticos” e também a importância da caça era discutível para grande parte da população brasileira, de forma que as receitas podiam perfeitamente ser tidas como autênticas. A utilização destes ingredientes locais reforçava o caráter nacional do Cozinheiro Nacional, sobretudo em conparação com as receitas do Cozinheiro Imperial, nas quais a fauna local havia sido deixada de lado. Além disso, a menção da “caça de cabelo” atuou de forma a construir identidade nos leitores brasileiros, dos quais os animais já eram conhecidos, ainda que eles nunca os houvessem provado. Um outro aspecto destes ingredientes é ainda a ampla característica rural no Brasil do século XIX. Ainda no século XX, essas caças eram utilizadas na alimentação rural.

No nono capítulo, Aves Silvestres, foram nomeados pratos com aves selvagens brasileiras. Este capítulo era muito abrangente, devido à riqueza da espécie. Além de receitas de 28 tipos diferentes e de outras galinhas e pombos, foram colocados pratos à base de papagaios, tucanos e araras713. O décimo capítulo, Peixes D Água Doce, continha pratos com peixes de água doce e utilizava também receitas com peixes que não existiam no Brasil, como carpas e salmão. Este fato 710

Ver, também ali, pág. 221. Ver, também ali, pág. 225. 712 Aparentemente, a Editora Laemmer copiou receitas do Cozinheiro Nacional e as publicou em seu almanaque de 1915. Assim lá foi citada uma receita de cobra grelhada, que é quase identica a original. Ver Figueiredo, Comidas, meu Santo! Pág. 51, que reproduziu a receita do almanaque, contudo, mas nao notou, que se tratava de uma cópia. 713 Ver ali também pág. 256-258. 711

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havia sido criticado no prefácio com relação a outros livros de culinária. Entretanto, a maioria dos peixes que aparecia nas receitas mencionadas eram típicos de águas brasileiras e conhecidos, como o surubim ou também a piranha. Faltavam, no entanto, peixes importantes, como o pirarucu, filhote, ou tucunaré. Nenhuma receita estabelecia um contexto nacional. Mais do que isso, nos nomes dos pratos, elas se orientavam pelos ingredientes usados e pela forma de preparo. No décimo primeiro capítulo, Peixes do Mar, foram mencionadas receitas para peixes de água salgada. No prefácio do capítulo, foi, portanto, mencionada a extensão da costa brasileira e a grande riqueza em peixes que aqui habitavam. A grande variedade de peixes foi classificada em uma lista de acordo com a qualidade e o preço714. Como única receita com uma relação regional, citou-se o bacalhau fresco ensopado à bahiana715 , apesar de não terem sido usados ingredientes que fossem típicos da cozinha bahiana. Um capítulo próprio foi dedicado ao bacalhau, chamado bacalhau seco, que gozava de um prestígio especial devido ao seu preço e sua qualidade de sabor: „O bacalhau deve ser considerado como principal peixe, visto que ele se acha à venda em todo o tempo, e por preço muito cômodo, não obstante ser de difícil digestão e de gosto bastante insípido, é comprado em lugares que abundam em peixe fresco que dão bastante trabalho para apanhá-los, enquanto que o bacalhau se adquire com pouco trabalho e pouco dinheiro716.“

O consumo e a importância do bacalhau podem ser claramente remetidos à influência portuguesa no período colonial. Ele era de fácil transporte, de longa durabilidade, bem como de preço bom, e, por isso, muito apreciado em todo o Brasil, até mesmo nas regiões onde não existia peixe fresco e nas regiões ricas em peixe. O bacalhau passou a ter um significado especial para a cozinha brasileira, através dos pratos determinados por feriados religiosos, e ainda hoje o bacalhau é tido como prato de dia religioso e é comido com predileção durante a páscoa.

No décimo segundo capítulo, com o nome de Crustáceos e Conchas, foram citados além de camarões, caranguejos e caramujos, mexilhões e ostras, mas também formigas, denominadas

714

Ver, também da mesma forma, pág. 295-297. Ver, também da mesma forma, pág. 300. 716 Ver, também da mesma forma, pág. 300. 715

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tanajuras, tartarugas e até mesmo ovos, leite e queijo. Saltava aos olhos o curto capítulo sobre as formigas, no qual se explicou que as formigas eram aladas, e se recomendou que os ovos fossem comidos fritos, como receitas de um prato surpresa717. O consumo das fêmeas das formigas ricas em proteínas pode ser remetido aos hábitos alimentares das populações indígenas e era amplamente difundido em muitas regiões até o século XX. O fato de este prato ter sido mencionado no Cozinheiro Nacional mostra, por outro lado, a intenção dos editores de reproduzir uma cozinha brasileira o mais autêntica possível, que pudesse ser instrumentalizada no sentido de uma cozinha nacional. A preparação de formigas também parecia para os autores “exótica”, como pode ser reconhecido na descrição do prato como “prato surpresa”. No tocante às tartarugas, mencionou-se que elas viviam em grande parte nos rios do Brasil e que em determinadas épocas elas existiam em abundância. Fez-se, ainda, a distinção entre tartaruga marinha e tartaruga de água-doce, para as quais foram citadas duas receitas718. Seguem-se, aqui, ainda 63 receitas com ovos, apesar de no prefácio ter-se feito remissão ao fato de que além de ovos de galinhas, gansos e patos, também os ovos de tartaruga poderem ser comidos. Conforme isso, citou-se uma receita para ovos de tartaruga fritos719.

O décimo-terceiro capítulo continha receitas com legumes. Estas foram divididas em tubérculos, folhas, frutos e grãos.Aos tubérculos pertenciam entre outros a batata doce, cará, cará-do-ar, caraginga, inhame, mandioca, batata, beterraba, taioba, cebola, cenouras, e amendoim. Todas as receitas foram denominadas de acordo com o modo de preparo e com os ingredientes. O ponto forte das receitas foi colocado nas receitas com tubérculos brasileiros. Um desenvolvimento semelhante se mostrou nas folhas. De fato, muitas plantas de origen européia, como o espinafre ou o aspargos foram mencionadas, mesmo assim também aqui era possível reconhecer um ponto forte local, em receitas nas quais se utilizava, por exemplo, broto de banana ou palmito720. Este desenvolvimento continuou no capítulo sobre legumes-frutas. Muitas plantas brasileiras foram colocadas, contudo, sem se estabelecer uma ligação geográfica nas receitas.

717

Ver, ali também, pág. 325-326. Ver, ali também, pág. 326-327. 719 Ver, ali também, pág. 340. 720 Ver, ali também, pág. 358. 718

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No capítulo sobre grãos e sementes, isso foi mudado já na primeira receita arroz refogado à brasileira721 . Na instrução do modo de preparo, descreveu-se o método de cozimento do arroz até hoje utilizado no Brasil, no qual o arroz é refogado por aproximadamente 5-8 minutos . Apenas depois disso, acrescenta-se a água e os temperos como alho, salsinha e uma dúzia de tomates. O acréscimo de tomates no arroz foi mencionado em relatórios de viagem, entre outros por Von Binzer722 . Este método de preparo do arroz com tomates não é mais usual hoje em dia, no entanto, o restante permaneceu. O arroz preparado desta forma deve ter uma consistência solta.

No capítulo, foram colocados outros pratos tipicamente brasileiros, como canjica e canjiquinha. Ambos os pratos são originários da Região Sudeste e se baseiam na utilização do milho. Também os pratos muito típicos para o Brasil, como acompanhamentos á base de leguminosas, foram reproduzidos. Dominante, neste caso, eram receitas a base de feijão, apesar de terem sido mencionados 4 tipos de feijão. As receitas de feijão demonstram uma relação regional como no feijão-marumbé à mineira e feijão-preto á baiana.

Feijão preto à moda brasileira era a descrição para uma receita de feijão, como acompanhamento, que era usada em todo Brasil. No mesmo contexto, apareceu, pela primeira vez, a imperceptível receita em um livro de culinária do hoje considerado prato nacional feijoada723: „Deita-se o feijão escolhido e lavado numa panela com água, sal, um pedaço de toucinho, umas lingüiças, carne de porco, carne-seca, carne de colônia, duas cebolas partidas, e um dente de alho; deixa-se ferver quatro a cinco vezes, e estando cozido e a água reduzida, serve-se.“.

Este cozido surgiu da prática culinária sem muitas panelas e com ingredientes simples e vivenciou, ao longo da história do Brasil e da formação da identidade, um desenvolvimento surpreendente.

721

Ver ali também pág. 366. Von Binzer, Os meus Romanos, Alegrias e Tristezas de uma Educadora Alemã no Brasil, S.31: “Sobre a mesa, grandes assados já cortados, montes de arroz (naturalmente cor de tijolo, por causa dos tomates),...”. 723 Ver Cozinheiro Nacional, pág.370. 722

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No período da década de 20 e 30, do século XX a feijoada foi cristalizada como o prato nacional por excelência. Formou-se o “mito da feijoada”, que se mantém duradouro até os dias atuais no imaginário dos brasileiros. De acordo com este mito, este prato surgiu nos tempos da escravidão, quando os senhores de escravos forneciam aos escravos as partes “ruins” do porco, como pés, cabeça, orelhas e rabo que restavam, e que eram cozidas com o feijão. A construção da feijoada como prato nacional brasileiro tem suas origens, com isso, no discurso de igualdade de raças no Brasil e deveria servir à integração dos grupos populacionais afrobrasileiros, que, durante muito tempo, haviam sido marginalizados724. Nas receitas de feijoada dos dias de hoje, são exatamente estas partes que tornam a feijoada um prato autêntico, apesar de existir um grande número de brasileiros que abre mão delas, já que não os aprazem. A feijoada se desenvolveu como o prato brasileito mais simbólico, apesar de na pesquisa e na literatura já ter sido inúmeras vezes remetido à construção deste símbolo. Existem diferentes teorias sobre a origem do prato, que é, como outros cozidos, feito com leguminosas e diferentes pedaços de carnes, como é usual no mediterrâneo725. Além disso, o prato é bem difundido em outras regiões do império colonial português, e, com isso, uma associação no sentido brasileiro se torna improcedente. Feijoada também é comida, por exemplo, no Timor Leste726. Da mesma forma relevante é, neste sentido, como se mostrou com base nos livros de receitas, a utilização de todos os pedaços de carne na alta cozinha do século XIX. No último baile do Império, com a participação da família real e da aristocracia, as cabeças de porco recheadas eram usadas de forma decorativa, de forma que a avaliação de alguns pedaços de carne como inferiores, no sentido mencionado, é errada e, mais do que isso, um desenvolvimento do século XX.

No décimo quarto capítulo, foram tratados os molhos. Inúmeros molhos foram denominados de acordo com os ingredientes determinantes do sabor. Além disso, existiam vários molhos com uma relação geográfica, como, por exemplo, molho à Orleans, molho genovês, molho pardo à mineira ou molho mineiro. Neste último, fez-se referência ao fato de que, ao invés de se usar o suco de limão, poder-se-ia também usar o vinagre produzido no país, á base de cana 724

Ver Campos – Revista de Antropologia Social V. 5, n. I, 2004, Dutra, Nação, Região, Cidadania: A Cosntrução das Cozinhas Regionais no Projeto Nacional Brasileiro; Estudos Históricos, Rio de Janeiro, no. 33, Alimentação, 2004, Maciel, Uma Cozinha a Brasileira. 725 Ver entre outros Gula No. 67, Outubro de 1998, Ditadi, Feijoada, Cozinha Brasileira e http://wwww.galanet.eu/dossier/fichiers/breve%20hist%f3ria%20da%20feijoada.pdf (23.1.2009), Elias, Breve Historia da Feijoada. 726 Ver Hamilton, Os Sabores da Lusofonia, Encontros de Culturas, pág. 352.

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de açúcar, banana ou amoras727. Foram introduzidos molhos com caracterização de classe, como molho de pobre ou molho da princesa.728, além de outros internacionais como molho bechamel. Esse molho foi nacionalizado no que diz respeito aos ingredientes. Ao invés de se usar a clássica base de manteiga com farinha e água, serviu o polvilho com gordura como base e para dar liga. No contexto internacional, também se introduziu o molho curry indiano729.

O décimo quinto capítulo, Saladas, continha 21 receitas de saladas. Tinha, por exemplo, receitas de salada de pepino, salada de pepino à moda alemã e salada de pepino à brazileira. Aqui o pepino deveria ser cortado em fatias finas e misturado com cebolas e temperado com pimenta-cumari, suco de limão e gordura. Além de uma receita de salada à mineira, eram as únicas receitas que permitiam estabelecer uma relação com o Brasil pelo título. Neste capítulo, introduziu-se o subcapítulo Geléias, que eram produzidas com frutas exclusivamente brasileiras. Na seqüência, havia, no mesmo capítulo, um subcapítulo: As Sobremesas. Provavelmente, deve ter se tratado aqui de um erro na edição de um livro tão abrangente. As 36 receitas que se seguem eram mais abrangentes do que o próprio capítulo principal. Além disso, não faz sentido, sob o ponto de vista temático, colocar em um mesmo capítulo saladas e sobremesas. Na introdução às sobremesas, fez-se menção ao fato de que não era objetivo colocar um livro completo de receitas para doces, mas, sim, que foram colocadas as receitas que fossem necessárias a uma boa cozinheira para concluir um menu. As receitas colocadas estavam deesequilibradas. Junto de receitas de doces clássicas como arroz doce foram colocadas receitas como: bolos com recheio (raviole)(sic.). Seguindo o modelo do ravióli italiano, colocou-se na receita uma introdução para a preparação de macarrão com recheio de carne, que deveria ser servido com cebola frita, ficando, desta forma, com sabor salgado, e que não servia, portanto, como sobremesa. Tão pouco as outras receitas poderiam ser servidas como sobremesa ou doces, mas, sim, como receitas salgadas de massas, como, entre outras os bolinhos de bacalhau a la Minas. Este era, provavelmente, o motivo pelo qual o décimo sexto capítulo, Massas Doces para Sobremesas, introduzia receitas de massas doces. Neste capítulo, a maioria das receitas tinha uma denominação que se relacionava com o Brasil, como manjar à brazileira730, pastéis de

727

Amoras são em termos de consistência e sabor semelhantes a framboesas. Ver também ali pág. 382-383. 729 Ver também ali pág. 388. 730 Ver também ali pág. 415. 728

193


carne à brazileira731, pastéis de capa de fubá à brasileira732, pasteis de passarinhos à brazileira733 e geléia de marmelos à brazileira734. O motivo para isso poderia ter sido a necessidade dos autores de postular uma independência brasileira, já que exatamente ao lado da tradição local estava uma forte cozinha portuguesa. Muitas das 60 receitas do capitulo se baseavam na utilização de ingredientes brasileiros, como exemplarmente aqui são as pamonhas de milho verde ou também chamadas de pudim de cará. Neste capítulo foram colocadas mais receitas que utilizavam aves e uma receita de macaroni tostado, que tinha como base macarrão, que era coberto com queijo. No geral, pode-se constatar que o capítulo dos doces e sobremesas da perspectiva culinária deixou a desejar, sobretudo diante do contexto de a cultura alimentar brasileira ser fortemente dominada pelo doce. No décimo sétimo capítulo, As Conservas, foram descritas receitas para a conservação de alimentos. Estas abrangiam frutas, carnes, peixe, leite e legumes e ia até a orientação para a torragem e preparo do café, chá, chocolate, mate e guaraná. Interessante, aqui, era a preparação de ambas bebidas mencionadas por último. O chá mate é bebido também na região do rio La Plata e é também muito difundido no sul do Brasil como bebida, o que permite estabelecer uma relação com as etnias indígenas da região e o seu consumo do mate. Guaraná é hoje uma bebida apreciada em todo o Brasil na forma de refrigerante e era também já conhecida das populações indígenas há séculos. No século XIX, ela foi especialmente apreciada na Região Norte, que era de sua origem, e depois se difundiu em todo o Brasil ao longo do século. No início do século XX, começou a produção industrial de refrigerantes à base de guaraná. Assim sendo, na menção de ambos os produtos com origem indígena mostrou-se também a sua difusão e percepção no âmbito nacional, entretanto, a utilização pelos habitantes originais não foi mencionada.

O décimo oitavo capítulo, Receitas Confortativas, continha uma receita para o fortalecimento do corpo em diversas situações ou excessos sexuais, retiradas do projeto do francês BrillatSavarin.

No décimo nono capítulo, Sobre o Modo de Trinchar, explicou-se rapidamente como, diferentes tipos de assados podem ser partidos à mesa. O vigéssimo capítulo, As Bebidas, era 731

Ver, também ali, pág. 417. Ver, ali também, pág. 418. 733 Ver, ali também, pág. 418. 734 Ver, ali também, pág. 424. 732

194


um texto de meia página sobre diferentes vinhos europeus e criticava, ao final, o hábito “bárbaro”, no interior do Brasil, de servir cerveja após a sobremesa: „No interior do Brazil usam dar cerveja depois do doce; sendo este um costume bárbaro, que peca tanto contra o gosto, como contra a higiene; posto que seu preço igual e ao do vinho, sempre é considerado como uma bebida pouco decente, e só própria para botequins; a cerveja só deve ser tomada como refresco em dias de calor e longe das comidas.“735.

O vigéssimo primeiro capítulo, Os Almoços entre Amigos, continha recomendações alimentares para ocasiões informais, como o Almoço Brazileiro para 16 pessoas. Com um leitão á mineira, como prato decorativo, e dez galinhas assadas ao lado da mesa, deveriam ser servidas oito entradas diferentes. Seguindo as entradas, cinco diferentes pratos quentes, quatro tábuas com pratos frios, como, por exemplo, um lombo de boi ou um peru recheado. Na seqüência, deveriam ser servidos quatro pratos quentes, entre outros um pernil assado e um tatu cozido no casco. Por fim, tinha queijo de Minas e um queijo holandês, um prato de bananas, um prato de laranjas, quatro pratos com doces secos, bem como outros oito pratos com outros doces, como, por exemplo, dois pratos com goiabada736. Na seqüência dos alimentos, mostra-se a importancia dos produtos locais para uma comida brasileira. O vigéssimo primeiro capítulo, Os Jantares, tratava de jantares em ocasiões festivas, sugeria, com isso, seqüências de cardápios muito mais trabalhosas. O Banquete Brazileiro era concebido para 40 convidados. Neste, deveriam ser servidos em grandes quantidades 56 pratos, que tinham todos a denominação do prato e para os quais as quantidades correspondentes foram indicadas, entre outros, “macacos grelhados”, e “papagaios cozidos com arroz.” No vigéssimo terceiro capítulo, Ceias, foram sugeridos pratos de noite para ocasiões especiais, entre outros, para o Natal ou como cardápio para um baile com 100 convidados, que eram, da mesma forma, bastante trabalhosos. O livro terminava com um glossário e um índice remissivo.

735 736

Ver também ali a pág. 441. Ver também ali a pág. 444.

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6.5 Doceiro Nacional Provavelmente, conscientes do grave erro na parte de doces do Cozinheiro Nacional, os editores Garnier publicaram em 1883 o livro „No interior do Brazil usam dar cerveja depois do doce; sendo este um costume bárbaro, que peca tanto contra o gosto, como contra a higiene; posto que seu preço iguale ao do vinho, sempre é considerado como uma bebida pouco decente, e só própria para botequins; a cerveja só deve ser tomada como refresco em dias de calor e longe das comidas.“737. Em 1886, já havia surgido a segunda edição, seguida da terceira, em 1891. Aparentemente, foram surgindo outras edições em um rítimo anual até a sétima edição, em 1895. A nona e supostamente a última edição surgiu em 1912. Em três partes e 38 capitulos, o livro continha 1200 receitas, em 306 páginas. Como já foi colocado no título do livro, ele abrangia diferentes tipos de doces, bem como licores, xaropes, bebidas refrigeranres, sorvetes e sorbets. Este livro também é atribuído a Paulo Salles, apesar de ele não ter sido citado. Não existia um prefácio como nos outros livros. Enquanto o primeiro livro de culinária, Cozinheiro Nacional, parecia aos editores ser inovativo e autêntico, o livro Doceiro Nacional se orienta pelas receitas de base do Cozinheiro Nacional. Este foi completado com receitas dos livros Doceira Brasileira e Doceira Doméstica, contudo, sem copiar as receitas literalmente. Foram nomeadas receitas que, por exemplo, também foram utilizadas nos livros de doces dos concorrentes Laemmert. Mas isso pode ser atribuído à natureza dos pratos. Por exemplo, na Doceira Brasileira, foram citadas várias receitas de manues e também no Doceiro Nacional foram colocadas respectivamente essas receitas, na mesma forma de variações regionais como Minas, Pernambuco ou Bahia738. As receitas que foram colocadas em um determinado âmbito em virtude da denominação eram originárias do Cozinheiro Nacional, como, por exemplo, pasteis de pasarinhos a brazileira739. O livro Doceiro Nacional começou com um capítulo sobre clareação de açúcar e receitas fundamentais, como, por exemplo, para a produção de tinta comestível. Seguindo, estava um capítulo sobre xaropes, que também tinha um contexto medicinal. A segunda parte, Pasteleiro, se ocupava com produtos de panificação e cremes, e o livro terminava com o

737

Ver, ali também, pág. 441. Ver, ali também, pág. 221-222. 739 Ver, ali também, pág. 163. 738

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último capítulo, O Limonadeiro e Sorveteiro, com a produção de limonadas e sorbetes como limonada de guaraná740, mas também de bebidas alcoólicas como vinho de bananas741. No geral, ao lado de receitas internacionais, foram colocadas muitas receitas feitas à base de produtos brasileiros. A publicação do Doceiro Nacional pode assim ser entendida como uma tentativa de suplementar o mercado editorial brasileiro, no qual a grande editora Garnier não queria ficar atrás da concorrência.

6.6 O Porco, Charcuteiro Nacional Em 1886, a editora Garnier publicou no Rio de Janeiro o livro: Tratado completo e practico sobre O Porco, sua origem e utilidade raças – criação e engorda pelos methodos modernos – Moléstia e seu tratamento,Criação do Coelho e differentes modas de accomodar a carne aos paladares mais delicados, seguido de noticias sobre: A Anta, A Capivara, A Paca, A Cutia, o Porquinho da Índia, Acompanhado do Charcuteiro Nacional, ou arte de fazer numerosos preparados e conservas de carne de porco, taes como-presuntos, salamaes- salsichas- murcellas – línguas –queijos, chouriços – geleas, etc.etc,. Ele se ocupava, como o próprio título sugere, com a criação de porcos, coelhos, bem como com o confinamento da tapir, paca, cutia e do porquinho da índia. Ele foi completado com receitas no capítulo, O Charcuteiro Nacional. O livro é o começo e transição de uma série de guias que tocavam o setor da alimentação e foram pulicados pela Editora Garnier em um curto intervalo de tempo. Seguiram-no, no ano 1887, os livros dos autores Paulo Salles: Tratado pratico da Fabricação do queijo da manteiga, Contendo todos os esclarecimentos e regras para o Aproveitamento do leite e sua aplicação, modo pratico de preparar Todas as qualidades de Queijo, Acompanhado de um Tratado sobre as vaccas cabras e carneiros Meios practicos sobre a criação, Reprodução e Aproveitamento; O Jardineiro brazileiro; Cultura das abelhas e Manual do Gallinheiro742. Após as explanações sobre a criação de porco, na parte O Porco, seguia o capítulo sobre o coelho, no qual, concluindo estavam 14 receitas que foram fortemente influenciadas pelo francês em sua denominação.

740

Ver, da mesma forma, pág. 248. Ver, da mesma forma, pág. 257. 742 Esses livros foram vistos no âmbito da pesquisa para esta dissertação, contudo, eles não continham informações substanciais a respeito do tema e também a parte das receitas diminuiu significativamente. Por isso, o uso do conceito de transição. Assim sendo, o livro deve ser aqui interpretado como um exemplar. 741

197


Na seqüência, surgia um curto tratado sobre outros animais. Na página 103, começava a parte Charcuteiro Nacional, que ia até a pág. 122. Começando pela importância do porco para a alimentação, uma explicação dos utensílios utilizados e um manual para o abate e corte seguia uma explicação de várias páginas sobre os temperos que poderiam ser utilizados. A produção de presunto, salgamento e conservação foi, na seqüência, tematizada e foram mencionadas, sobretudo, receitas internacionais, entre outras, para a fabricação de presunto westfálico743. Seguindo, havia manuais de preparação desde Leberkäse744 até salami russo e mortadela. Havia, ainda, variadas receitas de assados e uma parte das receitas era sobre molhos. Nenhuma receita tinha uma denominação regional ou brasileira. Também através dos ingredientes e da maneira de preparo, não se pode estabelecer uma relação com o Brasil, de forma que a titulação Nacional parece artificial e adequada como medida fomentadora de venda do discurso da época.

6.7 Diccionario do Doceiro Brasileiro A Editora Azevedo publicou, em 1892, a terceira edição do livro Diccionario do Doceiro Brasileiro, contendo milhares de receitas, pela maior parte novas, de doces de todas as qualidades, obra da maior utilidade até hoje conhecida e dedicada especialmente as mães de famílias. O ano da primeira publicação é desconhecido até hoje, mas, mesmo assim, deve-se presumir que o livro surgiu no final do Império. Como autor do livro, organizado em ordem alfabética, foi citado o Dr. Antonio Jose de Souza Rego na página do título. O prefácio acentua a utilização de muitas receitas novas. Uma relação nacional não pode ser percebida, a não ser pelo fato de compatriotas terem sido mencionadas como grupo alvo. Não foram usadas nem a palavra Brasil e nem a palavra nacional. Em ordem alfabética, foram colocadas milhares de receitas de doce ao longo de 612 páginas. Da variedade das receitas, podem-se reconhecer diferentes modelos de pensamento. Para diferentes doces foram citadas várias receitas. Desta forma, três receitas para panquecas, nas quais a última receita se chamava panquecas econômicas e ao invés de se utilizar a cara farinha de trigo, utilizou-se amido de milho e farinha de mandioca745. Um outro exemplo seriam cinco outras receitas para a produção de doce de leite746.

743

Ver O Porco, pág. 118. Tipo de embutido de carne de porco, especialidade alemã. 745 Ver Diccionario do Doceiro Brazileiro, pág. 457-458. 746 Ver, da mesma forma, pág. 305-306. 744

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Foram citadas receitas que demonstravam uma conotação política, como, por exemplo, pudim abolicionista747.Várias vezes as receitas foram colocadas em um contexto nacional, como por exemplo, pão do Brasil748, na qual a farinha de trigo foi misturada com cará cozido, ou pecegada brazileira749. A relação com o Brasil se mostrou, da mesma forma, em receita nas quais ingredientes tipicamente brasileiros deveriam ser até mesmo fabricados, como, por exemplo, farinha de mandioca puba750. Muitas das instruções de preparo mencionadas no livro Diccionario do Doceiro Brasileiro se baseavam em ingredientes locais típicos. Devido à organização por ordem alfabética, não parece se tratar de uma mera reprodução de receitas brasileiras já existentes, mas, sim, muito mais que isso, de uma coleção abrangente de receitas de doces. 7. Cozinha Brasileira – Conclusões 7.1 Proclamação da Cozinha Brasileira A proclamação da cozinha brasileira durante o Império Brasileiro se deu através do meio livro de culinária751. Já com a publicação do primeiro livro de culinária do Brasil, o Cozinheiro Imperial, iniciou-se um desenvolvimento no sentido de uma proclamação de uma cozinha brasileira. Ao mesmo tempo, o meio livro de culinária foi instrumentalizado como uma das pedras fundamentais para a formação de uma identidade brasileira. O surgimento do livro com esse nome, no mesmo momento em que ocorria o entronamento de Pedro II, deve ser entendido como parte deste processo, com o qual a elite dominante no Rio de Janeiro tentava manter a integridade do império. Na fase da regência, caracterizada por diversas rebeliões internas e revoltas separatistas, a integridade política e territorial do Império estava seriamente ameaçada. Junto da agressiva repressão destas tendências, a classe dominante reconheceu a necessidade de criar modelos culturais, a fim de alcançar uma identidade que ligasse todos os brasileiros. Para isso, foram utilizados diferentes instrumentos para a construção de uma identidade. Dentro deste processo, ocorreu a emancipação do jovem príncipe. Em 1840, Pedro II foi declarado imperador do Brasil, a fim de se criar uma figura de integração. Exatamente neste momento surgiu o livro Cozinheiro Imperial como um apoio cultural e culinário para forçar a identidade nacional com base no imperador. Isso deve ser entendido especialmente 747

Ver, da mesma forma, pág. 505. Ver, da mesma forma, pág. 459. 749 Ver, da mesma forma, pág. 493. 750 Ver, da mesma forma, pág. 327-328. 751 Ver como comparação sobre o surgimento da Cozinha nacional no período pós-colonial da Índia e da importância fundamental dos livros de cozinha neste processo: Comparative Studies in Society and History, Vol. 30, No. 1, Jan. 1988, Cambridge, Appadurai, Arjun, How to Make a National Cuisine: Cookbooks in Contemporary Índia. 748

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através da escolha do título do livro. Correspondentemente, as receitas inseridas deveriam ser adequadas a uma culinária da corte. A instrumentalização do Cozinheiro Imperial, neste sentido construtivo, mostrou-se pelo fato de nas primeiras edições do livro não terem sido uma coleção de receitas genuinamente brasileiras, mas, sim, muito mais uma coletânea de ambos os livros de culinária portuguesa conhecidos. Além disso, no prefácio, se fez remissão ao fato de que ambas as obras da época da cozinha portuguesa estariam superadas, e que o livro de culinária deveria ser útil ao leitor para que este pudesse conhecer culináriamente as riquesas do Brasil. Apenas nas edições posteriores foram introduzidas receitas que tinham uma relação com o Brasil. Nesta adaptação, a realidade alimentar brasileira é que o livro desenvolveu seus pontos fortes. Pratos regionais foram integrados e receitas com um contexto afrobrasileiro foram introduzidas. Além disso, iniciou-se, neste desenvolvimento, uma relação com a cozinha nacional, na qual os pratos foram caracterizados como à brasileira. Como outra pedra fundamental para a sintetização literária da cozinha do Império, surgiu, pela mesma editora, onze anos mais tarde, o livro de receitas de doces Doceira Brasileira. Tanto a escolha do título, quanto no conteúdo deste livro, estavam um passo importante para a cozinha brasileira. De fato, foram colocadas receitas internacionais, mas muitas receitas se baseavam em ingredientes locais e permitiam, desta forma, uma identificação dos leitores com o Brasil, dentro de uma alimentação local típica, na qual o doce tinha um prestígio especial. Durante quase 35 anos, a Editora Laemmert dominou o mercado de livros de culinária brasileiro do Império. Apenas em 1875, se agregaram mais dois outros livros de culinária de outros editores. A Editora Azevedo publicou o livro de culinária A Doceira Domestica, no qual, através das receitas, se estabelece uma relação com o Brasil, sem, no entanto, inserir o livro no discurso nacional. No mesmo período, surgiu, então, pela Editora Garnier, o livro de culinária O Cozinheiro Nacional. Com este livro a suposta cozinha brasileira foi resumida de forma impressa. Surgiu uma obra autêntica, que podia ser entendida como uma primeira obra padrão da cozinha brasileira dentro das possibilidades e percepções daquela época. Apesar de alguns erros, como, por exemplo, a relativa subrepresentação das características cozinhas regionais do Brasil, e a fraca parte de doces, foi possível com esta obra realizar um passo importante para a sintetização da variedade culinária do Império. Especialmente relevante, era o discurso nacional do prefácio. Tratava-se, desta forma, de uma proclamação consciente da cozinha 200


brasileira e surgia em seguida á Guerra da Tripla Aliança, um período importante para a formação da identidade nacional. Poucos anos mais tarde surgiu, pela mesma editora, o livro de receitas doces Doceiro Nacional. Ao lado de uma relação nacional, este livro deve ser entendido também no contexto da falha parte de doces do livro Cozinheiro Nacional. Além disso, havia também o não menos importante fator financeiro, já que a grande Editora Garnier, da mesma forma, queria atender este lucrativo mercado dos livros de doces. Por essas razões, a Editora Azevedo publicou um outro, muito mais complexo, livro de doces com o nome Diccionario do Doceiro Brasileiro. Como último livro com uma relação culinária surgiu no Império o livro O Porco, Charcuteiro Nacional da Editora Garnier. Mas, neste caso, tratava-se menos de uma contribuição à tradição culinária brasileira, mas, muito mais, de uma parte de um guia de aconselhamentos agrários. A titulação do livro, sem uma relação contextual com a cozinha local, por um lado, deve ser entendida como parte de uma mesma coleção, na qual todos os livros traziam Brasil ou nacional no título, assim como o livro de culinária e o livro de doces da editora. Todos esses livros surgiram ao final do Império e com base na criação desta relação nacional fica claro também o discurso da sociedade da época, pelo qual a escolha do título se orientava. Assim, então, no caso do livro O Porco, Charcuteiro Nacional, parecia ser de menos importância, o fato de o conteúdo do livro corresponder ou não ao título, enquanto, ao contrário outros livros, como o Cozinheiro Nacional, de fato, fornecerem uma contribuição duradoura para a construção da relação nacional pela alimentação.

7.1.1 O Objeto da Proclamação

No entendimento geral do processo relativo ao surgimento da cozinha brasileira, coloca-se a importante pergunta a respeito do verdadeiro conteúdo do discurso que aqui surgiu na forma de livros comerciais de culinária impressos. Um elemento significativo para a ordenação dos livros de culinária em um contexto discursivo era além da titulação do livro de culinária, como tal, o prefácio. Dos sete livros de culinária publicados no Império, apenas o livro A Doceira Domestica não tinha nenhum nome politicamente relevante para a identidade, mas, sim, mantinha relação com o âmbito doméstico. Enquanto os editores Laemmert denominaram o seu primeiro livro Cozinheiro Imperial, e este estava em estreita ligação com a situação política da época, o segundo livro por eles publicado, onze anos mais tarde, já demonstrava uma relação com o Brasil, ao se intitular Brasileira. O editor Azevedo, com o livro de culinária Doceira Domestica, não 201


estava de fato fora deste discurso, mas o havia planejado, como se pode ler na informação contida no prefácio, como parte de uma série chamada: Bibliotheca da Dona da Casa Brazileira, e, com isso, demonstrava respeito ao discurso, bem como ao desenvolvimento da dona de casa de classe média. Por fim, o segundo livro, surgido mais tarde, foi chamado Diccionario do Doceiro Brasileiro. A Editora Garnier se serviu do discurso nacional diretamente com a primeira obra de suas publicações culinárias e manteve esta denominação também para o livro de doces como para os guias. A utilização do título representa em tal intensidade da relação com a nação uma exceção internacional. Isso se torna especialmente claro em uma comparação. As publicações culinárias de Portugal têm um outro foco na denominação, como foi demonstrado acima. Valia, por exemplo, muito mais a exigência prática, artística ou do progesso. Nenhum livro de culinária portuguesa tinha o nome de nação ou a caracterização nacional. Também em livros de culinária da época de outros países sulamericanos, como, por exemplo no México, a freqüência da relação nacional no título dos livros brasileiros é especialmente acentuada752. Assim pode-se já constatar através da intitulação dos livros de culinária brasileira uma instrumentalização no sentido de fomentar a importância da identidade. Um outro instrumento relevante para a construção de um contexto de sentido do livro de culinária para a realidade cultural e política é o prefácio. No livro Cozinheiro Imperial, levouse em consideração a importância da cozinha como parte do progresso e da civilização das nações européias. Fez-se referência às riquezas da nação brasileira, e se postulou a intenção de preencher a lacuna na literatura culinária brasileira. As edições seguintes foram complementadas com curtos prefácios, nos quais especialmente o prefácio à quinta edição era importante. Com esta edição, o livro foi complementado com pratos tipicamente brasileiros. Isso continha, por um lado, a confissão de que as edições anteriores não faziam jus a esta exigência, e, por outro, a percepção de alguns pratos como brasileiros. Com isso, ocorreu a primeira manifestação de uma proclamação de certos pratos como parte da culinária brasileira. No prefácio do segundo livro de culinária dos editores Laemmert, além de acentuar aspectos práticos, tais como a criação de uma relação de gênero, ao qual se acrescenta com a assertiva 752

De fato, o primeiro livro de culinária mexicano surgido em 1831 chamava El cocinero mexicano, mas o segundo já se chamava Nuevo y sencillo arte de cocina, surgido em 1836, seguido do outro livro de culinária regional, La cocinera poblana e mais tarde do livro Cocina michoacana. Em 1845, surgiu o Nuevo cocinero mejicano. No geral, pode-se, como no caso do México, da mesma forma, se depreender uma relação nacional pela denominação dos livros de culinária. Ver Pilcher, Que vivan los tamales, Food and the making of Mexican identity, pág. 45-52.

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“... deste precioso Brasil...”, se estabeleceu uma relação nacional positiva com o Brasil, contudo, exageradamente acentuada. Enquanto a Editora Azevedo não usou o prefácio com essa finalidade, os editores Garnier faziam uso de uma outra prática. O prefácio do Cozinheiro Nacional era um manifesto político em sentido patriótico e proclamava a autonomia da cozinha brasileira. Ligada a isso, estava a exigêmcia de desligamento da cozinha brasileira dos modelos culináriios europeus. Para implementação prática, foi apresentada uma lista com os alimentos suplementares. O Brasil deveria, assim, tornar-se consciente de sua independência e ser parte da nação cultivada. À cozinha, aqui, explicitamente manifesta brasileira, foi atribuída uma tal importancia que o livro deveria servir como meio e ajuda para que se pudesse cozinhar uma culinária brasileira em outros países, apoiando-se no exemplo e na importância da cozinha francesa. Outro elemento importante para a proclamação de uma cozinha brasileira na prática culinária eram as receitas propriamente ditas. Os pratos foram, por um lado, denominados á brasileira, ou, de outra forma, denotavam uma outra relação qualquer através da utilização de ingredientes e técnicas culinárias. Em todos os livros de culinária do período do Império, utilizou-se a prática da denominação à brasileira, para se atribuir certos pratos típicos a uma culinária brasileira. Isso também deve ser entendido dentro da prática internacional usual, na qual certos pratos recebiam uma denominação com relação geográfica. Mas, de fato, na maioria das vezes, acaba ocorrendo que uma tal denominação vem de fora. Nenhum cozinheiro alemão intitula o seu prato como peito de boi à moda alemã, mas, sim, muito mais, um cozinheiro francês caracterizaria seu peito de boi, preparado de uma determinada forma, correspondentemente. Isto foi na literatura culinária brasileira do período imperial, manuseado de outra forma. Certos pratos foram, de acordo com isso, dentro do país, elevados a esse contexto nacional, da mesma forma como meio de se proclamar uma cozinha própria. Nos pratos regionais, ao contrário, recorreu-se mais a uma prática culinária internacional e os pratos que eram tidos como uma especialidade de certa região foram como tais caracterizados. Um outro aspecto, neste contexto, era a denominação das primeiras receitas brasileiras na quinta edição do Cozinheiro Imperial. Estas eram preponderantemente receitas que mostravam uma origem afrobrasileira, bem como a primeira sintetização de certas receitas em um contexto regional através de caracterizações como á mineira ou á bahiana. No contexto geral dos pratos regionais, a sua sintetização seletiva também é relevante. Enquanto mais 203


frequentemente em todos os livros de culinária foram mencionadas753 receitas de Minas Gerais, e, respectivamente, no que diz respeito a receitas de doces, abundantemente de Pernambuco, por ser a região tradicional do açúcar, não houve nenhuma consideração respectivamente a isso em outras regiões. Juntamente com aspectos culinários, parece que motivações políticas tiveram importância. Minas Gerais era tida como a província mais próspera e de maior influência política. Ao contrário, as províncias do Norte, característicamente de cultura indígena, e também o Espírito Santo, eram, de acordo com o discurso progressivo e civililsatório da época, consideradas atrasadas e não cultivadas. As receitas e pratos destas regiões não foram mencionados nos livros de receitas. Deve-se lembrar que na postulação de uma cozinha nacional, trata-se de uma construção que não existe nem mesmo na realidade alimentar de países pequenos. Em um grande país como o Brasil, com diferenças naturais fortemente características, a cozinha regional ganha uma importância especial. No entanto, estes fatores influenciaram o surgimento e, mais do que isso, a proclamação da cozinha brasileira apenas secundáriamente. No exemplo aqui examinado, eles surgiram na forma de receitas com intitulação nacional, bem como através da utilização de produtos regionais. Não por menos, a utilização de produtos e as técnicas de culinária regionais pareceram meios irrelevantes na proclamação. Questiona-se, assim, os parâmetros e os idealizadores da proclamação.

7.1.2 Idealizadores da Proclamação

Os livros de culinária, como meio mais importante para a proclamação da cozinha brasileira não podem ser na maioria das vezes, atribuídos a nenhum autor. Parecia ser prática usual construir os livros com receitas já existentes. Autores em parte nem sequer apareciam, em parte eram pseudônimos, ou se indicava um autor no título, mas o contetúdo no título, era identificado com compilação. Por isso, os editores podem ser considerados os verdadeiros construtores da cozinha brasileira. Eram como tais os editores com sede no Rio de Janeiro das Editoras Laemmert, Azevedo, e Garnier. Neste contexto, é relevante que os editores Laemmert e Garnier eram os produtores de livros que mais vendiam no Brasil e dominavam o mercado editorial no Império. Deve-se mencionar, com relação à editora Laemmert, a proximidade com a elite dominante no Rio de Janeiro. Isso se desenvolveu já na fase da regência, quando os Laemmerts atuaram como os primeiros editores no Brasil. Pertenciam ao 753

O primeiro livro de culinária do Brasil foi publicado em Minas Gerais, no ano de 1906, sob o título: Doces Mineiros.

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repertório da editora muitos escritos, que deveriam servir ao entendimento do cidadão, como o Manual do Cidadão Brasileiro ou também livros de legislação. Muitas obras de instituições estatais ou semiestatais foram editadas por eles até o final do período imperial. Com a publicação dos livros Cozinheiro Imperial e Doceira Brasileira, os editores Laemmert atendiam exclusivamente o mercado de livros de culinária até 1875. Ambos os livros foram publicados em diversas edições. Apenas ao final do Império, as Editoras Garnier e Azevedo entraram neste mercado, apesar de que, neste caso, provavelmente, interesses financeiros tenham sido a motivação relevante. De posse das variadas edições do livro de culinária, Cozinheiro Imperial, que, em 1869, surgiu na 5ª. Edição, em 1874 na 6ª. Edição, e em 1877 na 7ª. Edição pode-se concluir que o negócio da editora Laemmert florescia, e que a concorrência também queria ter a sua participação. Neste sentido, pareceu adequado à Editora Garnier colocar sua obra principal sobre a culinária brasileira no discurso da época, e de se distanciar das obras da cozinha brasileira até então publicadas. O livro Cozinheiro Imperial foi, desse modo, criticado em seu prefácio. No geral, pode-se partir do princípio de que ambas as grandes editoras adequaram suas publicações culinárias ao respectivo discurso político da elite do Rio de Janeiro.

7.2 Realidade da Cozinha Brasileira

Além da construção da cozinha brasileira através de sua proclamação com base em livros de culinária, pode-se, da mesma forma, constatar alguns aspectos importantes de uma realidade culinária brasileira. Essas características se mantêm também de acordo com as necessárias diferenciações, como a importâcia de influências regionais e da estratificação social da população.

7.2.1 Estruturas Fundamentais da Alimentação no Brasil

A regionalidade brasileira deve ser entendida no tocante à alimentação, como elemento dual que se diferencia tanto na sua realidade local, mas, que, por outro lado, influencia, através de sua importância universal, ao mesmo tempo, a culinária brasileira. A cozinha brasileira é entendida, hoje em dia, como uma cozinha nacional não homogênea, mas, sim, muito mais, como um conglomerado de especialidades regionais e de tradições alimentares754. No que diz 754

O melhor exemplo disso é a série de livros de culinária Cozinha Regional Brasileira que surgiu ao final de 2009 no Brasil. Ver Civita (ed.) Cozinha Regional Brasileira.

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respeito ao desenvolvimento no Império, não foram as mudanças políticas com a proclamação da república que influenciaram a cozinha brasileira, mas, sim, muito mais, os desenvolvimentos técnicos e as melhorias no setor do transporte. Desta forma, camadas sociais mais amplas da população puderam ter acesso a produtos e modelos culturais de comportamento, e este processo enriqueceu no decorrer temporal do início do século XIX o cotidiano diário. A exclusividade da regionalidade foi, assim, de uma perspectiva social geral, ultrapassada, o que teve efeito duradouro na alimentação. Alguns alimentos e a idéia de sua preparação eram e são até hoje universais e difundidos em todo o Brasil e têm, desse modo, o direito de serem vistos como fundamento da culinária brasileira. Eles ultrapassaram com isso tanto as fronteiras regionais como as sociais. A base da alimentação brasileira no Império consistia em feijão, carne-seca e toucinho. Devese constatar, como universalidade de modelos culturais, a utilização de variações de farinha, o desenvolvimento do arroz como alimento, a valorização e importância da ave e, sobretudo, a preparação de doces. No caso destes produtos e hábitos alimentares, trata-se de pilares de longa data da alimentação brasileira, que já tinham a mesma importância no período colonial e se mantiveram até hoje. O feijão estava e está aqui em primeiro lugar. Ele é um importante alimento, já que por um lado, fornece proteína vegeral, e, por outro, em seu plantio enriquece o solo. Ele foi consumido no Brasil em todas as regiões por todas as classes sociais, e é, assim, fundamental para a concepção do prato brasileiro. Ele é também a base da feijoada, prato hoje considerado como típicamente nacional. Este prato era tido como um cozido simples bem difundido e foi instrumentalizado no século XX no discurso político e transformado no que ele ainda hoje é. Existiam diferentes métodos de preparo com características regionais para o feijão, em que pese o fato de que em cada região um tipo diferente de feijão ter sido preferido. O consumo de carne-seca e toucinho era, da mesma forma, típico da culinária brasileira no Império. Ambos esses processos foram consumidos, de forma geral, independente da região. Eles atendiam tanto a classe alta para a alimentação e foram igualmente utilizados na alimentação dos escravos. Frequentemente, eles eram cozidos junto com o feijão, a fim de enriquecê-lo no sabor e no valor nutricional, do qual surgiu a feijoada, como um prato do cotidiano, cozido em uma panela. O principal motivo para a utilização de carne seca e toucinho era sobretudo a durabilidade, além da facilidade de transporte. Aves eram um alimento valorizado e caro em todo Brasil. Foram utilizadas universalmente como prato em todas as ocasiões especiais. Correspondentemente, o pato foi tido no norte do Brasil como um prato para dias festivos, bem como em todo Brasil a galinha ou o peru. Pratos 206


feitos à base de galinha foram preparados para o reestabelecimento e fortalecimento de doentes e convalecentes, já que a esses pratos se creditava um efeito medicinal. Galinha com arroz era preparada também por ocasião de visitas ou como prato para dias festivos. Impressionante era, neste contexto, a freqüência em que se mencionou este prato em relatórios de viajantes do século XIX. Receitas para estes pratos foram mencionadas também nos livros de culinária. Nas ocasiões festivas da alta sociedade, servia-se frequentemente o peru. Hoje, o peru é tido como um prato clássico do Natal no Brasil, e a amplamente difundida galinha assada dos domingos corresponde ao assado de domingo alemão. Atenção especial merece a utilização de farinhas na culinária brasileira. A importância das farinhas na alimentação brasileira tem seu ponto de partida no encontro da concepão alimentar indígena com as tradições alimentares dos senhores coloniais portugueses. O mais importante pesquisador da alimentação no Brasil, L. Câmara Cascudo, caracteriza, com frequencia a tigela de farinha moída finamente como a rainha da mesa. A utilização de farinhas era a base de carbohidratos da alimentação brasileira até o desligamento através do consumo de arroz no século XX. Interessante, neste ponto, é que, ao lado da preferência pela farinha, independente de classe e da região, a enorme variação de farinhas à base de mandioca e de milho das quais se pode produzir uma série de pratos diferentes. Deve-se recordar, neste ponto, o comentário no jornal, no qual se procurava por um patriota que pudesse mandar uma boa lata de farinha de mandioca para a França, a fim de reconstruir a reputação internacional deste alimento brasileiro. A utilização da farinha de trigo aumentou a partir da metade do século XIX e foi usada, entre outros, para a produção de pãozinho, conhecido com pão francês. Além disso, para a preparação de pratos doces foi utilizada em receitas a farinha de arroz, e, no Norte, a farinha de peixe. O cereal arroz é, da mesma forma, relevante para a cozinha brasileira, contudo, aqui há que se observar o desenvolvimento. De fato, existia uma espécie de arroz vermelho no Brasil, que já era conhecida das etinias indígenas e era por eles consumido. Entretanto, esta espécie não alcançou importância no período colonial. Com os portugueses, vieram outras espécies de arroz para o país, mas a produção permaneceu igualmente pequena e limitada a algumas regiões. Ao final do período colonial, por iniciativa de Pombal, é que se chegou à planatação destinada á exportação o Maranhão e em outras regiões, o plantio de arroz se difundiu, da mesma forma, como, por exemplo, no Rio de Janeiro ou no interior do Mato Grosso. O arroz se desenvolveu como um alimento que de fato, tornou-se conhecido como grão e farinha e foi valorizado em todo o Brasil. Entretanto, teve acesso á mesa cotidiano, especialmente nas 207


regiões de plantio com determinadas condições geográficas. Nas outras regiões, o arroz, devido ao seu alto preço no comércio, foi visto como uma comida para dias de festas. Apenas com a transição para o século XX, é que o arroz se desvencilhou das farinhas de mandioca e de milho como base de carbohidrato da alimentação brasileira. Hoje, o arroz é tido, ao lado do feijão, como a base alimentar mais importante do cotidiano brasileiro. Elucidativa é, neste contexto, a utilização do arroz na cozinha regional do Brasil. Pratos regionais típicos, feitos com arroz, eram difundidos do Pará até o Rio Grande do Sul. No Pará, o arroz paraense, no Maranhão o prato arroz de cuxa, no Nordeste, baião de dois, na Bahia, arroz de hauça, no interior, arroz maria isabel e no Sul o prato arroz de carreteiro. Estes pratos têm certa semelhança. Pela consistência, trata-se de uma panela de arroz seco, complementado por camaõroes ou carne seca. Este desenvolvimento acentua, assim, a importância do arroz como prato especial, que se distancia da comida trivial. Uma outra universalidade da cozinha brasileira é a preferência e a ampla variedade de doces. A utilização do açúcar na alimentação brasileira deve, contudo, ser tratada de forma separada. Em comparação com a alimentação brasileira no início e no final do período imperial, estes fundamentos se mantiveram. Como mudanças na fase aqui examinada com relação à alimentação, pode-se constatar uma disseminação lenta do arroz e um crescente aumento do acesso a produtos de outras regiões e internacionais e formas de consumo ao longo dos tempos.

7.2.2 Hegemonia do Açúcar O açúcar tem, para a história brasileira, cultura e alimentação, uma importância extraordinária. Para a percepção da época do açúcar, no período imperial, F.L.S. Burlamaque anotou em seu escrito Monographia da Canna d´Assucar: „Nossas cidades foram fundadas com os lucros do assucar; em uma palavra, tudo quanto possuímos de melhor é devido á cultura da canna, a esse doce sal que para nós tem sido tão maravilhoso como a lâmpada d’Aladino.“755.

Neste livro, de 1862, comparou-se sobre o consumo de açucar de diferentes países, no qual o Brasil ficava em segundo lugar, atrás da Grã Bretanha, seguido dos Estados Unidos756.

755

Monographia da Canna D’Assucar, publicado por ordem da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional pelo Dr. F.L.S. Burlamaque, Rio de Janeiro, 1862, S.18-19. 756 Ver, também ali, pág. 331.

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A importância do açúcar se expressou de forma duradoura na proclamação da cozinha brasileira. Dos sete livros pesquisados, quatro são exclusivamente sobre receitas de doces. Uma dominância semelhante na literatura culinária não existia na perspectiva global desta forma, e conta com isso, como uma especialidade da cozinha brasileira. Essa dominância em receitas de doces se perpetuou em sua hegemonia, já que os livros de receitas anotadas à mão utilizados como fonte, levavam principalmente a receitas doces, e, também, as receitas publicadas em jornais eram majoritariamente de sobremesas. Os relatórios de viagem mencionavam, da mesma forma, os doces trabalhosamente preparados e o prestígio especial do qual estes gozavam. Doces eram apreciados em todas as regiões e independente de classe social, contudo, as diferenças individuais se manifestavam. Os componentes regionais se mostravam especialmente na utilização de ingredientes na forma de frutas, que se diferenciavam fundamentalmente de norte a sul, contudo, todas eram preparadas com açúcar. As diferenças de classe podiam ser constatadas no tipo de sobremesa. As classes mais altas consumiam sobremesas preparadas de forma mais trabalhosa. Estas eram possivelmente preparadas com o açúcar reimportado da Europa. Em acontecimentos sociais, variações diferentes de doces de alta qualidade eram servidas em grandes quantidades em cômodos separados para isso. Os doces eram denominados de acordo com pessoas ou famílias de prestígio, e receitas escritas à mão passavam de mãe para filha. Em ocasiões especiais, elas mesmas preparavam a sobremesa, enquanto nas casas grandes, os escravos ou pessoal da cozinha eram encarregados de preparar os pratos gerais. Além das trabalhosas receitas da classe alta, existiam receitas de pratos triviais, que eram vendidos pelas numerosas vendedoras ambulantes de ruas. A sua produção servia à dona de casa da classe média como fonte de renda. As classes mais baixas consumiam doces mais simples à base de fruta caseira ou rapadura. A população escrava, tinha acesso da mesma forma, a doces como rapadura ou melaço ou através da pura garapa. Deve-se mencionar, neste contexto, a doença do imperador brasileiro Pedro II. Ele tomava até mesmo água adocicada e adoeceu de diabetes. A diabetes se desenvolveu, já no período do Império brasileiro, como uma doença da classe alta757.

757

Ver RIHGB, n.215 abr./jun.1952, Pedrosa, A Diabetes Sacarina no Brasil, pág. 164: “... a doença não era comum nos nossos hospitais, era doença da classe alta”.

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A importância do açúcar para a sociedade brasileira também foi reconhecida pelo sociólogo Gilberto Freyre, que se dedicou à temática em seu livro Açúcar, Uma Sociologia do Doce, com Receitas de Bolos e Doces do Nordeste. A hegemonia histórica do açúcar no Brasil perpetua até os dias atuais. O açucar é vendido usualmente em pacotes de cinco quilos nos supermercados, o café, em geral, é bebido extremamente adocicado, mas ainda é consumido de forma doce, e já pela ocasião do primeiro aniversário de uma criança são servidas nas festividades quantidades enormes de doces. Entretanto, de fato exagerada utilização do açúcar pode,igualmente, ser atribuída aos hábitos alimentares portugueses. O açúcar foi utilizado em muitas receitas a partir do século XV, e, também, em Portugal existe uma paixão culinária por doces. No entanto, a dominância do açúcar não preponderou na literatura culinária tão intensivamente.

7.2.3 Identidades e Alimentação no Período Imperial Brasileiro

No contexto da alimentação e da identidade no período do Império brasileiro, podem ser constatadas diferentes fases. O aspecto principal deste trabalho se orienta pela tese, de que a proclamação da cozinha brasileira era uma parte do processo de formação da identidade brasileira. Neste ponto, deve ser considerado também o processo de transformação na formação da identidade no Império brasileiro. Partindo-se da declaração de independência e da formação do Império, nos anos iniciais de 1822 até 1831, ocorreu a construção da identidade pela idéia de um Império independente. Isso resultou uma delimitação frente ao antigo poder colonial, Portugal, e os países sulamericanos vizinhos que se orientavam pelo modelo republicano. A isso se uniu a extremamente inquieta fase da regência, de 1831 até 1840, com uma série de revoltas internas violentas. Ao fim desta fase, as elites dominantes entendiam que deveriam se opor às rebeliões que se formavam em muitos lugares, como repressão política. Elas iniciaram com a construção de uma identidade capaz de assegurar a unidade nacional e se serviram de diferentes possibilidades de construir um momento de união. Como ponto principal da integração neste processo, deu-se a nomeação do jovem Pedro II., aos 14 anos, para imperador do Brasil. A partir deste momento, a formação da identidade experimentou um novo impulso com relação ao imperador e ao Império. No geral, tem-se a impressão de que a publicação do Cozinheiro Imperial pela Editora Laemmert, no ano da entronização de Pedro II., não tenha sido um acaso. Neste sentido, pode-se argumentar também que o livro escrito por um autor 210


pseudonímico não passava de uma pura compilação de livros de culinária portugeses já existentes. O livro foi lançado por ocasião dos acontecimentos políticos e sem grandes preparativos. De fato, como parte de uma bem sucedida construção da identidade, adequada ao desenvolvimento político, que não tinha uma perspectiva de longo prazo. Após a estabilização da situação política, ao longo dos anos 50, iniciou uma transformação no processo de formação da identidade. Ocorreu uma transição lenta, na qual houve uma relação de identidade com o imperador com o moderno conceito de nação. Este desenvolvimento teve um ponto alto com a despendiosa guerra contra o Paraguay e forçou um desenvolvimento da relação de identidade sobre o Brasil. Estes processos foram acompanhados indiretamente nos livros de culinária, como, por exemplo, ao lançar pratos brasileiros nas novas edições do Cozinheiro Imperial ou também com a publicação do livro Doceira Brasileira. Como conclusão deste processo de transição da formação da identidade e no discurso nacionalista, a Editora Garnier publicou o livro de culinária Cozinheiro Nacional, que, da mesma forma, instrumentalizava e trabalhava este processo e discurso no sentido culinário, na forma da proclamação de uma cozinha brasileira. Com isso, existia aqui um desenvolvimento, no qual a literatura culinária brasileira acompanhou a dinâmica política e pode ser vista como parte cultural neste processo de formação da identidade. Formulando-se, de forma exagerada, houve uma relevante transição fluida política e socialmente na percepção do Império para o desenvolvimento da nação brasileira. Este processo foi acompanhado no desenvolvimento culinário e levou o Cozinheiro Imperial, que se adaptava de edição, em edição à proclamação da cozinha brasileira no Cozinheiro Nacional. Entretanto, a alimentação atuou também de forma duradoura na formação de outras identidades. As identidades regionais se baseavam igualmente na alimentação como esta foi instrumentalizada para a manutenção de identidades étnicas. As respectivas cozinhas nacionais são tidas, hoje, como a característica mais importante da identidade das regiões brasileiras. As identidades regionais são marcada e se caracterizam, por exemplo, pela designação dos habitantes, como paulista, carioca, minero, nordestino ou gaúcho. No contexto dessas identidades respectivas, a alimentação regional representa um modelo de identificação extremamente importante, pelo qual a região e seus habitantes se representam para fora. No tocante às identidades étnicas, no caso brasileiro, além da manutenção das identidades indígenas, através da alimentação, especialmente as influências dos imigrantes também são importantes. Na migração forçada dos escravos, pessoas de diferentes tribos africanas chegaram ao Brasil. Estas denominavam os pratos na língua de seus países, sendo que essas denominações se mantiveram até os dias atuais, como, por exemplo, fubá ou angu. 211


Desenvolveu-se um processo no qual se criaram identidades afrobrasileiras, uma vez que escravos de etnias diferentes tinham que viver juntos. Neste âmbito eles se serviam de diferentes simbologias, como, por exemplo, da música, capoeira ou religiões como o candomblé, a fim de construir uma própria identidade, que, além disso, oferecesse uma sustentação mental em um sistema que desprezava o ser humano, como era o da escravidão. Assim, a alimentação passou a ter um papel importante nos cultos religiosos que se desenvolviam nas regiões como xangô, batuque ou candomblé, e servia, assim, também no processo de formação da identidade. Com a imigração européia, a partir da metade do século XIX, chegaram muitas outras etinias diferentes ao Brasil. Essas se serviram, da mesma forma, da alimentação para a manutenção de suas identidades. Este desenvolvimento é consagrado até os dias atuais, quando, por exemplo, em livros sobre a cozinha regional de Santa Catarina, uma receita de Sauerkraut aparece como uma obviedade. Além disso, a imigração japonesa, iniciada mais tarde, influenciou, de forma duradoura, a paisagem culinária brasileira. A construção de uma cozinha nacional e a instrumentalização da alimentação como pedra fundamental para a criação de uma identidade nacional começou no Brasil com a publicação do Cozinheiro Imperial. Isso se deu na fase do processo de estabilização do Estado, logo após a inquieta fase da regência, e estava ligada ao forçamento de uma identificação com o modelo de integração do jovem imperador. No transcorrer do processo de formação de uma identidade nacional construiu-se uma cozinha brasileira. Este processo se desenvolveu primeiramente com base em pratos individuais e teve o seu ponto alto da época na proclamação de uma cozinha brasileira, através do livro Cozinheiro Nacional. Entretanto, este desenvolvimento e proclamação não representavam, de forma alguma, como o nome denota, todas as cozinhas existentes no Brasil, ou uma mistura equivalente delas. Não se poderia também afirmar que o estilo culinário de determinada classe social tenha se imposto. Para isso, a discrepância real entre o discurso da elite dominante e a realidade alimentar no Brasil era muito grande. Tratava-se muito mais de uma tentativa de construir uma cozinha com base nos livros de culinária, na qual se usou o processo de formação de identidade em modificação como instrumento. Uma cozinha brasileira, como tal, existia apenas como construção cultural do discurso e parece hoje em dia, uma federação das cozinhas regionais. Neste contexto, podem ser constatadas algumas especialidades culinárias tipicamente brasileiras, que conseguiram superar as contradições geográficas e sociais.

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8.Fontes e Bilbiografia 8.1 Fontes: A Doceira Domestica, ou Colleccao de Receitas pela maior parte novas, de doces, pudins, tortas, conservas, pasteis, licores, e em geral tudo quanto pertence a arte do confeiteiro e pasteleiro, apropriadas ao uso das cozinhas particulares por, D. Anna Correa, 4.edição, correcta e melhorada, Rio de Janeiro, na livraria de J.G. de Azevedo, editor, 1895, (1. edição 1875, 2 edição , 1877) A Felicidade na Família, Cartas D’uma Mãe a sua Filha,( Versão do Francez por Alfredo Pimenta), Porto 1877 A Sciencia no Lar Moderno, Nova Colleccao de Receitas de Doces, Iguarias, Petiscos e Tudo o Que diz Respeito A Arte Culinária, ja conhecidas pela Pratica da Auctora D. Eulália Vaz V.J.M.J., Livro Útil e Necessário As boas Donas de Casa Novidade do século 1901 Casa Endrizzi Editora, Editora 74- Rua Boa Vista 74, São Paulo Almanak Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro para o anno bissexto de 1844, primeiro anno, Rio de Janeiro 1843 Almanak Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro para o anno de 1849, organisado e redigido por Eduardo Laemmert, Rio de Janeiro, 1849 Almanak Administrativo Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro para o anno de 1851, organisado e redigido por Eduardo Laemmert, Rio de Janeiro, 1851 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Província de Pernambuco para o anno de 1860, organisado por Jose de Vasconcellos, 1°-Anno, Recife, 1860 Almanak Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola da Província de Pernambuco para o anno de 1881, Recife, 1881 Almanak de Pernambuco Administrativo, Mercantil, Industrial e Agrícola 1871, quarto Anno, Recife, 1870 Almanak Paraense de Administração, Commercio, Indústria e Estatística Para o Anno de 1883 organisado por Belmiro Paes de Azevedo e Marcellino A. Lima Baratta, Para, 1883 Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro Vol XVI 1889-1890, Rio de Janeiro 1894, Tomo II Vocabulário Indígena com orthographia correta por J. Barbosa Rodrigues Armazém de Conhecimentos Úteis Nas Artes E Officios; ou Collecao de Tratados, Receitas E Invenções De Utilidade Geral, Destinado A Promover A Agricultura E Indústria de Portugal E Do Brasil, Por F.S. Constancio, Pariz, Na Livraria de Va. J.-P. Aillaud, Monlon E Ca., 1838, 1855 Arte Culinária, Carlos Bento da Maia, Lisboa, 1903

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Arte de cosinha, João da Matta, Lisboa 1888, terceira edição Arte de cosinheiro e do Copeiro compilada dos melhores auctores que sobre isto escreveram modernamente, sendo a parte principal extrahida da obra que tem por titulo: A Casa de Campo, publicada em 1822 por M.me Aglae Adanson dada a luz por um amiga dos Progressos da Civilização Segunda edição, aumentada com muitas receitas novas pertengentes a copa, Lisboa 1845 Arte de cozinha, dividida em três partes, A primeira trata do modo de cozinhar vários guisados de todo gênero de carnes, conservas, tortas, empadas e pastéis. A segunda, de peixes, mariscos, frutas, ervas, ovos, latícios, doces, conservas do mesmo gênero. A terceira, de preparar mesas, em todo o tempo do ano, para hospedar príncipes e embaixadores. por Domingos Rodrigues, Lisboa 1693, 1758, 1765, 1794 Bibliotheca do Povo e das escolas, Copa E Cozinha, Formulário extrahido de um manuscripto conventual e Coodernado por Antonio de Macedo Mengo David Corazzi Editor 1887, do Lisboa, Filial Rio de Janeiro, cada volume 50 reis, Bibliotheca do Povo e das escolas, Falsificações dos Gêneros Alimentícios e processo para as descobrir, por Julio Arthur Lopes Cardoso, 1890 Companhia Nacional Editora Coleção Max Fleiuss do IHGB, Cardápios de Almoços e Jantares em Homenagem a Personalidades Brasileiras e Estrangeiras. Cozinheiro imperial ou nova arte do cozinheiro e do copeiro em todos os seus ramos contendo as mais modernas e exquisitas receitas, para com perfeição e delicadeza se prepararem diferentes sopas e variadissimos manjares de carne de vacca, vitella, carneiro, porco e veado; de caris, vatapás, carurus, angus, moquecas e diversos quitutes de gosto exquisito; de aves, peixes, mariscos, legumes, ovos, leite; o modo de fazer massas e doces precedido do methodo para trinchar e servir bem á mesa com uma estampa explicativa e seguida de um diccionario dos termos technicos da cozinha por R.C.M. chefe de cozinha. 4ª ed. aumentada e melhorada com muitas receitas modernas e guia do criado de servir ou observações úteis a criados e donas de casa [...] por Constança Oliva de Lima. Rio de Janeiro: Publicado e á venda em casa dos Editores-Proprietários Eduardo & Henrique Laemmert, Rua da Quintada,77, 1859 1.ed. 1840, 2.ed. 1843, 3.ed. 1852, 4.ed. 1859,5. ed. 1869, 6.ed. 1874, 7.ed. 1877, 9.ed. 1884, 10.ed. 1887, 11. ed. 1900 Cozinheiro moderno ou nova arte de cozinha, onde se ensina pelo methodo mais fácil, e mais breve o modo de se prepararem vários manjares …, dado á luz por Lucas Rigaud, Lisboa, 1780, 1826 Cozinheiro Nacional, ou Colleccao Das Melhores Receitas Das Cozinhas Brasileira e Europeas, Para A Preparação De Sopas, Molhos, Carnes, Caca, Peixes, Crustáceos, Ovos, Leite, Legumes, Podins, Pasteis, Doces de Massa E Conservas Para Sobremesa; Acompanhado Das Regras De Servir A Mesa E De Trinchar. Ornado Com Numerosas Estampas Finas. 3.ed. Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 1889; 2. ed. 1885, 3.ed. 1889, 4. ed. 1892, 7.ed. 1910, 10. ed. Diccionario do Doceiro Brasileiro, contendo milhares de receitas, pela maior parte novas, de doces de todas as qualidades, obra da maior utilidade ate hoje conhecida e dedicada 214


especialmente as mais de famílias, 3ª ed,. Rio de Janeiro, na livraria de J.G. de Azevedo, editor 1892 Doceira Brasileira, Ou Nova Guia Manual Para Se Fazerem Todas As Qualidades De Doces Seccos, de calda, cobertos ou confeitados; compotas, sopas doces, conservas de doces, natas e cremes de leite; geleas: fabricação das pastilhas. Flores e frutas, e differentes figuras e objectos de assucar; conservação das frutas em aguardente e calda; depuração e refinação do assucar, do mel e da rapadura; preparação do mosto para os doces; fabricação dos xaropes; ratafias, ou licores de sumo de frutas, por infusão, a frio, gelos artificaes em todo o anno; e sorvetes de todas qualidades; Com Muitas Observações Sobre Taes Assuntos. Obra nova e utilíssima para todas as pessoas em geral: extrahida de diversos autores, e de muitas receitas particulares, não impressas ate ao presente.Terceira Edição Mais Correcta E Accrecentada Com Numerosas Receitas Novas Por Constança Oliva de Lima, 3ª., 1862, Eduardo e Henrique Laemmert, Rua da Quintada, 77, Rio de Janeiro (1.ed. 1851, 2.ed 1856),3.ed. 1862, 4.ed. 1875, 8.ed.1893, 9.ed 1896 Doceiro Nacional ou Arte de fazer toda a qualidade de doces obra contendo 1200 receitas conhecidas e inéditas de confeitos, empadas, pudins, tortas, biscoutos, bolos, bolachas, broas, babás, savarins, vinhos, liquores, xaropes, limonadas, sovertes e gelados; Accompanhada dos diversos processos usados para a depuração e extração do assucar contido nas plantas sacharinas. Ornada com numerosas estampas. 4ª ed. Rio de Janeiro: B.L.Garnier, LivreiroEditor, 1895, 1.ed. 1883, 2.ed. 1886, 3.ed. 1891, 7ed.1895 >> 9.ed. (D. Anna Corrêa), 1912 Paulo Salles Doces Mineiros, Colleccao completa de variadissimas Receitas de Doces, obtidas das mais afamadas Fabricantes Mineiras, Por M.J., Edição e propriedade da livraria Joviano, Bello Horizonte, 1906 Fabricação do queijo da manteiga, Contendo todos os esclarecimentos e regras para o Aproveitamo do leite e sua aplicação, modo pratico de preparar Todas as qualidades de Queijo, Acompanhado de um Tratado sobre as vaccas cabras e carneiros Meios practicos sobre a criação, Reprodução e Aproveitamento, Garnier, 1887 Guia do Criado de Servir, Livro Útil a Criados e a Donos de Casa, Lisboa, 1851 Folinha Alimentaria para o anno de 1870, contendo alem da chronica nacional, noticias curiosas e interessantes principalmente sobre a guerra contra Paraguay, um pequeno tratado sobre a cultura e utilidade do tupinambor e da batata, Rio de Janeiro, Eduardo & Henrique Laemmert, 1869 Le Cusinier Parisien, ou Manuel Complet d’Economie Domestique, B. Albert, Paris, 1833 (Real Gabinete Português Leitura) Les 366 Menus du Baron Brisse, Avec 1200 Recettes et um Calendrier Nutritif, 4.ed. Paris, 1869 (Real Gabinete Português Leitura) Lima, Cláudio Dr., Analyses dos Vinhos Mineiros, Ouro Preto, 1896 Manual de Confeitaria Por Candido Borges da Silva, Paris, Livraria de Vva J.P.Aillaud , Guillhardt e cia, 1866 215


Manual do Agricultor Brasileiro Tomo I, Arte da Cultura e Preparação do Café, por Augustinho Rodrigues Cunha, Rio de Janeiro, E. e H. Laemmert, 1844 Manual do Agricultor Brazileiro, Segunda Edição, por C.A. Taunay, Rio de Janeiro, 1839 Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Comp. Manual do distilador e licorista contendo indicações exactas e minuciosas acerca da fabricação, desinfecção e rectificação do álcool, e bem assim receitas para preparar toda a espécie de licores, quer por meio de infusão, quer pella distillação; seguido da descripção do fabrico dos mais saborosos vinhos, e da cerveja, tudo ao alcance de qualquer industrial ou comerciante, [...]. Confeccionado por C.J. segundo os melhores autores. Rio de Janeiro: H. Laemmert & C., Livreiros-Editores, 1883 (1833, 1847, 5.ed 1873) Manual do Gallinheiro, Paulo Salles, Livraria Garnier, 1887 Manual do Viticultor Brazileiro, Cultura da Videira e o Fabrico do Vinho no Brazil, Rio de Janeiro, 1888 Medicina Caseira, Compendio de Receitas úteis de medicamentos vegetaes, Sem dosagem de boticas e á mão em qualquer parte, Para uso dos homens da roca pelo Doutor Tupinambá, Rio de Janeiro, Laemmert & C. Editores proprietários, 1889 Monographia da Canna D’Assucar, publicado por ordem da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional pelo Dr. F.L.S. Burlamaque, Rio de Janeiro, 1862 Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no império do Brazil por Sebastião Ferreira Soares, Rio de Janeiro, 1860 Novíssima Arte de cozinha, Lisboa, 1889 Novo Catalogo Systematico de escolhidos Livros Em Portuguez, Publicados e á venda no Rio de Janeiro na Livraria Universal de E.H. Laemmert. Novo Cozinheiro Universal, contendo as melhores Receitas das Cozinhas Francezas e Estrangeiras e numerosas Receitas Brasileiras, Julio Breteuil, Garnier Paris / Rio de Janeiro, 1901 O Auxiliador da Indústria Nacional Periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, sob a Direccao e Redação do Conselheiro Dr. Nicolau Joaquim Moreira, Volume LVII, Rio de Janeiro, 1889, Typographia Universal de Laemmert Nr.6.- Junho de 1889 O Confeiteiro popular, Francisco de Queiroz, Livraria Francisco Alves, 2ed. 1907 Rua de Ouvidor, 134 Rio de Janeiro O Conselheiro da Família Brasileira,Encyclopedia dos Conhecimentos indispensáveis na vida pratica, Dr. Felippe Néri Collaco, Garnier, Rio de Janeiro, 1883 O Cosinheiro Econômico das Famílias, Francisco Alves & Cia, Rio de Janeiro, 1911 216


O Cozinheiro completo ou nova arte de cozineiro e de copeiro em todos os seus gêneros quinta edição, Lisboa, 1861(imprensa de f.x. de souza & filho) O Cozinheiro completo ou nova arte de cozineiro e de copeiro em todos os seus gêneros 11. décima primeira 1879 (Editor j.j. bordalo) travessa da victoria, 41, Lisboa O Cozinheiro Popular, Primeira parte Cozinha Estrangeira, Segunda parte Cozinha brasileira, Livraria Quaresma, Rio de janeiro, s.d., 1900, 1916 O Doceiro Popular ou Manual do Doceiro e Confeiteiro, 1900 O Fazendeiro do Brasil por Fr. Jose Mariano da Conceição Velloso, Lisboa 1.Tomo I. Parte I. Da cultura das canas, e factura do assucar, 1798 3. Tomo I. Parte I. Do Leite, Queijo, e Manteiga 1801 7. Tomo III. Parte I Bebidas Alimentosas 1800 9. Tomo III Parte III Bebidas Alimentosas Cação 1805 10. Tomo IV Parte I Especierias 1805 O Jardineiro brazileiro, Paulo Salles, Livraria Garnier, 1887 O Porco, Charcuteiro Nacional, Tratado completo e practico sobre o porco, sua origem e utilidade Raças – Criação e engorda pelos methodos modernos – Moléstia e seu tratamento, Criação do Coelho e differentes modas de accomodar a carne aos paladares mais delicados, seguido de noticias sobre: A Anta, A Capivara, A Paca, A Cutia, o Porquinho da Índia, Acompanhado do Charcuteiro Nacional, ou arte de fazer numerosas preparados e conservas de carne de porco, taes como-presuntos, salamaes- salsichas- murcellas – línguas –queijos, chouriços – geleas, etc.etc, B.L.Garnier, Livreiro-Editor, Rio de Janeiro, 1886 O Vade-Mecum dos Curiosos, Collecao de Receitas Practicas, Applicadas As Artes, Officios E A Economia Domestica por Jose Soares Pinto Corrêa, Recife Typographia Universal, Rua do Imperador n°52, 1868 Real confeiteiro português e brasileiro, Lisboa 1904, Livraria Clássica Editora de A.M. Teixeira, Sophia de Souza Thesouro Inesgotável ou Collecao De Vários Processos e Receitas Com Appilicao as Sciencias, Artes, Indústria, Agricultura E Economia Domestica, obra utilíssima a todas as classes da sociedade. Publicada por Agostinho da Silva Vieira, Pharmaceutico de primeira Classe. Porto, 1860 O Conselheiro da Família Brasileira,Encyclopedia dos Conhecimentos indispensáveis na vida pratica, Dr. Felippe Néri Collaco, Garnier, Rio de Janeiro, 1883

8.1.1 Journais: A Actualidade, Ouro Preto, 11.11.1879 A Província de Minas, Ouro Preto, 30.11.1879 217


A Revista Familiar, Periódico dedicado as Famílias, Belém 4.2 1883 11.2.1883 25.2.1883 18.3.1883 27.5.1883 Colombo, Campanha, 28.02.1878 Diário de Belém, Belém, 1.7.1874, 2.7.1874 Dezeseis de Julho, Ouro Preto 1.1.1870 Gazeta Commercial da Bahia, San Salvador da Bahia, , 21.10.1836, Num 496 Gazeta Gastronômica, Recife Anno 1888 Liberal Mineiro, Ouro Preto, 2.1.1883 O Amigo da Verdade, São João del Rey, 12.06.1829 O Sul de Minas, Cidade da Campanha, 26.11.1859 O Liberal do Para, Belém, 25.2.1874 Revista illustrada, 18.3.1876 Anno 1 No. 12 & 14, Rio de Janeiro Revista Mãe da Família, Rio de Janeiro 1.Anno, N.1, Janeiro 1879; 4.Anno, N. 19 Outubro 1882; 6.Anno, N.1, 15.Janeiro 1884, N.3. 15.2.1884; 7.Anno, 15.3. 1885, 30.4. 1885, Revista Popular 1° anno, Tomo I., Rio de Janeiro, 1859 Tomo III. 1860 Tomo VII 1860 Tomo X 1861 Tomo XIII 1862 Vasco Coitinho, Victoria, Dia 15 Nov. 1883 Anno I No.5

8.1.2 Cadernos de Receitas e Anotacoes: Diário dos irmãs Cordeiro, Maria do Carmo, Maria Isabel, Pelotas, ~ 1905 D. Beraldina Motta, Ouro Preto, ~1906 Elvira de Oliveira Coimbra, Muzambinho, ~1905 218


Elvira Queiroz, Belo Horizonte, ~1909 Maria Celeste Cordeiro de Oliveira, Ubá, ~ 1906 Maria Guilhermina Gomes Libanio, Pouso Alegre, ~1908 Plautina Nunes Horta, Mariana, ~1896 Receitas para doces, Maria Isabel S. Brandão, Bello Horizonte, ~1911 Receitas registradas pelas senhoras Luisa e Laurenciana da Veiga, Ouro Preto, ~1874 Senhora Maria Guimarães Receitas de doces e salgadinhos, Boadina Tostes Cortes, Juiz de Fora Receitas de Açucarados, Pernambuco Caderno de Receita, Maria Gaudina Regalo Braga, Pernambuco, ~ 1877 Caderno de Compras do Visconde de Santo Amaro, João Pereira de Almeida, no Armazém do Antonio Jose da Silva, Arthur Cia. Rio de Janeiro 1.4.1860-5.6.1860. Bibliotheca Nacional Rio de Janeiro Caderno estatística termos médios dos preços mensais de diversos gêneros de exportação no período de 1840-1859 Bibliotheca Nacional Rio de Janeiro, o.A. & o.D. Compras da Casa Imperial /Cozinha der Fundação Gilberto Freyre/ Recife Carta de Antônio Luis Pereira da Cunha sobre o envio de gêneros alimentícios para família real, 25.1.1808, Arquivo Publico Mineiro /Belo Horizonte Corpo militar de Policia do Para, Quadro demonstrativo dos gêneros consumidos no mês de Novembro de 1887

8.1.3 Cardapios: 1.8.1858 Jantar no Clube Fluminense do Senador Nabuco de Araújo 30.5.1873 Jantar da Baronesa do Loroto 26.5. 1877 Banquete oferecedor ao General Osório pelo Clube da Reforma 7.11.1877 Cardapio General Osório Almoco oferecedor ao Exm.Sr. Marquez do Herbal pelo Barão de Nazareth Em sua chácara da Passagem da Magdalena, no dia 7 de Novembro de 1877

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1.9.1880 Cidade de Vassouras Jantar oferecedor pelo Barão de Massambara 9.4.1881 Banquete oferecedor pelo Partido Liberal Pernambucano ao conselho Franklin A. de Menezes Doria 15.5.1883 Petrópolis Hotel de Orleans Soirée offerecida pela Sra. Condessa de Barral 31.5.1883 Menu du Service Confeitaria Ouvidor 12.11.1886 Diner Palais de la Presidence São Paulo 1886-1889 Cardápios Baronesa de Loretto , Oktober 1886 Fazenda da Pauticea 21.2.1888 Casa Paschoal Menu 16.7.1888 Baile do 20° Anniversario Jockey Clube 2.10.1888 Menu de um Jantar Conde de Subae 27.12.1888 Hotel da Estação Barra do Pirahy Menu du Déjeuner 24.6.1889 Casa Paschoal Menu du déjeuner 26.9.1889 Confeitaria Cailtau Menu Déjeuner 9.11.1889 Menu da Festa oferecida pelo Presidente do Conselho de Ministros, Afonso Celso de Assis Figueredo Visconde de Ouro Preto, a Oficialidade do Encouraçado Chileno Almirante Cochrane 8.2 Literatura: Abdala, Mônica Chaves, A cozinha e a construção da imagem do mineiro, Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de pós-graduação em Sociologia, USP, São Paulo, 1994 Abrahao, Fernando Antonio(org.), Delicias das Sinhás, Historia e receitas culinárias da segunda metade do século XIX e inicio do século XX, Campinas, 2007 Abreu, Martha, O Império do Divino, Festas Religiosas E Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900, Rio de Janeiro, 1999 Adalberto, Príncipe da Prússia, Brasil: Amazonas Xingu, Belo Horizonte, 1977 Aderaldo, Mozart Soriano, Velhas Receitas da Cozinha Nordestina, Fortaleza, 1981 Agassiz, Luis, Agassiz, Elisabeth Cary, Viagem ao Brasil 1865-1866, Brasília, 2000 Aguiar, Pinto de, Mandioca- pão do Brasil, Rio de Janeiro, 1982 Aguiar, Pinto de, Abastecimento: Crises, Motins e Intervenção, Rio de Janeiro, 1985

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