Domingos Portugueses - Parque de Portugal, 8 de Julho de 2012
Título: Rostos, Olhares e Memória Autores: Manuel Carvalho Joaquina Pires Design Gráfico: Rita Gomes Editor: UTL-Universidade dos Tempos Livres (Missão Santa Cruz)) Edição patrocinada por: Caixa Portuguesa Desjardins
ISBN 978-2-9813189-4-7 Dépôt légal: Bibliothèque Nationale du Canada – 2012 Bibliothèque Nationale du Québec – 2012 Reservados todos os direitos de edição e tradução 2
Manuel Carvalho Joaquina Pires
Rostos, Olhares e Mem贸ria
Montreal - 2012
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Índice
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Prefácio
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Canto Matricial
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Natália Rebelo
17
João de Freitas Mendonça
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Cecília Piteira
31
António Lourenço
39
Maria Furtado
45
Joaquim Neto
53
Paulo da Silva
59
Fernando Pires
67
José de Barros
75
Joviano Vaz
83
Olga Loureiro
91
Victor Hugo Faria
99
Cristina da Silva
105
Isabel Medeiros de Melo
111
Casimiro Xabregas
119
Adelino Pragelas
127
David Dias
133
Fernando Machado
139
Manuel Rodrigues (Bito)
145
Os emigrantes desconhecidos
Aos vindouros «Conhecer o passado, para entender o presente e construir o futuro.» (Provérbio)
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
M
esmo conscientes de que este é um trabalho parcelar e uma reduzida amostra da história de milhares de pioneiros com um percurso heróico, nesta recolha de 17 entrevistas tentámos ser o mais abrangentes possível, de forma a contemplar um largo espectro geográfico e sociocultural da Comunidade Portuguesa da região de Montreal, onde todos, de algum modo, nos possamos reconhecer. No texto final, intitulado “Emigrantes desconhecidos”, prestamos tributo aos homens e às mulheres que, num humilde anonimato, ergueram, com mãos calejadas, o futuro das gerações vindouras. Incluímos também duas cartas imaginárias dirigidas a duas pessoas, falecidas recentemente, que foram um modelo de integridade, entrega e devoção desinteressada à Comunidade. Através do seu exemplo, queremos homenagear todos aqueles que já nos deixaram e que tiveram um papel fundamental na construção da Comunidade que hoje é a nossa.
Entrevistas realizadas segundo uma ideia original de Joaquina Pires e Manuel Carvalho. 6
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Prefácio Pe. José Maria Cardoso
A
qui, as vidas correm como rios. Imparáveis. A lavrar destinos no leito das vontades. A lembrar nascentes que não adivinhavam foz. A abraçar as margens que o coração manda. A deixar a vida como bênçãos dadas. A transpor impossíveis com a correnteza. Caudalosos, uns, e mais brandos outros; uns mais navegáveis, outros solitários. E sem nunca sabermos se o que os faz rios é o leito ou as águas, sabemos da vida deixada à margem, como prova de vida necessária, porque os rios, como as vidas, são passagens escritas nas páginas do livro do tempo. Aqui há rios felizes e sempre agradecidos quer pela escassez estival quer pelos caudais generosos de inverno. Aqui há rios incuravelmente feridos pela memória das pedras lançadas das margens. E, sabemos bem, que são mais difíceis de cicatrizar as feridas da memória do que as da carne. São assim os rios, são assim as vidas. Aqui há rios que lutaram contra represas; fizeram girar moinhos para o pão necessário e levaram a água a sonhos, como panaceia dos dias, na esperança de que o tempo seria um fruto a colher. Passaram todas as estações, como quem reza vias-sacras, para chegar à vida nova de todas as ressurreições na certeza de que nenhuma morte pode conter a vida. As vidas, como os rios, não correm por causa da nascente mas pela visão de um qualquer oceano. O trabalho que tendes nas mãos são retalhos de vidas que, como em qualquer retalho, se apresentam com todas as suas texturas e cores. Temos aqui uma viagem ao mundo da imigração onde as vontades vão unidas a um coração dividido entre a nascente e a foz. Vidas únicas e paradigmáticas de tantas outras que também correram, e correm, como 7
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
rios decididos na causa da vida. E, muito mais, quando esta causa é a causa dos outros. O Manuel Carvalho, com pena de mestre, oferece-nos almas na bandeja das palavras. Almas que foram pontes a desafiar oportunidades. Almas grandes que, prescindindo da segurança dos caminhos já traçados, sabiam que a grandeza do humano consiste, essencialmente, na liberdade do espírito que não se confina aos moldes do berço. Almas que, por saberem quem são, e o que querem, encontram as armas para a luta necessária de quererem e conquistarem, até, o que não sabem. Rostos, Olhares e Memória é a feliz combinação de uma ideia da Joaquina Pires que, como quem faz um bouquet, foi recolhendo vidas para dar ao Manuel Carvalho que as descreve como quem pinta retratos. Boa visita a esta galeria de rostos que nos é dada como flores na Primavera.
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Mãe Comunidade Canto Matricial
A
inda recordo, como se fosse hoje, aquele longínquo dia 13 de Maio de 1953 em que, meio atarantada pelo marulhar das ondas bravas contra o molhe do cais, desembarquei do barco Satúrnia, em Halifax, após viagem sem fim pelos mares profundos das minhas angústias e incertezas. Esmagada pela imensidão das terras e dos sonhos por desbravar mas também cheia de coragem e urgências, engoli os medos, arregacei as mangas e fazendo das tripas coração, atirei-me de peito aberto aos cornos da vida. Embrenhei-me pelas florestas enregeladas do Labrador, fecundei os trigais das grandes planícies do Oeste, colhi tomates e morangos nos campos do Sul, mourejei nas barragens do Norte, ergui os arranha-céus das grandes cidades, rasguei estradas e caminhos de ferro, desci ao bojo das minas, zelei pelas mansões dos ricos, tornei-me comerciante, restaurador, experimentei artes mil. E certa alvorada, olhando-me no espelho da memória, vi, com olhos de ver, estas mãos calejadas e os sulcos profundos que me rasgam o rosto e compreendi, com uma ponta de orgulho, confesso, que conquistara o direito inegável de também chamar meu a este país que, com tanto esforço, ajudara a construir e que espero deixar em herança à minha progenitura. Mas «o que eu andei para aqui chegar! », como cantou um poeta da minha afeição. Nas horas de tristeza, agasalhava-me no xaile negro da saudade e arrancava das entranhas um fado pungente. Nas horas de alegria, que também as tive, enchia o peito e bravejava em rijas e brejeiras desgarradas. Embriaguei-me de vinho, sonhos e solidão. Guardei e 9
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divulguei as minhas tradições, abri a alma a novos costumes. Bati-me pela minha língua, balbuciei línguas alheias. Chorei e ri, amaldiçoei e louvei como só os emigrantes e expatriados o sabem fazer. Entretanto, iam-me nascendo e crescendo filhos e netos, uma prole numerosa que se espalhou do Atlântico ao Pacífico na luta pelo pão-nosso-de-cada-dia. Alguns esqueceram a língua que sorveram com o primeiro leite, atraídos pelo canto de outras sereias e novos paraísos. Outros, pelo contrário, agarraram-se desamparados a mim, temerosos de abrir as asas e partir para novos horizontes. Mas a grande maioria, é esse o meu grande orgulho e a minha grande esperança de dias melhores e mais fecundos, soube escutar e preservar a voz telúrica que os habita e, de raízes fiéis à terra ancestral, têm estendido, lá no alto, pelos imensos céus deste novo mundo, vigorosa ramaria que começa, pouco a pouco, a recobrir-se de frondosa folhagem de belos e inesperados matizes. Quando se reúnem em alta algazarra, ao meu redor, a todos acolho maternalmente, sem distinções, no calor do meu regaço. Fico, silenciosa e enternecida, a escutar o desfiar do rosário das suas querelas e reconciliações, das suas grandezas e misérias, das suas arrogâncias e humildades, dos seus triunfos e fracassos, das suas alegrias e dores. Sentimentalona e amorosa da vida como sempre fui, as faces já gastas pelos anos ainda se me cobrem de rubor quando me tratam carinhosamente por mãe Comunidade. Cá do fundo do coração, o meu maior desejo – será pedir muito? – é que os ventos lhes corram de feição e que sejam todos muito felizes.
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Natália Rebelo
(1924 – 2012) 11
NATĂ LIA REBELO
Carta escrita a 19 de Maio de 2012, em Montreal. 12
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Estimada Natália, Como sabe, não tenho muito talento para a escrita, seria mais fácil dar-lhe um abraço e sussurrar-lhe ao ouvido que sempre tive e continuarei a ter uma grande admiração por si. Os filósofos diriam que a Natália foi, de certa maneira, uma fonte de inspiração e uma mãe espiritual para mim e para as minhas grandes amigas Ilda Januário e Lídia Ribeiro. Recorda-se, logo dois anos após a sua chegada a Montreal, em 1969, quando o jovem Terry Kaufman, recentemente licenciado da McGill, iniciou um desses grandes projetos inovadores na University Settlement, a que mais tarde portugueses, gregos, ingleses e franceses deram o nome de Centre Multi- Éthnique Saint-Louis? Todos sabemos que esse famoso Projet Changement veio a ser, alguns anos depois, o primeiro organismo em Montreal dedicado aos idosos e que hoje tem grande renome. Quando tinha os meus dezasseis anos e passeava entre a escola Emile-Nelligan e a sede do Movimento Democratico Português de Montreal, na rua Saint-Laurent, por cima da quincaillerie Açores, lembro-me de si a percorrer as ruas do bairro Saint-Louis com a sua lista telefónica. Batia a quase todas as portas para encontrar os velhinhos esquecidos e trancados nas suas casas. Na época os bombeiros não tinham mãos a medir, as casas ardiam como fogos de palha. Deve ter rompido muitas solas de sapatos e botas, imagino também o frio que a Natália rapou para conseguir abrir essas portas e ganhar a confiança destas gentes esquecidas, vindas de várias partes da Europa do Leste e mesmo do nosso Portugal. 13
NATÁLIA REBELO
Foi assim que a aventura da interculturalidade começou para si. Você construiu daquelas pontes que todos nós devíamos saber construir e atravessar, sem medo de cair porque o cimento é de alta qualidade e a cofragem bem feita. Em 1978, quando comecei a trabalhar no Centro Português de Referência, a Natália já era uma visionária, iniciou os seus ateliers de costura e criou a primeira horta no telhado do Centro Multi-Étnico. Sabe, amiga, hoje as hortas nos telhados estão muito na moda, são umas das diversas actividades do movimento da agricultura urbana. Anos mais tarde, passámos a ser vizinhas em pleno coração do bairro Mile-End, onde assistíamos quotidianamente às festas “esquisitas” dos judeus ortodoxos. Eles irritavam toda vizinhança porque poucos entendiam os seus rituais e o que se estava a passar. Quando se aposentou, logo integrou o organismo Au Rendez-vous des cultures que ajudou a fundar, juntamente com a Ruth Mendes e a Suzanne Gauthier. As três visitaram as escolas dos diferentes bairros desfavorecidos da cidade, traçaram laços entre várias gerações e levaram a leitura junto de milhares de jovens filhos de imigrantes. Estou convencida que abriram os corações e novos caminhos a muitos deles com a magia das palavras . Uns dias antes da Natália iniciar a longa viagem para outros horizontes, andava eu a arrumar os montões de papéis e livros que juntei ao longo dos anos, dei com a vista no livro de contos Sagesse du Soir. Coloquei-o cuidadosamente num cantinho da biblioteca, dizendo para o meus botões: Ainda hás-de chegar até outras mãos... Na semana seguinte, quando nos vimos pela última vez, rodeadas de familiares e amigos mais íntimos, uma vozinha segredou-me para levar o dito livro e o entregar à sua bisneta, filha do Rafael. Pisquei-lhe o olho e recomendei-lhe que quando se quisesse lembrar da vovô poderia ler a lenda das Sete Cidades. E, sem eu contar, a menina respondeu com prontidão: mais je la connais, mamie me l'a racontée, mais je n'ai pas le livre et je veux le garder...tu me le donnes? Como o sono já está a apertar, despeço-me com um abraço e pode crer que é um privilégio tê-la como amiga. Antes de ir para o vale dos lençóis, ainda lhe quero pedir um favor: não se esqueça de continuar a contar a todos os meninos que estão ao pé de si essa famosa lenda. Por estes 14
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lados ela já tem portador. Tenho a firme certeza que, daqui a alguns anos, todos os colegas da escola por onde a sua bisneta passar, conhecerão a Natália e as duas lagoas dos seus queridos Açores. Bem-haja Natália e onde quer que esteja, continue a pedir que os homens e as mulheres de todos os cantos do mundo sejam mais fraternos e mais solidários. Com carinho, Joaquina
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
João de Freitas Mendonça
O chão onde se semeia a música 17
JOÃO FREITAS MENDONÇA
Entrevista realizada a 26 de Fevereiro de 2012, em Laval. 18
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eza o roteiro turístico que “o Faial é uma freguesia do concelho de Santana, situada na encantadora Costa Norte da maravilhosa ilha da Madeira, a uma altitude de cerca de 219 metros. Tal como quase todas as freguesias da Madeira, também a do Faial fundou nos finais do século XIX (1895) a sua banda, então como Banda Filarmónica Recreio União Faialense”. Foi neste mundo idílico onde a música, rainha e senhora, serpenteava por montes e vales, a sarar as agruras da vida árdua, que, em 1909, nasceu uma criança a quem deram o nome de João. «Quando nasci já sabia música», recorda, hoje, passado mais de um século. «O meu pai era o regente da banda e os ensaios decorriam na casa que era do meu avô e mais tarde do meu pai.» A evocação de tempos tão distantes desperta uma risada fresca que sobe do fundo da alma, como ribeira a cantarolar. Os olhos iluminam-se, as mãos, já gastas, animam-se, renascem, moldam as palavras, notas à solta numa pauta musical. Estamos em Laval, a ilha gémea de Montreal, num bairro tranquilo, no bungalow do filho Mário, onde agora reside e saboreia a dádiva do conforto familiar. Lá fora, escorre, preguiçosa e soalheira, a tarde de inverno agasalhada por alvo manto de neve. Desvanecido o constrangimento inicial, já nada pode deter a enxurrada de recordações que jorra da boca do maestro João de Freitas Mendonça. São recordações de homem em paz com a vida, que sabe olhar o mundo com os olhos do coração e que aprendeu a saborear a riqueza interior que, grão a grão, acumulou pela vida fora. O corpo pode já estar alquebrado mas a lucidez é impressionante 19
JOÃO FREITAS MENDONÇA
para ancião de tão veneranda idade. «Quando aos dezoito anos fui para a tropa já levava a alma cheia de música. Já não podia viver sem a música. Sempre fez parte da minha vida.» Os dedos passeiam pelo cabelo encanecido, tamborilam no tampo da mesa árias antigas que povoam a mente e rejuvenescem o rosto. «Ainda hoje tenho aqui no ouvido uma nota musical chamada lamiré que me acompanha desde criança e que devia ter aprendido no ventre da minha mãe.» «Lalalamimiiiiiiréé...», trauteia. E a sonoridade inesperada da nota faz vibrar o ar, abre olhos de espanto, rasga sorrisos. Maestro João fica deliciado com a reacção produzida. A nota volta a soltar-se da garganta, com a sonoridade de ave canora que reencontrou a liberdade. «Lalalamiiirééé.» Mesmo se a música foi a companheira fiel da sua meninice, é na tropa, no decorrer da carreira militar, que tão cedo abraçou, que aperfeiçoa os seus excepcionais dotes de instrumentista. O cornetim, a trompete, o trombone, a trompa, deixaram de ter segredos para ele, ganharam vida nova, acariciados pela suas mãos nervosas e sedentas de descobrir novas e cristalinas fontes melódicas. Já casado, fez parte da Banda Militar da Madeira e em 1931 foi destacado para a ilha Terceira onde, mais uma vez, a música derrubou fronteiras e lhe franqueou as portas de inesperados mundos encantatórios. Sempre integrado no exército e ligado às bandas militares, passados dois anos regressou à Madeira até que em 1939 voltou para os Açores, desta vez para S. Miguel. Para além de integrar a Banda Militar dos Açores, com a qual percorreu as ilhas em inesquecíveis concertos, regeu, ao longo dos anos, várias filarmónicas que, com os seus garbosos fardamentos e os seus intrumentos relampejantes, espargiam, por onde actuavam, pródigos braçados de magia e alegria, por entre repicar de sinos e o estralejar do foguetório. «Cheguei a ensaiar quatro bandas ao mesmo tempo. Não me largavam, todos me queriam. Não parava, era como um sonho que nunca mais acabava. Também compus muita música nesse tempo. Um compositor pode saber muita música mas se não a sabe transmitir aos outros é como 20
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um mau jardineiro. Num jardim, é preciso saber escolher e plantar as flores. A música é igual. A pauta é o terreno onde plantamos a música. Não pode ficar tudo misturado. Os instrumentos não se podem cruzar, cada um tem de seguir a sua linha.» E, feliz, mais uma vez, o maestro João trauteia uma melodia arrancada do fundo da memória, enquanto a mão traça inspirados arabescos sobre a toalha da mesa. Em 1951, integrou a orquestra que abrilhantou a cerimónia de inauguração do Teatro Micaelense. Ainda por esse tempo, foi o responsável pelo arranjo musical do espectáculo A Nossa Terra: Revista Fantazia, que incluiu a marcha “Lénia Maria”, em homenagem à filha. Assim, ao sabor duma vida tão cumulada de graças e dádivas, depressa correram os anos, cresceram os filhos, chegava a hora de abrandar a correria e da merecida reforma. Mas, inesperadamente, contra todos os vaticínios, não se ficaram por aqui as suas errâncias. Aos 61 anos, reformado do posto de 1º sargento, o canto das sereias do Novo Mundo inquietaram-lhe a alma. Os encantos tão louvados da “décima ilha” atraíram-no, viu-se enredado na teia dos afectos. «Os filhos tinham emigrado para o Canadá. Deram-me as saudades e resolvi vir ter com eles.» Estas eram terras muito diferentes daquelas que até aí tinha pisado. Outra língua, outro clima, outros costumes, outra envolvência. «A adaptação foi fácil», confessa, afinal. «Tinha cá muitos conhecidos e amigos. Sentia-me em casa. Quando comecei a trabalhar no hotel Reine Elisabeth as pessoas achavam-me muito velho. Fui trabalhar à experiência para a máquina de lavar loiça mas passado pouco tempo viram a esperteza com que me desembaraçava e já confiavam em mim.» E, naturalmente, como mulher apaixonada, a música aconteceu de novo, desabrochou no seu caminho com o vigor de sempre. Em 1972, a Filarmónica Portuguesa de Montreal começava a dar os primeiros passos e encontrou nele o regente ideal para a guindar a píncaros nunca sonhados. Rapidamente, a fama do maestro João Mendonça espalhou-se pelas comunidades portuguesas do Canadá e Estados Unidos. Ao compasso das árias da Filarmónica, as festas e romarias 21
JOÃO FREITAS MENDONÇA
alcançaram outro colorido, as procissões do Senhor Santo Cristo e do Espírito Santo ganharam novo alento e fulgor. A mátria ficava mais perto, mais estreito o “rio Atlântico”. Os corações despertos após longa letargia, extasiavam-se, sacudiam o torpor, redescobriam a identidade quase esquecida nos baldões da luta pelo pão de cada dia. Com a naturalidade das obras sólidas e duradouras, o seu saber e experiência contribuíram decisivamente para a formação de uma nova geração de músicos e para a divulgação da música filarmónica portuguesa no Canadá, assegurando assim o futuro desta importante componente da nossa identidade cultural. Recorda com evidente agrado a composição dos hinos da Nossa Senhora do Monte e da Filarmónica, além da gravação dum disco com as mais populares execuções musicais da banda, que ainda hoje dão brado na Comunidade. Ao vê-lo à minha frente, com os seus esplêndidos 103 anos, a pergunta inevitável sobe à tona da conversa: - Se pudesse voltar atrás, tornaria a fazer a mesma vida? O maestro lança-me um olhar vivo e a resposta adivinhada solta-se, rápida. - Sempre, era esse o meu sonho. - Sempre com a música a acompanhá-lo? - A música é a minha alegria. - É um homem feliz? - Sou. Tenho tudo o que me faz falta. Fiz sempre o que gostava. Folheamos álbuns de fotografias, admiramos diplomas de mérito e retalhos de jornais emoldurados pelas paredes do seu quarto, reconfortantes evocações dum passado tão rico e denso. A cristalização duma vivência feérica. Paira à nossa volta a magia dos momentos únicos, agasalha-nos um manto de ternura, respira-se a paz do destino cumprido. «A minha vida foi isto», resume o maestro, estendendo os braços. Adivinha-se uma ponta de emoção na voz quebrada, na cabeça que se curva, reverente, agradecida à vida. «A música há-de ir comigo.» Já no aconchego do sofá da sala, a retemperar forças, a conversa solta-se, espraia-se, busca novos rumos. Apesar da idade avançada, o maestro João continua um homem curioso, atento ao mundo que o rodeia. Apoquenta-o um pouco a dissolução dos valores morais nos tempos que 22
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correm. Mas logo a esperança se sobrepõe. «Acredito que ainda há-de nascer um homem novo, diferente do que somos. Muito melhor. Vai levar muitos anos mas vai acontecer. O mundo será então completamente diferente do que é hoje. O mundo há-de ser de todos e todos hão-de ser para o mundo.» E ao contemplar a luz que lhe brota do coração e lhe incendeia o olhar, não temos outro remédio senão acreditar. Lá fora, o sol continua a faiscar sobre a neve, sorridente e solidário com as palavras do maestro João que, um pouco fatigado, de olhos cerrados, recosta a cabeça no sofá e, sonhador, assobia uma melodia. Era muito possível que o seu espírito, luminoso e puro, andasse agora, em voo sem pressas, lá para as bandas da ilha da Madeira, a planar entre o mar e os penhascos, a acender memórias da infância, nos últimos anos mais vivas do que nunca. Só falta acrescentar um pormenor revelador da sua inabalável alegria de viver. Quando o filho, amavelmente, nos ofereceu uma bebida de despedida, também o maestro João se quis juntar à confraternização bebendo, regaladamente, um generoso cálice de conhaque. Para os seus 103 anos, olhem que é obra! Vontade de continuar a saborear o pão da vida não lhe falta, salta aos olhos de qualquer um.
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
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Cecília Piteira
Uma mulher de antes quebrar do que torcer 25
CECร LIA PITEIRA
Entrevista realizada a 18 de Marรงo de 2012, em Montreal. 26
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
É
uma mulher de antes quebrar do que torcer, é a primeira impressão que nos atinge quando começamos a ouvi-la desfiar o rosário da sua vida atribulada. No Bairro Português, por onde passeia a sua figura inconfundível, todos conhecem a tia Cecília, como é carinhosamente tratada. Convesadora, alegre, convivial, por vezes mordaz e com um sentido crítico aguçado, também pode recolher-se no seu casulo e passar dias a fio sem que lhe ponham a vista em cima. «Sou capaz de passar dias seguidos sozinha na minha casa. Penso, leio, leio muito. Agora, já nem vejo televisão. Há momentos em que gosto de estar só.» Nasceu há 92 anos em Azeitão e passou os melhores anos da infância com os avós na Aldeia de Irmãos, no mesmo concelho. «Foi o meu avô que me escolheu o nome. Ele pertencia à filarmónica de Azeitão e era muito afeiçoado a Santa Cecília, a padroeira dos músicos.» Há recordações, quase todas coloridas, que se entrecruzam: matanças, serões, os encantos da vida rural, a comunhão entre homens e animais, a natureza engalanada. Foram tempos felizes. Sentada nos degraus de cantaria da porta, levava a vida a cantar. «As pessoas sabiam quando me deitava e quando me levantava.» As cantigas populares e brejeiras do seu encanto, andavam de boca em boca nas lides campestres e nas romarias, falavam dum viver sem pressas, do tempo em que ficava a porta só no trinco e não havia fechaduras. «Os meus avós eram as pessoas mais queridas do mundo. Eu era a menina mimada da família, faziam-me todas as vontades.» 27
CECÍLIA PITEIRA
A criança espevitada cresceu, fez a 4ª classe com distinção e, embora contrariada, foi viver com os pais, para Lisboa. Mas depressa esqueceu arrufos, na grande urbe deixou-se deslumbrar pelos animados bailes de bairro, o prazer da dança mordiscou-a na alma, enredou-a num turbilhão de novas descobertas e emoções. «Tinha o sangue nas guelras. Ainda hoje, a dança é a coisa de que eu mais gosto. Ainda agora sou capaz de dar uns pulinhos». Solta uma gargalhada feliz. «O rock and roll era a minha paixão. Ninguém o dançava como eu.» Um casamento precipitado e infeliz quebrou o encanto, arrancou-a aos prazeres da juventude, encheu-a de filhos dos quais só o mais velho sobreviveu. O trabalho, como costureira, na Casa Africana foi a evasão do pesadelo, a forma de manter o barco familiar a flutuar. No silêncio que a invade, adivinham-se feridas mal saradas, lê-se a curva prolongada e marcante duma época dolorosa. «Depois de nos separarmos, passei cinco anos sozinha até me casar outra vez.» Era o tempo em que Portugal enfrentava a guerra colonial e se esvaziava dos seus filhos mais corajosos que partiam para a Europa em busca do pão e da liberdade. «Eu e o meu segundo marido emigrámos para a França e pouco depois para a Bélgica. Gostei muito de viver na Bélgica. Era tudo muito limpo e as pessoas respeitosas. Foram 22 anos muito felizes, o meu marido era um santo. Quando inesperadamente enviuvei, fiquei sozinha na Belgica e o meu filho, que já vivia aqui em Montreal, mandou-me vir. Cheguei em 1985.» Por cá ainda foi empregada doméstica e cozinheira num restaurante português. Não era mulher para estar parada, a ver a vida passar. Reformada, durante vários anos foi voluntária na Associação Portuguesa do Canadá onde preparava as iguarias para jantares e festas. Ainda hoje, quando lá vai, fazem-lhe uma festa, tratam-na com carinho, ninguém a esqueceu. A viver no Foyer Santa Cruz, desde a sua fundação em 1988, sente-se uma mulher livre. «Sinto-me muito bem aqui. Sou uma mulher muito feliz, ninguém me pergunta onde vou, o que faço, não dou satisfações a ninguém.» 28
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Apesar da idade, de graves desencontros familiares e dos problemas de saúde que a têm apoquentado nos últimos tempos, não desiste de saborear os prazeres que a vida lhe oferece. Está sempre a martelar a palavra feliz, para que não restem dúvidas. «Às quartas-feiras, vou sempre almoçar lá a baixo, com os outros convivas da actividade “Vamos comer juntos”. Ainda gosto da paródia. Já tinha idade para ter juízo, mas não tenho. Danço, canto, apesar da minha idade, devo ser a pessoa mais divertida e animada. Quando há excursões, não perco uma, amanhã vamos à cabane à sucre. Aqui, no lar, dou-me bem com toda a gente. Não sou pessoa para me entregar aos desgostos. Sou alegre. Gosto de viver. Faço a vida à minha maneira. Mesmo quando estou doente, gosto de estar com os olhos abertos para não perder nada do que se passa à minha volta. Vou muitas vezes comer ali ao café da esquina. Fazem uma sopa grega de que eu gosto muito. Quando me apetece dar à língua, vou também à padaria portuguesa ou passeio aí pelo Bairro, encontro sempre alguém conhecido. Gosto muito das festas açorianas, do Santo Cristo, do Espírito Santo, também da Senhora do Monte dos madeirenses, gosto de ouvir a filarmónica a tocar no adro. Fazem-me lembrar a minha infância. A vida é assim.» Pousa a testa na mão, absorta, viaja, sem amargura, pelo passado, afasta sombras. «Já poucas saudades tenho de Portugal. Só quando vejo algum retrato antigo...também já não tenho lá ninguém. A última vez que lá fui foi há cinco anos mas não fiquei com boas recordações.» Conta, sem ressentimentos, com salpicos de humor, os precalços que lhe aconteceram mas muda rapidamente de assunto. Os olhos brilham-lhe, maliciosos, a mulher de armas, frontal, aguerrida, sarcástica, por vezes provocante, renasce. «Gostava muito de ouvir música. O meu cantor preferido era o tenor Tomás Alcaide. Tinha uma voz maravilhosa. Também gosto muito de fado. Da Amália, da Maria Armanda. Há por aí na comunidade muitos fadista que nem sabem o que é o fado. Todos sabem que eu tenho a língua afiada e às vezes não me calava. Deixei de aparecer para não parecer malcriada.» Um sorriso enigmático alisa-lhe as rugas do rosto. Vá-se lá saber o que 29
CECÍLIA PITEIRA
lhe está a passar pela cabeça. Por fim, solta mais uma gargalhada. A mão aberta talha o ar, como uma espada. «Gostava de ter sido advogada, para endireitar o mundo. Sou uma mulher muito recta.» Cala-se, mais uma vez. Há uma nuvem a deslizar no céu da conversa. Levanta-se para ir ao quarto buscar um papel amachucado, coberto com uns rabiscos. «Ontem deu-me para escrever umas coisas.» Olha-nos, pela primeira vez constrangida. «Nem sei se deva ler.» Encontra os óculos e finalmente decide-se, lê, hesitante, cautelosa, omite claramente certas passagens mais íntimas. «Hoje tive vontade de escrever. (...) Quero dizer o que sinto. (...) Não lamento a morte. Estou à espera com muita calma e sem medo. (...) Agradeço a Deus a vida que tive. (...) Fui muito feliz nesta vida. (...)». O papel fica esquecido na mão que agora treme ligeiramente. Há um silêncio um pouco incómodo. Mas logo se refaz, resoluta, pronta para enfrentar as ciladas da vida. «Há pessoas que não sabem viver. Também é preciso fazer-se pela vida. Cada vida é um mundo.» Vai outra vez ao quarto impecavelmente arrumado com arranjos de rapariga alegre. Convida-nos a segui-la. Brincalhona, apresenta-nos o seu companheiro das horas de solidão. «Às vezes quero-me deitar e ele não me deixa.» Um gato amarelado, bem tratado e felpudo, salta da cama, esconde-se num canto, contra a parede. A tia Cecília sorri, enternecida, reconciliada com os seus pensamentos. «O meu maior desejo seria entrar no paraíso com a música a tocar e eu a dançar.» E, mais uma vez, uma gargalhada sadia fá-la estremecer. Fugazmente desperta, a silhueta de uma jovem esbelta, envolta em véus opalinos, paira no ar, num rodopio intemporal pelos caminhos dum tempo sem amarras. Lá fora, no adro da igreja, o dia ensolarado de primavera reluzia com mais força, a afugentar, de vez, os restos do longo inverno.
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
António Lourenço
Era uma vez um menino que queria crescer depressa 31
ANTÓNIO LOURENÇO
Entrevista realizada a 3 de Abril de 2012, em Montreal. 32
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
À
beira de água Me criei um dia Remos e velas Lá deixei a arder Ao sol e ao vento Na areia da praia
É este esvoaçante trecho de uma conhecida canção do José Afonso que me vem pousar nas mãos ao contemplar os límpidos olhos azuis do meu entrevistado. É possível descobrir neles ventos e maresias, gritos de gaivotas e ruflar de velas, marulhar de ondas e cantares de marinheiros, apitos de fragatas e pragas de estivadores. Nascido à beira-Tejo, em Almada, em 1930, impressiona pelo vigor da postura e pela lucidez da mente clara. Grande conversador, homem de muitas vidas feito, é um regalo seguir o fio interminável das suas recordações coloridas. Primogénito de uma numerosa prole de nove irmãos, passou a infância feliz entre a casa dos pais e a dos avós, no Monte da Caparica, com o Tejo e o casario de Lisboa como pano de fundo. Aos doze anos, deu-se o corte abrupto do cordão umbilical. «Fui trabalhar para a quinta de uma senhora que também tinha uma pensão no Saldanha. Aprendi a fazer de tudo, ordenhar vacas e cabras, tratar dos animais. Mas cedo percebi que aquilo não era vida para mim. Isto não serve para mim, disse à senhora, a dona Glória. Então ela 33
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pôs-me como ajudante de cozinheiro, lá na pensão. Mas fiquei pouco tempo. Também não me servia.» A criança tinha pressa de crescer, de escancarar as portas do mundo dos homens. Voltou à escola. A sua habilidade para as artes mecânicas levaram-no a trabalhar como aprendiz numa traineira cuja maquinaria cedo deixou de ter segredos para ele. Apesar de ganhar um bom salário para um rapaz da sua idade, as suas ambições não se ficavam por ali. «A minha cédula marítima não dava para sair da barra, para ir ao mar, eu queria ganhar ainda mais dinheiro. O meu pai adoecera e eu tive de deitar a mão à família.» Faz uma pausa para beber um gole de água, aclarar a voz e as lembranças. «Os meus irmãos precisavam de mim, não podia abandoná-los.» Até que por fim, depois de muito pressionar a capitania marítima, conseguiu a alteração da cédula, começou a trabalhar nos barcos de arrasto, o mar largo abriu-lhe os braços. Depressa chegou a maquinista. «Pescávamos muito o biqueirão que é parecido com a sardinha mas mais fino, muito nutritivo, que era moído para fazer pasta de conserva para as tripulações dos aviões. Também fazíamos viagens de mais de um mês para pescar a pescada branca nas águas de Marrocos e da Mauritânia.» Guarda nas linhas do rosto o ar decidido do homem que enfrentou tempestades no mar e na terra. Narra peripécias, histórias de reparações quase milagrosas das máquinas dos navios por que transitou, o Ilha do Pico, o Arrábida, o Pólo Norte. «Ainda fui convidado para ir para as campanhas do bacalhau mas não aceitei. Eram seis meses de sacrifício, longe de tudo, fiz bem.» Quando casou, achou colocação nos transportes do Tejo, a vida corria mais calma, mais regrada. Nasceram os filhos, as responsabilidades aumentaram, o rio era um chão generoso e amigo donde arrancava o sustento da família. Foi por esse tempo que alastrou a agitação política, o assalto ao quartel de Beja, a invasão da Índia, o assalto ao navio Santa Maria, rebentou a guerra colonial, ruíam as portas das fronteiras, os estudantes revoltavam-se, Portugal era um barril de pólvora prestes a explodir. 34
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Cada dia que passava mais comprometido nas lutas sociais que alvoroçavam a classe marítima, compreendeu que sérios problemas poderiam surgir no seu caminho. Previdente, homem amadurecido, resolveu emigrar, buscar noutras terras uma vida mais livre. Corria o ano de 1961 e o Canadá acolheu o seu saber de braços abertos, depressa encontrou trabalho na reparação naval. Desse tempo ficaram recordações de viagens atribuladas à Gaspésie, de tempestades de neve, de reparações em quebra-gelos e navios de grande porte, das dificuldades da língua. A estabilidade surgiu com o emprego nas oficinas de manutenção da CN (Canadien National), a grande companhia ferroviária canadiana, em Montreal. Por lá ficou mais de trinta anos até se reformar. Nos anos sessenta a comunidade portuguesa de Montreal passava por uma fase de grande convulsão. Opositores e defensores da ditadura salazarista defrontavam-se no seio das associações e organismos comunitários que se faziam e desfaziam ao sabor das graves crises políticas que varriam Portugal e que por cá tinham os seus reflexos e deixavam marcas profundas. Remando contra o marasmo em que a comunidade se afundara, em 1965 foi um dos fundadores do Clube Portugal de Montreal. Era uma lufada de ar fresco por que muitos esperavam, cansados de tantas lutas estéreis. «Pouco tempo depois, o José Mendes, que fora dançarino no Santa Marta de Portuzelo, chegou-se ao pé de mim: ó Lourenço, disse, você é um gajo novo, dinâmico, era tão bonito formar aqui um grupo de crianças! Isso tudo é possível», respondi. «Olhe que quando me meto numa coisa é a sério.» Agita-se na cadeira, os olhos azuis ganham outra luz. Adivinha-se que entrámos em terras dos feitos cuja dimensão ultrapassa o próprio sonho. «Meti mãos à obra. Tinha um carro grande, servia de transporte público. Trazia as crianças empilhadas umas em cima das outras. O primeiro ensaiador foi o Mendes, mas pouco tempo depois teve de abandonar o Rancho e foi substituído pelo Dias.» Eram os primeiros passos duma caminhada apaixonada que durou mais de quarenta anos. Assim, com a simplicidade das grandes obras, nascia o Rancho Folclórico Português de Montreal que, após algumas 35
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divergências com os dirigentes do Clube Portugal de Montreal onde nascera, se tornou, passado pouco tempo, numa organização autónoma. «A apresentação foi para a Tap, num hotel perto de Dorval. Depois, nunca mais parámos, começámos a dar espectáculos por toda a parte. Na Arena Maurice Richard foi um grande sucesso. A Radio Canadá viu-nos, ficaram admirados, estávamos sempre lá caídos para gravações. O Rancho começou com fatos muito ordinários que não eram representativos. Para a minha maneira de ser, ou se fazia uma representação condigna ou então não se fazia. Fui a Portugal e mandei logo fazer oito trajes novos, no Minho, perto de Caminha.» Nunca mais pararam, uma trajectória fulgurante. De permeio, ficou um filme para a Radio Québec, as inesquecíveis exibições na Place des Nations durante a Expo de 67. «Chegámos a fazer 75 espectáculos por ano. O Grupo chegou a ter cento e tal elementos. Tivemos jovens de várias etnias. Até um rapaz egípcio que tocava acordeão que era uma maravilha.» O guarda-roupas enriqueceu-se com novos e cada vez mais ricos trajes. O rigor etnológico e etnográfico fez-se padrão, longe ia o tempo da improvisação. «Até as meias mandava vir de Portugal.» As digressões sucederam-se. Algumas delas aos Estados Unidos. Assim correram os anos, quase meio século sem parança. Sempre com o senhor Lourenço ao leme, timoneiro vigilante e infatigável. Naturalmente, com o correr dos anos e a expansão da Comunidade, apareceram novos grupos folclóricos que disputaram as luzes da ribalta. Surgiu um certo declínio, algum cansaço, a deserção de algumas pedras angulares. Chegados a esta encruzilhada, o dilema era de peso. A pergunta inevitável bateu à porta: se o rancho acabasse, qual seria o destino de todos aqueles trajes e outros adereços de valor inestimável? Pelas nuvens que ainda agora lhe toldam a fronte, podemos calcular as noites em claro, as congeminações sem fim. «O Rancho, para mim, era património da Comunidade, não podia acabar.» Era uma resolução peremptória. Depois de muita hesitação, a solução mais razoável, a certeza da continuidade, foi integrar o Rancho na Missão Santa Cruz. 36
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A cerimónia da transmissão do Rancho efectuou-se, discretamente, no dia 8 de Fevereiro de 2009, no salão nobre da Missão. Um dia de alívio mas também de muita tristeza. Era o cair do pano sobre uma bela história de amor. «É uma chama que têm nas mãos”, conclui, comovido, num fio de voz. Na hora de acertar contas, depois de tantos anos de entrega incondicional, de tanta luta, de tantas vitórias, mas também de tanta incompreensão, é um homem um pouco amargo com a falta de reconhecimento, mas também orgulhoso do caminho percorrido e da obra feita. «Sinto-me feliz com o que fiz. As crianças eram muito importantes para mim. Sempre tive o dom de as cativar.» Palavras em que não é muito difícil de acreditar, a avaliar pelo jorro de luz que se demarra pelo azul daqueles olhos que um dia ousaram desafiar o mar.
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Maria Furtado
A dama dos sete ofícios 39
MARIA FURTADO
Entrevista realizada a 13 de Abril de 2012, em Montreal. 40
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J
« á fui operária, empregada de limpeza, caixeira, vendedora, angariadora de seguros e de publicidade, empresária, já fiz de tudo.» Quem assim fala, com esta desenvoltura que as andanças pela vida lhe deram, é Maria Furtado, que toda a gente na Comunidade conhece pela mãe do “Livro do Galo”, essa “bíblia” onde está inscrito todo o nosso percurso social e histórico, o presente, o passado e possivelmente o próprio futuro. Pois basta folhear o Livro do Galo para dar a volta completa à Comunidade Portuguesa de Montreal, constata-se à primeira consulta. Mas já lá vamos. Começando pelo princípio: Maria Furtado nasceu na povoação de Rosto de Cão, em S. Miguel. «A minha avó tinha um prédio nesse lugar, por trás do coreto, foi lá que eu nasci, acidentalmente. O meu pai, um bonito homem, por sinal também de S. Miguel, era funcionário das finanças e foi deslocado para a Graciosa quando eu tinha três anos.» Desta ilha guarda recordações de liberdade e folguedos sem fim pelos caminhos da infância. «Eu era uma maria-rapaz, andava cheia de cicatrizes nos joelhos, trepava muros de pedras, não parava. Quando lá voltei, passados muitos anos, ainda toda a gente se recordava de mim.» Aos doze anos, em 1940, quando a Grande Guerra devorava o mundo, nova deslocação do pai. Para o continente, para Alvaiázere, ao tempo um lugar bucólico entre vinhedos e olivais. Já então a pequena Maria andava de candeias às avessas com os 41
MARIA FURTADO
estudos que cedo abandonou, muito mais propensa para os namoricos. Foi num desses namoricos de praia, em S. Pedro de Moel, que conheceu o futuro marido, um rapaz da Nazaré muito mais velho do que ela. «Trocámos fotografias, carta para diante, carta para trás, acabámos por casar, tinha eu dezasseis anos.» Num relâmpago, viu-se com com três filhos nos braços, prestes a embarcar para Luanda, para onde o marido já seguira. A atmosfera colonial não a seduziu por aí além. «Não foi uma estadia muito boa para mim. Nunca sonho com África. Naquele tempo, era uma vida muito fictícia. O chá das cinco, a canastra. Não sou pessoa para essas coisas.» Regressou à metrópole, à Marinha Grande, onde o pai montara uma fábrica de moldes para a indústria vidreira. O marido ainda tentou demovê-la da sua decisão mas foi em vão, já não havia diligências que a demovessem. «Para o divórcio, entrámos de braço dado. Ficámos amigos. Depois, tanto em Portugal como aqui, quando lhe era possível, vinha sempre ver os filhos.» Quando chegava ao café, às esplanadas, todas as cabeças se voltavam. A sociedade provinciana não estava preparada para tanta ousadia. «Divorciada, de calças, a fumar, todos ficavam de boca aberta, era um escândalo. Sempre fui uma mulher moderna. Agora já não sou. A gente leva a vida inteira a tentar aperfeiçoar-se e, de repente, vira-se tudo às avessas. O que era branco agora é preto. Não dá para compreender.» Os olhos negros, vivos, interrogam, meio irónicos: «Vocês compreendem?» Com novo casamento, foi viver para Pinheiro de Loures. E nasce mais um filho. A vinda para o Canadá deu-se em 1966. Por cá, o seu primeiro emprego foi num hotel, como criada de limpeza. «Toma, Maria, em Portugal tiveste criada e agora aqui és tu a criada.» Ri, saboreia as palavras. Não há qualquer ressentimento à vista. «Eu sou como os camaleões, adapto-me a tudo. Depois fui para uma fábrica de casacos.» Os dois filhos, que tinham ficado em Portugal, depressa se reúnem à família. A vida parecia entrar nos carris mas tudo não passava de mais uma ilusão. Sorrateiras, vinham a caminho novas contrariedades. Divorciou-se, adoeceu gravemente, a convalescença é longa. 42
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Recuperada, atirou-se à vida com unhas e dentes. «Eu já fiz tanta coisa! Sempre fui uma pessoa corajosa.» Levanta-se para ir buscar a resma de cartões profissionais que atestam a sua luta. «Depois, descobri que era uma boa vendedora, toda a gente me chamava para me oferecer trabalho. Abri um escritório na rua Duluth mas cheguei à conclusão que não valia a pena e fechei a porta. Passei a trabalhar em casa. Devo ter sido a primeira trabalhadora autónoma portuguesa de Montreal. Quando caí na comunidade portuguesa conservadora da época, pouca gente me conhecia. Divorciada, a trabalhar em seguros, era uma revolução. Os homens arregalavam os olhos: “olha que presa boa”, pensavam logo. Essa marcou-me, mas tudo passou.» Volta a folhear os cartões profissionais espalhados sobre a mesa como um baralho de cartas onde está traçada a rota sinuosa da sua vida. É um percurso assombroso, de mulher aguerrida. Por vezes emaranha-se nas datas, graceja. «Já estou a confundir o filme principal com os desenhos animados. Já lá vão quarenta e tal anos.» Chega o momento de voltar a falar do cada vez mais prestimoso Livro do Galo, o seu grande amor. «O Livro do Galo nasceu em 1972. Era para ser uma simples folha publicitária da comunidade portuguesa mas cresceu rapidamente. No princípio, o professor José Barros ajudou-me muito com os seus conselhos, é o padrinho do Galo.» Guia-nos até ao canto do salão para admirar o quadro comemorativo dos 20 anos do Galo que tem exposto em lugar de destaque. No 40º aniversário que recentemente realizou na Associação Portuguesa do Canadá, reuniu anunciantes, amigos e a família numa festa singela mas significativa. As fotografias do acontecimento não devem tardar a enfeitar mais algum dos poucos recantos livres. «A mudança foi enorme desde o 1º número. O livro nunca parou de engrossar. Nos sectores da construção, do imobiliário e da restauração é onde há agora mais anunciantes. Também já começa a haver muita gente nova nas profissões liberais, advogados, contabilistas, notários, etc.» 43
MARIA FURTADO
Contradizendo as palavras, há laivos de ternura na voz quando afirma: «Isto dá muito trabalho. Já estou a ficar cansada, sou uma escrava deste livro.» Mas logo quer desfazer dúvidas, endireita-se na cadeira. «Mas ainda não estou velha. Tenho sempre a cabeça ocupada. Os meus filhos dizem que quando não tenho nada que fazer, invento. Ainda vou ao meu bungalow, junto dum lago selvagem, nos Cantões do Leste. Carrego o carro, descarrego o carro, limpo tudo, não paro.» É fácil imaginá-la a passear pelas margens plácidas do lago, contemplativa, em osmose com a natureza circundante, a retemperar forças para continuar a luta de sempre. Demora o olhar pelo apartamento repleto do passado. Fotografias, estampas, pinturas, objectos díspares, não há um palmo de parede ou recanto vazios. «O objecto de que eu mais gosto é aquele ali. É uma herança da minha avó e acompanha-me por toda a parte.» Admiramos o pequeno armário, uma espécie de guarda-jóias de madeira preciosa, finamente talhada, com incrustações em madrepérola. « É muito antigo, do tempo das índias.» Está ali toda uma vida exposta aos nossos olhos. Um mar profundo de emoções e afectos cristalizados pelo correr dos anos. «Passei por muita coisa, não me posso queixar. Há os filhos, os netos, já tenho dois bisnetos. É uma família com muita mistura de raças, mas damo-nos todos bem.» Na cabeça ainda lhe fervem muitos projectos. «Para já vou a Lisboa e passarei também quinze dias nos Açores. Gosto de viajar. Viajei um bom bocado, corri a Europa. Sozinha. Que ainda é a melhor maneira de viajar. Ir com outra pessoa que não tem os mesmos gostos é um aborrecimento.» Quando nos despedimos, os seus olhos negros estão mais luminosos do que nunca. Espevitada como a rapariguinha que, em tempos distantes, sorria para a vida que lhe acenava promessas sem fim. Há uma voz que me segreda ao ouvido que ainda não será desta que a dama dos sete ofícios irá entregar o seu Livro do Galo em mãos alheias. A verdade é que os grandes amores custam a morrer. 44
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Joaquim Neto
Um lutador que gostava de tocar saxofone 45
JOAQUIM NETO
Entrevista realizada a 14 de Abril de 2012, em Montreal. 46
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omo tantas vezes acontece na vida, foi a adversidade que forjou o homem de rija têmpera que temos à nossa frente e que desde criança teve de batalhar, com unhas e dentes, para conquistar um lugar ao sol. Nasceu na aldeia de Ribeira de Cima, Porto de Mós, em plena serra, no ano de 1934, marcado por doloroso estigma. A comoção salta-lhe aos olhos quando confessa: «O meu pai, não sei como hei-de classificá-lo, nunca foi meu pai. A minha mãe, coitada, teve de ir servir na casa de uns senhores doutores de Porto de Mós.» Por força das circunstâncias, criado na casa do avô, no meio de muitos familiares, teve, apesar de tudo, uma infância tranquila. A infância duma criança da aldeia, por entre jogos de pião e de berlinde, escondidas, fisgas e ninhos. Quando concluiu a 4ª classe, esperava-o o fatídico trabalho na lavoura, na propriedade da família. Mas a vontade de quebrar grilhões cedo o inquietou. «Um dia achei que a enxada fazia doer as mãos, fui ter com um serralheiro que tinha uma oficina em Porto de Mós e convenci-o a aceitar-me lá como aprendiz.» Depois deste primeiro passo de abertura ao mundo, os anos passados na tropa, acabaram de formar a vontade férrea do rapaz. A mentalidade redutora da aldeia asfixiava-o, sôfrego de novos horizontes. Terminado o serviço militar, rumou para Lisboa; a C. Santos, um conhecido concessionário de automóveis de luxo, abriu-lhe as portas. Data também desse tempo a sua aproximação à Juventude Operária Católica, onde conheceu a futura esposa. 47
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Certo dia, Arantes e Oliveira, ministro das Obras Públicas, um inesperado cliente com quem se relacionara, fez-lhe uma proposta aliciante: “Não quer emigrar para o Canadá?” Com padrinho de tanta influência, todas as portas se lhe abriram por magia e passados escassos meses já tinha toda a documentação nas mãos. «E foi assim, eu vinha completamente para o escuro. Tinha uns rapazes que eram da minha terra mas quando cheguei não estavam cá, andavam para o norte, na construção do caminho de ferro. Fui para a apanha do tabaco, no Ontário. Não havia mais nada, tinha de fazer qualquer coisa.» Ao fim de uma semana, compreendeu que não resistiria por muito mais tempo ao castigo daquela faina árdua. Resoluto, com dez dólares no bolso, abandonou a quinta. «Andei horas a pé, pelo meio da noite, perdido.» Narra uma história rocambolesca, nada abonatória para um grupo de portugueses que se aproveitaram da sua fraqueza. Mais morto do que vivo, acabou, finalmente, por chegar a Toronto, a casa de gente amiga. «Em Toronto, arranjei trabalho com um alemão electricista e amante da cerveja. Mal nos compreendíamos mas nunca tive um patrão como aquele na minha vida. Quando ele empinava uns copos a mais era eu que conduzia a carrinha, tive pena de o deixar.» Depois de breve estadia em Ottawa, regressou a Montreal onde frequentou a Escola de Mecânica e tirou um curso de transmissões automáticas e de soldadura. «Era uma batalha de todos os dias.» Encontrou emprego mais estável numa garagem de dois irmãos judeus de grande coração que o acolheram de braços abertos. «Quando lhes anunciei, no meu francês atravessado, que a minha mulher, com quem casara por procuração, estava para chegar, deram-me três dias de folga e pagaram-me uma semana inteira. É o nosso presente de casamento, disseram.» Mais tarde, já mais integrado e fluente nas línguas, foi ensinar mecânica para o Instituto Aviron e pouco depois para a Comissão Escolar Jerôme Le Royer. Era o coroar de uma longa e penosa escalada profissional. 48
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Com o nascimento da filha as responsabilidades redobraram. Em colaboração com a mulher, abriu na St-Laurent um bazar que vendia de tudo, sobretudo bugigangas importadas de Portugal. Mais tarde, o bazar transformou-se na “Tagus” uma agência de viagens, quando se apercebeu que os portugueses, depois da árdua luta dos primeiros tempos, começavam a sonhar com as merecidas férias em Portugal e a encher, no verão, os aviões da saudade. Subitamente, nos meandros da conversa, salta uma revelação inesperada. A imagem de homem austero e frio, que transparecia até ali, dissolve-se, transfigura a corrente da conversa. «Pouco tempo depois de cá estar, eu e uns amigos passámos diante de uma loja de instrumentos musicais quando vi um saxofone exposto. Comprei-o com dinheiro que eles me emprestaram. Esse saxofone hoje é da minha neta.» E ainda para nosso maior espanto: « Já tocava clarinete e saxofone soprano na banda de Porto de Mós, desde os meus onze ou doze anos. Aqui cheguei a tocar nos bailaricos com a malta, numa ou outra festa.» Sorri, deliciado com a impressão causada. A conversa flui agora por outros caminhos. Ficamos a saber que cedo se implicou na vida da Comunidade portuguesa. Há uma história logo dos primeiros tempos que ainda hoje lhe traz lágrimas aos olhos. «Um dia a Acção Católica organizou uma excursão ao santuário de Saint Anne de Beaupré e quando começámos a desfilar eu levava a bandeira portuguesa. De repente, vejo um velhote acompanhado por uma senhora mais ou menos da mesma idade que à minha passagem se inclinou para agarrar a bandeira e beijá-la com fervor. Quando voltei atrás, a senhora contou-me que eram refugiados políticos que viviam do outro lado da fronteira, nos Estados Unidos, e que sentiam muitas saudades de Portugal que já tinham abandonado há muito tempo. Ainda hoje me comovo.» A confirmar as palavras, a comoção embarga-lhe a voz. Faz uma pausa a dar tempo para que a intensidade da cena se desvaneça. Quando, logo de seguida, começa a falar da Associação Portuguesa do Canadá, a voz sai-lhe num murmúrio, apercebemo-nos que está a entrar em chão sagrado que é preciso pisar com reverência, e não é para menos, ou não seja a APC a mais antiga associação portuguesa do Canadá. 49
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«Estive lá quase desde o princípio, sou do tempo do Roldão de Andrade, um homem que se dedicou de alma e coração. Ia para lá com o meu saxofone para animar as festas. As horas de trabalho que tanta gente deu para que aquilo nascesse! A APC, o Clube Portugal de Montreal, todas as colectividades que depois nasceram, aquilo foi uma grande epopeia. Assim é que se faz uma raça. Foram homens que acreditaram. Quando daqui sair, vou lá pagar as minhas quotas, é um dever de que nunca me esqueço de cumprir.» Ajeita os óculos no nariz, respira fundo, a voz engrossa convicta das suas verdades. «E a Caixa Portuguesa Desjardins? É uma instituição de que nos podemos todos sentir orgulhosos. Quantas centenas, para não dizer milhares de portugueses compraram a casa com o dinheiro que a Caixa emprestou? Houve homens generosos, de coragem, que souberam bater na boa porta para que aquela grande obra fosse avante. Não fui do primeiro grupo mas estive lá quase desde o princípio, quando a Caixa ainda estava instalada na avenida Des Pins. Só deixei de pertencer ao conselho de administração no último mandato.» Na hora de deitar contas ao caminho percorrido, sobressai uma certa desilusão. «Quando falo disto, custa-me. Sinto um pouco de mágoa, por não termos feito mais coisas, devido, em parte, às incompreensões. Há uma falta de participação. As instituições não desaparecem, são nossas, continuam aí de pé. O que está a desaparecer é a vontade de fazer. Há mais falantes do que fazedores. Gostaria que os portugueses se unissem mais.» Palavra puxa palavra, acabámos por abordar o afastamento das gerações mais novas das lides comunitárias. Não tem ilusões, é peremptório: «Penso que a culpa não é deles. Já não são portugueses. Nasceram numa outra época. Há uma invasão da língua inglesa. Veja em Portugal, na televisão, só se ouve inglês. Por cá, quantos miúdos vêem por aí a falar português?» A conversa resvala por outros temas, inevitavelmente para as saudades do regaço da terra-mãe. «Ia frequentemente a Portugal, temos um apartamento em Leiria. Ia até à praia, gostava de passear pelo pinhal, para repousar o espírito, gosto muito duma pequena mata que há à beira de S. Pedro de Moel.» 50
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Agora com o passar dos anos, com as doenças que surgem, a esperança do regresso definitivo, durante tantos anos alimentada, está cada vez mais afastada. A renúncia involuntária tem muitas faces e explicações, subtis sublimações. « ...Não posso deixar a neta, a filha. É assim, vamos vivendo conforme é possível.» Os dedos das mãos entrelaçam-se, nervosos. Mas logo a cabeça se levanta, a fronte altiva. O rapaz que partiu da Ribeira de Cima, à conquista do mundo, está mais velho, um pouco desiludido, mas ainda continua com forças para enfrentar os desafios da vida.
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Paulo da Silva
A voz dos sem voz 53
PAULO DA SILVA
Entrevista realizada a 20 de Abril de 2012, em Montreal. 54
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oz de tenor, verve fácil, teria dado um grande advogado se tivesse seguido a sua vocação. Um advogado dos pobres, compreenda-se. Entrevistá-lo é a tarefa mais fácil deste mundo, basta saber escutar e regalar-nos. «O meu nome é Paulo da Silva. Sou natural dos Açores, S. Miguel e vim para o Canadá em Abril de 1969, portanto há 43 anos. Vivi os primeiros anos da minha vida em Ponta Delgada. A minha mãe era modista e o meu pai era operário mas as dificuldades durante e depois da guerra eram enormes. Comecei a trabalhar na vida comercial e estudava à noite. Quando completei o curso comercial já era casado e tinha uma filha de quatro anos. As dificuldades sempre foram grandes, já tinha três filhos e, como disse, resolvemos emigrar para o Canadá. Em Ponta Delgada tivera a oportunidade de trabalhar durante alguns anos na assistência social junto de pessoas carenciadas e à chegada cá, naturalmente, integrei-me na secção portuguesa da Conferência São Vicente de Paulo da qual rapidamente me tornei presidente. Aproveitei este ponto de partida para continuar a viver aquele que era realmente o meu ideal de vida de ajuda ao próximo e aos mais desprotegidos. Como nessa altura estavam a chegar em grande número os “imigrantes de má fé´” que eram aqueles que vinham como turistas para depois ficar por cá, constatei que havia uma grande necessidade de agir, mas agir com firmeza porque andava por aí muita gente a explorar os recém-chegados. Fui muito apoiado pelos benévolos da Conferência e ao mesmo tempo 55
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entrei em contacto com os organismos governamentais por intermédio da irmã Denise Lainé que foi uma santa para os portugueses. Não tiveram muita dificuldade em reconhecer as razões que me motivavam e num curto espaço de tempo já dispunha dos meios para ajudar todas as pessoas que tivessem o desejo de se legalizar. Perante estes factos, fizemos uma grande campanha de informação e sensibilização. Organizámos várias reuniões com os organismos da Comunidade, na Missão Santa Cruz, para expor a situação. Tivemos então a alegria de verificar que a adesão foi enorme.» Chegado a este ponto, as palavras embaralham-se, não consegue reprimir as lágrimas que lhe saltam aos olhos. É um momento de grande emotividade. Bebe um golo de água, ajeita os óculos no nariz e já recomposto, prossegue sem hesitações: «Na última reunião, a sala estava cheia e eu disse tudo o que tinha a dizer, com todas as letras. Foi-me pedido para redigir uma “declaração de princípios” para continuar os trabalhos. Dessa reunião resultou a constituição de um grupo que começou a trabalhar rapidamente no projecto do novo organismo.» Assim, em grande parte pela vontade férrea deste homem, nascia o Centro Português de Referência e Promoção Social que, como o nome sugere, logo desde a sua fundação teve como principal objectivo minorar as carências socioculturais da comunidade e apoiar os recém-chegados a legalizar a sua situação. Mais tarde, o Centro tornou-se uma referência incontornável da Comunidade e continuou a desenvolver uma acção, cada mais alargada, de reconhecido mérito. Entretanto, não se podia esquecer de que tinha uma família para sustentar e depois de vários trabalhos esporádicos, na venda de materiais de construção, entre outros, e duma passagem pelo C.O.F.I. (Centre d'orientation et de Formation pour Immigrants), para aperfeiçoar o francês, estabeleceu-se por conta própria, a vender panelas de porta em porta. Sorri, divertido, ao relembrar que, sem veículo para transportar a mercadoria, era carregado com duas enormes caixas que percorria as ruas, de porta em porta, à procura de clientes. Mais tarde, mais estabilizado, abriu no bairro português a “Draperie 56
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Voga”, uma loja de venda de tecidos e cortinados que lhe proporcionou algum desafogo e que só recentemente encerrou. Mas a sua alma larga e generosa não lhe dava tréguas. A situação de isolamento das pessoas idosas começava a inquietá-lo. «A Comunidade envelheceu e a situação de muitos idosos é catastrófica. Vivem nos lares ou em casa em condições muito difíceis, por vezes abandonados pelos familiares mais próximos. A minha intenção era começar por fazer um levantamento da situação e depois avançar com as medidas adequadas para tentar resolver o problema. Contactei praticamente todos os organismos existentes na Comunidade. Finalmente, na última reunião que organizei, reuni cerca de dez pessoas que julguei interessadas em colaborar comigo. Fiquei muito desiludido porque a vontade não era muito grande. Daí para cá, não ouve mais conversas.» Foi um sonho que morreu cedo e que lhe deixou um travo amargo e muitos ressentimentos contra algumas pessoas em cuja boa vontade acreditara. «Hoje, há muita gente que quer é comer, beber e bailar. Além daqueles que só buscam a promoção pessoal.» É fácil adivinhar que o fracasso ainda o faz sofrer. Mas não abandonou o sonho. Não obstante os problemas de visão que o apoquentam, na companhia da esposa, tanto quanto lhe é possível, ainda hoje visita doentes e idosos, levando-lhes as palavras de carinho e de conforto de que tanto estão minguados. Esta entrega humilde e incondicional, tão de acordo com os seus ideais humanitários que bebeu com o primeiro leite, é a tábua de salvação a que se agarra, agora que o atormenta «a grande crise de valores» que sente alastrar à sua volta, sobretudo nas gerações mais novas, e para a qual já encontra poucas respostas que o tranquilizem. Saltando de assunto, com uma flexibilidade acrobática, fala com ironia das elites dos profissionais e empresários da comunidade que se se agruparam num organismo que desapareceu mais depressa do que apareceu e que, apesar da pompa que envolveu a sua criação, não deu quaisquer frutos visíveis. Chicoteia, sem contemplações, a falta de unidade das associações portuguesas «onde não há galo que queira ver outro no seu poleiro». 57
PAULO DA SILVA
Nomeia pessoas, fornece detalhes, denuncia situações, enfim, um Paulo da Silva no seu melhor, como a Comunidade sempre o conheceu, frontal, directo, demolidor, cáustico, que está ali para lavar e durar, como diz o bom povo português.
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Fernando Pires
Pastor de rebanhos e de sonhos 59
FERNANDO PIRES
Entrevista realizada a 22 de Abril de 2012, em Montreal. 60
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uando o começamos a ouvir falar, apetece contar a sua vida como nos livros de histórias: era uma vez um rapazito que guardava cabras nas margens do rio Lima... O melhor é arranjar um canto tranquilo onde nos sentarmos e ouvi-lo, de boca aberta: «Nasci no Soajo, em 1941. Soajo era uma aldeia da Idade Média até que nos anos 50 foi electrificada e foi construída uma ponte no rio Lima que a ligou ao mundo. Eu, o mais velho de nove irmãos, andava com as cabras pelas margens do rio Lima. Chorava sem tempo para ir à escola e a minha avó dizia-me: vai, meu filho que eu vou com as cabras. Foi um período difícil para mim. O meu pai, que só queria terras e cabras, sempre foi um pai ausente. Era fiscal da panificação em Setúbal e aos catorze anos para lá fui também como aprendiz de padeiro. Mas não era aquilo de que eu gostava. Mais tarde, mudei-me para perto de S. Pedro do Estoril onde acabei por ser vendedor de pão. Andava com um cabaz na bicicleta a fazer a distribuição e até gostava daquilo. Foi aí que juntei algum dinheiro que depois emprestei a um soajeiro para ir para França. Ele prometeu-me que iria falar de mim ao passador e mais tarde a minha mãe escreveu-me a dizer que já estava tudo arranjado para eu dar o “salto”.» Para um garoto de verdes dezassete anos a aventura da travessia da Espanha e dos Pirenéus foi penosa mas lá acabou por chegar à Alsácia onde o esperava o amigo que trabalhava nos caminhos de ferro. Ficou a viver no desconforto dum vagão abandonado, numa balbúrdia, sem rei nem roque, entre portugueses e argelinos. Valeu-lhe, nos primeiros tempos, o apoio de um padre francês, que já estivera em 61
FERNANDO PIRES
Portugal, e que se condoera da triste situação dos imigrantes portugueses que começavam a chegar a França. Depois de muitas peripécias e muitos baldões, trabalhou nos mais diversos lugares, desde a Alsácia a Marselha, de Paris à Bretanha, experimentando as mais diversas artes nos vastos estaleiros de construção que então se erguiam, como cogumelos, pelo país fora, sempre com aquele desenrascanço tão característico dos portugueses em terra alheia, logo capazes de tocar todos os instrumentos em pouco tempo. A França precisava então de mão de obra como do pão para a boca e fechava os olhos às exigências profissionais. «Um dia, estava em Saint Malô, a comer num restaurante, e vi num anúncio que precisavam de trabalhadores para o Canadá. Fui à embaixada e inscrevi-me como pedreiro.» Conta todas estas aventuras, com um desprendimento e até uma ironia impressionantes, como se tudo se tivesse passado com qualquer personagem arrancada dum livro de ficção cuja leitura lhe desse grande prazer. Só vislumbramos uma ponta de comoção quando menciona o encontro com um médico português, em Setúbal, onde regressara, para as últimas despedidas, pouco tempo antes da viagem para o Canadá, em 1964. «Quando falo nisso fico tão chocado. O médico vira-se para mim e disse: ó homem, vá-se embora deste país para fora e não volte mais. Emociona-me a maneira desesperada como falou. Eu estava muito sensível porque me tinham roubado tudo à chegada a Portugal, o dinheiro, o passaporte, fiquei sem nada. E tinha de regressar a França dentro de pouco tempo. Quando cheguei ao Soajo, a minha mãe viu-me tão desesperado que falou lá com as velhas vizinhas e decidiu ir à bruxa, a Braga, interceder por mim. Eu fui ao posto da polícia participar o caso e o chefe em vez de mostrar vontade de solucionar a situação, fez-me um interrogatório cerrado de mais de duas horas, como se eu fosse o mais perigoso subversivo. Mas o despertar da minha consciência política só começou aqui, em Montreal, em 1965, quando me inscrevi no Movimento Democrático Português de Montreal. Tinha cá um amigo soajeiro que também já tinha vivido em França e ele estava muito politizado. Fora professor primário em Portugal e tinha 62
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uma consciência política muito desenvolvida. Foi através dele que me comecei a envolver. A minha primeira participação foi em duas manifestações contra a guerra colonial em frente do consulado português. Depois veio a guerra do Vietnam, a luta pela independência do Quebec.» Finalmente, começamos a senti-lo mais empolgado, as palavras inflamam-se. Fala da criação do MDP, menciona, com carinho, nomes de antifacistas que residiam em Montreal e que desenvolviam uma luta sem tréguas contra a ditadura. Mostra-nos uma longa lista, recuperada nos arquivos da Torre do Tombo, de nomes que os informadores infiltrados enviaram regularmente, ao longo dos anos, para a PIDE. Recorda tertúlias arrebatadas onde a revolução era o prato forte das discussões. Eram horizontes inesperados que se rasgavam. A sede de saber, durante tanto tempo adormecida, despertou-lhe no peito. Hoje, é um homem apaixonado pela leitura, escreve para jornais, gosta de transmitir o seu saber de experiência feito. «Não tenho vergonha de confessar que só aos vinte anos é que li o primeiro livro.» Entretanto, a luta pelo pão de cada dia tinha exigências que não se compadeciam com belos ideais. «Comecei a trabalhar como pedreiro mas pouco depois reciclei-me em electricista.» Ri-se com as artimanhas usadas para ludibriar os patrões que desconfiavam da falsa experiência que alardeava. Acabou por ingressar nos quadros da CN, onde permaneceu alguns anos até que o seu já indomável espírito de independência o levou a tornar-se taxista por conta própria, tendo sido fundador da Taxi Coop e vários anos secretário da Ligue du Taxi de Montréal. «Eu sou um homem libertário. Fui taxista durante muitos anos mas não gosto de conduzir, ainda hoje ando de bicicleta. Foi uma forma de me libertar de horários e rotinas.» E, inesperadamente, aconteceu a alegria imensa do 25 de Abril. Foram tempos de euforia, escancaradas as portas da esperança, mas logo em seguida de desencontros, de profundas divergências nas hostes antifascistas até aí de fileiras cerradas no objectivo comum de derrubar o regime. 63
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Depois da acalmia, regressou à escola, concluiu um curso universitário de animação cultural e frequentou uma licenciatura em filosofia, mais pelo desejo de se valorizar do que propriamente por ambição pessoal. A par de tantas aventuras, surgiu o amor, casou duas vezes, nasceram os filhos, os netos, a roda da vida sem parança, a voz das raízes sempre presente. «Sempre falei com os meus filhos em português. Todos frequentaram a escola portuguesa, mesmo os do segundo casamento com uma companheira de origem anglófona.» O seu envolvimento com Comunidade Portuguesa não se limitou à vertente política. Longe disso. É membro do conselho de administração da Caixa Portuguesa Desjardins. Assina uma coluna no jornal LusoPresse. Foi professor em programas de alfabetização de adultos. Em 1979, foi um dos fundadores do Grupo Cultural Cana Verde. «Como podem verificar na carta de incorporação do Grupo, tínhamos ambições mais vastas, o objectivo era criar um estrutura que abrigasse as mais diversas actividades e que não se limitasse ao folclore. Era esse o sonho que alimentávamos.» Essa falta de um organismo de cúpula, representativo da Comunidade Portuguesa, ainda hoje o preocupa. Aflige-o também a falta de um centro de documentação onde se pudesse reunir os valiosos espólios histórico-culturais dispersos em mãos particulares e que estarão, inevitavelmente, condenados a desaparecer. «Só eu tenho lá em casa uma biblioteca de mais de mil e quinhentos livros.» Com o correr dos anos, os seus horizontes alargaram-se, impeliram-no a abrir-se à sociedade de acolhimento, participando nas actividades e na administração de vários organismos comunitários tais como o Centre Multi-Éthnique St-Louis e o Centre Local des Services Communautaires (CLSC) de Saint-Louis du Parc, entre outros. Fala-nos ainda, mais uma vez, do seu Soajo, com a ternura desmedida do homem que nunca esqueceu o chão telúrico que lhe deu o ser, matriz original a que retorna sempre, com emoção renovada. Inelutavelmente aprisionado por densa teia de afectos que o levaram, em 1975, a ser cofundador e colaborador do jornal Voz de Soajo, num generoso pelejar em defesa dos ideais que sempre acarinhou. 64
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Muita coisa ficou por dizer, por explorar, a sua vida dava um romance, como diz o povo. Facto curioso, no decorrer da conversa, na reviravolta das recordações, debaixo da boina basca, nunca lhe desapareceu do olhar uma luzinha travessa a denunciar que a criança que apascentava cabras nas margens do rio Lima ainda por cá continua a guardar sonhos nas margens do rio largo da vida.
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José de Barros
O professor sedento de espiritualidade 67
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Entrevista realizada a 2 de Maio de 2012, em Montreal. 68
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ste senhor que aqui está diante de nós é, incontestavelmente, um gentleman. Discurso articulado, culto, educação esmerada, meticulosidade extrema, tudo denuncia nascimento em berço prendado. Faz a sua apresentação no tom de voz cortês que todos lhe conhecem e que nem o maior cataclismo deste mundo poderia alterar: «Chamo-me José Gomes Pereira de Barros e nasci em 12 de Abril de 1939, à meia-noite, em Gandra que é uma aldeia contígua a Esposende. Aos cinco anos fui para a escola. Eu era um dos filhos mais novos de uma família de dez crianças, via as minhas irmãs ir para a escola e também quis ir. A professora, que era amiga da família, fez tudo para que eu fosse admitido. Estudei em várias cidades, acabando por terminar os meus estudos no Porto, a única cidade do norte de Portugal onde, nessa época, se podia ir buscar formação académica superior. «Os meus pais eram agricultores, tinham bastantes propriedades, para além de possuírem duas moagens e um alambique, e eu, nas férias grandes, no verão, ajudava nos trabalhos agrícolas, regas, vindimas, coisas assim.» Fala com veneração do pai, homem de coração largo e generoso que a aldeia, que muito lhe deve, não esqueceu. «Uma das ruas principais da aldeia tem o nome dele, em memória do apoio que deu à comunidade. Era de grande generosidade, gostava de partilhar, de ensinar, sempre com um sorriso. Quando nos dias de chuva, a minha mãe estranhava ver os trabalhadores para ali sem fazer nada ele respondia: nestes dias também têm mulheres e filhos para sustentar. 69
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Esta postura foi um grande modelo de vida que me marcou profundamente. Quando faleceu inesperadamente, eu estava no Porto e tive um pressentimento inexplicável que alguma coisa estava a acontecer. Não conseguia dormir, não conseguia comer.» Pediu, então, a um amigo que o levasse a casa. Tem presente, como se fosse hoje, que quando chegou, já noite, as janelas da mansão familiar estavam todas iluminadas, havia uma agitação pouco habitual. O pai tinha morrido há pouco mais de um quarto de hora. «Tenho contado este fenómeno que se passou comigo a muitos médicos e nenhum me dá uma explicação. Tenho lido muito sobre o assunto e começou a partir desse dia o meu interesse pela espiritualidade.» Após choque tão intenso, de que se recompôs penosamente, voltou aos bancos da escola para continuar a formação académica que lhe permitiu enveredar pela carreira de professor de matemática no ensino secundário, em Esposende. Paralelamente, juntamente com dois amigos, fundou uma companhia de exportações que lhe deu a possibilidade de viajar por vários países da Europa e que lhe abriu as portas de mundos inexplorados. Mas contra todos os vaticínios, certo dia, ao revés da imagem de jovem ponderado que projectava, pegou nas malas e, com passaporte de turista, partiu à aventura em demanda das terras distantes do Canadá. «Desembarquei em Montreal no dia 15 de Agosto de 1968, uma data memorável porque foi um grande passo na minha vida. É claro que na altura pensava regressar mas encontrei um senhor de Braga que me encorajou a ficar por cá. Acabei por arranjar um emprego de busboy num complexo hoteleiro onde fiquei vários anos até começar a leccionar. Foi o emprego ideal para mim pois comia lá e deu-me a possibilidade de regressar aos estudos.» Finalmente, após cursar a universidade da UQAM (Université du Québec à Montréal), iniciou em 1972-73 a carreira de professor de matemática a nível secundário a que só pôs termo em 2004, quando atingiu a idade da reforma. Sem abandonar a ligação à UQAM, onde exercia funções de corretor e professor assistente do 1º ciclo, acabou, mais tarde, por concluir um Mestrado na mesma área. 70
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Toda esta azáfama não o impediu de cedo se aproximar da Comunidade Portuguesa. Menciona, saudoso, um projecto, criado em 1970, a que os seus promotores, gente generosa e idealista, entre os quais se destacava Carlos Querido, chamavam com carinho “A Casa da Pobreza”. «Com instalações precárias na rua Napoléon, o nosso principal objectivo era realizar jornadas de esclarecimento à comunidade. No meu caso pessoal, informava a comunidade sobre a melhor forma de integrar as crianças nas escolas. Dali saíram pessoas que posteriormente se comprometeram muito na Comunidade Portuguesa. Fomos, de certa forma, os precursores do CPRPS.» Entretanto, houve um regresso esporádico a Portugal mas nem as súplicas da mãe, que chegou ao extremo de lhe esconder o passaporte, o demoveram de regressar a Montreal onde o esperava a grande obra da sua vida. Há quem diga que, neste mundo, todos temos um destino a cumprir. O dele, todos o sabemos agora qual foi: a dedicação incondicional às escolas de língua portuguesa em Montreal. Cedo compreendeu que, na diáspora, são elas o mais importante bastião de defesa e preservação da língua portuguesa enquanto instrumento de expressão das nossas emoções mais profundas e de comunicação da nossa cultura e dos valores que nos definem como grupo com uma identidade própria. A enorme responsabilidade que, desde o primeiro dia, lhe pesou sobre os ombros nunca mais o abandonou. «Em 1971, a convite do padre Fatela, que entretanto criara a Escola Portuguesa da Missão Santa Cruz, integrei o primeiro corpo docente.» Desde então guardou uma fidelidade sem esmorecimento a tão gigantesca obra. Mais tarde, em 1977, foi nomeado director pedagógico da escola, cargo que ainda hoje exerce. Atento à necessidade de alguns alunos prosseguirem estudos mais avançados, em 1975 fundou a Escola Lusitana que presentemente faculta cursos até ao 11º ano e que de certa forma, dada a interligação que sempre existiu, é o prolongamento natural da Escola Santa Cruz. Foi também por essa altura que travou conhecimento com uma jovem professora primária, recém-chegada a Montreal, com quem contraiu matrimónio em 1979 e que lhe deu dois filhos. Quem não conhece, por aí, 71
JOSÉ DE BARROS
a Dona Zulmira, secretária da Missão e professora da escola Santa Cruz? «1977 foi para mim um ano charneira pois o governo português nomeou-me delegado escolar para avaliação final dos alunos nas escolas existentes, para efeito de equivalências, incluindo os da Escola Português do Atlântico fundada cinco anos atrás. Esse foi também o ano do aparecimento do projecto P.E.L.O. (Programme d'enseignement des Langues d'origine) que introduziu o ensino das línguas maternas no ensino oficial do Québec. Foi com prazer que eu e alguns dos nossos professores integrámos a equipa responsável pela elaboração dos programas e guias pedagógicos de Português do 1º ao 9º anos de escolaridade. Custou-me, durante o meu mandato como delegado, não ter conseguido construir uma estrutura de cúpula que reunisse, para as grandes decisões da língua, as três instituições de ensino existentes que na altura acolhiam mais de mil alunos. Haveria ali uma coordenação natural que acautelaria o futuro das escolas. Foi um desgosto muito grande pois tive aqui uma oportunidade única de formar uma comissão escolar das escolas portuguesas. Agora, um pouco desarticuladas, com a diminuição dos alunos, preocupa-me o futuro. Esta sangria deve-se a múltiplos factores. Nós chegámos à terceira e quarta gerações, há muitos casamentos mistos, há muitos lares onde não se fala português, e as crianças quando chegam cá, à escola, nem um conhecimento passivo têm da língua. Contudo, o facto da comunidade de língua portuguesa começar a integrar outras comunidades lusófonas, como os brasileiros, acredito que a vocação destas escolas será, no futuro, a lusofonia, o que é uma grande mudança de paradigmas e o nascer de uma nova visão a que teremos de nos adaptar.» Tanta abnegação não poderia passar despercebida e, no dia 10 de Junho de 1980, foi galardoado com a Comenda da Ordem da Instrução Pública. Exactamente quinze anos mais tarde, em 1995, a coroar a sua devoção à língua e à cultura portuguesas, mais uma distinção, desta vez a prestigiosa Comenda de Mérito. Chegada a hora da reforma oficial, as suas rotinas e prioridades também se alteraram mas continua o homem activo de sempre. «Para além de continuar a desempenhar as funções de sempre nas 72
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escolas portuguesas, continuo muito integrado nas actividades religiosas da Missão. Também estou, desde o início, ligado ao grande projecto que é a UTL-Universidade dos Tempos Livres. É um projecto, de grande dimensão, de que a comunidade precisava muito, principalmente voltado para terceira idade e para o desenvolvimento das suas capacidades. Este ano também me envolvi num projecto de levar os jovens das escolas a travar conhecimento mais aprofundado com os valores do movimento cooperativo Desjardins a que pertence essa grande instituição que é a Caixa Portuguesa. É um desafio de grande interesse pois a Caixa tem desempenhado um papel fundamental de apoio aos nossos organismos e serão, no futuro, os jovens que poderão dar continuidade a tão bela obra de que todos nos orgulhamos.» Apesar de tanta actividade, ainda lhe sobra tempo para se dedicar à leitura, a outra grande paixão da sua vida. «Actualmente, as minhas leituras estão muito voltadas para a espiritualidade, a verdade que eu quero encontrar está nessa procura, estou cada vez mais certo. Esta busca da verdade única tem-me dado uma certa paz de espírito e uma grande harmonia interior. Claro que continuo a ler os filósofos antigos, também sempre gostei muito de História e de conhecer a vida dos grandes matemáticos que em muitos casos também foram grandes teólogos.» Com uma vida assim tão repleta, não é difícil compreender a razão de tanta paz que lhe alastra pelo rosto. Desconfiamos até que já descobriu uma boa fatia dessa verdade absoluta tão procurada nas entrelinhas das suas leituras.
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Joviano Vaz
O poeta que gostaria de ter sido padre 75
JOVIANO VAZ
Entrevista realizada a 5 de Maio de 2012, em Montreal. 76
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eu pensamento Voga sem fim Nesta noite interminável. Oiço bater as horas. Elas passam e eu fico. (...) No momento de atingir a meta Esta foge, indecisa, E deixa-me sozinho Nesta noite interminável
Será talvez este trecho, extraído de um poesia da sua autoria, que melhor define o estado de alma do nosso entrevistado. A noite interminável, a solidão, a meta sempre procurada mas nunca atingida, foram companheiras inseparáveis de toda a sua vida. E, no entanto, foi uma criança que cresceu rodeada de afecto e certo conforto. «Nasci em S. Miguel, na freguesia da Feijã de Baixo, no dia 18 de Outubro de 1932. Tive uma infância relativamente boa, o meu pai era militar, sargento ajudante músico da Banda Militar dos Açores que depois foi transferida para a Madeira. Portanto, vivi também três anos na Madeira até que por morte do meu pai voltei para a ilha de S. Miguel. Aí fui à escola primária, depois o liceu Antero de Quental e frequentei em seguida a Escola Normal de Ponta Delgada onde acabei por tirar o 77
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curso de professor primário. Entretanto, a minha vocação radiofónica pode-se dizer que nasceu comigo. Em S.Miguel, enquanto estudava, fiz parte do pessoal do Emissor Regional dos Açores e mais tarde fiz reportagens para o Emissor Asas do Atlântico e para o Rádio Clube de Angra. Mas aos vinte anos nós temos sonhos e ambições de juventude, acreditava em ideologias que prometiam mudar o mundo, sentia-me mal num país onde existia o delito de opinião e onde não tinha a possibilidade de me exprimir como gostaria. Já então colaborava também no jornal A Ilha e, com a censura existente, sentia-me oprimido com a falta de liberdade, pelo que resolvi vir para o Canadá. Deixei tudo aquilo de que gostava, inclusive o meu trabalho de responsável da secretaria do Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada. Portanto, aqui cheguei acompanhado da minha esposa e do meu filho, no dia 17 de Outubro de 1965.» Baixa a cabeça, os olhos entristecem, talvez invadidos pela tal noite interminável de que fala na poesia que mais tarde escreveu. «E, a partir daí, é a vida de um emigrante. Eu calculo, e tenho-o afirmado já várias vezes, que o emigrante é o ser mais infeliz do mundo porque não mais faz parte do país onde nasceu mas nunca fará parte completamente do país de acolho.» Mas logo reage, ergue outra vez a cabeça que lhe dá aquele ar de altivez que lhe é reconhecido. «Tenho aqui, no Canadá, um percurso verdadeiramente curioso. No princípio, comecei por lavar pratos num restaurante, fui também vendedor de móveis e acabei por encontrar emprego no hospital Maisonneuve-Rosemont, no departamento de radiologia. Mas as minhas ambições não se ficaram por aqui, à noite fui estudar para a universidade de Montreal onde conclui um bacharelado em relações industriais, um certificado em relações públicas e outro em animação cultural. Enriquecido com estas habilitações, consegui emprego como director-geral da Société St-Vincent de Paul, lugar em que permaneci durante sete anos. Mais tarde, fui também director-geral do Comité Provincial des Malades. Foi neste último emprego, em contacto mais estreito com o sofrimento 78
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dos meus semelhantes, que ressurgiu mais intensamente a vocação que me levou, após três anos de estudos, a ser ordenado diácono, em 1988. Era uma velha vocação que estava adormecida. Chegado a esta idade, estou convencido de que, de facto, o que gostaria era de ter sido padre. Trabalhei depois em várias paróquias excepto na portuguesa. Diz-se que ninguém é profeta na sua terra. Não sei por quê, poucas vezes fui convidado para a paróquia portuguesa. Dois anos depois de terminado o diaconato e porque já tinha formação como animador, fui convidado para dar cursos de animação aos alunos do seminário onde as minhas aulas, que sugeriam uma maior abertura ao mundo, não foram muito bem recebidas. Os tempos ainda não estavam maduros para tal ousadia. Paralelamente com a minha vida profissional, dediquei sempre muito tempo ao jornalismo. Escrevi vários anos no jornal A Voz de Portugal e fiz muita rádio, cerca de quinze anos na Radio Centre-Ville, algum tempo no CFMB e até alguns programas na televisão portuguesa, no tempo do Carlos Querido.» Agora, com o recente falecimento da esposa, a poetisa Amélia Oliveira-Vaz, as perspectivas de actividades futuras passam pelo regresso ao velho amor do jornalismo e pela publicação de dois livros de poesia, em francês e português. Também tem em mente a publicação póstuma de um livro de poemas de Amélia Oliveira-Vaz, em adiantada fase de compilação. Continuará também a fazer pequenas conferências para pessoas idosas, que lhe dão imenso prazer. Aqui ressurge mais uma vez a amargura e um ressentimento latente pela frieza da Comunidade Portuguesa que lhe tem fechado portas. A seu ver, uma comunidade conservadora, demasiado apegada a tradições ultrapassadas e que não tem enfrentado com frontalidade os verdadeiros problemas que a afligem. «Acho absolutamente lamentável que a Comunidade Portuguesa não tenha conseguido criar um hospital para pessoas idosas que, com imensas dificuldades em comunicar nas línguas da sociedade de acolhimento, se vêem de um dia para o outro, num meio estranho, com recursos físicos e morais extremamente limitados.» Voltamos atrás, ao tempo em que foi um dos fundadores da Casa dos Açores. 79
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«Fundei a Casa dos Açores, em 1978, juntamente com outras cinco pessoas porque então os Açores eram muito pouco conhecidos por estes lados e pretendíamos ajudar à sua divulgação. Aliás, um dos projectos que tenho em mente é escrever uma série de artigos sobre figuras açorianas que se distinguiram ao longo da História.» Aconselhado pelas experiências passadas, já tem bem definido o caminho que pretende trilhar futuramente. «Parto do princípio de que tenho que viver para mim e desta forma poderei também prestar serviço aos outros. Creio que a melhor maneira de o conseguir é fazer o que gosto. Cheguei à conclusão de que a informação escrita e falada, a que ainda me quero dedicar, são meios muito importantes de sensibilização para os grandes problemas do nosso tempo, o que nem sempre acontece presentemente.» Aqui levanta algumas reticências que poderão vir a ser uma pedra no seu caminho. «Posso comprovar, por experiência pessoal, que é muito difícil publicar artigos de opinião, o que demonstra que certos segmentos da nossa comunidade são muito intolerantes. Já se nota uma certa abertura mas ainda há um longo caminho a percorrer.» Reconhece que para se fazerem mudanças mais profundas é preciso ir buscar a 2ª e a 3ª gerações, fazê-las compreender que, para além de estarem integradas da sociedade de acolhimento, também fazem parte de outra cultura e que têm raízes que não devem renegar. «Uma coisa que me faz muita pena é ver que há muita pouca preocupação em manter a língua portuguesa. A nossa pátria é a língua portuguesa, está tudo dito.» Fica meditativo, embrenhado num silêncio profundo. Por fim, reatando o fio da conversa, a certo passo tocou num ponto sensível de que, por relutância, pouco se aflora. «Sinto que os “intelectuais” da comunidade se afastaram. Integrados na sociedade de acolhimento, há quadros, médicos, engenheiros, gente qualificada que se afastou, como se tivessem vergonha de pertencer à Comunidade e que poderiam ser muito úteis para a fazer progredir.» Sabedores dos seus excelentes dotes de declamador, que têm encantado os participantes dos saraus para que é convidado, imediatamente se prontificou para nos ler um poema da esposa e outro da sua autoria. Maravilhados, no final de tão raro momento, surgiu a pergunta que 80
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nos escaldava os lábios: Debaixo do lustro com que se apresenta, onde está o Joviano Vaz de carne e osso? Olha-nos, irónico, a saborear o instante. Acaba por folhear a pasta onde acumula os seus trabalhos literários. - Esperem um instante que vou-lhes responder com um poema. Declama, com o brilho de sempre:
Sou um homem bem cotado Toda a gente me respeita Mas no fundo de mim mesmo Sou aquilo que não sou. Segredos guardo, forças domino, Guerras perco e guerras venço. Como vencer o que quero, Como ser o que não sou? Como arrancar esta máscara Que esconde os meus sentimentos? Ah, se eu pudesse ser outro, Ah, se eu pudesse mudar, Ah, se puder arrancar esta máscara Que esconde o desejo de alcançar aquilo que amar não posso. Sem máscara viveria E então poderia ser aquilo que não sou E de que tanto gostaria Ficou um silêncio de cristal a envolver-nos. Contudo, verdade seja dita, é forçoso confessar que ainda não foi desta vez que decifrámos o código de acesso às profundezas do seu ser poético. Mas que é um lindo poema, lá isso é.
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Olga Loureiro
A conjugação do verbo Amar 83
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Entrevista realizada a 11 de Maio de 2012, em Montreal. 84
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H
á entrevistas que é um regalo fazer. Restituem-nos a fé na humanidade, tantas vezes quase a extinguir-se perante a crueza da vida. Segredam-nos que ainda nada está perdido e que é preciso continuar a lutar por um mundo melhor onde o Amor acabará por se sobrepor a todas as injustiças e malquerenças. Se há mulheres que são um exemplo de dádiva e entrega incondicional ao serviço do próximo, Olga Loureiro é, incontestavelmente, um testemunho vivo desta asserção. Mas teve de atravessar os longos desertos da vida, teve de sentir na própria carne as garras do sofrimento e da dor, para depois alcançar a paz de alma capaz de maiores alturas. “Eu tenho pela minha aldeia de Melo uma afeição que é mais do que isso, porque é essa forma profunda com que se moldou a minha sensibilidade.”, escreveu o grande escritor Virgílio Ferreira. Também a nossa entrevistada por lá nasceu em 1933. Também ela, tal como o escritor, com certeza brincou em torno do esbelto pelourinho na praça em frente do edifício da actual Câmara, antes de, aos doze anos, se despedir das paisagens grandiosas da Serra da Estrela e abalar com a família para Luanda. Embora a adaptação inicial fosse um pouco difícil, rapidamente começou a amar aquela terra, a considerá-la como sua, a senti-la no pulsar do sangue. «Gostei muito de estar na África. Aquela é a minha primeira terra, de que sinto muitas saudades.» Enquanto estudava, dedicou-se, com igual afinco, à costura, uma paixão que nasceu ainda menina, ao ponto de aos quinze anos regressar à metrópole, a Lisboa, para tirar um curso de corte num reputado atelier 85
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de alta-costura. «Aos dezanove anos, casei. Arranjei um marido muito bom de quem tenho muitas saudades e que me deu dois filhos. Depois, estabeleci-me com duas boutiques e um atelier de confecção de roupa, cheguei a ter 44 empregadas.» A par das lides de empresária, já nesse tempo os valores da solidariedade e da justiça lhe tinham conquistado a alma. Muito cedo adivinhara que aos olhos de Deus todos os seres humanos são iguais, sem distinção de raça e cor. «Tratava as minhas empregadas de igual forma, o salário que pagava às brancas, pagava igual às negras, Deus é testemunha disso.» Até que em 1974, tudo ruiu à sua volta. O caos da descolonização correu pelas ruas da cidade como fogo em palheiro. O pânico e a violência galopavam com o freio nos dentes. Um clamor de desamparo ergueu-se, como nuvem negra, sobre as vidas apunhaladas. «Um dia, prenderam o meu filho. Feita um farrapo, estive três dias sem saber dele. Desesperada, subi ao 1º andar da nossa casa para estar sozinha e falar com Deus. Quando desci, disseram-me que vinha a rir. Pensaram que estava doida». Mas o certo é que tivera uma estranha clarividência que a conduziu ao local exacto onde o filho, inocente, estava detido. Depois, foi a tragédia que, como a centenas de milhares de outros refugiados, lhe roubou o lar, os bens, os sonhos e a viu chegar a uma metrópole em convulsão a braços com graves problemas. Mas, apesar de tantas vicissitudes, não teve muita razão de queixa, valeram-lhe, mais uma vez os seus talentos de modista «O trabalho nunca me faltou em Portugal. Afixei na varanda um anúncio e trabalhei sempre como costureira até que, infelizmente, adoeci.» A doença grave fê-la repensar a vida e resolveu vir para o Canadá para onde, entretanto, a filha já tinha emigrado em busca dum futuro melhor. Na companhia do marido, cá chegou em 1983. Este era um mundo completamente diferente daquele que tinham deixado. Sobretudo o clima nos antípodas da calidez da paragens tropicais que nunca mais esqueceram. Felizmente que a Comunidade Portuguesa já estava solidamente ancorada por estas terras e foi a ela que se arrimaram com todas as 86
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forças que lhe restavam. À frente da paróquia da Santa Cruz encontram um homem visionário, o padre José Manuel que, perspicaz, logo os enleou nas actividades da Missão. Ao marido, o senhor Loureiro, indicou-o para concierge do Foyer Santa Cruz e rapidamente o transformou no homem da sua confiança, delegando nele cada vez mais responsabilidades. À dona Olga, como já todos a conheciam, acolheu-a como acólita das cerimónias religiosas e envolveu-a nas actividades da secção portuguesa da Conferência de São Vicente de Paulo que ela nunca mais abandonou e de que é, ainda hoje, a principal responsável. «Eu já pertencia à Conferência São Vicente de Paulo, em Luanda, desde os dezoito anos, portanto, foi com muita alegria que me integrei na secção portuguesa de Montreal.» Já com os pés em terra mais firme, mulher desenvolta como sempre foi, arregaçou as mangas e começou a fazer pela vida guardando crianças em casa e, mais uma vez, costurando para fora. A fama do seu talento de modista rapidamente se espalhou pela comunidade e não tinha mãos a medir para tantas encomendas. Infelizmente, a sorte madrasta estava mais uma vez à espreita. Subitamente, chegou-lhes a notícia da morte do filho, jovem e promissor engenheiro, num acidente de trabalho no decorrer da montagem da antena da SIC em Carnaxide. «Quando faleceu o meu filho, revoltei-me. O que é que eu vou fazer à missa, o que é que eu vou fazer à igreja se Deus me levou uma coisa tão preciosa?, gritava. O senhor padre José Manuel e a irmã Alzira ajudaram-me muito. Eu não queria que ninguém me falasse, porque só tinha o meu filho na cabeça. Ainda hoje quando estou aqui em casa só estou a falar com ele. Mas depois agarrei-me à minha fé, sem ela não tinha aguentado. Com o tempo comecei a pensar que ele está bem e que, lá em cima, olha por mim.» Vai buscar as fotografias emolduradas do filho e do marido, entretanto falecido há uma dúzia de anos, que nos apresenta, de olhos humedecidos, numa mescla de saudade e orgulho. A revolta já vai longe, a aceitação rasgou caminhos novos. «Estão sempre a meu lado, nunca me abandonam. São os meus anjos da guarda.» 87
OLGA LOUREIRO
Desde há muitos anos a viver no “Foyer” na companhia do marido, com a viuvez, quando ficou só, em vez de se encerrar entre quatro paredes, refugiada na dor, floresceu para a vida, numa dádiva sem limites, compenetrou-se de que ainda tinha uma missão a cumprir neste mundo. «Tudo o que eu faço é por amor. É cá de dentro que sai esta vontade de ajudar seja quem for. Não há ninguém que me peça que eu não ajude.» A UTL-Universidade dos Tempos Livres chegou à sua vida na hora exacta. Os ateliers de lavores esperavam a habilidade das suas mãos de fada. Os trabalhos resultantes que nos mostra, espalhados pela casa, são dum primor assombroso. Coloridos centros de mesa e ramos de flores feitos de escamas de peixe, de casca de cebola, de missangas; quadros de azulejos e de recortes em pergaminho, pinturas, horas e horas de dedicação e paciência sem fim. Mas o seu casamento com a “Universidade” não se esgota com tão belas artes. Ao Grupo Coral, à Tuna de Oiro, empresta o calor da sua voz repassada de ternura e espiritualidade. Refere, com agrado, a inesquecível digressão da Tuna ao continente, aos Açores, as actuações um pouco por todo o Canadá, em Ottawa, em Toronto, entre muitas outras. Está muito longe de ficar por aqui o seu corrupio diário na Missão. Prestimosa, a todo o lado acode, nas pequenas e nas grandes tarefas, sempre atenta, com humildade e um sorriso perpétuo nos lábios. Quando o padre José Maria resolveu criar a actividade “Vamos comer juntos”, que todas as quartas-feiras reúne dezenas de idosos num alegre convívio que os arranca à solidão, foi, mais uma vez, a ela que recorreu para a organização e confecção das refeições. «Não podia dizer que não, enquanto tiver forças lá estarei», confessa, com aquela simplicidade desarmante de sempre. Com quase oitenta anos, onde irá buscar a energia para se desdobrar em tantos afazeres? Pela resposta mística, que lhe adoça o olhar, não restam dúvidas: «Há uma força dentro de mim que me faz agir assim porque sozinha não era capaz. Deus escuta-me e dá-me tudo o que peço.» Não é exagero afirmar que, presentemente, o rosto da Missão não seria o mesmo sem a D. Olga e a sua incondicional omnipresença. O Amor que a habita faz, diariamente, da sua vida, e daquilo em que toca, um milagre do tamanho do mundo. 88
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E é destes milagres que precisamos, como de pão para a boca.
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Victor Hugo Faria
O playboy que ama a vida 91
VICTOR HUGO FARIA
Entrevista realizada a 12 de Maio de 2012, em Montreal. 92
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N
ão há nada mais fácil do que talhar entrevistas destas. Basta respigar o que o entrevistado escreveu por aqui e por ali, dar umas pinceladas para avivar as cores, acentuar os contornos, limar algumas arestas, atirar mais umas chapadas de argamassa para unir as peças e está a obra feita. E se mesmo assim não ficarmos satisfeitos, aqui está ele, à nossa frente, solícito, disponível para dissipar todas as dúvidas e lacunas que ainda possam persistir. Mas o melhor é começar por espreitar o retrato do homem visto por ele mesmo. Assim se descreve, com aqueles laivos de humor salutar que é um dos traços marcantes da sua forte personalidade: «Era uma vez um PLAYBOY. A minha história começa como todas as outras: era uma vez uma criança que nasceu numa pequena aldeia dos anos 30 e 40, onde a pobreza era evidente, mas onde existia a palavra de honra, os valores, o respeito e a solidariedade. A criança foi criada sem mãe e o pai, igual aos muitos pais dos tempos de hoje, andava sempre ocupado, dava quase tudo, mas não dava o tempo. Mas lá em casa não havia dificuldades. A criança foi à escola fazer a quarta classe e depois aos 11 anos foi trabalhar numa daqueles lojas típicas das aldeias, onde tudo se vendia a crédito. Dado que tinha muita liberdade, a criança, já na adolescência, foi tomando o gosto pela vadiagem e depois dos 15 anos começou a frequentar lugares pouco recomendáveis para a sua idade. Aos 18 anos tinha um carro que dava para as saídas nocturnas. E assim nasceu um playboy. Veio a tropa e o destino levou-o até Lisboa onde se deixou tentar pela vida nocturna dos bares mal-afamados da cidade. Por causa da sua baixa estatura, e por mais alguma coisa, por lá recebeu a alcunha de ponto final. 93
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Finda a tropa, foi a viagem ao Brasil, onde o gosto pela boémia, pelo futebol e pelas belas brasileiras mais se acentuou. Quatro anos depois, foi o regresso a Portugal, por doença de um irmão que quis acompanhar nos últimos tempos de vida. Começaram as viagens de camião de norte a sul e os fins de semana continuavam a ser passados nos bares de Lisboa. Cansado da rotina, da monotonia e da pressão do pai autoritário, empreende uma nova aventura a caminho de África, de Lourenço Marques. Após dois anos, indignado com a atmosfera colonial, novo regresso a Portugal, sempre com as mãos a abanar. Segue-se um envolvimento nas lides políticas e “amigos da PIDE” sugerem-lhe outra saída com destino à Alemanha e às obras. Para quem não gostava muito de fazer esforços manuais, a pá e o picareta não seriam os instrumentos mais indicados e, ainda pior, conviver com a pretensa superioridade ariana não era do seu agrado. Novo regresso a Portugal e o destino joga outra partida ao playboy. Nova viagem até ao Canadá, em busca do amor, duma família e, ainda por cima, zangado com Portugal e os portugueses. Recorda o dia do embarque na Portela, quando o pai se despediu dele e lhe disse: faz de ti um homem, tem um pouco de orgulho. Estas palavras ficaram gravadas para sempre e foram a sua salvação. Não foi nada fácil entrar numa fábrica de curtumes de manhã à noite, e viver só com uma mulher. Aproveitar biscates para arranjar mais alguns dólares, a língua, a neve e o frio, tudo seriam pretextos para voltar de novo a Portugal, sobretudo naquela era do vinho a martelo, quando em Portugal, todos eram ricos. Venceu o orgulho e a família e por aqui foi ficando. Aos 55 anos, a fábrica fecha e o velho playboy, sem profissão nem instrução, encontra-se em maus lençóis, a situação agrava-se e a única solução foi ir um ano para escola aprender um ofício. Com um diploma na mão, deu para arranjar um trabalho ao salário mínimo que era a quarta parte do que ganhava, mas que dava para sobreviver até chegar à reforma.» Foi assim, a traços largos, a história das suas andanças por esse mundo além, que, em dia inspirado, verteu para o papel. Para dar mais uns retoques, diremos que a aldeia onde a criança nasceu, em 1937, se chama Sobral da Lourinhã. Ficou sem mãe aos oito anos de idade, tragédia que marcou profundamente a criança que começava a abrir os olhos para 94
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a vida. A loja onde o jovem Victor Hugo trabalhou pertencia ao pai, um homem muito autoritário mas que prosperou nos negócios e lhe proporcionou uma vida folgada, e por vezes algo libertina, até ser convocado para prestar o serviço militar. Depois das peripécias já narradas, no regresso da Alemanha, o imprevisto pregou-lhe uma partida, como gosta de dizer, na figura de uma jovem luso-canadiana, de férias em Portugal, por quem se apaixonou. Como consequência de tal encontro, em 1970, chegou a Montreal com objectivos precisos: casar e mudar de vida, farto do vagabundear sem norte que até ali levara. Para quem está habituado a um viver sem amarras, a adaptação não foi fácil, principalmente com as responsabilidades acrescidas com o rápido nascimento de dois filhos. Mas o encontro com um homem que, mais tarde, descreveu assim: «com um espírito inovador, procurou não somente dar uma nova dimensão à fé, mas teve a audácia de criar os espaços físicos necessários, onde se juntariam a religião, a cultura, o aspecto social e recreativo e um local para idosos com baixos recursos», alterou todas as perspectivas, fê-lo olhar o mundo por um prisma diferente. Falava, é claro, do padre José Manuel de Freitas. Pela sua mão começou a participar nas actividades da Missão Santa Cruz, sob a sua orientação frequentou os retiros espirituais para casais, com o seu encorajamento colaborou activamente nos trabalhos de criação do Lar para idosos (Foyer Santa Cruz) e, posteriormente, pertenceu, por largos anos, ao seu conselho de administração. Quando a vida parecia correr paulatinamente, a morte do filho, então com 22 anos, num brutal acidente de viação, veio subverter tudo. «Foi um choque terrível. É a pior coisa que pode acontecer a alguém. Mas o tempo tudo cura. O tempo é o remédio para todas as feridas. Hoje é uma bonita recordação. Às vezes, eu digo assim, foi bom ter um filho comigo 22 anos. Muita gente nunca teve filhos, eu tenho uma filha, três netos maravilhosos, não posso exigir mais da vida. Não posso viver eternamente a lamentar-me por aquilo que deixei de ter.» Apesar da mágoa que lhe ensombra por vezes o olhar, dá-nos a conhecer uma história maravilhosa que só por si daria um filme, como se costuma dizer. «O meu filho tinha algumas poupanças e nós decidimos que iríamos 95
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dar esse dinheiro para uma instituição. Conhecemos então uma senhora quebequense a quem o filho também tinha falecido na República Dominicana. A senhora resolvera transformar a casa que o filho lá possuía num abrigo para crianças abandonadas. Um dos problemas com que se deparou foi a falta de água e nós resolvemos, então, utilizar as poupanças do nosso filho para construir um poço. Eu e a minha mulher fomos lá passar três ou quatro semanas e depois de muitas diligências, instalámos a electricidade e mandámos construir um poço que dava muita água.» Consumava-se assim, mais uma vez, o eterno mistério da transubstanciação da morte em vida. Quando os cabelos lhe começaram a embranquecer e os anos a correr mais depressa, foi esta mesma coragem e um sentido apurado da solidariedade que lhe conduziu a mão para escrever autênticos hinos de louvor à alegria de viver: «Há alguns dias, uma pessoa amiga que veio a minha casa, dizia que a velhice é muito triste. Eu repliquei-lhe dizendo que a velhice é maravilhosa. Ela é triste quando vivemos fechados sobre nós mesmos e quando nos sentamos no sofá à espera que Deus nos chame. Ela é maravilhosa quando sonhamos e temos projectos, quando fazemos algo pelos outros, quando temos o desejo de aprender e de conviver.» (...) Há uns três anos, quando eu plantava uma laranjeira no meu quintal, em Portugal, um vizinho que se aproximou disse-me que eu não estava bom da cabeça, andar a plantar árvores com esta idade. Ora o que ele não sabe é que este ano já comi laranjas da árvore que plantei. Não importa se temos 20, 40, 70 ou 80 anos, o mais importante na vida é plantar para se poder colher, mesmo se não formos nós os beneficiados.» Hoje é um homem tranquilo que reparte o tempo de lazer que a merecida reforma lhe propícia, entre Portugal e o Québec, as suas duas pátrias, que ama por igual. «Nós temos a sorte de termos dois países maravilhosos. O Canadá que nos dá magníficas condições de vida e Portugal com um sol radioso e belas paisagens. É importante fazer na vida aquilo que nos dá felicidade e repartir a minha vida entre o Canadá e Portugal faz-me muito feliz.» Por lá, cuida das suas laranjeiras, ouve o trinar das aves ao amanhecer, passeia pelos prados floridos da infância e descobre, em cada viagem, 96
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recantos inesperados daquele paraíso à beira-mar plantado. Por cá, regala-se com o amor incomensurável dos netos, participa activamente nas actividades da UTL-Universidade dos Tempos Livres, «um sólido e bonito edifício da comunidade», como lhe chama carinhosamente. Aprendeu, entre outras habilidades, a dominar a arte dos tapetes de Arraiolos, que agora tece pelas noites dentro, quando está cansado de ler e escrever, de ouvir música e reflectir sobre os largos caminhos da existência. Em colaboração com a mulher, porto de abrigo de tanta errância, também se empenha regularmente em campanhas e festas de angariação de fundos para a “Aldeia da Paz”, uma imensa obra humanitária do padre Mata, no Brasil, que visitaram recentemente e de onde regressaram impressionados com o que viram. Rico de tudo o que tem visto e vivido, chegou assim, sabiamente, à compreensão de que a alegria e a dor são as duas faces da mesma moeda e de que o importante é continuar olhar o mundo com “os olhos do coração“. «Nós vivemos no inferno quando somos infelizes. Vivemos no céu quando somos felizes. O resto é um mistério.» Por fim, com uma risada, remata: «Eu continuo o playboy de antigamente.» O que ele queria expressar, compreenda-se, é que continua o mesmo rapazito de olhos extasiados perante o sempre renovado e fascinante espectáculo da vida.
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Cristina Silva
A mãe de muitos filhos 99
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Entrevista realizada a 18 de Maio de 2012, em Montreal. 100
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O
modo de vestir impecável, o look cuidado, a desenvoltura, a postura garbosa, tudo denuncia o culto apurado da imagem de mulher empresária de sucesso. Fluente, a palavra medida e modulada, também logo pela primeira troca de impressões se apercebe que é uma mulher expedita, habituada a lidar com muitas e variadas gentes. Nasceu na ilha de S. Jorge e, por falecimento da mãe, foi muito pequena para Angra do Heroísmo, para casa dos padrinhos que a criaram como filha. «Os meus padrinhos foram muito carinhosos e, para ser sincera, só muito mais tarde, quando já tinha treze ou catorze anos, é que senti a falta da minha mãe. A minha madrinha era uma pessoa maravilhosa, deram-me uma boa educação. Todos os anos íamos a S. Jorge passar férias e isso dava-me a oportunidade de conviver com os meus irmãos por quem tive sempre muito carinho. Fui crescendo, estudei, fiz um curso de enfermagem e trabalhei doze anos como assistente dentária numa clínica privada até vir para o Canadá, em 1965.» Neste passo da conversa, embora com certa relutância da sua parte, foi preciso recuar alguns anos atrás para relembrar uma etapa dolorosa da sua vida que a marcou para sempre, como reconhece. «Casei com dezanove anos e perdi o meu marido seis meses depois.» Fecha os olhos por instantes, em recolhimento. «São coisas que acontecem mas marcou-me para toda a vida.» Para vencer a dor, encontrou o caminho da compaixão, entregou-se ao serviço dos mais desprotegidos. 101
CRISTINA SILVA
«Fazia parte da Acção Católica e ocupei-me muito das crianças da colónia de férias. Também ia visitar as prisões o que foi uma experiência muito enriquecedora e que me ajudou a ultrapassar os maus momentos que tinha vivido. Fez-me reconhecer que havia pessoas que tinham problemas muito superiores aos meus.» Assim foram passando os anos, num viver suspenso até que uma conversa íntima com o pai veio remexer em águas antigas. «O meu pai, no dia dos meus 27 anos, pegou-me no braço e foi passear comigo à beira-mar. Falou-me assim: Eu tenho uma coisa para te pedir. Sabes que o pai nunca se meteu na tua vida mas sei que tens três pretendentes bons. Mas tu não queres nenhum, não queres nada nem ninguém, estás a fazer um erro. Queria pedir-te para refazeres a tua vida antes que o pai morra. Tu ajudas muito os teus irmãos e os teus sobrinhos mas amanhã os meninos que tu proteges serão só os filhos dos teus irmãos e tu ficarás sozinha na vida. Voltei-me para ele e respondi: obrigado pelo que me disse mas peço-lhe um favor, não me volte a pedir isso. Morreu em 1986 e nunca mais me tocou no assunto, compreendeu os meus sentimentos.» Em parte resultante desta conversa, mas também devido ao desejo de ajudar a família em dificuldades, resolveu sacudir a letargia e emigrar para o Canadá. Logo que chegou a Montreal, quando reuniu as condições esssenciais, diligenciou para que parte dos familiares se lhe reunisse. «O primeiro a chegar foi o meu pai, em seguida um irmão e pouco tempo depois uma irmã com nove filhos. Tudo se passou bem.» Como consequência de todos estes processos burocráticos, estabeleci muitos contactos importantes e fui convidada para trabalhar nos Centros de Orientação e de Formação dos Imigrantes (C.O.F.I.). Assistia-se, então, a um grande fluxo migratório entre os anos de 65 e 68, sobretudo muitos açorianos que tinham grandes dificuldades de adaptação. O meu trabalho consistia em encontrar as pessoas e ver qual era a possibilidade de as apoiar e de as integrar nos cursos de língua do C.O.F.I. Sem falar as línguas do país, os imigrantes sofriam muito, eram muito explorados nas fábricas e pelas companhias de limpeza e, além disso, tinham imensas dificuldades em encontrar um lugar onde deixar os filhos durante as longas horas de trabalho. O recurso ao serviço de amas, 102
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quase todas portuguesas, sem as mínimas condições, era uma solução de remedeio, com pouco futuro». O seu espírito de lutadora infatigável foi mais uma vez posto à prova ao alertar as entidades responsáveis para a situação crítica. Apresentou um elaborado projecto que permitiu integrar cerca de 56 crianças imigrantes no infantário das Franciscaines de Marie, um espaço até aí muito subaproveitado. Por lá ficou mais de vinte anos, tendo sido, ao fim de alguns anos, nomeada directora, posto que só abandonou quando o infantário encerrou as portas. A aproximação com a Comunidade Portuguesa foi acontecendo gradualmente por via da sua actividade profissional mas também decorrente da sua vocação caritativa. O primeiro passo foi integrar-se nas actividades da Conferência de S. Vicente de Paulo onde encontrou uma equipa dinâmica e aguerrida disposta a colmatar, na medida do possível, as carências já evidentes na comunidade. Mais tarde, quando Celestino de Andrade, jovem e fogoso director da Caixa de Economia dos Portugueses de Montreal, uma organização então num estado quase embrionário, que se mudara recentemente da avenida Des Pins para a rua Duluth, lhe solicitou ajuda para angariar novos membros, não se fez rogada. Relembra o facto com bonomia: «Ele, muito entusiasmado, com muita vontade de ver crescer a Caixa, arranjou uma lista de nomes de portugueses que nós visitávamos, rua por rua, porta por porta. Eu batia à porta, as pessoas abriam porque já conheciam a Cristina da igreja e ficávamos ali a falar, a explicar as vantagens de se fazerem membros.» Em 1990, quando as religiosas proprietárias do infantário resolveram encerrá-lo, o choque foi enorme, fê-la reconsiderar toda a sua carreira. Postas perante tal situação extrema, para muitas pessoas seria a ocasião ideal para pensar na reforma e num merecido repouso. Mas essa eventualidade nunca lhe passou pela cabeça. Pôs-se logo em campo e em pouco tempo descobriu um infantário à venda. Não perdeu um instante e passados escassos dias estava o negócio concluído, assim encetava nova e empolgante fase da sua vida. Hoje é uma empresária bem sucedida, proprietária e directora de dois 103
CRISTINA SILVA
infantários que acolhem cerca de 90 crianças desde a mais tenra idade até ao ensino primário. Foi uma ascensão penosa, degrau a degrau, com aquela tenacidade que tão bem a caracteriza mas nunca aceitando que a aridez lhe invadisse a alma. «Quanto mais recebes na vida mais desejas dar», continua cada vez mais convicta desta verdade que sempre a guiou e que nunca esquece. Já viajou por meio mundo, principalmente para o sul em busca de repouso, sol e mar, mas só passados 30 anos regressou à sua ilha. Não lhe perguntámos a razão de tão prolongada ausência mas adivinhámo-la, as feridas da jovem de dezanove anos levaram tempo a sarar. Foi um reencontro emocionado, com laivos feéricos. «A adaptação é tudo muito bonito mas as saudades e o mar ficaram lá. Acordar com o barulho do mar ou viver em Montreal não é a mesma coisa. Quando a gente pensa no quintal dividido só com flores, são hortênsias dum lado e malmequeres do outro, vive-se uma nostalgia muito forte. Estive tanto tempo sem lá ir porque tinha medo de já não querer voltar. Mas senti a maior alegria quando me decidi. Então quando chegámos às Lajes e vi a povoação, a primeira coisa em que reparei foi numa igrejinha branca, depois as casas também brancas, chorei de alegria.» Mesmo com a vida tão ocupada, para não dizer trepidante, que leva, não se esquece da sua comunidade. Continua a colaborar nas obras de beneficência da Conferência, ajuda, quando e onde pode, na UTLUniversidade dos Tempos Livres. Não obstante tanto dinamismo, é forçoso reconhecer que já é uma senhora a caminho dos 75 anos e quando lhe perguntamos quando irá parar, quando decidirá pôr um ponto final naquela vida trepidante, responde sem hesitação: «Acho que nunca. Adoro as crianças, penso que Deus me deu esta compensação por não ter filhos. Como diz no Evangelho, não foste tu que escolheste, fui eu que te escolhi.» A melhor forma de pôr termo esta conversa é concluir que, quando se é mãe de tantos filhos, nunca se poderá estar só. Afinal, a predição do pai, naquele longínquo dia à beira-mar, estava errada. Por vezes, os pais também se enganam. 104
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Isabel Medeiros de Melo
O sorriso tranquilo da Comunidade 105
ISABEL MEDEIROS DE MELO
Entrevista realizada a 21 de Maio de 2012, em Montreal. 106
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pesar de bastante debilitada pela doença que a tem apoquentado nos últimos tempos, recebeu-nos em sua casa com um sorriso tranquilo no rosto. Nascida na freguesia do Livramento, Ponta Delgada, em 1930, fala-nos, resignada, dos tempos difíceis da infância, quando a insularidade era sinónimo de pobreza extrema e isolamento. «A vida era ruim porque na altura não havia muito que comer nem onde trabalhar. Era assim antigamente, o meu pai era camponês. Éramos dez filhos, muitas bocas para sustentar. Ainda cheguei a andar na escola mas depois deixei porque estive doente. As mulheres bordavam, faziam renda enquanto o meu pai e os meus irmãos trabalhavam ao dia nos campos.» O encontro com o futuro marido deu-se, como era frequente, numa festa, por entre foguetórios e fanfarras. «O meu marido era da Lomba de Santa Barbara e conhecemo-nos na festa do Senhor Santo Cristo, tinha 23 anos quando casei.» Vir para a América ou para o Canadá era a única maneira de fugir a uma vida madrasta e sem horizontes. O marido foi o primeiro a partir, apressado por conhecer os encantos das américas que tanto ouvia louvar. Quando os portugueses chegaram ao “quartier St- Louis” que mais tarde passou a ser conhecido pelo Bairro Português, encontraram um espaço urbano degradado e quase abandonado. Rapidamente, das mãos calejadas mas repletas de poesia brotaram verdadeiros milagres que fizeram renascer a vida e a esperança. A justificar o que já foi escrito noutro lugar: “Se visitarem Montreal, passem pelo “quartier St-Louis”. Lá encontrarão correntezas inteiras de prédios 107
ISABEL MEDEIROS DE MELO
garridos, com tomateiros e alfaces a crescer nos jardinzitos roubados ao asfalto. Podem bater sem receio. É gente portuguesa”. Foi por esses tempos em ebulição, em 1964, que a nossa entrevistada chegou ao Bairro, acompanhada pelos três filhos, para se reunir ao marido. A abastança que encontrou seduziu-a logo desde o primeiro dia, fê-la esquecer rapidamente as saudades das ilhas de bruma que deixara na imensidão do mar. «A vida era boa. Comprava-se um bocado de carne por pouco dinheiro. Era tudo barato, agora é que está tudo caro.» Deitaram-se à vida sem esmorecimentos, era preciso criar os filhos e construir o futuro. «O meu marido trabalhava num restaurante e eu numa fábrica de malhas. Fiquei lá oito anos mas depois adoeci com uma anemia e o meu marido não quis que eu fosse trabalhar mais.» Mas não se pense que ficou em casa de braços cruzados, à espera que o pão lhe caísse do céu . Puxou pela imaginação e pôs-se a cozer e a vender massa sovada cuja fama rapidamente correu de boca em boca. «Aprendi a fazer a massa com a minha mãe que me ensinou a fazer o tempero que lhe dá o gosto.» Entre outros ingredientes, revela-nos que ainda hoje inclui um pouco de aguardente para ”cheirar a massa”, como diz. «Amassava tudo à mão e cheguei a fazer uma saca de cem libras por semana. As pessoas sabiam e vinham a minha casa.» Recorda, como se fosse hoje, a primeira festa do Senhor Santo Cristo dos Milagres, realizada no Parc Jarry, no dia 13 de Maio de 1966. «Foi uma festa muito bonita, estava muita gente e um dia com muito sol. A imagem do Senhor que agora está ali na Igreja Santa Cruz, já esteve no Parc Jarry nesse dia.» É fácil adivinhar a alegria pincelada nos rostos, o deslumbramento da missa campal, as famílias em redor dos farnéis espalhados pela relva, a devoção a saltar dos olhos humedecidos pela comoção e, à medida que a tarde avançava e que a confraternização e as libações se sucediam, por uma alegria que já nada continha. Era o reencontro dum povo com as suas raízes e as suas tradições, o ressurgir da identidade meio esquecida na luta pelo pão em terras tão 108
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distantes e diferentes daquelas onde pela primeira vez viram a luz do dia. «Nós sempre ajudámos nas festas, dávamos muita massa cevada para as arrematações, para os Impérios.» Desde que as festas do Espírito Santo se começaram a realizar em Montreal, em 1979, poucos foram os anos em que não teve uma Dominga em sua casa. Ainda este ano, mais uma vez, assim aconteceu. Durante uma semana inteira foi um corrupio de gente pela casa para rezar o terço ao Divino. «As pessoas rezam o terço, cantam, comem, bebem, conversam, é uma alegria.» Relembra, saudosa, que também o marido, o sr. João Melo como todos o conheciam, falecido em 1995, era um grande devoto do Divino e chegou a ser mordomo do Império de S. João. Leva-nos a visitar a sala de que toda a gente fala e que é um assombroso preito de homenagem ao Espírito Santo. Ficamos atónitos com o que nos é dado ver. Coroas ricamente cinzeladas, a pomba branca do Espírito Santo por toda a parte, nas bandeiras, nos bordados, nas sedas. De permeio, uma enorme imagem de Nossa Senhora de Fátima, flores, nichos, vitrinas, uma profusão de imagens de Jesus, de santos, um deslumbre. «A luz está sempre acesa neste quarto, dia e noite, para iluminar o Espírito Santo. Venho aqui rezar muitas vezes, por todos, para que Deus nos dê forças para enfrentar o dia-a-dia.» Admiramos, mais uma vez, a primorosa confecção das bandeiras ornadas com esbeltas pombas brancas. «Fui eu que fiz as bandeiras para a Igreja Santa Cruz», revela-nos, com um sorriso. Ainda com os olhos assombrados, regressamos à mesa da cozinha onde prossegue a conversa. Fala-se com saudades do tempo em que no Bairro quase toda a gente era portuguesa, das conversas à porta da casa, dos animados piqueniques no Parc Lafontaine, pelos relvados da montanha. «Fazia sempre bolos lêvedos para levar para o parque.» As crianças cabriolavam ao redor das árvores. As mulheres faziam renda e falavam de tudo um pouco. Os homens jogavam às cartas, animados pelo bom vinho que fabricavam nos basements, com uvas da Califórnia. «Também fazíamos a matança do porco, duas vezes por ano», 109
ISABEL MEDEIROS DE MELO
segreda-nos. Quase que figuramos a alegre azáfama da preparação do fumeiro de chouriços e morcelas que curavam ao lume, na cave, no respeito das tradições ancestrais. Certamente inspirado pelas receitas maternas, mais tarde, o filho abriu uma reputada empresa de charcutaria que abastece as lojas e restaurantes portugueses. Mesmo entre os Québécois, já não há ninguém em Montreal que não conheça as inimitáveis saucisses portugaises. Ao longo dos anos, a família cresceu imenso, nasceram os netos, os bisnetos, de todos cuidou, pouco tempo teve para sentir saudades da terra onde poucas vezes retornou. «Já só lá tenho uma irmã», justifica. «Tenho muito medo de andar de avião.» Agora que os anos lhe vão tirando as forças, nem quer ouvir falar em lares para idosos. «Se eu fosse para um lar, morria mais depressa. Estou muito bem na minha casa.» Basta-lhe a visita de filhos e netos, sempre atentos às suas carências e que a envolvem de carinho. Da peixaria e das mercearias portuguesas levam-lhe os mantimentos a casa, já conhecem, de sobejo, os seus gostos e necessidades. Braçados de afectos a juntar a muitos outros, que a fazem sentir rodeada de amor. Também todas as noites a vêm visitar duas vizinhas para, olhos pregados no ecrã, assistirem juntas às peripécias da telenovela da emissão portuguesa. «Quando saem às dez horas da noite, fecho as portas e rezo aos meus santinhos.» Cala-se, um pouco fatigada, com aquele ténue mas eterno sorriso a enfeitar o rosto sereno. Pomba branca que se lhe aninhou, irradiante, no coração.
Nota: A senhora Isabel Medeiros de Melo faleceu no dia 11 de Junho de 2012, pouco tempo depois de nos ter concedido esta entrevista. 110
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Casimiro Xabregas
O homem que gosta de jogar até ganhar 111
CASIMIRO XABREGAS
Entrevista realizada a 26 de Maio de 2012, em Montreal. 112
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
M
arcámos encontro no Clube Portugal de Montreal, um lugar onde o nosso entrevistado se sente em casa ou não tivesse sido ele um dos seus fundadores no já distante ano de 1965. Sentado à nossa frente, com aquele ar folgazão de sempre, nem por sombras aparenta os seus sólidos 80 anos. O timbre de voz continua forte, determinado, de homem habituado a transpor os obstáculos da vida sem olhar para trás. «Nasci em Albufeira, no Algarve, em 1931. O meu pai foi muito jovem para Paris, fez uma vida de playboy e para vir para Portugal o meu avô teve que lhe mandar o dinheiro. Entretanto conheceu a minha mãe, casaram e tiveram filhos. Fomos viver para Lisboa e o meu pai continuou o mesmo de sempre, é claro, passámos muitas dificuldades. Para concluir a 4ª classe tive de ir para a casa do meu avô, em Albufeira. Os dois ou três anos que lá passei foram muito profícuos. Pertenci, como muitos garotos desse tempo, à Mocidade Portuguesa e esse facto permitiu-me aprender música e tocar vários instrumentos numa banda. Fiz também muita vela, com doze ou treze anos fui campeão de vela dos Luzitos da ala do Algarve e fiquei em 2º lugar nos campeonatos nacionais em Setúbal. Regressei a Lisboa com uma recomendação para ir tocar numa banda muito conhecida mas infelizmente o meu pai não tinha dinheiro para me comprar uma trompete e, até hoje, só me ficou a recordação.» Sempre com aquele ar desembaraçado que o caracteriza, fala-nos da sua carreira profissional que começou no comércio do ramo da electricidade e que o levou, em pouco tempo, a ser admitido na conhecida empresa Siemens como representante técnico. 113
CASIMIRO XABREGAS
Pelo caminho ficaram experiências várias, marcos importantes, os anos na tropa, o casamento e o nascimento do primeiro filho. A talhe de foice, revela-nos que praticou rugby em Portugal, onde foi campeão nacional por seis vezes, pela equipa do Belenenses, e representou garbosamente cinco vezes a selecção nacional. Apesar da vida desafogada que o confortável emprego lhe proporcionava e da vida social e desportiva de causar inveja, por influência dum amigo inscreveu-se na embaixada do Canadá, para onde emigrou em 1963. «Vim para um mundo desconhecido, não conhecia cá ninguém. Mas a verdade é que encontrei em Nova Iorque, onde fiz escala, um rapaz que ainda hoje é meu amigo, que trabalhava no Ontário e que me trouxe para Montreal onde me arranjou um quarto. Fui morar para casa de um outro português, de quem também continuo muito amigo, ali na rua Esplanade. Mas eu não vinha para aqui para fazer desporto, vinha para trabalhar.» Os primeiros empregos esporádicos e sem futuro que encontrou, cedo o levaram à conclusão de que aquele não era o caminho que procurava. «Fui para a escola, frequentei a École de Technologie Supérieure, onde tirei um curso com a nota mais alta.» Melhor apetrechado, encontrou emprego como electricista no Metropolitano de Montreal e mais tarde foi trabalhar para o porto de Montreal onde se envolveu na luta sindical. «A Internacional de sindicatos dominava todo o porto de Montreal e eu e outros colegas conseguimos fazer entrar a CSN, pelo menos assim o nosso dinheiro ficava no Canadá, não ia para os americanos. Como represália, penso eu, um dia incumbiram-me de abrir uma trincheira de dois pés de altura, dois pés de largura e cem pés de comprimento. Felizmente andavam a construir um armazém na zona e eu servi-me duma escavadora que lá se encontrava para fazer o trabalho. Como interpretei isso como um castigo, depois de concluir a tarefa apresentei o meu pedido de demissão por motivo de discriminação, que indiquei em grandes letras no impresso. Queriam que eu voltasse atrás mas já não havia nada a fazer, a minha decisão estava tomada.» Rapidamente encontrou novo emprego na Canadair, companhia de que guarda gratas recordações e onde permaneceu vários anos até se 114
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
estabelecer por conta própria quando fundou uma florescente empresa de instalações eléctricas, com sede na rua Duluth, que só encerrou portas há cerca de uma dezena de anos. Menciona, com evidente orgulho, o facto de ter sido o primeiro empreiteiro português de electricidade em Montreal. A viver, desde a sua chegada, no Bairro Português, na rua Henry Julien, onde permaneceu muitos anos, os primeiros contactos com a Comunidade Portuguesa aconteceram com a maior das naturalidades. Fundador do Clube Portugal de Montreal, recorda com carinho os primeiros tempos quando os recursos eram escassos e era preciso recorrer a todos os estratagemas. Mas o que faltava em meios materiais sobejava em entusiamo e generosidade. «O Clube nasceu num sítio fantástico, quase na esquina da St-Denis com a St-Catherine. Fazíamos as nossas festas, mas para o clube ser o que é hoje sofremos todos muito, as nossas mulheres e os nossos filhos incluídos. Nós é que fazíamos a comida, os pastéis de bacalhau, os rissóis eram feitos nas nossas casas e eram vendidos no bar do clube para cobrir as despesas. Mas era assim naquele tempo, no fim das festas os nossos filhos ficavam a dormir em cima das mesas enquanto fazíamos as limpezas. Depois ainda passámos por vários locais antes de nos estabelecermos aqui, na St-Laurent, na sede actual. Mas isso são histórias que já foram contadas muitas vezes.» Para a maioria das pessoas este envolvimento já poderia ser extremamente esgotante mas isso não seria contar com a energia transbordante que o animava. Sorri, bem humorado, antes de prosseguir a sua narrativa. Pelo meio, diz uma ou outra chalaça, está à vista que é homem de encarar a vida pelo melhor lado. «Também fui um dos fundadores da Caixa de Economia dos Portugueses de Montreal. Quando nos reunimos pela primeira vez era para fundar uma cooperativa de habitação, que era a ideia inicial do Neves Rodrigues, um homem com uma inteligência extraordinária mas muito sonhador. Por várias razões, aquilo não resultou e surgiu então a hipótese de fundar a Caixa. Conseguimos o apoio das Caisses d'Économie e começámos com dinheiro emprestado por eles. 115
CASIMIRO XABREGAS
Entretanto fizemos uma reunião onde ficou estabelecido que os primeiros 50 membros seriam considerados membros fundadores. Os nossos começos foram muito modestos com instalações na Pins mas felizmente, como toda a gente sabe, a Caixa Portuguesa é presentemente uma instituição de grande honorabilidade que muito tem ajudado a nossa comunidade. Fiz parte do C.A. durante 32 anos e recentemente a direcção da Federação Desjardins atribuiu-me um diploma de distinção que eu, com muita honra, tenho pendurado lá em casa. Também a nossa Caixa deliberou nomear-me membro-honorário. É um reconhecimento que me deu muita satisfação.» No tempo em que existiam vários clubes de futebol na comunidade, que participavam alegremente nas diversas competições que se realizavam, ainda lhe sobrou ânimo para ser o preparador físico da equipa de futebol do Clube que, diga-se de passagem, chegou a consagrar-se campeã do Québec. Solta uma gargalhada divertida quando evoca os lamentos dos jogadores martirizados pelas disciplina imposta. «Diziam que eu era louco porque parecia que estava a dar ginástica para pára-quedista mas a verdade é que toda a gente se admirava, jogávamos noventa minutos mas tínhamos pernas para jogar ainda mais noventa, se fosse preciso.» Chegada a hora de fazer balanços, os seus vaticínios quanto ao futuro da Comunidade Portuguesa não são muito encorajadores, o homem pragmático que sempre foi não tem papas na língua. «As nossas instituições estão a envelhecer e os jovens não querem saber de nada. Ou melhor, querem mas à maneira deles.» Aliás uma das suas mágoas é não conseguir trazer os netos ao Clube. «Eles querem lá saber disto. Também queria que fossem à escola portuguesa, como os meus filhos foram, mas o avô já não manda nada.» Encolhe os ombros, resignado. «O que mais posso fazer?» Segundo o seu ponto de vista, as nossas associações e clubes têm de passar por um fase de reestruturação completa de forma a tornarem-se mais funcionais e atraentes. «Talvez enveredando pela transformação em clubes privados e pela remuneração dos dirigentes e empregados», sugere. 116
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Como sempre acontece, ainda aflorámos a inevitável temática do regresso a Portugal e das crónicas saudades do torrão natal mas o nosso entrevistado não é homem de pieguices, o sangue quente do tenaz jogador de rugby ainda lhe ferve nas veias. «Tenho visitado frequentemente o país, fico lá cinco, seis meses, tenho amigos em todo o lado, mas também me sinto bem por cá. Não estou descontente, como acontece por aí com muita gente. Gosto da vida, gosto das flores, gosto de olhar as belas mulheres», resume, com mais uma risada. Com a conversa a chegar ao fim, o Clube começa a encher-se de comensais atraídos pela recendente caldeirada do habitual almoço dos sábados. Também os ecrãs gigantes já debitam as primeiras imagens de mais um jogo de futebol da selecção portuguesa. Entre duas garfadas, acendem-se aqui e ali algumas discussões sobre os critérios do seleccionador, sobre a pertinência das convocações, acerca desta ou daquela jogada. Nós para ali em elucubrações sobre a saudade e a lonjura e Portugal aqui tão perto.
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Adelino Pragelas
A honra de ser pioneiro 119
ADELINO PRAGELAS
Entrevista realizada a 2 de Junho de 2012, em Montreal. 120
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
É
sempre impressionante estar na presença de um dos pioneiros da Comunidade. É como se nos envolvesse um outro tempo, quando tudo estava por construir mas também quando sobrava a coragem e a determinação para ultrapassar todos os obstáculos por mais intransponíveis que se apresentassem. Adelino Pragelas nasceu em Santa Cruz, na Ilha da Madeira, em 1928, no seio de uma família humilde. «O meu pai era sapateiro, naquele tempo não havia sapatarias. Tinha muito trabalho. Fazia calçado para toda a gente. Depois de fazer a terceira classe, não quis estudar mais, o que eu queria era trabalhar. Comecei como empregado numa taverna, fora da terra, numa freguesia longe da minha. Era perto do Funchal, ficava em casa dos patrões, não havia estradas e era preciso ir de barco para lá. Vendíamos todo o tipo de bebidas, vinho, cerveja, sidra, tudo isso. Comecei a trabalhar desde a idade de doze anos e nunca mais parei.» Quando a memória lhe prega partidas, a seu lado, a mulher, a senhora Francisca, é duma ajuda prestimosa, com as datas frescas na cabeça como se tudo se tivesse passado recentemente. «Mais tarde larguei o trabalho para ir para a tropa. Quando fui à Câmara ver os nomes, eu tinha ficado como auxiliar, o que queria dizer que não ia para a tropa. Fiquei sem trabalho. Fui ter outra vez com o meu patrão e como ele também tinha uma empresa de carreiras, lá me arranjou trabalho como cobrador. Mas ao fim de um mês já não tinha emprego outra vez. Certo dia, ia pela estrada adiante quando pára um carro ao pé de mim, era o senhor professor da freguesia de Santa Cruz. 121
ADELINO PRAGELAS
“O que fazes por aqui?” perguntou-me. “Senhor professor, estou sem trabalho”, respondi. E expliquei-lhe o que me tinha acontecido. “Passa amanhã lá no meu estabelecimento, para começares a trabalhar”, foi a resposta dele. Era um estabelecimento de mercearia e taverna, vendia de tudo. Estive lá até vir para o Canadá.» Quando chega a altura de falar do encontro com a futura mulher, passa mão pelo rosto, divertido. A senhora Francisca solta um risinho cacarejado, ruborizada como uma catraia. «Bom, isso já foi outro caso. Ela era minha vizinha, passei por ela e não a conhecia. Mas um dia, à hora do almoço, fui a casa duns primos e encontrei-a lá. Passado uns dias o meu patrão mandou-me para uma venda que era perto da casa dela e um dia ela foi lá às compras.» Aqui existem algumas divergências entre o casal, sobre os detalhes dos primeiros encontros mas isso é um pormenor secundário, o certo é que passados catorze meses estavam casados e prontos para pensar no futuro. Aqui é a senhora Francisca que explica: «Um dia, na missa, o padre anunciou que quem quisesse vir para o Canadá que fosse ao Funchal dar o nome. Cheguei a casa e falei-lhe no assunto.» «Quando vim para o Canadá, ela já estava grávida, ficou lá, mais a mãe e o pai», precisa ele. Foi assim que passado pouco tempo, juntamente com mais 101 outros madeirenses embarcou no navio Nea Hellas, sem mesmo saber onde ficava o Canadá. Após longos dias sobre o dorso das ondas, por entre enjoos e angústias, chegaram a Halifax, no dia 2 de Junho de 1953. É fácil imaginar os olhos espantados daqueles homens, na sua grande maioria saídos do mundo rural, quando pisaram aquela terra desconhecida e imensa. Mostram-nos, com respeitosa veneração, um quadro com uma estampa do Nea Hellas, legendada em inglês, onde está assinalada a inesquecível data da chegada. «À chegada, estava lá um inspector da emigração, um para este lado, outro para aquele, foi cada um para o seu lado. A mim aconteceu-me uma coisa bela.» A dor já atenuada pelo tempo, ri com vontade. «Eu lixei-me, fui enviado para Toronto. Fiquei uma noite no hotel para dormir e para 122
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comer. No outro dia foram-me buscar para uma farme em Valleyfield. Aquilo era trabalhar de manhã à noite, sem largar. Sem saber falar inglês nem francês, sentia-me perdido, o que me valia era que também lá estava um açoriano com quem conversava.» Entretanto, aventura atrai aventura, por intermédio do companheiro açoriano, conheceu um casal de luso-americanos que viviam em Montreal e não esteve com meias medidas, pegou na mala, apanhou o autocarro e passadas escassas horas já estava a bater-lhes à porta da casa. Os inesperados amigos eram gente generosa, abriram-lhe as portas, deram-lhe abrigo, arranjaram-lhe emprego numa fábrica de bijuteria. Quando a mulher chegou a Montreal já vinha com a criança agarrada às saias, cheia de coragem para recomeçar a vida ao lado do homem que o destino lhe dera. Como acontecia com grande parte das portuguesas, encontrou trabalho como mulher a dias, felizmente em casa de uma brasileira que se lhe afeiçoou e que ajudou imenso o casal nos primeiros anos. Foram anos de muitas privações, problemas de saúde do filho mais velho, mudanças de emprego e outros dissabores. «O nosso filho esteve internado dois anos, passámos grandes tormentos. Não havia ainda medicare, tínhamos de pagar tudo, gastámos muito dinheiro. Foram muitos anos de sacrifício.» A Comunidade Portuguesa começava a dar os primeiros passos, ainda não tinham chegado as grandes levas dos anos sessenta que depois povoaram o Bairro e, logo de seguida, o reconstruíram de alto a baixo, com cores bem mais garridas. «Ao princípio eram quase só homens, as mulheres começaram a chegar depois. O que os homens queriam era ganhar dinheiro, comigo foi o contrário, o que eu queria era a mulher comigo.» Depois da passagem por uma panificadora, encontrou emprego mais estável numa tabaqueira onde permaneceu 29 anos até à idade da reforma. «Ao fim de pouco tempo, fui para operador de máquinas. Quando saí de lá, sabia trabalhar com elas todas.» O correr dos anos trouxe maior equilíbrio, aspirações mais largas, durante tanto tempo adormecidas, começaram a borbulhar à tona do quotidiano. «Conheciam o padre José Manuel de Freitas? Um dia disse-me: a 123
ADELINO PRAGELAS
gente vai formar uma comissão para realizar a festa da Nossa Senhora do Monte. Mas para se formar a comissão foi um tormento, foi uma coisa morosa, todos à volta da mesa disseram que não queriam ser presidentes, quando chegou a minha vez não tive outro remédio senão aceitar.» Foi assim que, depois de muitos avanços e recuos, mas sem nunca esquecer o norte, a primeira festa se realizou em 1984, defronte da antiga igreja da rua Clark. Nota-se a alegria derramada pelo rosto do nosso entrevistado, e não é para menos, presentemente a Senhora do Monte é uma festa solidamente ancorada no calendário das festas da Comunidade que atrai grandes multidões no mês de Agosto. O bolo do caco e as espetadas já fazem parte do imaginário colectivo dos portugueses de Montreal, o religioso e o profano souberam estrelaçar as mãos harmoniosamente. «Andei de porta em porta dos madeirenses, a pedir, para fazer a primeira festa. Nesse ano ainda não tivemos a imagem da Nossa Senhora. Mais tarde, quando chegou, foi uma alegria.» Também as mulheres se implicaram de alma e coração. É a senhora Francisca que explica: «Deu muito trabalho, havia as bandeiras para fazer e para pintar. Foi um trabalhão, mas éramos muitas mulheres a ajudar, com a ajuda da santinha tudo se fez.» É ainda ela que nos fala da irmã com dez filhos, a quem enviou uma carta de chamada, por compaixão, e que, pouco depois, para tranquilidade de todos, se lhes veio juntar. Mostra-nos a fotografia de família com os filhos, os netos, um bisneto, uma prole já nascida no Canadá, que já pertence a outros mundos e a outro tempo. «Os nossos netos falam o português, andaram na escola portuguesa. A nossa língua não se deve esquecer. Mas eles querem é falar inglês, a língua está sempre a fugir-lhe para aquilo», ri ele, divertido. Desde o princípio que salta aos olhos estarmos na presença de um casal que aceitou a chegada da velhice com a tranquilidade de quem atravessou o rio da vida sem outras aspirações que as de viver o dia a dia na melhor paz de espírito. «Fizemos uma casa em Santa Cruz, na nossa terra, e agora vamos lá todos os anos, enquanto Deus quiser.» Os olhos iluminam-se, um sorriso rasga-se de orelha a orelha. «Partiremos dentro de duas semanas, 124
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já estamos desertos para chegar lá. Gosto daquilo, gosto de comer e beber mais os amigos mas depois, passados uns tempos, já me apetece voltar, já não dá para ficar lá. Com a mulher, passa-se o mesmo, já somos mais de cá do que de lá.» Enquanto o dia da partida não chega, irão passear pelos centros comerciais, admirar as montras, comer um bolo aqui ou ali e, depois, repousarem-se nalgum banco tranquilo onde aproveitarão o tempo para acertar os últimos detalhes da viagem.
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David Dias
Um transmontano talhado em granito 127
DAVID DIAS
Entrevista realizada a 4 de Junho de 2012, em Montreal. 128
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H
á quem diga que a gastronomia é a componente mais importante da identidade dos povos errantes. Será também a forma mais eficaz e prática de aproximação com a sociedade de acolhimento. A cozinha portuguesa levou certo tempo a afirmar-se mas, finalmente, alcançou um prestígio digno de nota. O ramo da restauração, cada vez mais florescente, é, presentemente, um dos mais sólidos esteios da afirmação cultural e económica dos portugueses em Montreal. Mas para que tal acontecesse, foi preciso que homens visionários e pioneiros como David Dias tivessem tido o arrojo de transformar o sonho em obras que tanto engrandeceram a Comunidade. “Nasceu em Salselas, concelho de Macedo de Cavaleiros, em 1939. Aos 14 anos empregou-se na indústria hoteleira, no Porto. Aos 19 anos já era funcionário do Palace Hotel de Vidago. Cumpriu o serviço militar e, logo a seguir, ingressou no Hotel Ritz, em Lisboa. Em 1965 emigrou para o Canadá, com vista a cumprir um estágio de dois anos no Ritz Montreal. Acabou por ficar por lá. Hoje é um empresário de sucesso no mesmo ramo. Possui um grande restaurante na zona antiga de Montreal o “O Solmar” e um hotel, “Le Petit Chateau”, numa montanha turística, a cerca de 100 km de Montreal. (...)” É assim que no Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e Alto Durienses vem mencionado este transmontano talhado em granito. Estamos sentados num recanto tranquilo do restaurante e através da rasgada janela vemos deambular os turistas pelas calçadas do Vieux Montréal. O nosso entrevistado, visivelmente de bom humor, abre a conversa com duas ou três chalaças: 129
DAVID DIAS
«Eu chamo-me David de Deus Dias, cuidado porque estão a falar com Deus. Eu costumava dizer que me formei em facilidades na universidade de Macedo de Cavaleiros mas agora como já lá há universidade não posso dizer isso. Fui uma criança que gostava muito de jogar à bola mas o meu pai, que tinha uma sapataria que fazia sapatos e botas para aqueles grandes agricultores, não queria ouvir falar em bolas porque davam cabo do calçado. Era todo direito, todo justiceiro e torceu-me muitas vezes as orelhas por causa disso. Fiz o exame da 4ª classe com distinção, era um bom aluno e, como tinha na família dois ou três padres, fui estudar para o seminário do Convento de Cristo em Tomar. Ao fim de dois anos, eu era bom em tudo mas o meu comportamento deixava muito a desejar e, como disseram que eu não tinha vocação para padre, mandaram-me embora.» Como diz a sabedoria popular, perdemos um padre mas ganhámos um empresário de sucesso. Mas, para lá chegar, ainda teve de dar muitas voltas no carrossel da vida. «Tinha uma tia no Porto que me arranjou trabalho numa mercearia. Depois entrei na restauração, comecei a trabalhar atrás dos balcões das casas de vinhos e petiscos, foi assim que aprendi a profissão. Entretanto, na altura, era muito complicado e só se podia ser profissional a partir da idade dos dezoito anos. Quando atingi a idade, tive de pagar a um restaurador para me sindicalizar. Mais tarde requeri o exame de empregado de mesa de 3ª e fui admitido num grande hotel, o Palace Hotel de Vidago.» O restante percurso da sua carreira em Portugal até à chegada a Montreal já vem mencionada na pequena biografia inserida no “Dicionário”, como já referimos. Mas deixemos o nosso entrevistado acrescentar mais alguns detalhes: «Vim sozinho conhecer o caminho e a minha esposa juntou-se-me passados três meses. Quando ela chegou, aluguei uma casinha no 3653 da rua Jeanne Mance. Fixei esse número porque passados dois anos comprei um duplex, com o mesmo número de porta, na rua Hôtel de Ville, de que ainda hoje sou proprietário. Comecei a trabalhar nos restaurantes, entre os quais no restaurante Fado, que era dum português, aqui no Velho Montreal. Em 1972, havia duas pessoas interessadas em abrir um restaurante na rua St-Laurent e vieram falar comigo para saber se eu 130
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estaria interessado em ser sócio. Foi assim que inaugurámos o Estoril-Sol, o segundo restaurante mais antigo de Montreal já que o primeiro foi o Lisboa Antiga. Quando desfiz a sociedade, três outros portugueses que já tinham um restaurante na rua Peel, “O Solmar”, ofereceram-me sociedade. Passado pouco tempo aquilo foi também por água abaixo e como o Estoril-Sol também encerrara as portas, eu, sozinho, transferi “O Solmar” para a rua St-Laurent, onde permaneceu muitos anos.» David Dias, para além de ser empresário de garra, no fundo da sua alma é também um sonhador inveterado. O seu maior sonho, bem guardado lá no fundo da alma, era transformar o restaurante num pólo de difusão da cultura portuguesa. «Logo desde o princípio, comecei a mandar vir artistas de Portugal, a primeira foi a Celeste Rodrigues, a irmã da Amália, acompanhada pelos seus guitarristas. Também não esqueci os artistas da Comunidade, o Germano Rocha, o Rui Mateus, o Luís Duarte, entre outros. Em 1978 comprei aqui o edifício aqui no Velho Montreal. No rés-do-chão abri um restaurante de cozinha francesa e depois transferi “O Solmar” da St-Laurent para aqui, para o 1º andar. Um país antigo como Portugal condiz bem com esta zona mais antiga da cidade. Eu costumo dizer aos quebequenses que muitos deles são descendentes de portugueses. Há mapas antigos que mostram bem que os portugueses foram os primeiros a cá chegar.» E, como não podia deixar de ser, a conversa conduziu-nos para os acontecimentos culminantes da sua actividade: «Quando ainda estava na St-Laurent, realizei grandes eventos como a vinda da Amália Rodrigues à Place-des-Arts, se não me engano em 1975. Também cá tive o Rui de Mascarenhas que igualmente actuou na Place-des-Arts. Graças ao renome destes grandes artistas comecei a ser muito notado e posso dizer que já fiz mais de cem programas de televisão onde divulguei a gastronomia e a cultura portuguesas. Nessas ocasiões, eu levo sempre as nossas loiças em barro, as toalhas bordadas à mão, os nossos galos decorativos, não deixo nada ao azar. Quando a Amália cá esteve pela segunda vez, como já éramos bons amigos, cedeu-me os seus guitarristas durante uma semana completa e todas as noites passava por cá. Os próprios guitarristas se admiravam pois diziam não era costume dela, era como se sentisse em casa.» 131
DAVID DIAS
Um orgulho irreprimível transparece nos olhos do nosso entrevistado. «A vinda dos artistas de Portugal sempre continuou, ainda agora veio o Toy pela terceira vez; terei aqui, no próximo fim-de-semana o grande cantor Carlos Guilherme que virá a Montreal a convite da Caixa Portuguesa para as celebrações do 10 de Junho. Como sabem, tive sempre na minha casa os melhores artistas locais, como o mestre Artur Gaipo, o José João, o Luís Duarte, a Marta Raposo, o grande pianista Carlos Ferreira, para só mencionar alguns.» Com os anos a passar, sente urgência em arredar certos impedimentos à realização dos seus planos mais imediatos. «Comprei um restaurante em Albufeira e gostaria que os meus filhos se decidissem a tomar conta disto para eu poder passar mais tempo em Portugal, o que é um grande desejo da minha esposa. Espero que tudo se resolva e que este seja o meu último ano por cá.» A nossa conversa caminha para um ponto final, não restam dúvidas que o homem que está à nossa frente, seguro de si, cosmopolita, é o exemplo acabado do cidadão do mundo que correu seca e meca e assistiu a muitos actos da eterna comédia humana. Mas, de chofre, vindas sabe-se lá donde, talvez do poço profundo das memórias da infância, soltam-se palavras inesperadas que nos deixam atónitos: «Sabem, eu sempre gostei muito de Salselas, a minha terra, o meu grande sonho era regressar lá, criar um rebanho de cordeiros ou de vacas e trabalhar na agricultura com um tractor, é isso de que Portugal está a precisar, que as pessoas regressem ao campo. As terras que lá tenho estão todas abandonadas, mesmo de graça não há quem as queira cultivar, alguma coisa está mal.» Este inopinado desejo de regressar às origens, trazem-nos à lembrança as palavras de certo escritor que escreveu que, por vezes, é preciso dar a volta ao mundo para descobrir o tesouro que está escondido à porta da nossa casa. Pela ruga que serpenteia pela fronte do nosso entrevistado e, sobretudo, pelo seu olhar cintilante, estamos prestes a dar-lhe razão.
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Fernando Machado
O rei do “Poulet portugais” 133
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Entrevista realizada a 8 de Junho de 2012, em Montreal. 134
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e a cozinha portuguesa mais refinada já é, hoje, um dos mais vistosos florões da Comunidade, não nos poderemos esquecer daquela cozinha mais popular mas não menos importante, até mesmo mais autêntica e mais chegada à alma portuguesa que, passo a passo, pacientemente, vai conquistando terreno e incrustando-se na idiossincrasia das gentes desta terra. Para constatá-lo, basta no verão deambular pela feira da rua St-Laurent e admirar a gulodice com que os passeantes se regalam com petiscos como as bifanas, o chouriço assado e o frango de churrasco cujos odores saltam alegremente por todo o lado. Também, dia após dia, em pleno coração do Bairro Português, quem passa pelo Romados não pode deixar de reparar nas longas bichas de gente à espera das bifanas e do famoso “poulet portugais” que, às centenas, rechinam sobre as enormes grelhadores. No meio de tanta azáfama, não será difícil encontrar o nosso entrevistado que, com olhar tranquilo, tudo observa, certo de ter, finalmente, encontrado a sua galinha dos ovos de ouro. Mas nem sempre foi assim, desde a sua chegada ao Canadá, em 1966, várias foram as vezes em que os negócios não lhe correram de feição e muitas noites passou em claro a deitar contas às vida. Nascido em 1939, no Cercal, perto do Cadaval, não se alonga muito sobre a sua infância. «A minha família era de bens mas, depois de fazer a instrução primária, fui trabalhar para uma oficina de serralharia, até ir para a tropa. Fui condutor do ministro do exército, Almeida Fernandes, que, quando fui mobilizado para Angola, queria-me livrar mas eu, com aquele espírito 135
FERNANDO MACHADO
de aventura dos jovens, não aceitei; bastante me arrependi depois, mas enfim.» Estava-se em 1961, rebentara a guerra colonial em Angola e Salazar acabara de proferir a célebre frase: “Para Angola, rapidamente e em força.” Quando desembarcou em Luanda, a confusão era imensa, o pavor andava à solta, os mastins do ódio atiçados pelas ruas transformadas em rios de sangue. «Quando chegámos, Luanda era guardada pelos civis, nós é que os fomos substituir na segurança da cidade. Depois, conforme iam chegando mais tropas, avançámos para o mato, Ambrizete, Beça Monteiro, Noqui, todo o norte de Angola. No regresso a Luanda, ainda lá estivemos mais três meses, até embarcar para Portugal.» Nota-se uma certa relutância em falar de tempos tão difíceis, quando o norte angolano foi varrido a ferro e fogo e as colunas de soldados, à medida que avançavam penosamente, se deparavam com as mais horrendas carnificinas. «Felizmente, só tive a pele furada pelos mosquitos, com alguns sacrifícios, bem ou mal, tudo se passou.» Lacónico, é só o que relata, é evidente que pretende passar uma esponja sobre o assunto. Regressado a Portugal, a febre da emigração para o eldorado da Europa esvaziava as povoações portuguesas de norte a sul, não havia comportas que resistissem ao despertar dum povo sequioso de mais amplos horizontes. «Estava empregado na Tap, como mecânico dos serviços terrestres mas, passado um ano, voltou o desejo de aventura da juventude e fui para França onde estive três anos empregado como mecânico de uma fábrica de tijolo. Fui muito bem acolhido, os patrões gostavam de mim, entretanto casei em Portugal, a minha mulher foi ter comigo. O pior foi quando aqui cheguei.» Um esgar cobre-lhe o rosto, coça a cabeça. «Mais uma vez foi por aventura que vim para cá, a gente ouvia as pessoas falarem disto, li num jornal francês que o Canadá estava a precisar de mecânicos, inscrevi-me e eles aceitaram-me logo.» Torna a coçar demoradamente a cabeça. «Vi logo que tinha feito mal, estava bem em França e vim para aqui a ganhar 95 cêntimos à hora, a trabalhar num 136
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
hotel a lavar pratos. Nunca mais trabalhei na minha profissão. Mais tarde, fui trabalhar num supermercado de portugueses, a Pombalense, situado na rua Roy. Naquele tempo só havia para aí uma peixaria que vendia peixe fresco importado de Portugal, e três ou quatro mercearias com produtos portugueses. Mais tarde começaram a aparecer outros comércios, infelizmente alguns já desapareceram. Estou-me a lembrar de casas de móveis como o Vieira e a Arca que tiveram muita reputação, a malta chegava, ia lá comprar a mobília, ia pagando aos poucos, foi uma grande ajuda para muita gente. Passados cinco anos, eu e mais duas pessoas amigas comprámos uma padaria, em Ottawa, mas como a família não queria ir para lá, regressei a Montreal, foi quando abri a Flor do Lar.» A Flor do Lar era um autêntico monumento da Comunidade Portuguesa, uma sólida ponte com a terra-mãe. Vendia loiça de barro portuguesa, os vistosos galos de Barcelos e, sobretudo, os jornais e revistas que chegavam por avião. Nos dias aprazados, as pessoas estavam à espera dos jornais como do pão para a boca. Quando surgia algum contratempo que retardasse a chegada, era um cataclismo que se abatia sobre as cabeças desamparadas. «Era muito trabalhoso, tínhamos que ir duas ou três vezes ao aeroporto buscar os jornais. Como a minha mulher se começou a ocupar mais tempo da loja, tornei-me também sócio da padaria Levine, estive lá dez anos até que fiz um mau negócio. Perdi quase tudo, aos 55 anos, não foi fácil. Estabelecido, há cerca de 15 anos, com o actual estabelecimento, sente-se, após tanta luta, um homem realizado e feliz. «Esta ideia nasceu do facto de eu ir muitas vezes a Portugal, contactava lá muitos restauradores que vendiam frango no churrasco e pensei que seria uma ideia boa para importar para cá.» A ideia foi tão bem acolhida que, presentemente, o Romados é um ícone do Bairro Português. Apetrechado com uma churrasqueira, uma secção de padaria e pastelaria onde não faltam os emblemáticos pastéis de nata, além duma charcutaria onde se fabrica o inconfundível chouriço português, pode-se afirmar que não há vitualha de origem 137
FERNANDO MACHADO
portuguesa que por lá não se possa encontrar. «A clientela é de todas as raças, portugueses, chineses, marroquinos, quebequenses, muita malta da América latina também.» Com a freguesia florescente e com um dos filhos e a nora cada vez mais implicados na administração, a continuidade do negócio não lhe causa preocupações. Mágoa, isso sim, ficou-lhe com o encerramento da Flor do Lar. «Tive pena, então a minha mulher nem se fala. Foram mais de 30 anos que lá estivemos. Vendemos milhares de galos de Barcelos aos Québécois que lhe chamam o coq du bonheur e que o têm em casa como talismã, só por isso merecíamos uma condecoração. Mas tudo tem o seu tempo, a idade tudo leva. Agora que aquilo é uma loja de roupas, nem gosto de olhar para lá.» Quando lhe falamos na reforma inevitável, encolhe os ombros, resignado, sem tristezas. «A gente tem de dar o braço a torcer, agora já pouco faço aqui, venho para cá para não estar em casa a chatear a mulher ou a ver televisão, encontro pessoas com quem me dou bem, converso um bocado, vou ali ao restaurante e bebo um café. Ir para Portugal de vez também nunca me passou pela cabeça, gosto de lá ir mas não me tenta lá ficar muito tempo, a vida é assim.» Quando nos despedimos, a bicha continuava interminável e a rescendência dos frangos grelhados fazia fremir as narinas. «Le poulet portugais est très bon», ouvia-se comentar ao redor.
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Manuel Rodrigues (Bito)
(1935 -2011) 139
MANUEL RODRIGUES (BITO)
Carta escrita a 10 de Junho de 2012, em Montreal. 140
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
Amigo Bito, Já andava para te escrever desde o dia em que nos deixaste. Mas sabes como é a vida, sempre cheia de imprevistos, vamos adiando e o tempo, numa correria, está sempre a atraiçoar as nossas boas intenções. Mas nem te passe pela cabeça que começas a ficar esquecido. Como poderia esquecer um dos homens mais íntegros e generosos com quem me cruzei na estrada da vida? Como poderia esquecer um homem que transpôs as íngremes montanhas da existência sem perder a candura da infância e a capacidade de se maravilhar com os pequenos milagres de cada dia? Quem te conhecesse, e eu tive esse privilégio, sabia que eras um homem autêntico, perfeccionista, vibrante, duma enorme sensibilidade que escondias por detrás da máscara, quase severa, que afivelavas em público. Olha, hoje falei com a Fernanda, a tua mulher. Por lá vai tentando sarar as mágoas da tua ausência. Falámos demoradamente de ti, engolimos lágrimas, por vezes sorrimos, enternecidos, imbuídos da tua presença. Como é natural, começámos pelo princípio, pela origem: a tua Mina de São Domingos. O orgulho com que mencionavas ter sido a primeira aldeia de Portugal a ser electrificada nos tempos áureos da exploração do minério! Vezes sem conta me falaste, com a mágoa ainda presente na voz, do declínio que sobreveio com o encerramento da mina. Os equipamentos e instalações a desmoronarem-se, a aldeia a asfixiar, as gentes a abalarem, de coração partido, como tu fizeste. 141
MANUEL RODRIGUES (BITO)
Quando nos encontrávamos, ou telefonávamos, referias, impreterivelmente, o manuscrito que, qual Penépole a tecer a sua peça, andavas a escrever, com amor desmedido, sobre a tua Mina. Nos últimos anos, quando por lá começaste a passar temporadas mais prolongadas, eras o cicerone voluntarioso e incansável de qualquer turista que se aventurasse por aquelas terras. Quem melhor do que tu conhecia até ao mínimo detalhe o historial daquele mundo esventrado pela extracção do cobiçado cobre? Tu que lá labutaste, ombro a ombro, com os teus camaradas mineiros, devias conhecer, de olhos fechados, os mais ínfimos recantos. À chegada a Montreal, em 1969, acompanhado pela tua mulher e pelo teu filho, desde o princípio pertenceste àquele grupo de «portugueses da parte oeste de Montreal que costumavam confraternizar em animadas partidas de futebol, sendo lendários os embates entre a Barclay e a Randall que invariavelmente terminavam com “rijas” sardinhadas bem regadas a vinho tinto, como mandam as boas regras da cozinha portuguesa». Daí até à fundação do Clube Oriental Português de Montreal, a 10 de Dezembro de 1978, foi um passo. Como tu assumias, com uma seriedade comovente, a enorme responsabilidade de seres o sócio no. 1! E com que alegria vias, ano após ano, o Clube crescer e desenvolver-se com uma pujança inesperada, repleto de vida, de actividades novas e de esperanças sem fim. Foi também por esses dias que, segundo as tuas próprias palavras, mais um sonho abriu as asas: «Era um grupo de homens e mulheres que se juntavam em festas e, lembrando os imensos campos de trigo salpicados de papoilas, cantavam com nostalgia as modas dessa província sem sombras e que os viu nascer, o Alentejo, nasceu assim a ideia de se formar em terras canadianas um grupo coral alentejano.» Rapidamente, o sonho ganhou forma e transformou-se numa bela realidade: a primeira exibição do Grupo Coral Alentejano de Montreal aconteceu no dia 27 de Abril de 1980 na cave da igreja Saint Louis-de-France, nos festejos comemorativos do 25 de Abril. Cantar, ombro a ombro com os teus camaradas, a Grândola, Vila Morena, fez-te saltar as lágrimas rosto abaixo. Era o teu encanto e o teu pesadelo. Daí para a frente, em cada 142
ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
exibição, a par da imensa emoção mal contida, como te mortificavas quando, nos meandros das cantigas, alguma nota se soltava mais desafinada! «Não se notou nada», tranquilizavam-te as pessoas, mas não ficavas convencido, continuavas a abanar a cabeça, atormentado, cavaleiro andante da perfeição. Também, quantas horas gastámos juntos a elaborar o Boletim do Oriental! A tua minúcia e o teu preciosismo eram para mim um espanto e uma fonte de ensinamentos. E lá vinha, como sempre, a tua crónica inquietação. As gralhas que, traiçoeiramente, invadiam os textos tiravam-te o sono, punham-te os nervos à flor da pele. Que saudades desse tempo! Quando a tua neta, a Mélissa, filha de mãe quebequense, começou a crescer, a fazer-se mulher, falaste-me tanta vez das regaladas conversas que mantinham e que se estendiam por tardes intermináveis dos teus encantos. A sua ânsia de saber, de ti herdada, a sua sede inesgotável de beber dos teus lábios o manancial de histórias de antanho que narravas como ninguém, eram o teu maior prazer na vida, principalmente quando a doença, traiçoeiramente, te invadiu o corpo e te foi, pouco a pouco, roubando as forças. Intencionalmente, reservei para o fim a melhor e mais saborosa notícia que te queria dar e que te irá fazer muito feliz. Olha, amigo, a tua neta irá, brevemente, de férias a Portugal, acompanhada pela tua mulher. A ânsia de conhecer o mundo encantado que lhe pintavas não lhe dá tréguas. Não descansará enquanto não respirar o mesmo ar que te fez dar o primeiro grito, enquanto não chegar ao entendimento da razão do pulsar mais autêntico do seu ser miscigenado. Alguma coisa me segreda que estarás lá à sua chegada, diligente por guiar-lhe os passos ao encontro das suas raízes portuguesas. Começarão pela visita à mina, deambularão por entre as carcaças da maquinaria abandonada, dos esqueletos das instalações, da tua boca ouvirá histórias de maravilhar, quando a vida pululava por aqueles lugares agora desertos. Acabarão por entrar na povoação quando os dardos do sol estiverem mais atiçados, irás apresentá-la àquelas boas gentes que ainda se recordam do menino azougado que foste e por ali ficarão, na frescura das 143
MANUEL RODRIGUES (BITO)
sombras, num tagarelar sem pressas, a relembrar tempos idos. Mal o sol começar a declinar e uma brisa mais clemente se levantar, irão passear pela tapada, repousar de tantas emoções, em qualquer banco à beira do lago. Fatigada mas feliz como nunca, percorrida por um frémito, ela recostará a cabeça no teu ombro e, cobertos pelo véu diáfano do entardecer, ali ficarão numa paz profunda, a meditar sobre os insondáveis mistérios da eternidade. A tua alma, finalmente aquietada, omnisciente da harmonia do Universo, poderá então partir à aventura, em voo silente, pelos campos sem fim do teu Alentejo. Até sempre Manuel
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Os emigrantes desconhecidos
Tributo 145
OS EMIGRANTES DESCONHECIDOS
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ROSTOS, OLHARES E MEMÓRIA
E
ncontro-o, vezes sem conta, ali no parque, sentado num dos bancos que bordejam o lago povoado de patos selvagens. Nunca lhe soube o nome, nunca quis saber em que localidade portuguesa nasceu. Para mim, é o emigrante desconhecido e isso me basta. Esta definição tão sumária assenta como uma luva à sua figura rústica, robusta, talhada na telúrica pedra das serranias portuguesas. Pela rugas profundas, como sulcos de arado, do rosto, pelas mãos nodosas e possantes, pelo olhar de aço, é fácil adivinhar um homem tenaz, coriáceo, habituado aos trabalhos pesados e ao rigor de climas inóspitos. «Andei muitos anos na construção, trabalhei no estádio olímpico, estive nas barragens da baía James, aquilo é que era frio de rachar.» As palavras não deixam transparecer qualquer queixume ou ressentimento. Antes pelo contrário, reflectem o orgulho do homem que nunca baixou a cabeça perante as contrariedades da vida e que tudo soube aceitar estoicamente, de dentes cerrados e coração largo. Geralmente, é ao entardecer que os nossos passos se cruzam. Eu gosto de olhar o voo caprichoso da meia dúzia de andorinhas, lá no alto, incansáveis na perseguição às nuvens de mosquitos. Ele adora ouvir o trinar dos melros refugiados na folhagem dos carvalhos. «Na minha terra corre um regato, no meio de muito arvoredo, onde é um regalo ouvir cantar os rouxinóis. Mas olhe que aqui os melros também não cantam mal, não me farto de os ouvir.» Entre nós, os silêncios são longos e eloquentes. Mas também há dias em que os pensamentos anseiam voar mais soltos, precisam de se transformar em palavras numa alquimia demorada, sem pressas. «Hoje passei o dia a tratar do quintal. Já tenho aquilo para ali cheio 147
OS EMIGRANTES DESCONHECIDOS
de tomateiros e alfaces. Este ano também semeei umas leiras de feijão de trepar que um vizinho me deu, vamos lá ver o que aquilo dá. Amanhã, talvez plante uns pés de couve. Os Québécois chamam-lhe couve portuguesa mas na minha terra sempre lhe ouvi chamar couve galega.» Após tão longo e inabitual discurso, fica a observar a aspereza das mãos castigadas. «Agora que já não trabalho, ajuda-me a passar o tempo.» Disse-me que morava perto do parque mas já me esqueci do nome da rua. Deve ser num daqueles duplexes que para ali há, com umas hortas nas traseiras que são um mimo. Só mesmo obra dos italianos ou portugueses amorosos da vida, que por lá andam a semear mão-cheias de poesia. «Na minha terra trabalhei nos campos desde criança, ainda não esqueci o que aprendi. Qualquer dia, passe por lá para eu lhe mostrar a minha obra. Aproveitamos para beber um copo do meu vinho, este ano saiu-me de estalo. Usei pela primeira vez uvas chilenas e não me dei mal.» Quando está mais predisposto para a conversa, fala-me da casa que mandou construir na aldeia natal, do bom pedaço de terra que tem ao redor, onde plantou um magnífico pomar. «Plantei lá muitas árvores mas as de que mais gosto são as cerejeiras. Quando lá chego no verão, estão sempre carregadinhas de cerejas encarnadas que é um encanto. O meu irmão é que me trata daquilo, caso contrário estaria tudo ao abandono, a criar urzes para os lobos. Eu e a minha mulher fartamo-nos de trabalhar nas férias, nem sei para quê. Os meus filhos nunca lá vão, não querem saber daquilo para nada. Mesmo que não lho confesse, às vezes acho que têm razão, há sítios mais descansados onde ir passar as férias. Já têm outra forma de ver o mundo, não lhes posso levar a mal.» É desnecessário perguntar-lhe se está arrependido de ter emigrado. Basta ler-lhe a determinação do olhar para antecipar a óbvia resposta. «Quando eu vim para cá, Portugal era uma miséria, morríamos de fome. Aqui fui bem recebido, a vida foi por vezes difícil, mas tudo se passou, o trabalho nunca me meteu medo. Hoje tenho quase oitenta anos, a saúde não me falta, criei os filhos que, graças a Deus, têm bons empregos, os netos gostam de mim. Quando as saudades apertam, meto-me num avião e vou até à terra. O que mais posso pedir?» Há dias em que lhe dá prazer rememorar os primeiros tempo da 148
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chegada, quando tudo era desconhecido, nas raias do irreal. «Não tinha cá ninguém e não percebia patavina das línguas do país. Tenho muito a agradecer a alguns portugueses que já viviam no Bairro Português, se não me tivessem amparado, não sei o que teria sido de mim. Quer saber qual foi o meu primeiro emprego? Nem lhe passa pela cabeça.» Solta uma gargalhada, inesperada em homem tão circunspecto, que até sobressaltou os patos no lago. «Fui apanhador de minhocas, veja lá! Íamos ao anoitecer, em grupo, para os campos de golfe, com uma lanterna na testa e uma lata atada à perna, e era um apanhar nelas que só visto. Quando conto isto em Portugal, nem acreditam, pensam que é cantiga minha.» Divertido, passa a manápula pelo rosto, acama os cabelos grisalhos mas ainda bastos. «Depois já foi melhor, os meus amigos arranjaram-me trabalho numa padaria de italianos, a amassar pão, tudo o que vinha à rede era peixe.» Ontem, apareceu acompanhado pela mulher. Franzina, azougada, tagarela, um pouco mais nova do que ele, veio, rapidamente, espalhar umas pinceladas mais vivas nas nossas conversas tantas vezes insípidas. «Este malandro, mal acaba de jantar, sai logo porta fora. Desconfio que anda para aí a arrastar a asa a alguma rapariga.» Dá uma palmada amigável no joelho do marido que sorri, meio encavacado. De pescoço esticado, varre o parque com os olhos inquietos para logo se voltar para mim, pronta para desatar o saco num chorrilho de palavras que se atropelam umas às outras, apressadas por voar em bando. «O meu marido já lhe deve ter contado a vida dele mas olhe que a minha também não foi fácil, principalmente no princípio. Trabalhava numa fábrica de casacos, a ganhar à peça. Aquilo era todo o santo dia agarrada à máquina, quantos mais forros pregasse mais ganhava, era trabalho de escrava. Costuma-se diz que Deus escreve direito por linhas tortas, é bem verdade. Quando a fábrica fechou fiquei toda aflita mas, passado pouco tempo, encontrei trabalho, nas limpezas em casa de uma senhora judia, foi como se me tivesse saído a sorte grande. Ela gostou tanto de mim que, passados poucos meses, já era eu que tratava de tudo, fiquei a ser a governanta da casa e já tinha outra portuguesa para me ajudar nos trabalhos mais pesados.» Calou-se, com as mãos cruzadas sobre o peito, para ganhar fôlego. 149
OS EMIGRANTES DESCONHECIDOS
Oportunidade que o marido aproveitou para se desculpar, com um olhar penalisado: «O senhor deu-lhe trela, agora tem de a ouvir. Esta mulher quando começa a falar não há quem a cale.» «Lá vai por ti, passas dias seguidos quase sem me dar uma palavra, às vezes parece que lhe meteram uma rolha na boca. O senhor quer ouvir mais esta...» Na calmaria da tarde, ela continuou o seu tagarelar sem fim, eu fiquei a seguir o voo das andorinhas, o marido de ouvido à escuta do canto dos melros que até pareciam que se esmeravam só para lhe dar prazer. Sei que aquelas criaturas que ali estão sentadas ao meu lado, naquele pacato anonimato, nunca estarão debaixo das luzes na ribalta, nunca verão o seu nome escarrapachado nos jornais, morrerão como viveram, fundidas na natureza, com a naturalidade das árvores que cumpriram o seu ciclo, entre muitas, na floresta. Contudo, quando por vezes me imagino talentoso escultor capaz de talhar uma estátua de homenagem aos emigrantes desconhecidos, é aquele rosto lavrado a formão e aquelas mãos rudes do homem e, frente a frente com ele, o rosto afilado, fremente, vivo, atravessado por coragem inabalável, da mulher, companheira das boas e das más horas, que gostaria de ter engenho para perpetuar no calor da pedra ou da madeira.
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ROSTOS, OLHARES E MEMĂ“RIA
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce Fernando Pessoa
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Os nossos agradecimentos a todos os entrevistados, familiares e amigos que contribuĂram para a realização desta obra. Parque de Portugal - 8 de Julho de 2012 152