Título:
Um Poeta no Paraíso Autor:
Manuel Carvalho Éditions Luso ISBN 2-9804056-0-4 Dêpot Legal: Bibliothèque National du Québec-1994 Bibliothèque National du Canadá-1994
Reservados todos os direitos de edição e tradução
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MANUEL CARVALHO
Um Poeta No Paraíso
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Do autor:
Saga - Editora Peregrinação-Cacilhas - 1989 Um Poeta no Paraíso - Éditions Luso-Montreal - 1994 Parc du Portugal - Éditions Luso-Montreal - 1997 À beira-Main - Éditions Luso-Montreal - 2003 O homem que falava com as flores - 2011
Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do Douro. Colares e a Batalha foram lugares que o viram crescer. Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria. Fez a guerra colonial em Angola. Depois, correu muitas terras até chegar a Montreal, no Canadá, em 1980. Tem colaboração literária espalhada por diversos jornais e revistas em Portugal e na diáspora. É o coordenador da revista on-line "Satúrnia - Letras e Estudos Luso-Canadianos.
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À São e à Paula, companheiras na busca do paraíso
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Quando partires para Ítaca, desejo que o caminho seja longo, rico em peripécias e em experiências (...). Guarda sem cessar Ítaca presente no teu espírito. O teu escopo final é aí chegares, mas não encurtes a viagem: mais vale que ela dure longos anos e alcances enfim a tua ilha nos dias da velhice, rico de tudo o que ganhaste no caminho (...).
C. Cavafy, “Ítaca”
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CHEGADA
O entardecer tropical espargia tons de púrpura pelo horizonte, já longe a fúria da tempestade. Uma das mãos bem alta, erguendo firmemente o manuscrito dos Lusíadas, Luís Vaz de Camões olhou ao seu redor. Da nau nem sombras, deglutida pelos vagalhões assanhados. Aqui e ali, arcas esventradas, pejadas de sedas, marfins, ouros, as mais inimagináveis riquezas das Índias, baloiçavam placidamente no dorso das águas finalmente amansadas. Talvez cinquenta braçadas para a sua esquerda, lobrigou o vulto de dois náufragos que espadanavam atabalhoadamente as águas. Logo nadou vigorosamente até eles. Qual não foi o seu espanto e alegria ao reconhecer naquelas duas criaturas os seus escravos, o fiel Jau e a adorada Bárbara. Depois de efusivas manifestações de júbilo, e bem compenetrados de que eram os únicos sobreviventes do naufrágio, Luís Vaz de Camões ergueu o olhar para o céu. - Agora, só nos resta nadar até encontrar terra firme. Se Deus nos poupou nesta terrível prova, com certeza, nos seus insondáveis desígnios, nos reserva um destino favorável e proveitoso. Acalentados por tão fervorosas palavras, todos recobraram ânimo e puseram-se a nadar ao encontro do sol que começava, então, a beijar a linha do horizonte em chamas. 9
* Após incontáveis dias e noites, as águas arrefeceram bruscamente. Os pobres náufragos, enregelados e exangues, já se sentiam perdidos quando Jau, na crista duma onda, avistou urna mole escura que subitamente pincelou de esperança a imensidão do mar. - Terra! - balbuciou, meio incrédulo. E logo, já certo: - Estamos salvos. Era verdade. Num último esforço, iludiram a força da rebentação e, mal pisaram a magra praia de seixos que se debatia, aflita, entre o mar e a escarpa abrupta, ajoelharam numa prece reconhecida. - E o princípio duma vida nova - profetizou Luís Vaz de Camões. - Estas são as portas dum mundo novo que nos espera de braços abertos. Depois de muito caminharem e de esporadicamente se terem cruzado com gentios que falavam uma língua arrevesada, aparentada com o gaulês, depararam com uma cidade aninhada ao redor duma montanha verdejante e envolvida pelo abraço de dois rios caudalosos. - Louvado seja Deus Nosso Senhor - alegrou-se Luís Vaz de Camões, ao avistar uma enorme cruz que coroava a montanha -, estamos em terra de cristãos. Em breve souberam que a cidade se chamava Montreal, próspera colónia de cristandade nas Índias Ocidentais, paraíso sonhado por levas e levas de emigrantes visionários. * Nos primeiros tempos, para proverem à sua subsistência, dirigiram-se a uma pequena joalharia na rua St10
Catherine, encravada entre um bar de dançarinas nuas e um banco, a fim de venderem urna belíssima safira que Jau tinha providencialmente repescado do naufrágio. - E isso também são jóias? - perguntou, cobiçoso, o esquelético judeu que os atendeu, por detrás do balcão surrado, apontando o volumoso manuscrito que Luís Vaz de Camões sobraçava. - E a mais preciosa de todas as jóias - declarou Luís Vaz de Camões. - É a epopeia da ditosa pátria amada. Pouco sensibilizado por tão arrebatadas flores de retórica, o homenzinho tornou a concentrar a sua atenção na safira que faiscava sobre o balcão. - Gostaria de vos ser agradável mas a verdade é que esta safira é de muita má qualidade - disse, franzindo o nariz rapace. - Como assim? - indignou-se Luís Vaz de Camões. Esta pedra é duma pureza única. Mouco às objecções, o homenzinho prosseguiu imperturbável, direito ao seu objectivo: - Hoje em dia, as safiras são pedras muito desvalorizadas e pouco procuradas. Bom, para não dizer que não vos ofereço nada, dou-vos trezentos dólares. Após muito regatear, saíram da joalharia com trezentos e vinte dólares no bolso. - Agiota miserável - espumava Luís Vaz de Camões. Mas logo a indignação se desvaneceu. Era Maio. E havia um céu muito azul. E folhas e relva verdes por todo o lado. E gente nova de carnes frescas, em oferenda ao sol, pelos altares dos jardins. E um perceptível jorrar de seiva a vibrar no ar. Luís Vaz de Camões desabotoou o jaquetão. Jau arregaçou as mangas da camisa. Bárbara ofereceu os ombros redondos e acobreados ao beijo do sol. - Tenho a certeza que vamos ser muito felizes nesta 11
terra - prognosticou Luís Vaz de Camões. Voltaram à esquerda e começaram a subir, sem pressas, a St-Laurent. Cruzavam-nos gentes das mais desvairadas raças: negros retintos do equador; nórdicos de olhos azuis como o mar e cabelos de linho; indianos de cabelos dum lustre quase azul e olhos de carvão; árabes de olhos grandes e apaixonados; paquistaneses de turbante e ar guerreiro, chineses discretos como sombras. Até que, de chofre, o inevitável aconteceu. Chegoulhes aos ouvidos o doce linguarejar lusitano. Duas quarentonas, de grossos fios de ouro ao pescoço, deitavam altas contas à vida. - Por este caminho, mais vale regressar a Portugal lamuriava-se a mais alta, arqueando os lábios grossos pincelados por nutrido buço. - O meu homem já está na chômage vai para três meses e, para compor a festa, agora o bossa, lá na fábrica, quer-nos passar a ganhar a peça. É uma miséria. - Já lá vai o tempo em que o Canadá era o Canadá concordava a outra, com dois grandes olhos azuis e pestanudos plantados na cara redonda e rosada de camponesa minhota. - Quando eu vim para o Canadá, há dez anos, enchia-se a frisa, de carne, com trinta dolas. Agora nem com trezentas. - Mas olhe que em Portugal a vida também está pela hora da morte. A minha irmã veio de lá esta semana e diz que aquilo é um horror, as dolas voam das algibeiras que é um disparate. - Mas os cafés e os restaurantes estão sempre cheios. Não sei onde é que aquela gente vai roubar o dinheiro. Quando lá vamos de férias, nas praias já nem há espaço para estender urna toalha. Eu já disse ao meu homem, se tudo correr bem, e se Deus Nosso Senhor nos ajudar, pró ano vamos mas é a Florida. Gasta-se metade das dolas e goza-se 12
muito mais, as águas quentes que é um regalo. - Por favor, minhas senhoras - interrompeu-as Luís Vaz de Camões. As mulheres suspenderam a tagarelice, meio desconfiadas. - As senhoras podem-nos, por favor, informar onde poderemos alugar um apartamento? - continuou Luís Vaz de Camões. - Chegámos há pouco a este país e ainda não temos um tecto onde nos abrigar. - Olhe, por acaso veio parar a boa porta - disse a minhota, com um sorriso aberto. - Eu sou concierge dum prédio, ali na St-Dominique com a St-Urbain, e, mesmo ontem, vagou um três-e-meio que deve estar a calhar para os senhores. Essa senhora é sua esposa? Luís Vaz de Camões olhou enleado para Bárbara. - Isso não tem importância - riu a mulher -, aqui uma pessoa vê de tudo, já não estranha. Venham comigo que o prédio é já ali adiante. O meu nome é Maria da Graça. - E voltando-se para a amiga: - Logo à noite, vai ao baile do Benfica? Apareça, agora que o meu marido é da direcção, estamos sempre lá caídos. * Depois de muita argumentação e dum rápido telefonema ao dono do prédio, a senhora Maria da Graça lá concordou em receber duzentos dólares como primeira entrada da renda mensal de quatrocentos dólares, com aquecimento e luz incluídos. E bom coração como revelou ter, ainda lhes emprestou uma mesa de cozinha, três cadeiras e dois colchões que tinha arrumados na cave. - Enquanto não arranjarem emprego e puderem comprar mobílias ao vosso gosto, podem muito bem dormir nesses colchões. Para mais agora que o verão vem aí, 13
também não precisam de muita roupa. - Nunca lhe poderemos pagar este favor - agradeceu Luís Vaz de Camões. - Estamos neste mundo para nos ajudar uns aos outros. Quando arranjarem emprego vão ver como tudo muda. Terminado o novelo da conversa, a mulher lá partiu, deixando-os a sós na solidão do apartamento meio escalavrado e vazio onde um fogão e um frigorífico mutilados eram o único luxo visível. - Um tecto já nós temos - sorriu Luís Vaz de Camões -, o resto virá a seu tempo. - Eu não preciso de mais nada para ser feliz - falou, pela primeira vez após o naufrágio, Bárbara. Luís Vaz de Camões aflorou-lhe os cabelos com um beijo enternecido. Discreto, Jau voltou costas às efusões amorosas dos companheiros e foi esborrachar o nariz contra a vidraça da janela donde se avistava um pedaço de rua onde os carros passavam sem parar. Subiu a rua com os olhos e lá estava, mais uma vez, omnipresente, a montanha e ainda, sempre, no topo, etérea, a cruz. Um eflúvio carregado de sortilégio e premonição envolveu-o, num frémito. “Uma vida nova começou hoje”, atravessou-lhe o espírito. Eram as primeiras febres do american dream. Sobre um dos colchões, Bárbara gemia docemente. * Ainda nessa noite, o senhor José, o marido da porteira, bateu-lhes à porta para oferecer os seus préstimos. Era um homem à beira dos cinquenta anos, de olhos tristes e cara roída pelas saudades do torrão natal. No cocuruto da cabeça, um punhado de cabelos cor de palha 14
lutava contra a razia dos anos. Se vocês não estão legalizados é uma porra sintetizou, bem à portuguesa, os seus pensamentos. - Com os abusos que para aí têm havido, as leis da imigração estão muito severas. Mas como é que vocês conseguiram cá entrar? - A nado - respondeu Luís Vaz de Camões. - A nado?! - Mas, como homem discreto que era, deixou por aqui a sua estupefacção. Além disso, já vira casos bem mais estranhos nos vinte e tal anos que levava de andarilho por esse mundo fora, primeiro na Franca e depois no Canadá. - Olhem, se aceitam o meu conselho, digam-se refugiados políticos ou religiosos. Aqui há uns tempos, houve para aí muito português que conseguiu entrar como refugiado religioso. Enquanto averiguam e não, folgam as costas. Luís Vaz de Camões soltou uma gargalhada. A primeira desde há muito tempo. - Posso-me declarar judeu perseguido pela inquisição. - Olhe que não é má ideia - concordou o homem. - E se não houver provas em contrário...! - Mas logo com o desejo de ajudar a empurrá-lo: - Entretanto, se quiserem, posso falar aí a um rapaz grego meu amigo que tem um restaurante e aqui o seu amigo pode ir trabalhar para lá, a lavar pratos. Não é dinheiro por aí além mas é debaixo da mesa. - Debaixo da mesa? - interessou-se Jau. - Por debaixo da mesa é uma forma de dizer que vai trabalhar sem estar legalizado e sem pagar impostos. - Se algum de nós for trabalhar, serei eu - cortou Luís Vaz de Camões. O tom de voz glacial gelou as boas intenções do homem. - Os senhores é que decidem das vossas vidas mas 15
olhem que, nos tempos que correm, não é fácil arranjar emprego. Bom, devem estar mortos de cansaço e a precisar duma boa noite de repouso. Eu sei como são as viagens, com essa coisa diabólica dos fusos horários que nos destrambelham o organismo todo. * Dias depois, graças ao empenho duma esforçada funcionária do Centro Português, que o senhor José lhe apresentara, Luís Vaz de Camões conseguiu uma entrevista com um editor. Com o manuscrito dos Lusíadas debaixo do braço, apanhou o autocarro 55 que o deixou nas imediações do Complex Desjardins onde estava instalado o escritório do editor. Bem instruído pela funcionária do Centro, não lhe foi difícil localizar a torre sul e apanhar o elevador que o despejou no vigésimo andar, mesmo em frente da suite 2015 onde uma deslumbrante recepcionista, rodeada de aparelhos electrónicos por todos os lados, o acolheu com um sorriso que o fez estremecer. - O senhor director vai recebê-lo imediatamente. O director era um homem jovial e jovem, na casa dos trinta, com uns olhos azuis muito vivos no rosto bronzeado por frequentes férias nas Caraíbas. - O meu nome é Denis Crosby. Chame-me Denis. Sente-se, por favor - convidou com um gesto largo, depois dum forte aperto de mão. Luís Vaz de Camões afundou-se na cadeira confortável, impressionado pela decoração requintada do gabinete. Pela janela panorâmica, rasgada a toda a largura da parede, avistava-se o rio St-Laurent e a ponte Jacques Cartier. 16
- A Joana Cruz, que, por sinal, é uma grande amiga minha, falou-me do seu livro em termos muito elogiosos disse Denis, instalando-se por sua vez na cadeira de coiro de espaldar alto e entrelaçando as pernas em cima da secretária. - A minha editora tem como principal preocupação a descoberta e o lançamento de novos valores literários. Agora já deve compreender qual a razão por que lhe marquei, com tanta urgência, esta entrevista. Traz consigo o produto? Luís Vaz de Camões apresentou-lhe o manuscrito que o homem se pôs a folhear, de imediato, com dedos ágeis. Assim decorreu uma boa meia hora que Luís Vaz de Camões aproveitou para se regalar com a panorâmica deslumbrante que desfrutava. As ruas da cidade, vistas lá de cima, traçadas a régua e esquadro, largas e tranquilas, bordejadas por renques de árvores de copas bojudas e verdes, onde os automóveis deslizavam corno brinquedos; o rio St-Laurent, a essa hora do dia, com o sol já alto, era um espelho ofuscante onde se miravam bandos de gaivotas; um grande cargueiro, sólido como uma fortaleza, passava, nesse instante, sob o abraço metálico da ponte Jacques Cartier. - Bom, meu amigo - interrompeu-lhe a prostração Denis, tirando os pés de cima da mesa e folheando o manuscrito como um acordeão -, isto é uma obra-prima. Esperou que o sorriso lisonjeado, que Luís Vaz de Camões não pôde reprimir, se desvanecesse. - Mas não quero alimentar-lhe falsas esperanças. Isto, my dear, não se vende. - Isto não é para vender - indignou-se Luís Vaz de Camões. - Desça à terra, ó poeta - prosseguiu Denis, já circunspecto. - Os livros, actualmente, são um artigo de consumo como qualquer outro produto. Obedecem às mesmíssimas leis do mercado que um carro ou um frigorífico. - Pousou o manuscrito na secretária e, apoiando 17
as mãos no tampo da mesma, soergueu-se da cadeira. - Para lhe falar francamente, estas histórias de heróis e deuses já não interessam ninguém. Tornou a refastelar-se na cadeira e cerrou os olhos por um instante. Quando os reabriu, havia urna luzinha metálica a brilhar lá no fundo. - Vou-lhe fazer uma proposta séria. Aí desse episódio da ilha dos amores é que se poderá extrair um filme erótico com relativo interesse. Se o poeta estiver de acordo, conheço um realizador que talvez esteja interessado. Apopléctico, Luís Vaz de Camões arrebatou o manuscrito das garras do editor e ao passar, como um vendaval, nem reparou no olhar lascivo que a recepcionista lhe lançou. * Bárbara e Jau esperavam-no, ansiosos. - Então, senhor? - Correu bem? O ar amarfanhado de Luís Vaz de Camões dispensou respostas peníveis. Bárbara encheu uma chávena de café e veio-lhe acariciar os cabelos. - Não se desencoraje, senhor. Beba este café quentinho, repare como cheira bem. Verá como tudo se arranjará. Jau abriu a janela da cozinha. - Está calor aqui dentro - foi a única coisa que achou para dizer. E deixou-se ficar atento ao formigar humano da rua. A cruz sempre lá no alto. Luís Vaz de Camões acabou de beber o café e Bárbara sentou-se-lhe nos joelhos, apertando-lhe o rosto contra o calor dos seios. 18
- Depois do almoço, vou outra vez ao Centro Português falar com a Joana Cruz, ela melhor do que ninguém saberá aconselhar-me. - Não pode ficar para outro dia? - murmurou-lhe, ao ouvido, Bárbara. - Não há tempo a perder, se não tivermos dinheiro para pagar a renda da casa, vamos parar ao olho da rua. * Joana Cruz recebeu-o com evidente alegria. - Conte lá como decorreu essa entrevista. À medida que Luís Vaz de Camões ia entrando em detalhes, o rosto da rapariga tingia-se de indignação. - O safado! São todos o mesmo, só pensam em encher os bolsos de dinheiro. Pois olhe que esse enganou-me bem enganada, sempre acreditei que era uma pessoa com princípios. Lá lata tem ele, sempre com a boca cheia de palavras bonitas, a falar no sacerdócio da cultura, do amor às artes. - Mas ao ver o ar atormentado de Luís Vaz de Camões: - Ora, esqueça esta experiência e encaremos as coisas com coragem. Não é por morrer uma andorinha que acaba a primavera. Não é assim que se diz em Portugal? Vamos dar uma volta por aí, pela montanha, sempre poderemos falar com mais à-vontade. Espere aí que vou avisar as colegas. * A montanha rebentava de vida. Pares de namorados beijavam-se sobre a relva. Grupos de velhos, sentados nos bancos que bordejavam a álea principal do parque, sorviam, sem pressas, o ar tépido da tarde. Libertos das trelas, cães cabriolavam, como loucos, por toda a parte. Os baloiços estavam pejados de crianças. Magotes de ciclistas 19
disputavam-se as pistas apontadas ao coração da montanha. Lá mais para cima, junto à estátua, rufavam os tambores dum batuque sem fim. - Está um bonito dia - suspirou Joana, semicerrando os olhos e sorvendo o ar puro, pela boca entreaberta. Pela primeira vez, Luís Vaz de Camões reparou na beleza da rapariga: cabelos castanhos dum tom quente, os olhos grandes e verdes, o rosto oval dum moreno nacarado. - Está há muito tempo nestas terras? - Vim para cá muito nova, com cinco anos. Os meus pais eram exilados políticos, já lá vão mais de vinte anos. - E os seus pais ainda cá vivem? Urna nuvem de mágoa toldou o rosto da jovem. - A minha mãe morreu há dez anos, com um cancro do seio. Depois do 25 de Abril, os meus pais andavam eufóricos, já tinham tudo preparado para regressarmos. Pouco depois, a doença declarou-se e destruiu todos os sonhos. - Desculpe se involuntariamente lhe toquei num assunto tão penoso. - Não tem importância. Quanto ao meu pai, depois do desaparecimento da minha mãe, já não quis regressar a Portugal. Vive para aí, muito triste e solitário, completamente refugiado nos seus livros. É bibliotecário na Biblioteca Nacional do Québec. Eu sou o único raio de luz da sua vida. Continuaram a passear em silêncio, a dar tempo a que as recordações se diluíssem. - Estamos para aqui a falar de mim, quando deveríamos era falar dos vossos problemas que são bem mais graves do que os meus. - Eu não tenho problemas - riu Luís Vaz de Camões. Basta-me um dia assim bonito, e uma companhia como a sua, para ser feliz. Joana corou ligeiramente. Depois, sorriu. 20
- Os poetas são uns fingidores. - E já com uma gargalhada aberta: - São um perigo para os pobres mortais. - Agora devo ter mais ar de pobre vítima do que de outra coisa qualquer. Uma ruga de seriedade cruzava a testa da rapariga. - Não consigo deixar de pensar na vossa situação e só vejo uma solução para remediá-la: é conseguir legalizá-los. - E isso é muito difícil? - Difícil, difícil não é, mas é preciso dinheiro. Eu conheço aí uns advogados que se ocupam desses processos. Mas já deve começar a aperceber-se de como tudo funciona por aqui, sem dinheiro não se faz nada. É coisa para três mil dólares por pessoa. - Para mim, isso é uma fortuna - suspirou Luís Vaz de Camões. - Infelizmente, já nem dinheiro tenho para pagar a renda do apartamento. * Quando Luís Vaz de Camões falou do caso, lá em casa, Jau foi peremptório: - Eu vou trabalhar no restaurante grego. E antes que Luís Vaz de Camões objectasse, Bárbara reforçou as palavras de Jau: - E eu posso começar a costurar cá em casa. A senhora Maria da Graça conhece os donos duma fábrica de casacos que dão trabalho para fazer em casa, fornecem a máquina de costura e tudo, só é preciso vontade de trabalhar. - Mas isto é o cúmulo - explodiu Luís Vaz de Camões, com um murro na mesa. - Como estamos ilegais, esses oportunistas aproveitam-se do nosso infortúnio para nos explorarem. - Depois de amealharmos dinheiro para a legalização,
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então já poderemos escolher carreira a nosso gosto, senhor insistiu Jau. - Não há outra saída, senhor. Vencido, sem argumentos, Luís Vaz de Camões enterrou a cabeça entre as mãos. * Jau passou a sair, por volta das cinco horas da manhã, para o restaurante e pouco depois, Bárbara agarravase à máquina de costura a pregar forros na montanha de casacos de inverno que atravancavam o apartamento de alto a baixo. Incapaz de suportar o matraquear incessante da máquina, Luís Vaz de Camões saía cedo de casa, perdia-se no dédalo de ruas, iludia os ócios pelos jardins da cidade e, naturalmente, passou a frequentar as tabernas das redondezas. Quando chegava a casa, altas horas da noite, vociferava contra a vida, contra os casacos que se lhe enroscavam nos pés, contra o silêncio acusador de Jau e Bárbara. Joana Cruz era o seu único oásis. Os encontros e os telefonemas começaram a ser cada vez mais longos e íntimos. Bárbara, sempre pegada à máquina, chorava silenciosamente mais esta traição. E, inevitavelmente, uma noite a montanha de casacos tinha desaparecido e o vulto sinistro da máquina já não se projectava contra a parede. Sobre a mesa da cozinha, havia um bilhetinho, nervosamente garatujado, a anunciar que Jau e Bárbara tinham resolvido refazer a vida a dois, algures na grande metrópole. A primeira reacção de Luís Vaz de Camões foi sair para a rua, de faca na mão, à procura dos traidores. Mas a cerveja pesava-lhe no estômago e amolecia-lhe as forças. 22
Acabou por se deitar sobre um dos colch천es e, pouco depois, adormeceu, com um ressonar cavo e sobressaltado.
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AVENTURAS E DESVENTURAS
Havia manhãs em que o sentimento de insegurança, que se agravara nos últimos tempos, lhe era quase insuportável, nas raias da dor física. - Credo, Luís, andas com uma cara tão má inquietavase a Cândida. - Que olheiras! Devias ir consultar um médico. Apaziguava-a, com uma carícia débil e trémula. - Não sejas parva! As doenças não querem nada comigo. - Se é por causa do emprego, não andes assim, criatura. Quando esse acabar, logo arranjas outro. - Com esta crise, onde é que vou arranjar trabalho? - Logo se verá. Admirava secretamente a coragem da mulher, aquele feitio desenvolto, o gosto pelo risco. Ambiciosa, talhada para o american way of life. Feitios diametralmente opostos que a vinda para o Canadá mais extremara. “Lá continuas tu agarrado a esses idealismos balofos e quixotescos do século dezanove. Tens que largar esse sarro duma vez por todas, homem”, atenazava-o ela, quando o via agarrado à máquina de escrever, a dactilografar os artigos que, de vez em quando, enviava para os jornais comunitários. “Trata mas é de te atirar a vida, e põe de lado essas parvoíces que nunca encheram a barriga a ninguém.” Tanto insistira com ele, tanto lhe seringara os miolos que acabara por embarcar naquela aventura de comprar o bungalow lá para Laval. Longe como o diabo do trabalho e dos amigos e, o pior, oitocentos e tal dólares por mês para pagar, entre hipoteca e taxas camarárias, para além das despesas correntes de aquecimento, luz, telefone e tudo o 24
mais. Passados meses era a foice da recessão, o pânico, o desemprego a bater-lhe à porta. Afortunado, mesmo assim ainda fora ele em encontrar aquele emprego quando a Simmons o pusera no olho da rua. Trabalho temporário, mal pago, que os patrões sabiam-se aproveitar das circunstâncias, mas o bastante para ir pagando a hipoteca, manter o barco à deriva. Mas daí a um mês, quatro fugidias semanas...! Quando chegou ao emprego, resmungou um good morning quase imperceptível e foi-se refugiar atrás do estirador. Que neura! Ainda por cima, o desenho que tinha entre mãos, a porcaria duma válvula, toda cheia de rendilhados, não ajudava mesmo nada, trocista nos seus contornos inacabados. Para se distrair, deixou os pensamentos divagarem por terrenos mais agradáveis: o conto quc andava a escrever sobre aquele emigrante que há vinte anos andava a anunciar a eminência do seu regresso a Portugal; os olhos verdes e gulosos daquela fulana que no autocarro da manhã se derretia toda para ele; as últimas férias na Florida, no verão passado, ainda no tempo das vacas gordas; as saídas inesperadas e deliciosas dos dez anos do filho. Acendeu um cigarro e foi dar uma volta para desemperrar os dedos cansados de traçar riscos e mais riscos. Estava farto de dar à unha e o diabo do trabalho parecia emperrado, a válvula cada vez mais indefinida na imensidão do papel. Talvez dois dedos de conversa com o Dominic lhe fizessem bem. O Dominic era um italiano castiço. Baixote, franzino, dois olhos esverdeados e inquietos, de rato encurralado, por detrás dumas lentes de míope, grossas de dedo. Perdido por esoterismos e parapsicologias. Quando desatava a falar, com um emaranhado de termos estranhos e cabalísticos, transfigurava-se, consumido num mar de línguas de fogo. Mas era um gajo porreiro. 25
Estranhou não o ver agarrado ao estirador. Ao lado, o Mike e o Richard entretinham acesa discussão sobre carros. O Mike defendia a excelência das viaturas japonesas enquanto o Richard elogiava a perfomance dos carros de fabrico norte-americano. - O Dominic não veio hoje? - Doente! - respondeu lacónico o Mike. - O coração. E com um trejeito dos lábios, imitou uma explosão. Chocado, gostaria de indagar mais pormenores mas os outros já tinham mergulhado de novo na discussão. “Coitado do Dominic, um gajo porreiro como ele.” Vagueou o olhar pela sala ofuscante de luz onde os companheiros de trabalho se moviam, como que manejados por fios invisíveis, inacessíveis. Para além das janelas, o céu cobria-se dum esmaltado cinzento e sujo. Sub-repticiamente, à traição, o pensamento foi-se-lhe aninhar na cabeça: “Se o Dominic está doente...talvez. ..“ Um cachão de pudor tingiu-lhe o rosto de sangue. Sacudiu a cabeça para afugentar o intruso mas, qual revoada de pombos que regressam sempre ao local da partida, com um ruflar nervoso de asas, após voltejo vertiginoso pelos ares, assim ele tornava insidioso, entorpecente, convincente: “Afinal, se o Dominic está doente, a culpa não é tua... é uma chance... mais uns meses de trabalho...” Foi chafurdar a cabeça no lavatório da casa de banho. Os olhos que o fitavam do espelho pareciam borboletas tresloucadas. Regressou ao seu canto. Do fundo do papel, a válvula sorria-lhe, perversa. Sentiu ganas de pegar numa lâmina e de retalhá-la de alto a baixo. Uma neve cerrada, varrida a vento, começou a vergastar as vidraças. Ela aí estava, a tempestade anunciada para esse dia. Dentro em pouco, lá fora, edifícios, ruas, céu, tudo era duma uniformidade branca e opaca. 26
E aqueles malditos pensamentos sem o largarem de mão, as gargalhadas despudoradas da válvula a zoarem-lhe na cabeça! A hora do almoço, quando o bebedolas do Michel passou por ali, para a sua invariável incursão à brasserie, que nenhuma tempestade deste mundo poderia cancelar, chamou-o, de garganta apertada: - Espera aí, Michel, também vou.
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Vaz saiu do oftalmologista e meteu-se no carro. Deitou uma olhadela ao espelho retrovisor que lhe confirmou, mais uma vez, a radical transformação. Era surpreendente como o seu rosto perdera aquele ar de estudante serôdio e marrão que os óculos, de lentes grossas, de miopia adiantada, lhe imprimiam. Já na escola industrial, catraio imberbe, a rapaziada alcunhara-o de doutor, o doutor caixa d’óculos, e nem o rolar dos anos, o aparecimento das primeiras rugas e dos cabelos brancos, dissiparam aquele ar insólito de letrado esgrouviado. Um ar que o desgostava e que o fazia sentir-se prisioneiro dum invólucro estranho à sua maneira de ser, mais terra a terra, pouco atreito às coisas do espírito. Desde o aparecimento das primeiras lentes de contacto que acalentara o desejo secreto de mandar as cangalhas ao ar, mas em Portugal nem pensar nisso, era um sonho proibitivo, fora do alcance da sua bolsa e, no Canadá, já com outras posses, facto estranho, fora protelando a decisão de ano para ano, como se receasse despojar-se duma personalidade finalmente incorporada. Mas desta vez decidira-se, dera um pontapé final em todo aquele amontoado de sucata psicológica. Boulevard St-Laurent acima, a velocidade sincronizada com o verde dos semáforos, deixou os pensamentos derramarem-se, refluirem suavemente até aos acontecimentos da véspera. “Vaz - era a voz do mister Salomon, o patrão -, és um empregado que eu admiro, competente e responsável. Estás há seis anos na minha empresa e chegou a altura de veres o 28
teu esforço e lealdade recompensados. Decidi nomear-te assistente do John, o chefe do controlo de qualidade.” Sabia-se respeitado profissionalmente mas confessava que aquela promoção o apanhara desprevenido. Só mesmo do mister Salomon, um judeu romeno chegado há quinze anos ao Canadá, que ainda se exprimia num inglês terrível, mas com um faro refinado para os negócios. Timoneiro firme e audaz que conduzia, com mão férrea, aquela pequena mas florescente fábrica de caldeiras eléctricas através da tormenta da recessão económica que já levara na enxurrada inúmeras empresas do mesmo ramo. O manto de nuvens negras, que, desde a manhã, se arrastava penosamente no céu, rasgou-se num dilúvio sobre o pára-brisas. Um tempo daqueles em Julho! Se não fosse aquela miséria do clima, o Canadá seria um céu. Pelo menos para ele. Apesar de tudo, adaptara-se bem. O apesar de tudo eram aquelas torrentes subterrâneas que, por vezes e inesperadamente, assomavam devastadoras à tona do quotidiano: o vazio das cavaqueiras descuidadas do café, à volta das bicas e das cigarradas; as labaredas das discussões políticas no trabalho, acesas, virulentas, viscerais. Nada parecido com as conversas insípidas e anémicas sobre carros e hipotecas da malta de cá. Ainda esta manhã os jornais vinham cheios com a notícia duma rusga da polícia às instalações duma central sindical e na fábrica nem uma boca se abrira para um mísero comentário. Se fosse em Portugal! E já estava a ver o Simões a atroar os ares com o seu vozeirão indignado e o Campos a arengar contra o monstro tentacular do patronato. Seria um vendaval por aquelas oficinas fora. Havia ainda a fome das multidões familiares, oceano rumorejante e inteligível, pinheiro secular e frondoso, extensão natural e harmoniosa do seu corpo, da sua voz, da 29
sua alma. Há dois anos, num rompante, saltara para o avião e, durante uma semana, deambulara pelas ruas de Lisboa, ao acaso, embriagado, numa orgia de cheiros, cores, sons, que se lhe colavam à pele, transubstanciados na sua própria carne. Nunca a mulher, a Teresa, pudera compreender aquela fuga inusitada, ao revés do homem ponderado e equilibrado que ele era normalmente. Ficara, longo tempo, entre eles, a suspeição duma traição qualquer, por mais explicações em que ele, no regresso, se atolara. Assim como não compreendia o chamamento que o impelia, de tempos a tempos, a procurar refúgio mitigador na balbúrdia atabernada das associações portuguesas. “O que vimos fazer a esta espelunca? “- lamentava-se a Teresa, sempre ansiosa por se refugiar na fortaleza de conforto e segurança que representava para ela o bungalow. E, hostil, lançava olhares de aversão à meia dúzia de rostos patibulares de jogadores inveterados de sueca que, envoltos em espessas nuvens de fumo, pareciam ser sempre os mesmos, como que petrificados no lugar há meses, há anos. Os filhos resmungavam solidários com a mãe: “Vamos antes ao McDonalds, pai.” Como explicar-lhes sentimentos que ele próprio sentia dificuldades em decifrar e de que, de certa forma, se envergonhava de experimentar? Certa vez, depois dum jantar bem regado, ao calor da lareira bem viva, enquanto lá fora o frio mordia a noite, afoitara-se naquele campo, amolecido como no diva do psiquiatra, mas a Teresa, entretida a passajar umas meias, não estava com pachorra para ouvi-lo: “Hoje bebeste uma pinga a mais. Palermices.” A chuva cessara de cair e o céu rasgava-se em lanhos azulados e promissores, por cima da montanha. Sim, ela tinha razão. Palermices. 30
Pousou o olhar na Gazette adormecida no banco ao lado. O anúncio daquela carrinha japonesa, que já andava a namorar há meses, saltou-lhe lesto aos olhos. Estava decidido. Ia comprá-la.
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Camões resmungou quando um raio de sol saltou a barreira do blind e o escoicinhou nos olhos. Engoliu em seco duas ou três vezes e passou a lixa da língua pelos lábios ressequidos. “Que grande bebedeira.” E lembrou-se vagamente da noitada da véspera, na companhia do Blackfeed, gloriosa cavalgada de taberna em taberna, até à consumpção do último cêntimo do cheque do bien-être. Sentou-se na borda da cama, sem saber o que fazer. Foi então que lhe ocorreu que era domingo e que ficara de ir almoçar a casa daquele velhote angolano, o Manuel Bento. A praguejar, lá conseguiu encontrar as jeans, por malas-artes encafuadas entre a cama e a parede. A camisa, foi descobri-la enrodilhada dentro da banheira. Mas que compincha, o Blackfeed! A cara redonda e avermelhada como uma abóbora e o cabelo negro escorrido denunciavam, à légua, a sua origem ameríndia. Origem que era o seu orgulho e a sua dor. - Sou um traidor - desabafava com a bebedeira. Abandonei o meu povo na reserva e vim viver entre os nossos inimigos, os brancos. Conheceram-se numa noitada de sábado, no Belitz. A cerveja escorria em catadupas e a Betty singrava por entre as mesas com a ligeireza dum barco à vela, esplendorosa na sua minissaia de cabedal, um sorriso irresistível nos lábios vermelhos e um cravo, ainda mais vermelho, entalado entre os seios soberbos. - Esta rapariga se tivesse nascido na Idade-Média, 32
seria a maîtresse à vie do rei - elogiou um velhote com uma cirrose escarrada no nariz rubicundo. - Dava o olho que me resta para dormir uma noite com ela - concordou Camões, esvaziando mais uma cerveja. Quando a rapariga se abeirou, Camões agarrou-a pelo pulso. - Se fosses minha, tinha-te em casa trancada a sete chaves - ciciou-lhe ao ouvido. - Está sossegadinho - admoestou-o ela, sem perder o sorriso. Um tipo corpulento, com pescoço de touro, levantouse abruptamente, duas mesas à esquerda. Camões retesou os músculos do pescoço, alerta. - Eh zarolho, tira as patas de cima da minha girlfriend, antes que eu tas parta. Via-se à légua que o colosso estava perdido de bêbado mas a garrafa ameaçadora, na mão forte corno um maço, incutia respeito. - Se é tua, podes ficar com ela - contemporizou Camões. Blackfeed ficara desarmado com a falta de resistência. - Então, como castigo, vais-me pagar uma cerveja. E sem mais preâmbulos, agarrou a caneca destinada Camões e emborcou-a dum trago. - Ias-te cagando todo, hã? - E soltou uma gargalhada que lhe retesou o cordame dos músculos do pescoço. - Há muito tempo que perdi o medo - ripostou Camões. E arregaçou a malga para que o outro visse a tatuagem que alastrava pelo antebraço. - O que é isso? - É uma recordação da guerra, na África. Matei mais pretos do que índios devem existir no Canadá inteiro. Blackfeed levou tempo a encontrar uma réstia de 33
concentração. Hipnotizado pela tatuagem, piscava os olhos, num esforço desmedido para os manter abertos até que, por fim, estendeu a mão, para um pacto de paz. - Irmãos. Fora também a tatuagem, como um talismã, que o aproximara do Manuel Bento. Saboreava uma cerveja, encostado ao balcão do café Portugal, quando um velhote tristonho lhe batera timidamente no braço. - O senhor esteve em Angola? E logo ali lhe vazara o peito de velho sertanejo devorado pela saudade da sua Angola, para onde embarcara ainda rapaz novo e que tivera de deixar com o coração a sangrar. - Não foi pelas coisas que lá deixei que essas Deus as dá, Deus as leva. Era o amor que eu tinha àquela terra. Nem por uma mulher. Sentaram-se a uma mesa. Beberam umas cervejas. E de confidência em confidência, Manuel Bento falara-lhe da mágoa de ver a filha única a viver com um preto do Haiti. - Já viu a minha sina? Não é que ele seja mau rapaz. Mas quando o vejo, fico logo a sangrar todo cá por dentro, esmagado pelas recordações. A minha filha diz que eu sou racista, mas não é isso coisa nenhuma, ela nunca poderá compreender a minha dor. E naturalmente, nascera o convite para ir almoçar lá a casa, comer uma feijoada. - Para falar daquelas terras, o senhor também andou por lá, pode-me compreender. Um convite daqueles não era para deitar fora, por nada deste mundo. Principalmente quando o próximo cheque da assistência social ainda estava a anos-luz de distância. Abençoado Manuel Bento. Nem que, por cada almoço, tivesse que escutar mil histórias chatas até cair de cu. E, quando fechou a porta do apartamento, as narinas já 34
lhe fremiam com a recendĂŞncia duma soberba feijoada Ă transmontana.
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- Pai, pára de brincar com a televisão. Estacou e olhou surpreso o filho que, debruçado sobre a escrivaninha, se aplicava nos deveres escolares. Depois, sorriu. Era, palavra por palavra, a retribuição da reprimenda que ele próprio costumava aplicar ao filho quando este se punha a correr os canais da televisão, numa cavalgada vertiginosa. - Tens razão. Pousou o telecomando no braço do sofá. Levantou-se e foi até à janela. Uma claridade diurna enchia a noite serena. Quase que podia distinguir as feições do italiano, da casa em frente, que limpava a neve do drive-way. Pazada atrás de pazada que tombavam, com um baque surdo, no montão de neve que cobria o pedaço de terreno reservado à horta e do qual, no verão, fazia brotar carradas de alfaces repolhudas, tomates gordos como punhos e outros mimos que eram a inveja da vizinhança, sempre afadigada com a esterilidade dos relvados. O único sinal visível do esforço despendido na tarefa era a baforada gorda, que se escapava entre a bigodaça e a gola levantada do casacão. Embora nunca se tivessem falado a sério, era um tipo amistoso, sempre com um ciao forte e alegre, por cima da vedação, reforçado por um aceno largo da mão possante de truckdriver. Largou a janela e tornou a sentar-se. Na televisão passava um documentário sobre o Haiti. A câmara percorria, sobre a rama, aquele cortejo de miséria e desolação, no evidente propósito de não perturbar digestões, de proporcionar mesmo uma refrescante regadela de insólito. 36
- A que horas chega a mãe? - perguntou o filho, sem levantar a cabeça dos trabalhos. - Lá para as onze horas, já estarás deitado. Falara pausadamente, a voz controlada, para retirar importância às palavras. Sentia-se levemente envergonhado daquela inquietação infundada. Afinal de contas, a Cândida tinha ido, muito simplesmente, jantar com os colegas de trabalho a um restaurante grego qualquer, pacata confraternização da quadra natalícia. Para quê aquele nervosismo, aquele esgatanhar persistente lá por dentro? Em anos anteriores, quando a via indecisa, balançante entre o ir e o não ir, ele próprio a encorajava: “Vai, faz-te bem sair da rotina.” - E quando a via mais uma vez desistir, em cima da hora: “Ainda não és a feminista que te apregoas.” Teria o Costa razão quando, num primarismo que o punha fora de si, se punha a vomitar enxurradas de marialvismo? “Com as mulheres só de rédea curta; o lugar delas é na cozinha; estas canadianas são todas umas putas.” Estas eram as suas bacoradas predilectas. E quando por vezes se via encurralado nalguma discussão mais cerrada, desenterrava a sua arma de maior calibre: “Vocês são todos uns hipócritas, só são progressistas com as mulheres dos outros.” E uma gargalhada rebolada, conspurcante, sacudia-o de alto a baixo. Por vezes, perguntava-se como ainda continuava a darse com semelhante gajo. Ainda no último fim de semana, na festa de baptizado da filha do Silva, já ambos bem bebidos, tinham azedado a valer. - É por causa de gajos como tu que a comunidade portuguesa não passa da cepa torta. Há gente que não faz o 37
mínimo esforço para evoluir e integrar-se. - Integrar-me?! - saltara o Costa. - Integrar-me nesta merda de sociedade? E, ao redor, acenos de cabeça concordantes davamlhe força. - Se não gostas disto, o que fazes aqui? - Os dólares. Só por causa dos malditos dólares. E a muralha de cabeças tornava a acenar. - Vou-me deitar - disse o filho, arrumando a pasta. - Não te esqueças de lavar os dentes. Ficou só. Passeou o olhar pela estante e pegou num livro, ao acaso. O Rio Triste, do Namora: “Ele é ciumento? No sentido vulgar do termo, não; no sentido profundo, é.” Fechou o livro e arremessou-o para o outro canto do sofá donde o cacilheiro da capa, singrando ronceiro o Tejo, o ficou a espiar. O que não gozaria o Costa se o visse naquele estado de espírito? A cascata de gargalhadas que não jorraria daquela pança alarve. Já quase onze horas da noite. O ouvido alongava-se para o mais imperceptível ruído de motor. Tornou a voltar a atenção para a televisão. Desta vez corria um filme sensaborão e pretensioso, entre o drama e a tragédia, que iria acabar inevitavelmente com uma puritana lição de moral. Pegou bruscamente no telecomando e emudeceu o aparelho, com furor assassino. Voltou à janela mas o italiano já terminara a sua tarefa. Ficara, como testemunho vitorioso, a pá cravada no montão de neve. Foi-se ao bar e serviu-se dum brandy avantajado. O álcool correu-lhe morno pelo corpo. Já a segunda golada lhe amargou. Pousou o cálice e ia outra vez consultar o relógio quando, de surpresa, uma chave arranhou a fechadura, a porta guinchou e ainda mal tinha voltado a cabeça, já a Cândida lhe sorria do meio da sala. 38
- Coitadinho do meu Luís! Custou-te muito a passar a noite? Estavas a ler? Ou a escrevinhar mais alguma história? - Com um gesto descontraído, atirara o casaco de peles para cima do sofá. - Se hoje falar de mais, já sabes que é do vinho. Ai de mim se a polícia me mandasse soprar no balão! Terias que me ir buscar ao xadres. Gostei tanto! Ainda o jantar mal tinha começado e aquela malta já estava toda borracha. O Peter estava tão perdido de bêbado que queria beijar as mulheres todas. A sala quase que veio a baixo com as gargalhadas. Que giro! Já ficou combinado outro jantar, para a Páscoa. Com passos hesitantes, sentou-se ao lado dele. - E tu aqui, sozinho com os teus livros. - Havia na carícia e na voz dela um travo novo, desconhecido. Desprendeu-se do abraço e foi-se refugiar na janela. Sobre a casa do italiano, duas estrelitas solitárias tremelicavam de frio. Lá mais para baixo, já uma grinalda de luzes garridas debruava alegremente a porta de entrada do bungalow daquela família vietnamita tão cheia de salamaleques, de risinhos cacarejados e de urgência de se integrar. Mais uns dias e toda a rua seria uma explosão de pirilampos multicolores, prenunciadores de mais um Natal. Por agora, mantinha-se branca, intemporal, apaziguante, postal ilustrado de boas-festas. Repassado daquela serenidade, voltou-se para a mulher que adormecera seraficamente no sofá.
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Entardecia. O rio St-Laurent espelhava. Na outra margem, Montreal, cogulada de arranha-céus, recostava-se no verde fresco da montanha. Atento ao tráfico cerrado, Vaz reclinou a cabeça no banco e apertou o volante. “Que belo dia.” Na verdade, dias como aquele, assim azuis e puros, eram raros. Geralmente, no verão, o calor vinha sempre embrulhado num manto asfixiante de humidade que acabava por se esfarrapar em tempestades tropicais de meter medo. Quando entrou na sua rua, havia bandos alvoroçados de crianças encavalitadas em bicicletas, máquinas de cortar relva cantarolavam, repuxos espichavam por toda a parte e dos back-yards crescia o espadanar refrescante das piscinas. Arrumou o carro no drive-way. Logo o chicotearam os gritos lúdicos dos filhos, na piscina recém-instalada. Tanto tinham choramingado que acabara por lhes fazer a vontade. Por vezes, perguntava-se se ceder aos caprichos dos filhos não seria a forma mais fácil de embarcar na locomotiva da integração. Enquanto a Teresa não chegava da fábrica, para começarem a preparar o jantar, apanhou uma cerveja do frigorífico e foi-se instalar na varanda. Os garotos, quando o viram, redobraram as tropelias, espadanando alegremente as águas azuladas. - Bonjour, papá - gritou o Michel. Aquele garoto! Por mais que lhe dissessem que em casa se falava português, não ganhava emenda, a língua sempre a fugir-lhe para o francês. 40
Quando chegara a altura dos filhos entrarem para a escola, num esforço inglório, decidira enviá-los, nos sábados de manhã, à escola portuguesa, para ver se assim não perdiam as raízes. Mas ao arrancar da cama, não havia vez que os garotos não se lamuriassem daquele suplício que os privava da fartura dos desenhos animados, dos sábados, na televisão. Ainda tentara motivá-los, apresentando-lhes a situação sob uma perspectiva interessante: “Sempre é bom saber mais uma língua, o português é uma língua importante no mundo.” Frouxos lugares-comuns. E, naturalmente, tudo morrera. Ficara, fruto da renúncia, a exigência de falar português em casa. Mas, cada vez com mais frequência, ou ele ou a mulher acabavam por se compadecer do gaguejar penoso das crianças e lá vinha a transigência: “Vá lá, diz isso em francês.” Cada vez mais divertidos, os corpos esbeltos e bronzeados, no rebentar da adolescência, estilhaçavam o espelho da piscina. Sabia lá quantas vezes já estivera tentado a levantar a interdição, mas recuara sempre no último momento, receoso da coacção social ou lá o que era. Viria logo o Rodrigues dissertar sobre os problemas da incomunicabilidade entre pais e filhos e da importância da preservação da língua materna, e já estava a ouvir o Romeiro perorar sobre os traumas irreversíveis originados pelo repúdio das raízes culturais. Retóricas mais do que repisadas, evocadas sempre que alguma ovelha mais afoita ousava tresmalhar-se do rebanho, e que o faziam cismar se não seria tudo floreadas patranhas de inadaptados que não queriam sentir-se sós na desgraça. Bebeu uma golada farta de cerveja. Um pássaro, dum negro metálico, com listas vermelhas nas asas, pousou no 41
ácer do quintal e ficou curioso, de cabeça à banda, a espiar o gáudio das crianças. Ao diabo os preconceitos. Logo ao jantar, oficializaria o que já era moeda corrente:” Daqui em diante, pode-se começar a falar francês cá em casa.”
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Duas horas da tarde. Abriu a torneira e encheu um copo de água, que bebeu com uma careta. Mas, mesmo assim, a dor persistia. Uma moinha teimosa que lhe roía as paredes do estômago e que nem mesmo durante o sono o deixava tranquilo. O que era normal e explicável: há dois dias que não metia nada à boca. Mais precisamente, desde a feijoada em casa do Manuel Bento. E, para resolver um problema desses, por mais que espremesse os miolos, só encontrava urna solução: ir rastejar diante do paquiderme da France. Havia talvez outro expediente a que já recorrera em situações idênticas:entrar calmamente num restaurante, encher o bandulho do bom e do melhor e, sob o pretexto de ir à casa de banho, pirar-se calmamente sem pagar a conta. A melhor altura para dar o golpe era entre o prato principal e a sobremesa, quando a vigilância afrouxava. Era coisa facílima, mas desta vez não se sentia com forças para essas proezas, das quais chegava a retirar grande prazer. Só a ideia de ter que se vestir convenientemente, de sair e escolher um alvo adequado o apavorava. Seria mais fácil descer ao segundo andar e bater à porta daquele estafermo. O simples gesto de passar o pente pelos cabelos e pela barba em desalinho o extenuou. Receou nem conseguir descer os lanços de escada tal a fraqueza que o prostrava. Quando bateu à porta do apartamento da France, foi, para surpresa sua, uma bela jovem, de cerca de vinte anos, que lhe apareceu. Tinha uns cabelos loiros muito longos, quase brancos e uns olhos verdes com sombras de lagos profundos. 43
“ Será que me enganei no andar?” - ainda hesitou. Mas logo a voz roufenha e inconfundível da France cresceu do fundo do apartamento. - Deixa-o entrar. É o sacriste do Camoês. Deve estar morto de fome para me vir ver. - E uma gargalhada desbragada cresceu do sofá onde, refastelada, chupava um cigarro. A rapariga afastou-se e logo Camões sentiu nas narinas aquele cheiro insuportável a excrementos de gato. - Essa é a Chantal, a minha filha - gritou a France. Camões ficou surpreendido. Nunca anteriormente France lhe revelara a existência daquela filha. A rapariga sorria, com um sorriso meio divertido. Vista daquele ângulo, a contraluz a incendiar-lhe os cabelos, era um generoso trigal onde apetecia deitar. - Mas deixa de olhá-la dessa maneira, não é fruta a tua boca. Se quiseres comer, vai ao frigorífico e serve-te. Aproveita que hoje estou de bom humor. Camões sentiu-se ferver por dentro. As palavras da France, que geralmente o deixavam indiferente, desta vez, proferidas em frente da rapariga, tinham o condão de vexá-lo. Geralmente, replicava-lhe na mesma moeda, em pé de igualdade. A relação deles era inequívoca: comida em troca de sexo. Ela matava-lhe a fome física e ele, em contrapartida, matava-lhe a fome sexual. E, em tal troca comercial, era difícil destrinçar qual deles era o mais esfomeado e qual o mais favorecido. Para ele, fora um espanto verificar a inesgotável energia sexual daquele corpo deformado pelo lazer e por toneladas de hot-dogs e hectolitros de coca-cola. Da primeira vez, deixara-se enlear e, esquecido dos seios flácidos e das roscas de gordura na cintura, regressara ao seu apartamento esgotado, quase sem forças para subir as escadas, mais espremido do que um limão, as roupas cheias 44
de pelos de gato. Aqueles malditos gatos! Quando apanhava a France pelas costas, tentava concentrada e afincadamente atingi-los com um pontapé certeiro, mas sempre em vão, os malditos furtavam-se no último instante, com agilidade prodigiosa, e refugiavam-se debaixo dos móveis, com olhos coruscantes. - Então, queres comer ou não? - tornou a voz sarcástica da France. - Ainda aí há umas carnes frias e uma lata de coca-cola. Camões salivava como um cachorro mas ainda arranjou forças para recusar. - Obrigado, mas já almocei. Só passei para conversar um bocado contigo. France soergueu-se do sofá, de boca aberta. A rapariga enterrara-se no fauteuil, completamente absorvida pelo ecrã da televisão. - Não sabia que tinhas uma filha. - Nem precisavas de saber. Desde quando te queres meter na minha vida privada? Mas é verdade que não queres comer nada? - No rosto redondo e pálido da France ainda havia traços de dúvida. - Senta-te, então, aí um bocado. - Fica para outra vez, agora tens visitas. - Passa por cá mais logo, para a tarde. A Chantal não se vai demorar muito. A voz da France começava a enrouquecer, sintoma que a experiência de Camões identificava com facilidade, quando a sensualidade crescente fazia estremecer as carnes repousadas e flácidas da mulher. - Talvez passe. - Camões fazia prodígios para despregar os olhos do frigorífico. - Chau, Chantal, foi um prazer conhecer-te. A mão branca e leve levantou voo, sobrevoou por instantes o fauteuil, para logo regressar ao poiso anterior. No patamar, Camões começou a sentir cãibras no 45
estômago. - Que grande burro! - E a simples evocação de ter de descer as escadas e deambular pelas ruas, até encontrar um restaurante onde dar o golpe, fê-lo gemer lastimosamente.
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Endireitou-se na cadeira e, disfarçadamente, desapertou o botão do colarinho que o começava a estrangular. Subitamente, sentiu vontade de urinar. Apoiou as mãos no bordo da mesa e concentrou forças na melindrosa operação de se levantar, sem causar estragos. Os urinóis ficavam na cave e, apoiado ao corrimão, começou, com cautelosa concentração, a descer a escada, degrau a degrau. A culpa era daquele sacana do Jerry que não lhe dera tréguas durante todo o jantar, sempre veloz a encher-lhe o copo até aos bordos. - Vocês, os portugueses, bebem vinho como água quebrava-lhe as reticências. - Festa é festa. E para não desmerecer da reputação, deixara-se levar. Mas a sua vingança era que o gajo ainda estava mais bêbado do que ele. Da última vez que porfiara em encher-lhe o copo, derramara mais vinho sobre a toalha que no recipiente. Passados instantes, levantara-se da mesa, mais lívido do que um morto, e eclipsara-se, para nunca mais ser visto. Foi encontrá-lo a urinar o vinho, muito concentrado em não falhar o alvo do buraco do urinol, o nariz quase esborrachado contra a parede. - Olha o Vaçe! - Alegrou-se Jerry, o carão aberto num sorriso bonacheirão, como se não se vissem há uma eternidade. - Já mijaste o vinho todo? Jerry soltou uma gargalhada roufenha e sacudiu 47
vigorosamente o pénis. - Estas festas de Natal são o top, não é Vaçe” Na primeira vez que se encontraram, perante aquele carão amarrotado, com dois olhitos, dum azul deslavado, transviados entre os tojos das sobrancelhas arruivadas, julgara estar na presença dum bebedolas. Só mais tarde soubera que aquela cara, devastada precocemente antes dos cinquenta anos, era fruto de terríveis insónias. - Não durmo mais de quatro horas por noite. Um dia conto-te a razão destas insónias - semi-levantara, Jerry, o véu que cobria o mistério, certo dia de major acabrunhamento. Em todo o caso, e fosse qual fosse a gravidade do seu problema, o Jerry era um gajo porreiro, folgazão nos intervalos da depressão, senhor dum corpo de toiro moldado por intenso exercício físico na Checoslováquia, antes de dar o salto para o paraíso ocidental. Ao lavarem as mãos, Jerry olhou-se desgostoso no espelho. - Estas insónias rebentam comigo. - Essa cara é dos copos, não é das insónias. - Deixa-te de brincadeiras, Vaçe. Agora estou a falar a sério. Tens dois minutos para me escutar? Vaz compreendeu que, libertado pelo vinho, Jerry estava maduro para lhe revelar o segredo ciosamente guardado durante aqueles anos todos. - Preciso de falar, Vaçe, senão rebento. Cambaleante, Jerry passou-lhe o braço pelos ombros. Sentaram-se num tamborete, logo a saída da toilette. - Sabes, Vaçe - Jerry passou a língua pelos lábios ressequidos -, não sei o que hei-de fazer à vida, já não aguento mais. - Problemas? - Um pesadelo. Olha, Vaçe, a minha mulher, há mais 48
de oito anos que não faz amor comigo. Vaz sabia-o casado com uma judia checoslovaca e que tinham duas filhas já espigadotas. - Mas, porquê? Não me digas que se te acabou a força na gaita - ainda tentou brincar. - Isto é a sério, Vaçe. - A borracheira dissipava-se, a galope. - Sabes, Vaçe, eu acho que ela está completamente chanfrada. O trauma dos pais terem morrido num campo de concentração, durante a guerra, agora, passados tantos anos, está a transtorná-la. Dormimos em quartos separados e, de noite, oiço-a gritar, aterrada, com pesadelos. Sinto que um dia irei perdê-la para sempre. - Mas qual é a explicação dela, devem falar disso, não? - A princípio não dava nenhuma. Inventava mil e uma desculpas. Enxaquecas, cansaço, o que calhava. E se ela gostava de fazer amor, parecia uma gata com o cio. Até cheguei a desconfiar que andava metida com outro. Um dia, pressionada, depois de grande briga, confessou-me que se sentia culpabilizada por ter casado com um gentio e ter renegado os seus. Que se sentia indigna da memória dos pais. Já viste o meu problema? Jerry chorava como uma criança. - E eu que gosto cada vez mais dela, não posso viver sem aquela mulher. Vaz achava excessivo todo aquele pranto, fruto da ressaca, mas sentia-se incomodado. Era quase aberrante um choro assim, saído daquele corpo granítico. - Bom, fica aqui que eu vou-te buscar um conhaque. E acalma-te, man. Começou a subir as escadas e Jerry ficou de cabeça entre os joelhos, como um espantalho esventrado. - Onde se meteu? Tenho andado a procurá-lo por toda a parte. 49
A súbita aparição da jovem, no cimo das escadas, as mãos pousadas nas ancas moldadas pelo cingido vestido vermelho, deixou-o sem fôlego. A filha do mister Salomon! O que não se cochichava lá na fábrica! Enquanto o pai passava os dias , os anos, completamente absorvido pelos negócios, ela saltava alegremente dos braços dum boy-friend para os de outro, com um pé nas Caraíbas e outro na Califórnia, quando não na Europa ou em qualquer outra parte do mundo. E, o mais interessante da história, o mister Salomon, sempre tão exigente com o pessoal, era um mãos-rotas e um bonacheirão com ela. A miss Sara isto, a miss Sara aquilo, só ela o fazia desviar da sua meticulosa rotina. E era ela agora que lhe sorria, lá do alto, como uma aparição. - Estava à sua espera, para abrir o baile - disse a rapariga. - Despache-se que o meu pai já está nervoso, bem sabe como ele leva a sério estas festas da companhia. Vaz apertou nervosamente o nó da gravata e segurou, trémulo, a mão branca e esguia que procurava a sua. Ainda deitou uma olhadela ao vulto imóvel do Jerry, com certeza, adormecido a curar a bebedeira. - É uma honra para mim, miss Sara.
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A solidão do quarto de hotel entrou-lhe pelo corpo até aos ossos. Na televisão, os Canadianos e os Nórdicos defrontavam-se mais uma vez. A violência do jogo de hóquei agredia-lhe os nervos à flor da pele. Foi até à janela e correu o cortinado. Na rua, enlameada pela nevada inesperada e tardia, nestes princípios de Abril, passava um tráfico tímido: um autocarro quase vazio, automóveis medrosos. Um lampadário jorrava uma luz esbranquiçada que se misturava com a neve. Tornou a poisar os olhos na televisão. Os jogadores tinham-se envolvido todos à pancada, encorajados pelo ulular da assistência. Com a vulnerabilidade a sangrar, não resistiu mais e pegou no telefone. Respondeu-lhe a voz ensonada do filho: - Já estava deitado, pai. - Desculpa se te acordei, filho. Hoje, deitaste-te muito cedo. - Já estava aborrecido de estar para aqui sozinho, a ver televisão. Cresceu-lhe um pigarro na garganta e tossicou para clarear a voz. - A tua mãe não deve tardar. O filho calou-se. - Estás a ouvir? A mãe deve estar a chegar, já deve estar preocupada por tua causa. Quando chegar, diz-lhe que eu telefonei e dá-lhe um beijo por mim. Dorme bem. Desligou o telefone. Na televisão, a pancadaria 51
acabara, numa trégua de curta duração, a calcular pelo berreiro do público e pela selvagem confrontação física dos jogadores. Fossem lá chamar desporto àquele espectáculo de gladiadores. Desporto era, isso sim, era o hóquei em patins do seu tempo. Naqueles memoráveis Portugal-Espanha, a telefonia, encostada à orelha, sempre na eminência de explodir com aqueles go... go... gogo. . . golooooo... . de Portugal, que só acabavam quando o locutor não tinha fôlego para mais. Então sim, era tangível o amor dos jogadores à camisola, davam o litro até à última gota, numa entrega total que arrebatava as multidões. O seu ídolo era o Livramento, um cometa fulgurante cujo talento fez arregalar o olho a toda a Europa. Apaixonado, forrara as paredes do quarto com todos os recortes de jornal e cromos que conseguia adquirir, para desespero da mãe: “Este garoto está maluco! Isto não é um quarto, é um caixote de papéis.” Mais tarde, sempre impelido pelo amor ao hóquei, ainda chegara a alinhar nos juniores do Paco-d’Arcos, não era um predestinado mas ainda dava duas para a caixa, curta carreira que a tropa cerceara. Aliás, fora essa aura de desportista que lhe atirara a Cândida para os braços. Já nesse tempo ela manifestava predilecção pelos vencedores, pelos winners, como agora dizia. Estava tentado a pegar outra vez no telefone mas refreou o impulso. Pobre do filho, já devia estar outra vez ferrado no sono, seria desumano tornar a acordá-lo. Além disso, a Cândida já deveria estar em casa, geralmente aqueles jantares nunca se prolongavam até muito tarde. Dois dias atrás, quando ele anunciara que tinha que se deslocar a Chicoutimi, em viagem de trabalho a uma fábrica de papel, a Cândida quase chorara de frustração. - E o nosso jantar que é quinta-feira. Recordas-te daquele jantar que a malta da loja combinou fazer pela 52
Páscoa? Pois já está tudo planeado, o Peter já reservou mesa no restaurante, tu não podes adiar essa viagem? - Mas não há problema, tu podes ir ao jantar na mesma, o Zé pode muito bem ficar um bocado de noite sozinho, já está um homem. - Tu achas? - refulgiram os olhos dela. - Posso, então, dizer ao Peter que conte comigo? Agora censurava-se por tê-la encorajado. Aquela apreensão, que o dominara na noite do jantar de Natal, voltava a emergir, desta vez mais caracterizada, com um rosto, com um nome: Peter. Desde há meses, era um espectro que aflorava em todas as conversas, uma evocação obsidiante e irritante: o Peter isto, o Peter aquilo. A tal ponto que uma vez rebentara: - Não tens mais nada que dizer do que falar nesse merda do Peter? Ela ficara chocada e a resposta fora viperina: - O Peter não é merda nenhum, sabe o que quer na vida, não é uma mosca morta como tu. Desde esse dia, ficara uma luz vermelha a queimarlhe os miolos. Tentava rebater essa morbidez, auto convencer-se que não passava tudo dum excesso de imaginação da sua parte, debilitado pelo stress, mas era tudo em vão, a luz vermelha continuava lá, como um ferro em brasa. Apagou a televisão e tirou a carteira do bolso do sobretudo. Eram onze horas da noite, o bar ainda estava aberto e não conhecia melhor remédio para as insónias do que dois ou três conhaques.
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- Tu, se quiseres, podes ir comigo. Não tens alma de branco, podemos fazer de ti um índio a valer. - Mas primeiro tenho que me deitar com a Chantal. - Olha - gozava o Blackfeed -, se a quiseres tornar a ver, vai fazer a ronda aí pelos cabarets, vais ver como a encontras. - Se tornas a falar nesses termos da rapariga, parto-te a fuça. Blackfeed rebolava-se de riso. - Pelos vistos, estás mesmo pelo beicinho, já te estou a ver a caminho do altar, ao som da nupcial. - Primeiro, ainda te hei-de ver ver esticado lá no pinhal de Oka, com uma bala enfiada nos cornos. Mas aquele sacana do Blackfeed não estava muito longe da verdade, aquilo fora mesmo um coup de foudre, olho na mira, pumba, o coração aos pedaços. Por mais que se rebolasse e gemesse, chegava sempre à mesma conclusão: estava apaixonado como um adolescente imberbe. E o reconhecimento de tão evidente estado de espírito perturbava-o. Em trinta e tal anos de vida, era a primeira vez que tal lhe acontecia, até aí, mulheres sempre fora coisa para utilizar e deitar fora. Tanto em Portugal, como em Angola e no Canadá, nunca nenhuma lhe deixara a mínima beliscadura na pele. Quando já estava farto delas, sem mais mistérios para desvendar, adeus filha, foi muito bom, até à próxima, estava o assunto arrumado, já estava, ali à esquina, outra à espera. Então em Montreal, era um fartote, as mulheres eram peixe fácil de pescar, bastava estender a rede e caiam aos cardumes. Devia ser o chamariz da pala sobre o 54
olho vazado, bastava contar-lhes a história do ferimento na guerra para amocharem logo como galinhas, mal lhe davam tempo para no olho chegar à cama. Mal sabiam elas que aquilo fora um grande azar, num estúpido acidente. Com a pressa, ao saltar do unimog, numa emboscada perto de Ambriz, enfiara o olho no cano da G-3 dum camarada, bop, parecia um ovo choco a rebentar. No hospital, em Luanda, para onde fora logo evacuado, já só puderam confirmar-lhe a sua nova condição de zarolho, eufemisticamente camuflada, nos papéis de desmobilização, em mutilado de guerra. - É a história que se repete - ainda se rira, por cima, o médico de serviço que o recebera, ao reparar na coincidência do apelido. - Agora já vais ter tempo para reescrever os Lusíadas. Se quiseres, amanhã já te trago papel e lápis. Para ti a guerra acabou, grande felizardo. -Tenho que tornar a vê-la - decidiu Camões, com uma palmada na testa. - E, para isso, só há um caminho. Resoluto, enfiou as calças, penteou, com os dedos, a juba ruiva e, em tronco nu, desceu, dois a dois, os degraus das escadas, com uma agilidade felina inesperadamente reencontrada. Foi detido, a meio das escadas e das boas intenções, pela aparição do porteiro. Era um português com cara de coveiro, que nos fins dos meses lhe fazia a vida negra, sempre a rondar como um corvo agoirento. - Já te esqueceste outra vez de pagar a renda? desferiu à queima-roupa. - Se dentro de dois dias não me apareces com as trezentas dolas, cash, desta vez é que vou tratar do teu caso à Régie. Vais para o olho da rua e pronto, já estou farto de ter dores de cabeça por tua causa. - Mas, senhor Américo... O porteiro estendeu a mão peluda. - Chega de desculpas. Dois dias. O meu bossa nem mais um dia te queria dar, até tenho vergonha de ser 55
português como tu. Quando bateu a porta da France, Camões tinha perdido grande parte do seu ardor. E foi de cabeça baixa que entrou no apartamento, sob o olhar irónico duma France de mão na ilharga e cigarro na boca. - Deu-te a fome, outra vez, tabarnak? - E com uma olhadela para as escadas, antes de fechar a porta: - Tiveste um mau encontro com o concierge? Acabrunhado, apercebendo-se que Chantal não estava presente, Camões esboçou um sorriso. - Já estava com saudades tuas. France deu uma gargalhada que lhe estremeceu a barbela. - Vai, vai lá ao frigorífico, ainda para aí há um bocado de pizza que me sobrou do almoço. Camões não se fez rogado. Sob o sofá, os olhos dos gatos coruscavam, ferozes. Com uma coke ao lado, France estendera-se no sofá, concentrada na televisão onde decorria a habitual telenovela do meio-dia, as vozes melosas dos actores a espraiarem-se pelo apartamento como uma maré viscosa. Camões acabou de engolir a fatia de pizza e foi-se sentar na alcatifa, com a cabeça encostada aos joelhos da France. - Desta vez, vieste em má altura - disse ela, interessada no beijo repenicado dos protagonistas. - Veio-me ontem a menstruação. Camões sentiu campainhas de júbilo a retinir na cabeça. - Que pena. - E acariciou-lhe, com sinceridade, a mão sapuda. Ficaram calados, na penumbra agradável até que o telefone tocou e France estendeu a mão. - Allô! És tu, Chantal? 56
O olho de Camões abriu-se como um farol. - Como queiras, darling. Sim, chérie. Chao. Camões tremia interiormente dos pés à cabeça mas não movia um músculo, como uma estátua de neve com medo de derreter ao calor das emoções. Os segundos prolongaram-se uma eternidade. - Sabes quem era? - disse finalmente a mulher.- Era a minha filha, ainda te recordas dela? Vem cá jantar, a pobre, desde que rompeu com o chum, sente-se muito só. Num certo sentido, até foi bom que isso tivesse acontecido para se relembrar que ainda tem mãe. Camões rilhava os dentes para demonstrar interesse no folhetim. Agora, os protagonistas cavalgavam esbeltos cavalos, na orla duma praia tropical, envoltos num véu irisado de espuma. Quando o convite veio, foi como se o céu se abrisse: - Queres cá vir jantar com a gente? Com essa cara de enterro, já não deves trincar nada a sério há mais duma semana e não há nada melhor do que um prato de lasanha para ressuscitar um morto.
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As crianças precisam da tua ajuda nos trabalhos escolares, principalmente em inglês. Vaz levantou uns olhos mal-humorados do jornal. - Já estou farto, até à ponta dos cabelos, de perder tempo com esses calaceiros. - São teus filhos, não fazes mais do que o teu dever. Sabes muito bem que se eu soubesse inglês, não seria preciso incomodar-te. Deitou um olhar oblíquo à mulher que lavava a loiça do jantar, debruçada sobre o lava-loiça. Assim de costas, as roscas de gordura ao redor da cinta quase lhe rebentavam a blusa e as varizes assanhadas eram serpentes enroscadas às pernas. Parecia quase inacreditável que, vinte anos atrás, a Teresa era uma garota esbelta como uma estampa, por quem todos os rapazes morriam de amores. Quando lhe aceitara namoro, toda a gente se perguntara como ela se prendera por um caixa d’óculos meio esgrouviado, sem ponta por onde se lhe pegar. Da cave subia a algaraviada dos filhos e a barulheira extraterrestre dos vídeo-games. - Esses gajos só pensam naquela merda dos jogos. Teresa voltou-se transfigurada, as mãos cheias de espuma de detergente. - Mas que diabo anda contigo, homem? Tu é que lhes andavas sempre a trazer cassetes para casa, divertias-te ainda mais do que as crianças. Desde o Natal, nem pareces o mesmo, andas sem paciência nenhuma. Nunca te ouvi uma linguagem dessas cá em casa. Vaz atirou o jornal para cima do sofá e levantou-se 58
para apanhar uma cerveja do frigorífico. - Não bebas assim depois do jantar, ainda apanhas uma congestão. - Já sou suficientemente grandinho para saber o que faço. - Nem parece. Mordeu a língua para não lhe sair uma asneira, os nervos à flor da pele e as palavras da mulher tinham o condão de exasperá-lo, mais um pouco e desatava aos berros. Aliás, já não era a primeira vez, desde aquele Natal, contavam-se, pelos dedos das mãos, as noites de harmonia lá em casa. As altercações rebentavam por dá cá aquela palha. - O frio deve ter-te congelado os miolos - continuou Teresa. Enterrou as unhas nas palmas das mãos, para se controlar. “Hoje não”, pensou, “hoje não, todos os dias menos o de hoje.” Nessa tarde, à saída do trabalho, o BMW, vermelho como um clarão, da miss Sara estava estacionado defronte da fábrica. Quando ia a passar, a porta do carro, do lado do passeio, abriu-se abruptamente e o rosto dela surgiu sorridente: entre. Ainda se voltou para comprovar se não haveria um equívoco, se não seria a outra pessoa qualquer que ela se dirigia, mas não havia a menor dúvida, era bem com ele, não havia mais ninguém nas redondezas e os olhos azuis e meio irónicos da miss Sara estavam bem cravados nos dele. - Onde é que mora? - perguntou ela. - Em Brossard. Vou apanhar o bus à Bonaventune. - Eu dou-lhe uma boleia. Está-me a apetecer dar uma volta. Depois fora tudo uma vertigem. O BMW voava na auto-estrada, os risos da miss Sara ressoavam como cristal, o 59
sol refulgia nos bancos de neve das bermas, o St- Laurent era uma preguiçosa fita branca estendida sob as pontes. - Tem filhos? - perguntou miss Sara, quando abrandou a velocidade a entrada da ponte Champlain. - Tenho dois rapazes. Já são crescidos. Ela pôs-se a recitar: - Vaz, trinta e oito anos de idade, nascido em Portugal, casado com Teresa qualquer coisa. Dois filhos, Miguel e David, doze e catorze anos. Quer mais? Vaz abriu a boca estupefacto e ela desatou a rir. - Não sou nenhuma vidente, não tenha receio. Fui simplesmente espreitar a sua ficha, lá nos arquivos do escritório. Também já sabia que mora em Brossard, quer que lhe diga o nome da rua e o número da porta? Miss Sara recostara a cabeça no banco e no mármore branco do pescoço já se desenhavam, ainda que quase imperceptíveis, delicadas estrias, que denunciavam o rondar dos trinta anos. - Sei quase tudo a seu respeito - continuou ela. Também sei que o meu pai o tem em grande consideração por si e que quando o John se reformar, o lugar dele será naturalmente seu. Se for bonzinho, poderá chegar muito mais alto e muito mais cedo do que espera. Já estavam na zona residencial e os bungalows mal sobressaíam das montanhas de neve que se acastelavam ao longo da ruas. A mão da miss Sara, pousada no seu joelho, parecia um ferro em brasa. E, como sempre, quando ficava nervoso, o suor começou-lhe a empapar os cabelos na nuca. - Miss Sara, não sei o que dizer... Ela tirou os óculos escuros e sorriu-lhe com aqueles olhos azuis capazes de comerem uma pessoa, como se dizia lá na fábrica. Não diga nada. A sua rua é esta, não é? Chau. - E 60
despediu-se dele com um beijo no queixo. Pouco depois, ainda ele estava plantado no meio da rua, já o roncar do carro se tinha volatizado. - Não me escutes, não, e vais ver como ainda te arrependes - continuou Teresa. - Foi assim que o meu tio Carlos embarcou desta para melhor. Na noite de consoada, encheu o bandulho até não poder mais e quando bebeu uma cerveja gelada em cima... És capaz de te calar? Já conheço essa história do teu tio Carlos de cor e salteado. É isso que gostarias que me acontecesse, não é? Teresa ficou rígida como uma estátua. Depois, quando se voltou, muito lentamente, quase que se ouviam as articulações a ranger. Vista assim, de rosto crispado e sem sangue, a marrafa de cabelos grisalhos a cair-lhe para os olhos atordoados, era uma velha. - Tu sabes o que estás a dizer? Vaz levantou-se bruscamente e fez um aceno de enfado com a mão. - Vamos lá acabar com esta porcaria. Vou lá abaixo ver se aqueles diabos querem estudar alguma coisa.
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Nunca imaginou que uma coisa daquelas lhe pudesse acontecer. A ele, Luís, o progressista que, durante anos e anos, atafulhara a boca com eloquentes sentenças sobre a igualdade dos sexos. Estava agora ali, furtivo, como um colegial roído de ciumeira, colado à esquina, a espiar a mulher, à saída do emprego. O que não riria o Costa se soubesse daquilo, que enxurrada de gargalhadas brotaria daquela pança imunda. E com razão, era infame, completamente incoerente e inverosímil a situação a que se deixara arrastar. Tudo nascera nessa manhã. À chegada ao emprego, os colegas acotovelavam-se ao redor dum computador. E logo naquele instante, ao dar com os olhos no aparelho meio acinzentado, com aquele grande olho quadrado e ciclópico, teve a sensação, esotérica, diria o Dominic, de estar na presença dum inimigo mortal, capaz de o destruir implacavelmente. - Este computador - perorava, ufano o chefe de grupo, o Ed Stevens -, é o precursor daquilo em que se transformará este gabinete num prazo máximo de dois anos. Por essa altura, os estiradores serão uma relíquia do passado, já só com lugar no museu das velharias. E vocês - corria a cara dos presentes com aqueles seus olhos acinzentados onde nunca aforava a mais pequena paixão - terão que se adaptar às novas tecnologias. Ou se reciclam ou...- e a mão, a evocar o golpe duma guilhotina, era eloquente. Fora-se refugiar na fortaleza do estirador, os joelhos cheios de tremuras. Aquela onda tecnológica, há muito que a sentia marulhar ao redor, era, nos últimos tempos, o prato 62
forte das conversas dos colegas, relegando para um lugar secundário as conversas sobre carros e hipotecas. Citavam-se as companhias que já tinham encetado o processo da modernização, a Sandwell, a Monenco, etc. etc. era inevitável que, mais dia menos dia, a vaga os atingisse. Não podemos ser ultrapassados, diziam os mais apressados que já seguiam cursos nocturnos e se punham a discorrer, entusiasmados, sobre as maravilhas dos logicieis, numa linguagem cabalística mais densa do que a do Dominic. Esse coitado já não precisava de se preocupar com reciclagens e novas tecnologias, ainda estava no hospital a refazer-se do primeiro enfarte, quando uma repetição mais forte o levara desta para melhor, sem apelo nem agravo. Até talvez tivesse sido um bem para ele, também não via o Dominic a calcar as teclas dum computador, tão longe como ele andava sempre das coisas terrenas, embrenhado em longínquos espaços siderais. Aquele inesperado confronto matinal com a fria realidade da informática reabrira-lhe a ferida da vulnerabilidade, fizera sangrar a chaga, nos últimos tempos meio cicatrizada. Daí a começar a pensar na Cândida fora um passo, processo coerente em que os elos da trama se encadeavam uns nos outros como partes distintas mas relacionadas dum todo. Durante todo o dia, a imagem da mulher fora crescendo dentro dele, até já não ver nem ouvir o alvoroço dos colegas e, na sombra, como um vulto fantasmagórico, de traços indefinidos, mas omnipresente, lá estava também o Peter, causa profunda, assim o cria, da radical transformação da Cândida. Era verdade que, desde há muito, quase desde o princípio do casamento, dissipados os fumos cor-de-rosa da lua-de-mel, ela o encontrava, e cada vez se coagia menos em 63
confessá-lo, um pouco frouxo, sem garra para a vida, sempre pronto a refugiar-se em literatices e quimeras, coisas que não enchem a barriga a ninguém, como ela dizia, mas, não obstante, houvera sempre um residual de ternura a uni-los, a lubrificar os eventuais atritos e diferenças de temperamento. “Tenho que por isto tudo em pratos limpos”, resolvera lá para o fim da tarde, com as têmporas a latejar. Fora assim que tudo se conjugara para o colocar naquela esquina, como um ladrão de atalaia. Era precisamente o que se sentia, um ladrão prestes a destruir, com o seu gesto, os últimos traços de respeito e confiança mútuos que ainda os uniam, como casal. Eram tantas as vezes que consultava o relógio como as que decidia ir-se embora, esquecer aquele projecto insensato e indigno dele mas os pés grudavam-se ao chão, teimosos, rebeldes ao comando central. Por fim, pouco passava das cinco horas da tarde, avistou-a: vinha sorridente, acompanhada por um tipo alto e magro, de cabelos e bigode loiros no qual reconheceu logo Peter, a ater-se às sumárias descrições que a mulher lhe fizera dele. Mesmo àquela distância de cinquenta metros, invadiu-o o medo de ser apanhado em flagrante e coseu-se à esquina, paralisado. Tinham-se detido na paragem do autocarro e tagarelavam, sorridentes e bem-humorados, até que, por fim, passados dois ou três minutos, o autocarro surgiu e Cândida correu a incorporar-se na bicha de espera que entretanto se formara, sempre sorridente e a acenar, até desaparecer no bojo do veículo. Peter esperou que o autocarro partisse e depois, sem pressas, de mãos nos bolsos das calças, entrou num café Van Houtte, ali mesmo na esquina. Luís sorriu. Doze anos atrás, à chegada a Montreal, a não ser lá para a Petite Italie ou no quartier St. Louis, nos cafés dos portugueses, não havia lugar na cidade onde tomar uma bica. O que não lhe custara, ao princípio, privar-se 64
desse prazer, um pequeno vício arreigado desde a adolescência, refeição sem o complemento duma bica não era refeição a sério, ficava-lhe sempre no estômago um vazio que nem a zurrapa das canecas de café, emborcadas no gabinete, conseguiam preencher. Depois, gradualmente, primeiro a cadeia dos Van Houttes e logo a seguir a generalidade dos bares, presentemente não havia lugar em Montreal onde não se pudesse beber uma bica. E tudo isso acontecera no tempo acelerado de meia dúzia de anos. Esvaziado, alquebrado pela tensão acumulada, dirigiu-se, por sua vez, para a paragem do autocarro. De tudo o que vira, nada comprovava as suas suspeitas, os sorrisos e o alegre tagarelar podiam muito bem ser o resultado duma amizade sadia. Afinal, talvez não passasse tudo dum monumental equívoco da sua parte, duma interpretação doentia dos factos, resultante da sua insegurança emocional causada pela instabilidade do emprego. O melhor que tinha a fazer era esquecer tudo e chegar a casa com uma atitude diferente da dos últimos tempos. E, para começar, nada melhor do que apear-se uma paragem mais cedo do que o habitual e comprar um ramo de flores, na florista. Rosas vermelhas, eram a perdição de Cândida. Santo Deus! recriminou-se, há uma eternidade que não lhe oferecia rosas.
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Lasanha devia ser o único prato que France sabia cozinhar e, quando se dispunha a tal, esmerava-se até ao último detalhe. - Eh Camoês, o que dizes à minha lasanha? - Está super. France riu, feliz com o elogio. - Então come e deixa de devorar a rapariga com os olhos, não é carne para os teus dentes. Não vês que ela ainda não esqueceu o chum? Mas também te digo, nem sei como ela se enamorou dum fuinha daqueles que até parece que tem a sida. - Mãe! - recriminou-a Chantal. France estava bem humorada e não deixava de rir. - É uma joke. Além disso, o crisse do Camoês é quase da família, não precisas de fazer cerimónias com ele. É ele que me consola nas minhas crises de solidão. Mas não lhe fico a dever nada, conta lá à Chantal como é o nosso negócio. Camões ficou raivoso, quase lhe apetecia atirar-lhe com a lasanha à cara bolachuda, vermelha corno um tomate com o riso que não conseguia controlar. - Se tivesses bebido vinho, diria que estavas bêbada. - Pronto, pronto - contemporizou France -, não é preciso afinar, já vi que hoje não se pode brincar nesta casa. Acalmado, Camões pôs-se a comparar a carantonha devastada pelos vícios da France com o oval perfeito do rosto de Chantal. Parecia inconcebível que um monstro daqueles tivesse procriado uma beldade assim. Até mesmo na postura eram completamente diferentes, havia nos modos 66
da rapariga uma leveza e uma pureza que contrastavam com a grosseirice deliberada da mãe. - Tens a certeza que a Chantal é tua filha? São tão diferentes. - Sai-se ao pai. Sabias que o pai dela é um peixe graúdo cá da política? Não há dia nenhum em que a fuça dele não apareça por aí nas televisões. - Mãe - repreendeu-a Chantal -, sabes muito bem que não gosto que fales nesses termos do papá. France teve um ataque de furor: - Eu falo como muito bem me apetecer desse bastardo. Não é uma serigaita como tu que me vai meter uma rolha na boca. Quero lá saber que seja o teu pai, para mim é um grande estupor que continua a enganar miseravelmente os seus eleitores como me enganou a mim. Sabias, Camoés, que nessa altura, eu ainda era mais bonita do que a Chantal? Pois, se queres saber a verdade, fica a saber que ela se sai a mim, há vinte anos eu era um torrão de açúcar. Camões puxava pelos miolos, tentando adivinhar quem seria o pai de Chantal. - Não me digam que estão a falar do Mulroney sondou. France soltou uma gargalhada rouca. - Então tu achas que eu me ia deitar com um troglodita desses? E deixa-te de rodeios porque não te vou revelar quem é o gajo, não estou para perder a pensão com que ele compra o meu silêncio. E tu também, o melhor é não mexeres muito na merda, é com o dinheiro dele que às vezes enches a barriga. Agastada, Chantal levantou-se da mesa e foi-se sentar no fauteuil. Os gatos saltaram-lhe para o regaço e ela acariciava-os distraidamente. - O teu mal, mamã, é que sempre tiveste uma língua demasiado comprida. 67
Camões terminou a lasanha e com uma careta bebeu uma golada de coca-cola. Aquele estafermo bem que poderia ter tido a amabilidade de comprar uma garrafa de vinho. Era urna barbaridade forçá-lo a engolir aquela xaropada, capaz de lhe azedar a lasanha no estômago. Depois da inesperada revelação, instalara-se um palpável mal-estar entre eles. Enquanto lavava a loiça, France lançava olhares de soslaio e Chantal continuava a acariciar os gatos que ronronavam deliciados. - Ouve lá, ó Camoês - acabou por dizer France -, vê lá se vais para aí contar isto que eu disse. Não me queiras estragar a vida. - Estás-me a tornar por quem? Esta boca é um túmulo, daqui não sai palavra. - E é se queres continuar a papar umas lasanhas, de vez em quando. Era inacreditável como tudo dera tão drástica reviravolta, num pedaço de serão. Ele que passara uma semana quase louco por reencontrar a Chantal, bastara a revelação da France para subalternizar, num repente, todos os ardores amorosos. Até quase lhe passava despercebido que o objecto da sua obsessão estava ali, a dois passos dele, abandonada no mesmo fauteuil dos seus pesadelos, numa reconstituição quase fiel da imagem que lhe queimara os miolos durante longos dias. E ali estava ele agora, grudado à mesa da cozinha, a pensar nela, é certo, mas sob um prisma diferente, não mais como a deusa dos seus ardores amorosos mas como a filha, assexuada, dum misterioso político de renome, cuja identidade estava dolorosamente oculta por espessa faixa de sombra, lá num limbo indestrinçável que tinha como guardiã, facto assombroso e inverosímil, esse estupor da France, protagonista do enredo. Despediu-se abruptamente e, já no seu apartamento, atirou-se para cima da cama. Ficou de costas, no escuro, 68
apossado por uma inquietação que lhe cortava a respiração. E, como as cortinas dum palco que se abrem aos olhos do público, assim a ideia se foi concretizando, a princípio baça, informe, mas aos poucos, numa construção gradual, cada vez mais clara, luminosa como uma bola de cristal: “Tenho que saber quem é o gajo, isto pode ser a minha galinha dos ovos de oiro.”
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Como soldados, os computadores foram chegando, numa invasão silenciosa e irreversível. Ficaram alinhados ao fundo da sala, os olhos ciclópicos profundos e vigilantes, à espera de ordens. Finalmente, um dia, o Ed Stevens apresentou-lhes um jovem oriental, de idade indefinida, magro como um espeto, no seu fato de bom corte e ar brilhante com aqueles óculos de aros dourados. - Este é o Nhan, será ele que vos irá dar o curso de autocad. Aproveitem bem. Nhan sorria, com aquele ar indecifrável característico dos asiáticos e, quando se sentou defronte de um dos computadores, as suas mãos, ágeis como as dum pianista, pareciam uma prolongação natural das teclas, tocadas pela magia de arrancar cintilantes imagens do ecrã. Quando começou o curso, foi como se o inferno se abrisse aos pés de Luís. Por nada lhe entrava na cabeça aquela complicação dos ficheiros, tira do ficheiro, põe no ficheiro, cria um desenho, chama um desenho. Enganava-se numa tecla e lá perdia tudo, tinha que ir, de rabo entre as pernas, pedir socorro ao Nhan que, sem nunca levantar a voz, naquele francês a comer os rr, tornava a explicar tudo desde o princípio: - Pensa numa casa com o hall que é o dos - ilustrava. - Uma casa tem quartos e cada quarto tem móveis com frustrado, envergonhado. Os colegas lá se iam desenrascando, faziam progressos evidentes. Ele e o Michel eram as ovelhas ranhosas do grupo, mas este estava-se tintas para tudo. 70
- Fuck them - dizia, apontando com o colegas debruçados sobre os computadores -, não sou que vou morrer agarrado a essa merda. O que lhes valia era o Peel Pub, à hora do almoço. Como sempre superlotado, predominantemente gente nova, estudantes das universidades circunvizinhas, havia no ar um rastro de boémia e descontracção, os empregados numa lufalufa, carregados de pichets de cerveja. - Merda para aquilo - dizia o Michel, emborcando copo atrás de copo, o nariz de dia para dia mais rubicundo. Aquilo é para a malta nova, já não é para nós que temos os parafusos todos enferrujados. Luís concordava, uma manápula de terror a apertarlhe o coração. E para arredar as sombras do futuro, já não protestava quando o Michel lhe enchia o copo e pedia outro pichet para a mesa. Finalmente, um dia, teve um telefonema do Arcand, o chefe de pessoal. Telefonema há muito adivinhado e esperado, a síntese natural da conjugação de factos inelutáveis. - Senta-te - disse o Arcand. E sem mais preâmbulos, como quem tem pressa de se desembaraçar duma tarefa aborrecida, foi logo direito ao assunto. – Lamento não poder renovar o teu contrato mas, como sabes, os tempos estão difíceis e há falta de trabalho. Além disso, as novas tecnologias impõem-nos uma restruturação radical dos nossos quadros de pessoal que nos assegure uma eficiência e capacidade competitiva em mercados cada vez mais exigentes e restritos. Se alguma oportunidade se apresentar, no futuro, fica a saber que não hesitarei em entrar, de novo, em contacto contigo. Com a carta de despedimento na mão, regressou ao seu canto. - Também tu?- riu-se o Michel. - Também tive a 71
minha esta manhã. Vamos ao Peel Pub celebrar? Ao redor, os colegas, nervosos, não despregavam os olhos dos telefones. Só quando se asseguraram que a tempestade tinha passado é que se aproximaram, como gaivotas tontas, os rostos ainda distorcidos num rito patético mas com os olhos esfuziantes de alegria, de poupados a pena capital. - Quantos foram? Quantos foram? - perguntavam num cicio roufenho, patéticos, como soldados, depois da batalha, a contar os mortos. - Podem-se tranquilizar – acalmou-os Michel. - Desta vez fomos só nós os dois mas garanto-vos que, quando esta merda dos computadores estiver a funcionar a cem por cento, mais de metade do pessoal vai parar ao olho da rua. Os sobreviventes entreolharam-se, ainda pálidos e aturdidos, mas a consciência de terem escapado a esta revoada já lhes renovava as forças do sarcasmo. - A cerveja do Peel Pub já te apodreceu a massa cinzenta - regougou o Richard. Incapaz de suportar tamanho canibalismo, Luís foi-se refugiar na casa de banho. A última vez que se confrontara com o espelho, por altura do ataque cardíaco do Dominic, fora recebido por um par de olhos roídos pelo remorso mas desta vez os olhos que o fitavam eram mais miseráveis do que os dum cão espancado. Perguntava-se qual seria a reacção da Cândida. Com a neura que ela andava, era bem capaz de se pôr a disparatar, de proferir palavras irreversíveis, daquelas que ficam para sempre incontornáveis, agarradas à vida dum casal. Ou então, se lhe desse na veneta, imprevisível, podia muito bem, com uma gargalhada, retirar toda a importância ao caso: - Deixa lá, não vai morrer ninguém por causa disso com aquela coragem a tocar as raias da leviandade, tão ao jeito dela. 72
Mas fosse qual fosse a reacção que o esperava, e isso é que o amarfanhava, pressentia que nesse dia se encerrara um ciclo da sua vida, que este despedimento não tinha a banalidade dos anteriores. Que a revolução tecnológica que avassalava o mundo, precursora duma nova era, iria deixar urn rasto de vítimas incapazes de se acomodarem aos novos tempos e, o pior, já se via no rol dos sacrificados e cilindrados. Apetecia-lhe chegar a casa, encostar a cabeça ao peito da Cândida e, sem palavras, ficar assim uma eternidade, sorvendo dela a força anímica de que se sentia esvaído. Agora, no gabinete parecia que nada se tinha passado. O Michel fora, sem dúvida, retemperar forças ao Peel Pub. Os colegas, concentrados, sorviam as palavras sábias do Nhan. Não restava o mínimo vestígio do vendaval. Olhares casuais atravessavam-no como a um objecto translúcido, ninguém lhe dirigia a palavra, era como se já não existisse.
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Era uma hora da tarde, logo depois do almoço. - Sabes que fui despedido? - perguntou John, de cabeça vergada. De tão surpreendido, apanhado assim de chofre, Vaz nem foi capaz de reagir, sem palavras para consolar o velhote. E ainda mal se começava a recompor, foi chamado ao gabinete do mister Salomon. - Senta-te, senta-te - disse-lhe, amavelmente, este. Como sempre, sobre a secretária, lá estava a fotografia de miss Sara ainda adolescente e aquele jogo de cachimbos que ninguém sabia exactamente o que fazia ali pois mister Salomon não fumava nem havia memória de que o tivesse feito alguma vez. - Já deves saber que o John nos vai deixar brevemente. Já começa a estar de certa idade, a precisar de repouso. Se te interessar, o lugar dele passa a ser teu, a partir de hoje mesmo. Aceitas? Os olhos azuis de mister Salomon pousaram nele sem pressas, certos da resposta. Vaz escondeu as mãos para que o patrão não se apercebesse como tremiam e o suor começou a aflorar-lhe a nuca. - É tão inesperado, mister Salomon, mas claro que aceito. – Compreendia que devia acrescentar mais alguma coisa e sentia dificuldades em encontrar as palavras escorregadias. – Irei fazer o rmeu melhor, para merecer a confiança depositada em mim. - Óptimo, está o caso encerrado - atalhou mister Salomon. Com a mão, fez-lhe um aceno para se ir embora. 74
Tenho que fazer um telefonema urgente. Quando Vaz já estava com um pé fora do gabinete, ainda lhe atirou: - Sabes que a minha filha te tem em grande estima? Vaz voltou-se atónito mas já mister Salomon estava de auscultador na mão e, sem o encarar, fazia-lhe sinal para fechar a porta. A caminho do local de trabalho, parecia caminhar, imponderável, sobre algodão em rama. Mal acabara de se sentar, o telefone tocou. Era miss Sara. - Então, está satisfeito? Engasgado, o suor a rebentar em cachão por todo o corpo, não conseguia articular palavra. Do outro lado, a voz de cristal soava divertida. - Então não diz nada? Não me diga que não ficou satisfeito? Quando conseguiu falar, mal reconhecia a própria voz, resvaladiça como melaço, sem uma nota mais alta. - Claro que estou contente, miss Sara, é uma grande honra que o seu pai me faz. Sentia-se aliviado por miss Sara não estar presente e vê-lo naquele estado lastimoso, seria uma humilhação difícil de suportar. - Temos que festejar isso - tornou ela -, logo à tarde está livre? - Claro, miss Sara. - Ok, então até logo e deixe de me tratar por miss. Aos poucos, as ideias começaram a arrumar-se. Estava cada vez mais certo que ali andara a mão da miss Sara. Sabia-se competente profissionalmente mas tudo se passara demasiado rápido, era evidente a existência duma orquestração, e que outra pessoa poderia ser responsável de tão inesperado desfecho senão ela? Não era por acaso que na fábrica se dizia que mister Salomon obedecia cegamente a 75
todos os caprichos da filha, incapaz de a contrariar fosse no que fosse. A Teresa tinha razão quando dizia que, desde o Natal, ele andava com o diabo no corpo. E não era para menos, parecia-lhe uma alucinação aquele súbito e inequívoco interesse da miss Sara. Bonita, rica, o mundo a seus pés, era quase uma aberração ter reparado num tipo insignificante como ele. Pousou as palmas das mãos na secretária e atirou as omoplatas para trás. John tinha-se eclipsado, pela certa destroçado com a porretada que recebera. Coitado do homem, não era mau tipo. Agora, passada a primeira vaga de emoção, começava a inquietar-se por ele. E, sem saber como, subiu-lhe à memória a figura grotesca do ti Tavares, lá na fábrica, em Portugal. Operador da máquina de fotocópias, bode expiatório de todos os maus humores e alvo constante de chocalhice, com aquele seu corpo grandalhão e desproporcionado, onde se espetava uma cabeça de símio, com os olhitos redondos e amarelados muito afastados e os cabelos grisalhos, cortados à escovinha, espetados e rijos como cerdas. Mas com um coração de criança grande. Chorara baba e ranho quando lhe deram a notícia que iam reformá-lo. “O que vou fazer lá para casa? - lamuriava-se. Chatear a velhota? Fora um choque para todos. Ele próprio encabeçara o movimento contestatário, o ambiente da fábrica nunca mais seria o mesmo sem a figura típica do ti Tavares. Acabaram por vergar as leis da burocracia e o velho por lá ficara, feliz, reconhecido e sempre rezingão. Mas isso era outra história e outros tempos, o John não era o ti Tavares e uma oportunidade daquelas não era para desperdiçar. Não era todos os dias que uma benesse daquelas caía assim do céu e no Canadá não havia tempo 76
para reflectir nas desgraças alheias, era um luxo que ninguém se podia permitir, principalmente nos tempos que corriam, quando toda a gente falava em crise económica e o desemprego grassava impiedosamente. Consultou o relógio. Três horas da tarde. Dentro de duas horas, a miss Sara, a Sara, lá estaria com o seu BMW a roncar, na saída principal, à espera. À sua espera. Para irem a qualquer lado festejar a sua promoção. Era quinta-feira e a Teresa contava com ele para saírem às compras. As malditas compras das quintas-feiras à tarde. Que se lixasse. As compras podiam muito bem ser adiadas, ninguém iria morrer à fome. Impensável seria recusar um convite daqueles. Inventaria uma desculpa, uma urgência qualquer, um overtime irrecusável.
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- Mas isso é fabuloso! - exclamou, assombrado, Blackfeed. - Tens de descobrir quem é o pássaro. Camões ainda mal tinha aberto a boca e já estava arrependido de ter revelado o seu segredo ao amigo. Tudo culpa do sortilégio do Belitz, da cerveja, das luzes, da Betty mais portentosa do que nunca. Sobretudo, da cerveja. Já tinha perdido a conta às canecas emborcadas, o cheque desse mês já estava quase derretido e ainda só o recebera na véspera, nem sabia que desculpa inventar quando se cruzasse com as ventas de perdigueiro do porteiro. A única luz que via no fundo do túnel era aquela história do pai da Chantal, derradeira esperança de se libertar daquela escravidão da dependência do cheque do bien-être que mal dava para um par de cervejas. - Vê lá se falas disto a alguém! Jura que não abres a boca. Blackfeed não respondeu, mergulhado em profunda reflexão, esquecida a caneca ainda quase intacta. - Isso pode ser a salvação dos meus irmãos - proferiu finalmente. - Quais teus irmãos?!- sobressaltou-se Camões. - Dos meus irmãos de Kanesatake - prosseguiu o índio, agora de olhos fulgurantes. – Eu sabia que me estava reservada uma missão redentora, que não era um traidor do meu povo. - Estás maluco ou quê?! Blackfeed esmagava-lhe o pulso com a tenaz da manápula e, soerguido na cadeira, quase encostara o carão luzidio ao seu. 78
- Se conseguirmos identificar esse tipo, o meu povo ficará com um trunfo político, de valor incalculável, nas mãos. - O teu povo, uma ova! Que é de valor incalculável sei eu, mas é meu. - Camões, com uma sacudidela soltou-se da garra do amigo. - É meu, estás a ouvir? Só meu e de mais ninguém, quero que o teu povo vá bardamerda. - E eu que te pensava meu amigo. Quem despreza o meu povo também não pode ser meu amigo. - Não troques alhos por bugalhos - contemporizou Camões. – Eu sou teu amigo mas não me interessa para nada o que se passa lá para Oka. Blackfeed esvaziou a caneca duma golada e levantouse, com um brilho de dignidade ferida nos olhos. - Adeus - disse. - Já não temos mais nada a dizer um ao outro. Camões já só o viu a deslizar por entre as mesas, direito à porta da rua. - Zangaste-te com o índio? - perguntou-lhe a Betty. - Esse gajo é um parvo. Traz-me outra cerveja. Os fumos do álcool sumiram-se por encanto. Nunca anteriormente tinha visto aquele brilho no fundo dos olhos do Blackfecd e estava preocupado, a farejar um perigo novo e desconhecido. Nos últimos tempos, o amigo andava insuportável, à medida que o conflito se azedava lá para Oka, parecia um furacão a engrossar. - Qualquer dia vais deixar de me ver - anunciava-lhe. – Vamos levantar barricadas e lutar até à morte. Só passando sobre os nossos cadáveres é que os brancos nos roubarão as nossas terras ancestrais. Nunca o levara muito a sério, atirava tudo para a fanfarronada, afinal de contas o Blackfeed era um bebedolas, queria lá ele saber da sorte dos índios. Seria capaz de vender 79
todas as tribos do Canadá em troca duma grade de cerveja. Só quando estava perdido de bêbado é que se punha com aquele arrazoado. A outros dava-lhes para chorar, ou para brigar ou para cantar, não havia duas bebedeiras iguais. “Só com a bebedeira é que se conhecem as pessoas, costumava dizer o pai, é quando deixam cair a máscara.” O pai falava assim quando o via chegar a casa esfarrapado e magoado das zaragatas. “A quem é que este rapaz sai, meu Deus?”, levava as mãos à cabeça. O que o pobre homem penava por causa dele, era pior do que dar-lhe facadas vê-lo chegar a casa naquele estado miserável. “Ainda hás-de acabar com os ossos numa prisão. E dizer que gastei o quc tinha e o que não tinha para te pôr a estudar, dinheiro que foi o meu sangue.” Carpinteiro, fora um daqueles homens que passara pela vida sem levantar uma onda, silencioso, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, de semblante crispado pelo futuro cada vez mais incerto do filho. “A quem é que este rapaz sai, meu Deus?”, interrogava até à exaustão. Morrera durante a sua comissão em Angola. De noite, sem um pio, como vivera. A notícia chegara-lhe na bofetada seca dum aerograma. - Betty, traz-me outra cerveja. - Já te chega, por hoje - disse a rapariga, acariciandolhe a cabeleira revolta. - Desde quando é que proibes um cliente de beber mais? - Desde o momento em que começo a me interessar por ele. Já só a viu a singrar por entre as mesas, perseguida pelas jokes da clientela. Era sábado à noite e o Belitz estava à cunha. O que é que ela quisera dizer com aquilo? Se fora o que compreendera, tinha-lhe saído a sorte grande nessa noite. O Blackfeed que se lixasse. A Betty valia, bem à 80
vontade, dez amigos como ele. E quanto aos projectos sobre o pai da Chantal, podiam muito bem esperar para mais tarde. O que mais o seduzia na vida era o fascĂnio do imprevisto. Sentimento que o pai nunca soubera compreender e muito menos experimentar.
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- Sabes, querido, hoje recebemos um convite. A vida tem destes imprevistos. Passara toda a viagem de regresso a casa a magicar como lhe haveria de dar a notícia do despedimento, julgara ter encontrado uma via menos má e, pronto, ia a abrir a boca para deitar aquilo cá para fora de uma vez por todas quando ela lhe saiu com aquela e lhe cerceou as boas intenções e o assomo de coragem. - Um convite? É ostentatório o entusiasmo da Cândida. Saltita como uma cadelita que viu o dono e o sangue ferve-lhe nas maçãs rosadas do rosto. - Sim, um convite muito gentil do Peter. O Peter tem um bungalow nas Laurentides e todos os anos convida os amigos para um barbecue de abertura da estação. Foi muito simpático da parte dele ter-se lembrado de nós. - De nós ou de ti? As palavras saíram-lhe assim de rompão, ásperas, incontroláveis. - Que bicho te mordeu? Já começas outra vez com as tuas histórias de ciúmes? Luís enterrou as unhas nas palmas das mãos. Por aquele caminho ainda iriam cair em mais uma discussão estéril antes de lhe dar tempo para contar a história do despedimento mas, no fundo, sentia-se aliviado por aquele pretexto para protelar a confissão. Até talvez fosse melhor assim. Mais tarde, depois do jantar, com certeza a ocasião seria mais propícia e oportuna. - Já agora, conta lá como é isso. Não será muito cedo? Os mosquitos ainda são aos montes, capazes de nos 82
comer vivos. - O Peter sabe muito bem o que faz. Se ele pensa que está na altura é porque está. Não és tu que vais ensinar a música ao maestro. A Cândida depressa reencontrou o estado de excitação. Há mesmo certa febrilidade nos modos sacudidos com que prepara a salada, com que ripa as folhas da alface, com que põe a mesa, num tilintar inusual dos talheres. O manancial ininterrupto da conversa: - Já é sagrado todos os anos este barbecue. Durante um mês, não se fala noutra coisa lá no Eatons. Aquilo é mesmo em grande, há sempre grandes peripécias que acontecem. O ano passado, o René estava tão perdido de bêbado que se queria afogar no lago, tiveram quc o segurar até que lhe deu o sono. - E é assim tão engraçado? - Então não é? Estás a ver a figura daquele calmeirão do René a chorar como uma criança e a ameaçar que se deitava a afogar no lago? Devia ser de morrer de riso. E tudo porque se lhe meteu na cabeça que a mulher dele estava a fazer olhinhos ao Peter. - Se calhar estava. - E se estivesse, olha que não tinha mau gosto. Nunca anteriormente a Cândida tivera uma linguagem tão descarada. Era como se, a um certo momento, que ele não sabia localizar no tempo, tivesse despido a pele de portuguesa meio preconceituosa, capaz de corar com uma conversa picante, para se transformar noutra pessoa, frívola, descarada, amoral. Arrependeu-se de tais pensamentos, de que o pançudo do Costa não desdenharia a paternidade. Bolas, a influência daquele gajo devia andar a fazer-lhe mal, um dia teria que cortar, duma vez por todas, com tão disparatada relação. À força de tanto pisar e repisar, o gajo lá ia levando a água ao 83
seu moinho e bastava uma pessoa estar na mó de baixo, meio acabrunhado pela vida, para se deixar influenciar, quase sem se dar conta. As ideias mórbidas são mesmo assim, enroscam-se como serpentes na boa-fé, quando se dá por isso já se reproduziram por aí além, nada as pode arrancar e destruir. Era mesquinho da sua parte ter uma reacção tão disparatada a um convite tão correcto e amável. E logo vindo dele que, com os amigos, se estava sempre a armar em cavaleiro andante da integração. Pois quando lhe surgia uma oportunidade para harmonizar as palavras com os actos, parecia um molusco a fechar-se na concha, desconfiado e agressivo, a cheirar perigos por todo o lado. Sem tirar nem pôr como esses zés portugueses que hostilizam tudo o que não compreendem, incapazes de se abeirarem das outras culturas, quanto mais de as penetrarem. E ele, Luís, sempre a fazer finca-pé na sua diferença, o outsider da manada, era bem pior do que eles todos juntos. - Com certeza já disseste ao Peter que aceitamos o seu amável convite. - Claro que não. Nos últimos tempos, nunca sei para que lado vais descarrilar. Queres então ir? Estás certo disso ou é só para me fazer o favor? Buscou os olhos da mulher, numa procura instintiva da sinceridade das palavras. Continuava neles aquele fogo que lhe afilava o rosto e que, sem saber bem porquê, o inquietava e mergulhava naquele estado de prostração mórbida. - O Peter tem algum barco para andar no lago? – perguntou o filho. - Claro que tem. E o lago está cheio de peixes, o ano passado o Peter apanhou um peixe enorme quase do tamanho dele. Divorciado da conversa, os pensamentos de Luís refluíram para as suas preocupações, para a realidade do 84
despedimento. A hipoteca da casa para pagar, as prestações do carro, não era preciso ser um grande contabilista para compreender que a situação era alarmante. E os bancos não perdoavam, com a recessão, eram sem conta as famílias que tinham perdido as casas, na rua deles sabia de pelo menos dois casos. Um fora a família vietnamita, segundo lhe constara tinham um restaurante que faliu, dai a perder a casa foi um curto passo. Na véspera, no autocarro da manhã, o homem confessara-lhe a tragédia: - Vamos mudar, não podemos pagar a hipoteca. E mais não dissera, a fenda dos olhos mais cerrada do que o habitual. Quando conversasse com a Cândida, não queria que o filho estivesse presente, não valia a pena afligi-lo, tinha tempo de sobra para saber o que era a vida. Quanto mais tempo o pudesse manter afastado da selva da sobrevivência, melhor. Ainda a criança não era nascida, aos pinotes no ventre da mãe, fizera a promessa de lhe evitar os traumatismos que ele próprio sofrera em criança. Era uma dor até às tripas assistir às aflições financeiras dos pais, ao rondar dos fins dos meses. À mesa, ao jantar, as batatas engroladas com o azedume das palavras que escorriam imprevidentes. Nunca os pais tiveram olhos para as aflições que lhe causavam, era como lâminas a dilacerá-lo, ficava vulnerável, exposto, miserável, em carne viva. A tal ponto que, quando acabara o curso industrial e os pais falavam, num último sacrifício, em enviá-lo para o Instituto Técnico, recusara. “Estou farto de estudar”, mentira. Nunca lhes revelara a verdadeira razão da recusa. Viera-lhe dessa adolescência fragilizada o gosto pela leitura, a procura do abrigo que representavam os livros e, aos poucos, a tentativa de escrevinhar, no segredo do sótão, num mundo só dele, onde não podia atingi-lo a crueldade 85
exterior. Os desportos, o hóquei, vieram por acréscimo, busca de superação dum corpo aprisionado por angústias já interiorizadas. O esforço até à exaustão provocava-lhe uma sensação única de flutuação e libertação, próxima do sentimento de evasão que encontrava nos livros.
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As últimas semanas tinham sido um turbilhão, como se um vórtice engolfasse os acontecimentos, com a velocidade da luz. Ali estava ele, já noite cerrada, os filhos deitados, sentado à mesa da cozinha, a talhar e retalhar a casca duma laranja, até à mais ínfima porção, pronto para confessar à Teresa que a ia deixar, enquanto esta, com uma tagarelice inabitual, enquanto lavava a loiça, lhe narrava os recentes problemas na fábrica, completamente a leste do drama que a rondava. - Aquilo não pode ser, agora os patrões querem despedir metade do pessoal c pôr as restantes a trabalhar à peça. Já estivemos a fazer as contas, assim por alto, com muita sorte, a trabalhar como umas malucas, vamos ter uma redução de salário de mais de trinta por cento, aquilo vai ser o fim do mundo. É melhor ir para a chômage do que ficar e aceitar aquela loucura. Sabes quantos forros de casaco eu já prego por dia? Nem queiras saber, mais de cinquenta, e ainda não estão satisfeitos, são insaciáveis. O zumbido da voz da mulher era como uma música em surdina que, não obstante o começar a molestar, tinha o condão de lhe dar tempo para reflectir e coordenar ideias. Nessa tarde, ao chegar a casa, já tinha tudo preparado, na ponta da língua: Teresa, o nosso casamento chegou a um beco sem saída e o único remédio que vejo é uma separação temporária para dar tempo a uma reflexão séria sobre a nossa relação. Era assim que tudo se deveria, em princípio, passar e se ela começasse a chorar, o que seria normal em tais circunstâncias, também já tinha na algibeira uma mão-cheia 87
de palavras de reconforto: aconteça o que acontecer, ficarei para sempre teu amigo, nunca esquecerei que és a mãe dos meus filhos e que enfrentámos a vida juntos durante quase quinze anos. E se a pergunta inevitável surgisse: sim, há uma outra mulher na minha vida. Estava disposto a falar com frontalidade e sinceridadc, resolver a situação amigavelmente, com civismo. - Aquilo anda tudo revoltado - prosseguiu a Teresa. A exploração também tem limites, os patrões queixam-se da concorrência da Ásia, dos custos de produção mais baixos dos países pobres, mas a gente bem os vê com grandes carros, cheios de luxo, o que eles querem é tapar-nos os olhos. Maldito tagarelar sem uma brecha por onde se introduzir, por aquele caminho ainda não seria nessa noite que a situação ficaria em pratos limpos. A Sara estava cada vez mais impaciente, sem compreender a razão da sua indecisão e daquele protelar indefinido da sua promessa de romper com a Teresa. Detesto deitar-me com homens casados, estava sempre a relembrar, não gosto de partilhar os meus amantes com mais ninguém, principalmente com as mulheres deles. A Sara era assim, não sabia mastigar as palavras, o que tinha a dizer dizia-o logo, sem camuflagens, com a frontalidade só acessível aos prendados da vida que não precisam de vergar a espinha diante de ninguém. - Mas ainda vão acabar por se tramar - continuava a cegarrega da Teresa -, a Maria Chilena anda a tentar meter o sindicato lá dentro e, se eles não se aperceberem e derem tempo para isso, as coisas não vã ser como eles querem. A princípio, quando a Maria falou nisso, o pessoal, principalmente as portuguesas, tinha medo, não queriam saber de sindicatos para nada mas agora, que começam a ver o rabo entalado, já viraram o rabo ao prego. Seria que o mister Salomon já estava inteirado 88
daquela relação? Ainda não ganhara coragem para fazer a pergunta a Sara mas, lá na fábrica, o caso já era do domínio público e o mister Salomon não era trouxa nenhum, com aqueles olhos perscrutadores, por detrás dos óculos, nada lhe escapava. Em todo o caso, estava cada vez mais amável, cumulava-o de atenções, a comprovar-lhe que deveria observar com agrado o rumo dos acontecimentos. Acontecimentos que, desde a celebração da sua promoção, ganharam uma aceleração imparável. A sensualidade de Sara transbordava como as ribeiras no degelo, avassaladora, possessiva, numa galopada frenética de motel em motel, a quantidade de over-times que tivera de inventar para ludibriar a mulher. Tens de compreender, com esta promoção, preciso de segurar o lugar, assim justificava as ausências e o cansaço que o fazia logo voltar as costas a ressonar mal caía na cama. - Gostava que conhecesses a Maria, aquilo é uma mulher a valer, nada lhe mete medo, sempre pronta a dar a cara pelos outros, o que eu tenho medo é que os patrões descubram a marosca antes do sindicato ir para a frente e que a metam logo no olho da rua. Eu já a avisei para ter cuidado, há lá meninas que só para caírem nas boas graças dos bossas são capazes de lhes irem meter tudo no rabo. Com Sara redescobrira uma virilidade que julgava estar a esmorecer com o rondar dos quarenta. Afinal, ainda estava ali para as curvas, com o ardor dos vinte anos inteirinho e essa constatação reconstituía-lhe o orgulho masculino já meio perdido por quinze anos de casamento e pelo aborrecimento da crescente flacidez das carnes da Teresa, já desbravadas e desvendadas em todos os sentidos. Com a Sara havia toda uma sensualidade renovada e alimentada por fontes por vezes tão simples como uma garrafa de champanhe ou um par de velas acesas, jogos lúdicos em que ela era mestra. Com a Teresa, não se 89
recordava de uma só vez em que ela tivesse assumido a iniciativa amorosa, mesmo que estivesse a morrer de desejo. Sara era o extremo oposto, não se inibia em declarar a sua sensualidade, quando me apetece sou como um tigre, dizia uma gargalhada cheia de dentes carnívoros. - Recordas-te de há uns anos atrás, quando se tentou meter o sindicato? Fomos a eleições e a maioria votou contra, depois disso os patrões não foram mancos a despedir os responsáveis. Se desta vez a coisa se repetir, a Maria pode começar a fazer as malas para regressar ao Chile, nunca mais vai arranjar trabalho no Canadá, mas que é uma mulher corajosa lá isso é. Pronto, a noite já ia por aí além, toda a coragem armazenada se esvaíra como a água duma clepsidra, até já começava a bocejar e a cabecear de sono, tudo teria que ser remetido, mais uma vez, para melhor oportunidade. A Sara iria compreender, bolas, para ela tudo era fácil, não tinha um companheiro de quem se desenvencilhar, nem o imbróglio dos filhos. Nem queria pensar qual seria a reacção deles. - Vamos para a cama? - disse para a Teresa. - Já estou a cair de sono. E, com surpresa, reparou que esta era a primeira noite, em muitas semanas, que não tinham discutido.
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Acordou estremunhado com as violentas pancadas na porta. - Abre, maudit, abre esta porta. Reconheceu a voz da France e levantou-se assarapantado, esforçando-se por se orientar na penumbra dos blinds corridos. - Já vai, grande cabra. Quando abriu a porta, mal teve tempo de se furtar, por uma unha negra, ao golpe da faca de cozinha que a France lhe desferiu. - Vou-te matar, maudit immigrant. Com os sentidos já completamente despertos, Camões, com um salto felino, torceu o pulso à mulher que, com um gemido de dor, acabou por largar a arma. Ficou a roncar, à beira da apoplexia, os olhos a dardejar rancores. - Eh, que bicho te mordeu? Estás maluca ou quê? - Maudit, maudit - era só o que ela repetia. Camões apanhou a faca do chão e foi, cautelosamente, colocá-la sobre a banca do lava-loiça. - És capaz de me contar, duma vez por todas, o que se passa? France continuava a resfolegar mas era evidente que começava a ficar mais calma. O suficiente para começar a soluçar. - Não esperava isto de ti. Tantas vezes que te matei a fome e pagas-me deste modo. – Deixara-se, cair como um saco de batatas no soalho, e chorava como uma madalena, toda borrada das pinturas. - Como é que tiveste uma coragem dessas? Camões aproximou-se, perplexo. - Que sorte a minha! - esmurrou a parede, uma onda de raiva a subir-lhe das tripas. Era uma monstruosidade ser 91
arrancado assim ao mais dourado dos sonos, depois duma memorável noite branca nos braços da Betty. Adormecer enlevado com a imagem duma deusa e acordar com a visão dum monstro daqueles, era o cúmulo da incongruência, uma aberração inassimilável. - Já chamei a polícia, madame - anunciou o senhor Américo, enfiando o nariz no apartamento. - Fique descansada que eles vão descobrir quem foi o malandro. - E deitando um olhar ostensivo na direcção de Camões - Quem foi não deve andar longe. Camões sentiu a fúria cegá-lo, capaz duma loucura. Ia deitar a mão à faca da France quando o zumbido da sirene da polícia lhe petrificou o gesto. - Diga-me lá o que se passa? - perguntou, com um suspiro, voltando-se para o porteiro. - Então não sabe? - disse este, com voz zombeteira e um sorriso na cara. Nunca anteriormente Camões vislumbrara um simulacro de sorriso naquela cara anavalhada de rugas. – Então não sabe que assaltaram o apartamento da madame? Foi como se uma bomba lhe tivesse explodido na cabeça: Blackfeed. O cabrão! Enquanto ele, armado em garoto apaixonado, gemia nos braços da Betty, o sacana não perdera tempo. Mas não ia perder pela demora, mal sabia ele com quem se metera. France perdera toda a compostura, a estrebuchar como uma galinha choca. - Aquela carta - gemia. - Aquela carta era a única recordação que eu tinha dele. A única recordação do meu grande amor. Noutras circunstâncias, Camões teria desatado às gargalhadas mas, naquele momento, uma luz encarnada acendera-se em qualquer parte do seu cérebro, a alertá-lo contra o perigo que o rondava. A polícia estava a chegar e ali 92
havia duas pessoas prontas a jurar-lhe pela pele. Felizmente que estava vestido, nessa madrugada, ao chegar a casa, nem se dera ao trabalho de se despir antes de se atirar para cima da cama. A sirene da polícia já enchia o quarto com o estrídulo dum coro de cigarras. Correu para o roupeiro e apanhou a pistola que enfiou no bolso traseiro das jeans. - Aonde vai? - perguntou o porteiro, procurando entrepor-se. - Não é da tua conta, idiota. Sai da minha frente antes que te rebente essa cabeça de abóbora. O porteiro amedrontou-se e não ofereceu mais resistência. - A polícia já chegou, não vais escapar - ainda gritou, quando o viu dois lanços de escada mais abaixo. Chegado ao hall, já dois polícias tocavam à campainha. Abriu-lhes a porta. - É no primeiro andar - informou-os, com naturalidade. Na rua, apressou o passo. Dobrou a esquina da Coloniale e cortou à direita, para a Roy, na direcção da StLaurent. Só então respirou aliviado. Estava um dia soberbo, cheio de sol e na St-Laurent fluía docemente uma multidão guiada pela música dos altifalantes. Era dia de feira e os comerciantes, sorridentes e felizes, tinham tirado toda a tralha para a rua, agradecidos pelo bonito dia que se lhes oferecia. Mas Camões não tinha tempo a perder. Passado o perigo imediato, todos os seus sentidos se concentraram num nome: Blackfeed. Na esquina da St-Laurent com a Pins, entrou numa cabine telefónica e discou o número do amigo mas não obteve resposta, o prolongado grito do telefone a rebentar-lhe os nervos. - Merda! - Largou o telefone, que ficou a baloiçar 93
como um enforcado, e saiu desabrido da cabina. O Blackfeed não morava longe, um pouco mais acima, na rua Laval e, com passo estugado, em dez minutos pôs-se lá. Era um edifício triste e escalavrado, com um grande cartaz, meio desengonçado, sobre a porta principal, a anunciar, em letras vermelhas e garrafais, os apartamentos de um-e-meio mobilados. Esmagou a campainha do 252 e, mesmo do exterior, podia ouvir o berreiro que ela fazia. Não tardou muito para que um sujeito com ar de árabe, em camisola interior branca sem mangas, aparecesse, com a ira a boiar nos olhos negros. - Não vê que ninguém responde? - invectivou-o, num francês execrável. - Não há ninguém nesse apartamento. - Queria falar com o Blackfeed. - Não ouviu o que eu disse? Não há ninguém nesse apartamento. Foi-se embora esta manhã. - E sem cerimónias, fechou a porta com estrondo. Camões ficou desnorteado com o desfecho imprevistodos acontecimentos. Procurar agora o Blackfeed seria mais difícil do que procurar uma agulha num palheiro e, apesar do calor, começou a sentir arrepios na espinha à medida que o manto da realidade o ia envolvendo. Incapaz de localizar o índio, a polícia no seu encalço, acusado dum crime que não cometera mas com testemunhas dispostas a crucificá-lo, a situação não era invejável. O anúncio duma brasserie fê-lo então sentir os dardos do sol a pino. Nos bolsos ainda lhe restavam uns trocos miraculosamente salvos da farra da véspera e a secura que lhe apertava a garganta começava a ser insuportável. Uma ou duas cervejas com certeza lhe iriam clarear as ideias enoveladas. Lá dentro, uma penumbra sedativa para os olhos fartos de luz, a frescura do copo de cerveja na palma da mão, começou a poisar os pés em terra. Afinal, as coisas não eram 94
tão graves como as pintara. Já atravessara na vida situações bem mais difíceis do que aquela e sempre se desenrascara duma maneira ou doutra. Mesmo que o porteiro e a France o acusassem do delito, não havia provas evidentes contra ele. Era ridículo deixar-se apanhar naquela armadilha, o que tinha a fazer era regressar ao apartamento, como se nada se tivesse passado, e esperar tranquilamente pelo desenrolar dos acontecimentos. Bebeu uma golada de cerveja e, tranquilizado, levantou o olho para a televisão colocada sobre uma consola, à sua direita. O que viu quase o fez saltar de espanto. O repórter, com o pano de fundo de cerrado pinhal, de microfone em punho, falava de Oka, da barricada erguida pelos índios para cortar a estrada de acesso à região. E, não havia engano possível, reconhecia-o perfeitamente, entre os índios, por detrás da barricada, a câmara focava agora, em grande plano, o Blackfeed. Um Blackfeed em grande, de camuflado, espingarda na mão, rosto crispado, pronto para o combate. Afinal, o sacana cumprira a promessa de regressar à reserva e ao vê-lo ali, um pouco teatral, mas com a determinação bem expressa no rosto, Camões não se pôde furtar a que o apossasse um sentimento de admiração e mesmo de apreço pelo amigo. Soltou uma gargalhada franca e sonora, que fez voltar a cabeça aos outros fregueses, e saiu para a luz do dia, reconciliado com o mundo.
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O tráfico na auto-estrada 15, no sentido de Montreal, estava descongestionado e raramente o ponteiro do contaquilómetros descia abaixo dos cem. Já decorrera uma hora desde que tinham deixado as Laurentides e ainda ninguém abrira a boca. O filho, morto de cansaço, recostara a cabeça no banco e, com o rádio nos ouvidos, alheara-se do mundo. A Cândida, refugiada atrás dos óculos de sol, era uma esfinge insondável. Luís fitava a linha afunilada da estrada, numa concentração desnecessária. Por mais que se esforçasse, não conseguia arredar da retina aquele bote a deslizar sorrateiro sobre as águas e a sumir-se num refego do lago, por uma hora longa como uma eternidade. Ao redor dele, ninguém parecia interessado pelo facto, entretidos como estavam todos em empanturrar-se de cerveja. Por fim, o bote reaparecera e foi-se aproximando sorrateiro da margem, com um ronronar surdo do motor. A meio caminho, já ouvia as gargalhadas agudas da Cândida e, quando atracaram, o Peter dera-lhe uma palmada amigável nas costas. - Fui mostrar à Candy um recanto do lago que ela nunca mais esquecerá na vida. Não é verdade, Candy? Incapaz de interpretar o sentido das palavras de Peter que, já com uma cerveja na mão, concentrava as atenções gerais com uma anedota acerca dos newfies, voltara-se para a mulher que, subitamente tensa, fitava, de olhos embaciados, o lago polido como um espelho onde já alastravam sombras espessas do entardecer precoce das montanhas. - Podias ter-me, pelo menos, avisado que ias dar esse 96
passeio. - Estavas tão entretido a preparar um hambúrguer que não te quis incomodar. - Podia querer ir com vocês - insistira, com os olhos cravados nela, a força da voz a fugir-lhe. Cândida voltara-se, irritada. - És tão chato. E não me aborreças mais do que eu já estou. Logo vi que não passavas sem me estragar o dia, com as tuas parvoíces. Acho que o melhor é despedirmo-nos e regressar a casa, já não estamos aqui a fazer nada. - Já? - surpreendera-se Peter, quando lhe deram a noticia. - Hão-de cá voltar, há recantos do lago magníficos que a Candy ainda não viu. Aquela voz nasalada remexia-lhe com os nervos, insuportável, indecifrável. Por mais que se esforçasse, nunca conseguiria compreender a maneira de ser dos ingleses, naquela incongruência entre as palavras e a expressão glacial dos olhos que nunca se iluminavam, mesmo quando riam. Nesse aspecto, os quebecois eram completamente diferentes, mais ao jeito português, com as emoções à flor dos olhos. Entraram na ilha de Laval e pouco depois já se avistava, lá ao fundo, o oratório St-Joseph, alvacento na montanha verde. Com o anoitecer, o céu, até ali dum azul profundo, começava a cobrir-se de nuvens pardas e uma humidade viscosa colava-se à pele e sufocava os pulmões. - Fecha essa janela e liga o ar condicionado - disse Cândida, sem voltar a cabeça. Obedeceu, sempre de olhos postos na estrada. - Aquele recanto do lago era assim tão interessante? acabou por soltar a obsessão que o estrangulava. Cândida tirou os óculos, de repelão. - Encosta aí à berma. Encosta aí, já te disse. Frenética, atirou a mão ao volante e o carro começou às guinadas, estrada fora. 97
- Estás maluca?! - gritou Luís, depois de controlar o veículo e parar na berma, cinquenta metros mais à frente. Querias-nos matar a todos? Os olhos de Cândida fulguravam, as narinas frementes. - Queres saber o que fui fazer lá no lago? - As palavras escapavam sibilantes da linha dos lábios distorcidos, num rito de escárnio. - Queres realmente saber ou preferes que eu me cale? Tens coragem para ouvir? - Os olhos eram agora duas fendas felinas, dum amarelado malsão, com a luz quebrada do entardecer. - Queres saber? Luís crispou os maxilares para dominar a tremura dos lábios. Uma mão de chumbo subia-lhe pelo peito e cerrava-lhe o pescoço. - Vou-te então contar tudo, para que me deixes em paz de uma vez por todas. - Subitamente, Cândida esvaziarase de forças, os olhos baços, a voz num fio, aos tropeções: O Peter levou-me lá para o meio do lago para me contar que brevemente se vai juntar com o Réjean, um colega lá da loja. O Peter é homossexual. Queres saber mais detalhes? - E sem se poder conter mais, rompeu em soluços profundos que a estremeciam pela raiz.
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Sono adentro, o telefone retiniu na calada da noite, num rompante de mensageiro sinistro. Aos tropeções, no escuro, levantou o auscultador e o bip-bip das ligações internacionais despertou-lhe os sentidos. Logo reconheceu a voz lacrimosa da cunhada. - És tu, Vaz? Desculpa acordá-los assim mas, infelizmente, tenho uma má notícia para vos dar. - As palavras chegavam quase inaudíveis, repassadas de soluços: - O pai...estava tão tão bem..e...assim de repente...deu-lhe uma trombose. Se a Teresa o quiser ver ainda com vida...tem que se apressar... - Os soluços afogavam as palavras. - Eu.. .eu... Vaz levantou os olhos para o relógio de parede. Os ponteiros marcavam ronceiros as três horas da manhã. Teresa apareceu, branca de cal. - Ouvi tudo no outro telefone - disse ela, com voz amorfa. – Diz-lhe que apanho o primeiro avião. - E desabou sobre o sofá, as mãos a apertar, espasmódicas, os joelhos. Assim, em camisa de dormir, desgrenhada, olhos perdidos, vulnerável, planta arrancada pela raiz, Vaz sentiu a ternura apertar-lhe a garganta. No silêncio da noite ferida por forças poderosas e inelutáveis, Vaz respirava a fragilidade e a puerilidade da vida. Apertou a cabeça da mulher contra o peito e ficaram, sem palavras, em osmose, presas da incomensurável dor da lonjura. - Um dia, temos que pensar em regressar a Portugal 99
disse Teresa. - Aqui não é a nossa terra. Vaz não respondeu mas apertou-a com mais força nos braços, as torrentes subterrâneas a reemergirem das profundezas, mais poderosas e irresistíveis do que nunca. Já não devastadoras e erosivas mas fertilizantes e dominadas, num leito aprazível dos sentimentos compartilhados. - Teremos tempo de falar nisso mais tarde, mas agora o que é preciso é arranjar-te um lugar num avião. Não vai ser nada fácil, com as férias à porta. Só então Teresa se entregou à dor. Vaz sentia-lhe os espasmos do corpo vencido e as lágrimas dela ensopavamlhe o pijama no peito, cálidas e espessas. O sogro sempre fora um sujeito correcto com ele. Mesmo que inicialmente não demonstrasse muito entusiasmo com o casamento da filha, depois, com o tempo, à medida que se iam conhecendo melhor, estabelecera-se entre os dois uma sólida amizade e uma cumplicidade fruto das partidas de damas, no café. O jogo das damas era o único vício do homem. Não fumava, não bebia, era o que se poderia chamar, naqueles tempos, um chefe de família exemplar. Entre o emprego de fiel de armazém na fábrica de plásticos e o cuidar da horta, com uma meticulosidade irrepreensível em tudo o que fazia, as partidas de damas, dos sábados à noite, no café, eram a sua pedrada na rotina. - Recordas-te como o meu pai gostava de jogar às damas? - Era nisso que estava a pensar. - E sabes por que é que ele te respeitava? Porque eras dos poucos que lhe conseguiam ganhar. - Nem sempre. - Ele dizia: este rapaz não é parvo nenhum, se tem cabeça para as damas também a deve ter para a vida. Começava a clarear. Um corvo grasnava no pinheiro do quintal. O ar vibrante e luminoso da manhã ampliava o 100
trabalhar do motor dos carros dos vizinhos que partiam cedo para os empregos. E, apesar de exausto pela vigília, uma tranquilidade de espírito há muito arredia, alastrava-lhe pelo corpo. Acariciou o queixo húmido da mulher. - Eu e o teu pai ainda iremos jogar muitas partidas juntos, fica descansada.
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A reconciliação com a vida foi sol de pouca dura. Sem a companhia do Blackfeed e as lasanhas da France, a vida perdeu todo o sortilégio. No Belitz, a Betty, chamada por outras aventuras, ignorava-o ostensivamente e a cidade, por onde deambulava sem norte, arreganhava-lhe os dentes de hostilidade. Um dia, de regresso a casa, reconheceu logo a sua mutilada mala castanha à porta da rua. - Pega nessa porcaria e desaparece de vez - rosnou o senhor Américo, triunfal, esfregando-lhe no nariz um papel branco, - Sabes o que é isto? É a resolução da Régie que eu esperava há muito tempo. Rua, é o que está aqui escrito. Ou sais voluntário, pelo teu pezinho, ou a polícia trata-te da saúde. Mortinhos por isso estão eles. - Podes fechar a cloaca? Já estou farto de te ouvir ladrar. - E muita sorte tens tu! A madame France foi muito generosa em não apresentar queixa contra ti. A esta hora já estavas com os ossos num calabouço, que é o lugar indicado para a gente da tua laia. Camões pegou na mala e levantou um dedo ameaçador. - Se me faltar alguma coisa, venho cá ajustar contas contigo. - Vê lá se te faltam algumas jóias - troçou o porteiro. - Ou então as tuas acções na bolsa. - Vai bardamerda. Ainda esteve tentado a enfiar-lhe o cano da pistola 102
pela boca abaixo e fazê-lo borrar-se todo pelas pernas abaixo, mas refreou-se, os tempos não iam de azo para tais fanfarronadas e com os últimos acontecimentos ainda frescos, não estava muito interessado em ter a polícia de novo à perna. - Qualquer dia venho-te fazer uma visita. Vais ficar a saber o que é um português a valer. Sem destino, acossado pelo calor húmido, foi-se refugiar na frescura do jardim, ao fundo da rua. Eram três horas da tarde e o lugar fora tomado de assalto por estranha fauna. Deitados sobre a relva, grupos de marginais embebedavam-se e injectavam-se às claras. Mais para o coração do jardim, dois tipos barbudos e esfarrapados tinham-se desavindo e esbofeteavam-se em silêncio, perante a indiferença geral. Quando se cansaram, com as ventas ensanguentadas, foram-se sentar à beira duma grade de cerveja e continuaram a embebedar-se tranquilamente. Camões alijou a mala e sentou-se num banco vago. Das últimas contrariedades, mais do que o ressentimento contra o Blackfeed, sentia um amargo de boca por não ter chegado a conhecer o nome do pai da Chantal. Evocava os nomes mais proeminentes da cena política e, por exclusão, tentava deduzir qual seria, de entre eles, o antigo amoroso da France. Mas era em vão, as pistas perdiam-se na nebulosidade do raciocínio. Tivera nas mãos uma galinha de ovos de ouro e não tivera arcaboiço para saber explorar tanta sorte. Seriam agora os índios que iriam tirar partido do segredo que ele, o parvo, com a bebedeira, lhes estendera numa bandeja de prata. Quando na televisão aparecesse algum figurão, a mastigar palavras doces a favor dos índios, poderia apostar a cabeça em como era o tal. Ou então, os índios, se fossem espertos, nem o trariam a público, seria muito mais proveitoso manobrá-lo nos bastidores. Se assim acontecesse, adeus curiosidade, ficar-lhe-ia para sempre na 103
cabeça um vulto fantasmagórico, sem rosto, a rir-se da sua estupidez. Sem um chavo no bolso e a perspectiva nada encorajante de ter de passar a noite ao relento, sem saber como, pela primeira vez desde há muitos anos, o desejo de regressar a Portugal começou a avolumar-se. E por que não? Se fosse preciso, iria roubar para arranjar o dinheiro para o bilhete de avião. Gajos entendidos no assunto, ocasionais companheiros de noitadas pelas tabernas, diziam ser a coisa mais fácil deste mundo assaltar um banco, nem era preciso arma, nem mesmo falar, bastava a ameaça dum bilhete frente aos olhos do funcionário: isto é um assalto, para ele lhe despejar logo para as mãos todo o dinheiro em caixa. Só nunca se metera numa façanha dessas por mero acaso, as oportunidades e os convites tinham sido vários, e não foram tampouco os escrúpulos, e muito menos o medo, que o tinham detido até ali. Apalpou a pistola no bolso do blusão e já se via, com os bolsos repletos de dólares, a apanhar o avião para Lisboa ao encontro do sol e do bom vinho português. Estava assombrado como perdera tantos anos mergulhado naquela vida miserável, sempre à espera do cheque da assistência social, enterrado na neve até ao pescoço, os ossos a apodrecer com o frio. E para quê, para se deitar de vez em quando com uma serigaita qualquer, sempre na eminência de apanhar a sida e ir deixar ingloriamente o esqueleto, para sempre, ali no cemitério da Côte-des-Neiges, mais esticado do que um carapau. Com as costas da mão, limpou o suor da fronte e certificou-se que o passaporte ainda estava no bolso traseiro das calças. Uma sorte que previdentemente o tinha renovado uns meses atrás, o que era uma assombrosa premonição num tipo desleixado como ele. E, ali à sombra frondosa dum ácer centenário, pôs-se 104
a congeminar o plano do assalto Ă sucursal bancĂĄria da esquina da St-Laurent com a Des Pins.
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Para sair da prisão da casa e matar a imensidão dos dias sem objectivos, dera-lhe hoje para retornar aos velhos caminhos. Já nem se recordava quando tinha sido a última vez que pusera os pés na St.-Laurent. Recém-chegados, viviam ali a dois passos, na StDominique, e esta rua fora o seu primeiro amor em Montreal. O dinheiro não abundava e, sem carro para passeios mais largos, era St-Laurent acima, St-Laurent abaixo que passavam os tempos livres, se o tempo o permitia. Mas não se aborreciam, a rua era um imenso bazar onde afluíam todas as raças do mundo, havia sempre mais um recanto a descobrir, qualquer bugiganga para comprar. Acabavam inevitavelmente por abancar nalgum café português, diante duma bica, os olhos deslumbrados para aquele mundo novo. Para quem deixara em Portugal uma sociedade asfixiante e corroída por preconceitos de toda a ordem, Montreal, que entrava então numa era de renovação, a que mais tarde chamariam revolução tranquila, era uma cidade fascinante onde todas as esperanças e sonhos eram possíveis. - Isto é o paraíso - diziam um para o outro, de olhos nos olhos. Cândida tinha então no olhar aquela labareda que, com o correr dos anos, se foi desvanecendo e que só recentemente se voltara a atear por razões bem diferentes. Fora num desses dias de exaltação, numa bela tarde do primeiro domingo de Maio que, na casa Minhota, sentados junto à vidraça, a ver o formigar da rua, tinham decidido selar, com chave de ouro, a fé que os habitava numa vida 106
nova. - Quero ter um filho - dissera Cândida. Ficaram, mãos nas mãos, trémulos. - Quero ter um filho canadiano. Esta terra é agora a nossa pátria. O filho nascera e durante muitos anos Portugal fora uma referência cada vez mais esbatida, na sofreguidão da integração. Mas a partir dum certo momento, que não conseguia precisar no tempo, qualquer coisa acontecera. Cândida seguira em frente, cada vez mais ambiciosa e arrojada, amarga e crítica com as relutâncias e hesitações dele que, aos poucos, num retrocesso, reencontrava de novo os antigos fantasmas e medos. Ainda tinha fresca na memória a explosão de alegria que a acometera quando recebera pelo correio o primeiro cartão de crédito. E a sofreguidão que a levara, depois, a coleccionar todos os cartões possíveis e imaginários, da La Baie ao Canadien Tire, do Eaton à Petro Canada, o seu grande prazer era exibir a carteira recheada de cartões multicolores, numa exaltante manifestação exterior de sucesso. E se ele se rebelava contra tamanho exibicionismo, logo ela lhe apontava o dedo: tu não nasceste para o american way of life, o teu lugar era nas berças, em Portugal. Em parte, em grande parte, reconheciao, ela fora a sua locomotiva durante muitos anos, sem o seu voluntarismo e tenacidade a empurrá-lo para a frente, com certeza já há muito que teria descarrilado. Quando chegou à Des Pins, uma multidão agitada acotovelava-se no passeio oposto ao banco e dois carros da polícia barravam o trânsito. Uma ambulância chegou com as goelas abertas. - Passou-se alguma coisa? - perguntou Luís. Um velhote, com um boné de pala dos Expos enterrado até às orelhas, olhou-o de soslaio, morto por desatar a língua. - Um mec qualquer tentou assaltar o banco mas o 107
guarda enfiou-lhe um balázio nas costas. Mais um maudit immigrant. Nisto estão sempre metidos pretos ou imigrantes da mesma laia. Luís ainda teve tempo de ver um tipo, de grandes melenas arruivadas e uma pala preta sobre um dos olhos, amarrado a uma maca, a ser metido na ambulância que partiu, a toda a velocidade, direita ao hospital Jeanne d’Arc. Os carros da polícia partiram por sua vez e, dentro em pouco, era como se nada se tivesse passado, os vestígios do assalto volatizados no formigar da multidão. Luís sentiu-se molestado pelas palavras do velho. Nunca até ali se sentira vulnerável ao racismo e à xenofobia, aliás, sempre por onde passara, nos empregos e no próprio quotidiano, descontando um ou outro caso isolado e sem importância, nunca sentira qualquer hostilidade à sua volta, mais propensos que estavam os quebecois em se engalfinhar nos ingleses do que nos emigrantes. Ou então, se essa hostilidade existia, nunca quisera vê-la, na ânsia de se integrar e ser aceite. Talvez agora, desempregado e desiludido, tudo fosse mais claro, os sentidos mais apurados para a realidade envolvente, o pior cego é aquele que não quer ver, ocorreu-lhe ao espírito. Quase sem dar por isso, deixara a St-Laurent e, tomando a Prince Arthur, foi ter ao jardim do Carré StLouis. Quando se apercebeu da fauna que lá pululava a sua primeira reacção foi retroceder pelo mesmo caminho mas a sombra era agradável e corria uma aragem fresca sob as árvores que o reteve. Sentou-se num banco livre e reparou, intrigado, numa mala meio rebentada que alguém tinha ali deixado abandonada, com certeza pertença dalgum bebedolas que perdera o rumo, como os esquilos que no verão se fartam de armazenar vitualhas para o inverno, sempre a esgravatar por aqui e por ali e que acabam por perder o norte dos esconderijos. 108
Foi então que, sem saber como, soprada por estranhos ventos, veio-lhe, assim subitamente o desejo de regressar a Portugal. Como uma erupção. Há quase dez anos que não ia a Portugal, viagem sempre protelada de ano para ano, múltiplas escusas de permeio. O nascimento do filho. A compra do carro. A compra da casa. A troca do carro. Mas só uma razão válida: a obstinação da Cândida. Para ela só havia um lugar onde valia a pena passar férias: a Florida. Um belo hotel à beira-mar, o repouso absoluto, as águas mornas de esmeralda; e depois, no regresso, o prazer impagável de dizer: este ano estivemos em Palm Beach, os Kennedy também lá estavam. A coroação do sucesso. O desejo do regresso crescia, fortalecia-se. E reparou, surpreendido, que não experimentava qualquer apreensão em saber qual seria a reacção da Cândida. Sorriu, aspirando profundamente o ar morno e as volúpias da libertação. Tinham-lhe falado elogiosamente dum restaurante oriental ali na Prince Arthur, pois não era tarde nem era cedo para fazer a experiência. E, as primícias da libertação num crescendo, nem se dava ao incómodo de telefonar para casa a avisar que iria chegar tarde. Com o pé, arredou a mala para o lado e tirou do bolso o jornal A de Portugal onde, na página seis, vinha uma poesia da sua autoria. Regalado, deixou os olhos correrem pelas linhas miudinhas.
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- Pai, está uma mulher ao telefone. - Diz-lhe que não estou. - Mas, pai, ela diz que é importante o que tem para te dizer – insistiu Miguel. - Já te disse. Diz-lhe que não estou. Os filhos ficaram a olhá-lo, estranhados. Era assim desde há três dias, desde que Teresa partira. Ao vê-la desaparecer na porta de embarque, chorosa e desamparada, a decisão afluíra-lhe assim à cabeça, num repente: “nunca mais me quero encontrar com a Sara.” Para fortalecer a resolução, metera parte de doente, refugiara-se na fortaleza do lar, a cozinhar, a tratar do jardim e da horta, a banhar-se na piscina com os filhos, num eremitismo renovador. Sentado à mesa da cozinha, a saborear a salada de alface e tomates, colhidos de fresco na horta, admirava-se como os filhos, sentados à sua frente, a devorar uma pizza de peperoni, tinham crescido. O Jorge, o mais velho, esse estava um homem feito, a barba escanhoada a azular o queixo, os ombros musculosos, o olhar viril, a voz forte. - Estás um homem - disse-lhe. - Nos últimos tempos, mal tinha reparado em ti. Ficaram a observar-se. Havia laivos de ressentimento nos olhos do filho. - Então e eu ? - perguntou Miguel. - Não estou também um homem? Com o buço a orlar o lábio superior, o nariz sardento e o cabelo encaracolado caído para a testa, ainda conservava um ar agarotado mas a voz também já lhe começava a 110
engrossar. - Estão os dois uns homens. O que aconteceria quando se esgotasse a desculpa da gripe e tivesse que regressar à fábrica? Pelo que se dera conta, a Sara, habituada como estava a ver satisfeitos todos os seus caprichos, não era mulher para aceitar o repúdio sem reagir. E quais seriam as consequências sobre a sua vida profissional, tão intimamente entrelaçada, nos últimos tempos, com o idílio com a Sara? Se continuasse a perseverar na decisão de romper com ela, nada mais natural que um dia, mister Salomon o chamasse ao escritório para lhe comunicar com o ar mais calmo deste mundo: Vaz, tenho reparado que estás a precisar de férias, vai repousar umas semanas e quando te sentires restabelecido telefona-me, pode ser que então tenha qualquer coisa para ti. - Sabiam que antes da vossa mãe viajar, falámos na cventualidade de regressar a Portugal? - Talvez lá a vida seja menos complicada - disse Jorge, com um olhar intenso carregado de subentendidos. E logo Miguel acrescentou: - Também já estou farto de tanta neve. E já me disseram que agora aquilo já está cheio de Mcdonalds e de Pizza Huts. Tanto me faz estar aqui como lá desde que tenha uma boa pizza para comer. Desataram os três às gargalhadas. Um sol esplendoroso entrava a jorros pela porta da cozinha. - E se hoje fôssemos os três jantar a Montreal? Há na Prince Arthur um restaurante asiático que faz umas espetadas de gambas fabulosas. Fora a Sara que lá o levara pela primeira vez e, como numa expiação, sentia o desejo irresistível de levar os filhos a um lugar por onde passara com ela. Numa necessidade de reescrever a vida com outras tintas, de apagar pegadas antigas, numa sobreposição de traços. 111
Miguel soltou um youpi de alegria e abraçou-se ao pescoço do pai. - Só é pena que a vossa mãe não esteja cá, para irmos todos juntos. Com este dia magnífico, a Prince Arthur deve estar cheia de gente. Vocês já não devem estar recordados, porque ainda eram muito pequenos, quando vivíamos ali na Hotel de Ville, mas uma das coisas que a vossa mãe mais gostava de fazer nas noites de verão era irmos os quatro passear para a Prince Arthur e, depois, sentarmo-nos num banco do jardim, a saborear um gelado.
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REGRESSO
Noite morna, talvez a primeira noite de verão do ano, e as esplanadas da rua Prince Arthur renasciam da longa hibernação. Os artistas tinham instalado os cavaletes e os instrumentos de música, esfomeados das multidões divertidas ao redor dos seus talentos. Luís Vaz de Camões passara o dia a dormitar num banco do jardim do Carré St-Louis e, quando anoiteceu e a Prince Arthur se engalanou de gentes e luzes, foi atraído pelas ondas cálidas de música. Nesse mesmo dia, a concierge, a senhora Maria da Graça, vencera finalmente a relutância do marido e pusera-o no olho da rua. - Isto aqui não é nenhum albergue, tenha paciência. Antes do meio-dia tem que deixar o apartamento livre. O senhor José, nas costas dela, fazia caretas de pesar, a saltitar ora num pé ora no outro. Com o correr do tempo, tinham-se afeiçoado um ao outro. Luís Vaz de Camões narrava-lhe as suas andanças pelo mundo, chegara mesmo a ler-lhe algumas estrofes dos Lusíadas, que o bom do homem escutara com circunspecção e reverência. Quando viu a mulher pelas costas, quase rebentou em lágrimas. - É uma porra, é umas porra - era só o que sabia dizer. - Deixe lá, senhor José - tentou serená-lo, Luís Vaz de Camões. - Tenho aí uns amigos que já se ofereceram para me dar guarida. Um dia destes venho cá fazer-lhe uma visita e se a vida me começar a correr melhor, iremos, aí a qualquer lado, beber uns copos juntos. O pobre do homem continuava a abanar a cabeça, desolado. 113
- Olhe, senhor Luís Vaz de Camões, se as coisas falharem com o seu amigo, tenho ali na cave um quartito. O patrão não precisa de saber... Luís Vaz de Camões abraçou-o com força. - Obrigado, senhor José, não me esquecerei das suas palavras amigas. Acotovelado pela multidão, pensava nas palavras bondosas do senhor José, quando se sentiu violentamente agarrado pelo ombro. Diante dele um homem bemapessoado, à beira dos quarenta anos, cabelos pretos bastos e encaracolados e bigode façanhudo, olhava-o com uns grandes olhos atónitos. - O senhor é... é o Luís Vaz de Camões? Nem posso acreditar no que os meus olhos vêm. O Luís Vaz de Camões em carne e osso, aqui em Montreal?! Sem lhe largar o braço, arrastava-o para um recanto mais recatado, junto a um fontanário de repuxo. - Que pena não o ter encontrado há mais tempo, antes do 10 de Junho. Teria sido um êxito retumbante, o poeta Luís Vaz de Camões em pessoa, logo à frente do desfile, no primeiro carro alegórico. O meu nome e o seu também, é claro, teriam ficado na História, aquela cambada da comissão das comemorações do dia de Portugal, lá em Lisboa, teriam ficado de cara à banda, roídos de inveja. Que pena, ó poeta, teria sido a nossa consagração. Os olhos do homem brilhavam, febris. A gadanha da mão continuava cravada no braço e Luís Vaz de Camões sofria-lhe o hálito morno. - Mas não está tudo perdido. Ainda estamos a tempo de organizar uma tournée pelas comunidades portuguesas da América do Norte, vai ter mais êxito do que as digressões do Malhoa ou do Marco Paulo. Se o poeta estiver de acordo, amanhã de manhã poderemos ir ali ao cartório dum notário meu amigo assinar o contrato, vamos ficar ricos enquanto o 114
diabo esfrega um olho. Concorda? Olhe que melhor empresário do que eu não poderia arranjar, não têm conta os espectáculos que eu já organizei para a comunidade. Luís Vaz de Camões conseguira soltar-se da garra do homem e começava a mostrar-se divertido com a assombrosa aparição. - O senhor é empresário dalgum circo? O homem riu, bem-humorado. No seu fato completo cinzento, o nó da gravata florida bem apertado, contrastava violentamente com a multidão em trajes leves e estivais. - Ainda quer maior circo do que este, ó poeta? - E acercando-se outra vez com aquele hálito quente: - Isto é uma socidade podre, ó Luís. Não te importas que te trate por tu, pois não? Pois acredita que isto é uma sociedade em decadência, que um dia vai acabar por se desmoronar como um baralho de cartas e então será a nossa vez. - A vez de quem? - perguntou, irónico, Luís Vaz de Camões. O outro não se apercebeu da ironia e continuou, olhos inflamados, braços abertos, voz de tribuno: - A nossa vez, a vez daqueles que sempre estiveram ao lado dos trabalhadores e dos oprimidos, ombro a ombro com eles em todas as lutas pela paz e pela justiça social, contra a exploração e contra a opressão. Aborrecido por um discurso que escutara vezes conta nos salões decrépitos das Índias, da boca de fidalgos corruptos, sedentos de glória e riquezas, Luís Vaz de Camões aproveitou para se despedir. - Até à próxima. - Já te vais embora? Promete, pelo menos, reflectir sobre a minha proposta, olha que é a oportunidade da tua vida. Dum salto ágil, o homem barrava-lhe o caminho. - Não te vás assim embora. - E lançando um olhar 115
conspícuo para o embrulho que Luís Vaz de Camões sobraçava: - E isso o que é? É o manuscrito dos Lusíadas, não é? Por acaso, não estás interessado cm vendê-lo? Não te serve para nada e a mim fazia-me um jeitão para o curriculum, principalmente agora que estou interessado em concorrer aí a um cargo na Secretaria de Estado do Multiculturalismo. - Sai do meu caminho. Catapultado por certeiro murro no queixo, o homem foi cair em pleno tanque, erguendo uma colorida tromba de água. Ao redor, as pessoas, sequiosas de insólito, após longa hibernação, puseram-se a aplaudir. - Espera aí! - Patético, meio cego, resfolegante, o homem, com a água do repuxo a tombar-lhe na cabeça, estendia os braços. - Ainda nos podemos entender, nada de rancores, negócios são negócios. A multidão já voltara a sua atenção para um malabarista que, encarrapitado num triciclo gigante, expelia um mar de fogo da caverna da boca. Encolerizado, Luís Vaz de Camões pôs-se a caminhar na direcção da St-Laurent. Mas aquela era uma noite de assombração. De súbito, sentiu-se de novo agarrado pelo braço. Voltou-se de punho erguido. Mas logo ficou estarrecido. Na sua frente, Bárbara olhava-o com aqueles seus enormes olhos negros e incandescentes. Num primeiro impulso, quis estrangulá-la logo ali. -Tu?! - Senhor! - Ainda ousas aparecer-me diante dos olhos? - Senhor, nos últimos anos procurámo-lo, sempre em vão por todo o lado mas ninguém sabia dar uma informação certa. Tanto nos diziam que vivia em Brossard, como em Laval ou mesmo para ali num apartamento da Coloniale. Foi 116
por acaso que agora nos encontrámos. Luís Vaz de Camões sentia a ira esfumar-se. - É verdade, andei por aí. - E, pelo menos, a vida correu-lhe bem? - Estou mais pobre do que nunca mas sobrevivi. Só o meu lado mais truculento é que morreu por aí, nos desenganos da vida. Mas já Bárbara lhe pegava pela mão. - Vinde, senhor. O Jau vai ficar muito feliz por vos voltar a ver. Não há dia nenhum em que não fale no seu amo. E também há mais alguém. Não andaram muito. Ali mesmo na Prince Arthur erguia-se um restaurante de cozinha oriental, a fachada com arrebiques de pagode e dois grandes leões de loiça de sentinela à porta. - É o nosso restaurante, senhor - disse Bárbara, com uma vénia. - Entre, senhor. A sala, decorada com motivos orientais estava bem afreguesada e flutuava no ar uma música delicada, imponderável. Surgido da penumbra, um Jau bem nutrido, de pele luzidia e um começo de calvície, caiu-lhe aos pés. - Senhor, senhor - balbuciava. - Perdão, senhor, perdão. - Vinde, senhor - encaminhava-o Bárbara para uma mesa vazia. Fez um gesto quase imperceptível e logo um criado de tez acobreada acorreu, solícito. Jau continuava agarrado à mão do amo. - Com o dinheiro que amealhámos, eu na costura e o Jau a lavar pratos, abrimos um pequeno restaurante na Duluth - explicava Bárbara. - Felizmente, tudo nos correu bem e há dois anos abrimos este restaurante. Deus tem sido muito generoso connosco. - Isto é tudo seu, senhor - balbuciou Jau, limpando o 117
suor do rosto com um grande lenço branco. - Não precisará de se preocupar com a vida. O criado já enchia a mesa de iguarias. - Obrigado, amigo - abanou tristemente a cabeça Luís Vaz de Camões -, mas o meu único desejo é regressar à Pátria e publicar este livro. Infelizmentc nem tenho recursos pagar a viagem. - Deixe isso por nossa conta, senhor - disse Bárbara. Deve regressar a Portugal e conquistar a imortalidade. Consta que o monarca que lá reina é generoso e dado às letras, decerto irá acolhê-lo de braços abertos. De súbito, uma criança, com aquele encanto da miscigenacão das raças, veio refugiar-se entre os joelhos de Bárbara. Luís Vaz de Camões buscou nos olhos negros da mulher a resposta que procurava. - Chama-se Luís, senhor. - A alma pelo mundo em pedaços repartida - recitou Luís Vaz de Camões, com voz trémula, acariciando os anéis arruivados da cabeça da criança. - Prove, senhor - disse Jau, já sorridente e mais seguro de si. - Nem na Índia encontraria iguarias destas. O nosso restaurante é o que oferece a melhor cozinha oriental de Montreal. Ainda ontem saiu um artigo muito elogioso na La Presse. Se Deus nos der coragem e forças, abriremos brevemente outro restaurante na rua Crescent e estamos presentemente em negociações com um empresário de Toronto para alargar a cadeia ao Ontário onde as perspectivas são muito encorajantes. Será tudo por esta criança, queremos que seja muito feliz. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar-lhe a desgraça de precisar de se curvar diante dos homens para ter o direito à vida. Mas, coma senhor, não sabe a alegria que nos dá em têlo aqui esta noite. Amanhã já mandarei gravar uma placa, 118
para colocar aí nessa parede: aqui jantou Luís Vaz de Camões, o maior poeta português de todos os tempos. Será um sucesso.
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Depois de muito caminharem e de esporadicamente se terem cruzado com gentios que falavam uma língua arrevesada, aparentada com o gaulês, depararam com uma cidade aninhada ao redor duma montanha verdejante e envolvida pelo abraço de dois rios caudalosos. - Louvado seja Deus Nosso Senhor - alegrou-se Luís Vaz de Camões, ao avistar uma enorme cruz que coroava a montanha -, estamos em terra de cristãos. Em breve souberam que a cidade se chamava Montreal, próspera colónia de cristandade nas Índias Ocidentais, paraíso sonhado por levas e levas de emigrantes visionários.
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