BOLETIM
V55, N.03.2016 - Marรงo 2016
PATROCÍNIO 814/2013 FPC: Manutenção das atividades Observatório da diversidade Cultural
Realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte
REALIZAÇÃO Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural
PARCEIROS
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Artes
BOLETIM ODC # 55 MARÇO 2016
SUMÁRIO Tailze Melo
Camila Alvarenga
Pedro Vasconcelos
Jocastra Holanda
Renata Melo
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PALAVRA-PENSAMENTO: POR UMA REDE CURRICULAR NA ESCOLA ACELERAÇÃO SOCIAL E DILAÇÃO INSTITUCIONAL: IMPLICAÇÕES NA ESCOLA, SOCIEDADE E DIVERSIDADE
O FUTEBOL À SOMBRA DA DISCRIMINAÇÃO
CULTURA VIVA: POR UMA AVALIAÇÃO DA FELICIDADE INTERNA BRUTA UM RELATO SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CULTURA NA FRANÇA: entrev ista com o Conseiller Municipale da área de cultura, Celso Libânio, da Agglomeration Coeur D’Essonne, arredores de Paris.
SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL
PALAVRA-PENSAMENTO: POR UMA REDE CURRICULAR NA ESCOLA Tailze Melo
Palavras constroem mundos. Palavras traduzem pensamentos, mesmo que na incompletude da linguagem. Este pequeno ensaio faz alguns apontamentos sobre o gesto de ensinar e aprender em sua relação com a diversidade cultural na escola a partir de três palavras, a saber: grade, matriz e rede. O vocábulo grade, durante muito tempo, serviu como denominação curricular para se referir aos conteúdos a serem ensinados na escola. Falava-se, então, em grade curricular. Ora, grade evoca uma rede semântica em torno da ideia de fechamento. Basta dar uma olhada na acepção dicionarizada da palavra e encontraremos como derivações outros termos que também se dirigem para uma imagem de isolamento: vedar, resguardar, moldar, intervalos regulares e controle. Com efeito, esse arranjo de palavras aponta para uma dimensão do educar em que a compartimentação e apreensão quantitativa de conteúdos são forjadas num modelo pedagógico de transmissão unilateral de saberes, do professor para o aluno. A noção de certo e errado conduz o processo de avaliação desse modelo, bem como os exercícios interpretativos limitadores do tipo memorizar o enredo de um texto ficcional ao invés de adentrar seu jogo narrativo. A constatação de que o exercício da diversidade fica prejudicado quando um “pensamento gradeado” impõe separações artificiais para os alunos – realidade/fantasia, escola/cotidiano, particular/universal – parece bastante coerente nesta vertente de pensamento. O professor ou
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teórico são vistos como autoridades que não podem ser questionadas, como se fosse possível existir qualquer relação sem conflito, sem diferença de olhar para coisas, pessoas e culturas. Buscava-se, na verdade, na grade curricular, uma unidade de pensamento, ou seja, uma visão de mundo que não procurava um acolhimento maior em relação à diferença. Tal visão promove um pensar disjuntivo, nocivo para todos os envolvidos no processo educacional. Uma postura que recusa um mundo em constante mutação em que visões maniqueístas simplesmente não explicam mais nada. Numa outra direção, apresenta-se o termo matriz curricular, muito usado nas atuais propostas de projetos políticos pedagógicos. Sem dúvida, temos um salto em relação ao modelo de pensamento curricular estabelecido no vocábulo grade. Como nos informa o dicionário Aurélio, matriz, do latim matrice, é um substantivo feminino que se refere ao lugar onde se gera ou se cria algo, ou seja, aquilo que é fonte, origem, base. A palavra também se direciona para a ideia de molde para a fundição de qualquer peça ou ainda para o estabelecimento principal, casa matriz, sede. Como constatamos, a noção de criação de ideias está implícita na acepção dicionarizada de matriz. Por desdobramento de raciocínio, compreendemos que, ao pensar em matriz curricular, estamos diante de conteúdos que se organizam de um modo mais orgânico, cabendo, inclusive o exercício da arte e da imaginação em sala de aula. Aqui o pensamento gradeado cede lugar a fluidez do pensar, por consequência, há espaço para a mistura, há espaço para a diversidade de olhares para o mundo. A ideia de matriz é, sem dúvida, uma perspectiva mais expandida sobre o lugar da escola nos tempos de hoje. No entanto, se observarmos com olhos críticos, o vocábulo matriz guarda uma visão de origem e, de certo modo, essa ideia ainda traz um resquício do controle da escola sobre a maneira pela qual os alunos deveriam assimilar os conhecimentos propostos. A escola é vista aqui como casa matriz, como sede do conhecimento. Parece haver um rastro de controle e
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poder no sentido de colocar a escola como um lugar privilegiado de assimilação de conhecimento. Por outro viés de raciocínio, já o vocábulo rede nos parece mais condizente com o mundo contemporâneo. Explicamos. Uma rede é dotada de um sistema descentrado e, nesse sentido, parece simular a vida e o funcionamento das sociedades. Ao pensar na palavra rede e sua trama semântica – conexão, heterogeneidade, multiplicidade, devir – não nos parece descabido tomar a rede para refletir sobre a possibilidade de uma construção curricular em que o importante é estimular o desenvolvimento intelectual e cognitivo do aluno, orientando seu pensamento no sentido de articular variáveis diversas. Nessa perspectiva, a escola, de fato, absorveria o conhecimento trazido pelo aluno de outros contextos e fontes porque não haveria mais o medo da perda de um suposto saber exclusivo da escola. Nessa dicção da aprendizagem, o professor se torna um mediador, a sala de aula ganha outras espacialidades, o livro impresso convive com o digital, cadeias semióticas juntam arte, ciência, lutas sociais. Conexões depois de feitas não se fixam, podem ser rompidas, retomadas e costuradas novamente. Por fim, não caberia mais a noção de erro, mas de construção e reconstrução de saberes. Trata-se, claro, de tarefa complexa a ser tomada pelos profissionais pertencentes ao processo educativo preocupados com a integração da instituição escola aos traços determinantes da existência contemporânea. Assim, parece que a exploração da própria diversidade cultural na vivência da escola encontra na metáfora da rede uma possibilidade de existência potente. A rede torna-se palavra-pensamento capaz de abraçar a trama de tempos e espaços que se coloca na existência contemporânea. A vida na escola já não seria mais separada da escola da vida.
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ACELERAÇÃO SOCIAL E DILAÇÃO INSTITUCIONAL: IMPLICAÇÕES NA ESCOLA, SOCIEDADE E DIVERSIDADE Camila Alvarenga
Não é nenhuma novidade que a cultura é dinâmica e a sociedade está em constante mudança. Mas, o que talvez possa passar despercebido aos nossos sentidos é a velocidade com que estas mudanças ocorrem ao longo do tempo. Ao estabelecer uma diferença entre a modernidade e a contemporaneidade em relação à rapidez com que as mudanças acontecem na sociedade, Paulo Vaz aponta o enfrentamento de duas dificuldades. A primeira diz respeito à própria existência da diferença. "Se a Modernidade foi descrita e experimentada como aceleração das mudanças – pensemos aqui na conhecida frase do Manifesto Comunista, "tudo que é sólido se desmancha no ar" – como podemos nos distinguir dela segundo o critério "velocidade"? (VAZ, 2003, p.76). Já a segunda dificuldade é da ordem do sentido da diferença. "Mesmo havendo uma aceleração, será ela relevante, isto é, haveria uma transformação em nossas questões éticas e políticas acerca do novo? (VAZ, 2003, p.76). O próprio autor responde suas indagações buscando em Castells (1999) os seus argumentos. Segundo ele, experimentamos na atualidade a "aceleração da aceleração". Para explicar este termo, Castells parte das diferenças entre o paradigma tecnológico moderno e o contemporâneo. O primeiro funda-se na descoberta de novas fontes de energia, já o segundo é calcado na descoberta de novos modos de produzir, processar e distribuir informações. A partir disto, ele exemplifica que se passaram cerca de 70 anos para que o tecido de algodão diminuísse metade do seu valor, enquanto para que o preço do circuito integrado (1950) sofresse a mesma queda,
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passaram-se apenas cinco anos. Hoje em dia vivenciamos estas quedas de preço com uma velocidade muito maior, os aparelhos eletroeletrônicos e de informática são exemplos claros e fala-se até em obsolescência programada das tecnologias. Um computador de última geração lançado hoje, em questão de meses, já está ultrapassado. O diferencial da velocidade na modernidade e na contemporaneidade ocorre, sobretudo, no ritmo com que são inventados novos objetos técnicos. A informação está diretamente ligada à rapidez relativa da invenção e difusão. Quanto ao questionamento em relação à transformação em nossas questões éticas e políticas acerca do novo, Vaz é assertivo em sua resposta: “Enquanto a descoberta da eletricidade, por exemplo, só pôde alterar o padrão de sociabilidade com a iluminação das cidades, as novas tecnologias de informação imediatamente transformaram o modo como nascemos, aprendemos, sonhamos, lutamos e morremos” (VAZ, 2003, p.77). Ao encontro do pensamento de Vaz, em relação às afetações da tecnologia em nossas vidas, Muniz Sodré acredita que, na atualidade, o relacionamento do sujeito com a realidade passa necessariamente pela tecnologia, em especial as tecnologias da informação, em todos os seus modos de realização. Para ele, a forma da consciência contemporânea é fundamentalmente tecnológica (Sodré, 2012). Neste ponto, é válido retomar a metáfora de Marx citada no início deste texto – "tudo que é sólido se desmancha no ar” – para melhor refletirmos sobre a conexão da tecnologia, dos processos de produção e consumo capitalistas com as mudanças de nossa relação com o tempo e espaço na contemporaneidade. A ideia de construção, transformação e destruição é claramente perceptível e manifestada tanto no setor financeiro quanto na profusa oferta de mercadorias que abarrotam as prateleiras dos
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supermercados e as vitrines dos shopping centers (Citelli, 2015). [...] as constantes mutações dos instrumentos de produção, em especial quando se observam as inovações trazidas pela ampla digitalização dos sistemas, os novos modos de constituição das sociabilidades, em forte conexão com os dispositivos comunicacionais substanciados em telas pequenas e nas tecnologias locativas, têm repercutido diretamente na maneira de se organizar as relações de tempo e espaço (CITELLI, 2015, p.2).
Neste cenário, assistimos e vivenciamos um descompasso no ritmo do tempo das instituições em relação ao ritmo social. No primeiro, vimos o compasso da dilação, já no segundo o da aceleração. “Já não navegamos num rio do tempo, que vai de uma origem a um fim, mas fluímos num redemoinho turbulento, indeterminado, caótico” (PÁL PELBAR, 2010, p. 29). Segundo Hartmurt Rosa (2013), três indicadores centrais marcam os compassos do mundo contemporâneo: a rapidez dos sistemas e processos tecnológicos, a aceleração das mudanças sociais e a dinamização dos ritmos de vida. Para ele, as marcas estruturais e culturais das instituições estariam em choque com o “achatamento do presente” – diminuição das marcas do passado e ampliação das expectativas do futuro. Ainda de acordo com ele, a sensação de que o presente ficou mais estreito é, de certa forma, resultante da aceleração tecnológica e da própria vida cotidiana. Para Pál Pelbar (2010) a duração do tempo está diluída e a divisão em passado, presente e futuro perde sua pregnância. A aceleração e a diversificação tecnológica, na dinâmica capitalista, se imbricam, sendo hora causa hora efeito desta confusa lida com o tempo na atualidade. Uma vez que elas interferem na forma como os indivíduos definem seus interesses, formatam os seus valores, lidam com a diversidade, debatem a questão pública, ativam processos comunicacionais, etc.
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Diante deste quadro, fica uma dúvida: de que forma as instituições tradicionais, como a escola e o Estado, comportam-se frente aos mecanismos de aceleração social, à dominância dos mediadores sóciotécnicos e ao latente desconforto causado pelo “achatamento do presente”? Em outubro de 2015, o governador do estado de São Paulo anunciou o fechamento de centenas de escolas estaduais sob o argumento de realizar uma reorganização escolar, o que prejudicaria milhares de estudantes do ensino fundamental e médio, além de dezenas de professores. Uma medida arbitrária, vinda por parte de uma instituição (o Estado) que está a anos luz de distância em relação à aceleração social, à sociedade midiatizada, principalmente dos jovens hiperconectados. A resposta destes jovens veio em forma de uma série de protestos, ocupações das escolas que seriam fechadas e reorganização da grade escolar enquanto tomavam conta daquele espaço. As escolas foram ocupadas com atividades culturais e com aulas que tão cedo não entrariam na arcaica grade curricular mostrando, mais uma vez, o descompasso entre a sociedade e esta instituição que, em sua grande maioria, ainda concebe o ensino enquanto sistema polarizado “educador-educando”, deixando de incluir neste processo o peculiar, o contexto de vivência do sujeito e toda a diversidade advinda da cultura e das interações sociais. A transformação dos saberes, ocasionada pela “aceleração da aceleração”, pela profusão de informações e descobertas tecnológicas, gera tensionamentos que demandam uma nova instituição preparada para lidar com a pluralidade de inteligências, a velocidade das mudanças, a diversidade cultural, a esta forma de lidar com o tempo e espaço, que nem nós mesmos temos plena consciência. É preciso superar esta visão tradicionalista da instituição escolar, mesmo que historicamente ela tenha sua vivência com o tempo lento, necessário aos processos de formação e envolvimento com o conhecimento. Posto isto, fica mais uma pergunta: devemos continuar na esfera da temporalidade regida pela instituição escolar ou procurar desdobramentos fora dela?
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Referências Bibliográficas: CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CITELLI, Adilson. Comunicação e educação: o problema da aceleração temporal. In: 38º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2015, Rio de Janeiro-RJ, Anais... Rio de Janeiro: INTERCOM, 2015, p. 1-13. Disponível em: <http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/indiceautor.htm>. PELBART, Peter Pál. Imagens de nosso tempo. IN: FURTADO, Beatriz (org.). Imagem contemporânea – cinema, fotografia, videoarte, games…Vol. II. São Paulo: Hedra, 2009. ROSA, Hartmurt. Social acceleration. A new theory of modernity. New York: Columbia University Press, 2013. SODRÉ, Muniz. Reinventando a Educação: diversidade, descolonização e redes. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. VAZ, Paulo. Tempo e tecnologia. IN: DOCTORS, Márcio (org.). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
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O FUTEBOL À SOMBRA DA DISCRIMINAÇÃO Pedro Vasconcelos
Em um estádio, ou em uma arena – expressão comum aos dias atuais – tem-se a ideia isonômica de que todos são iguais perante a regra do jogo. Dentro das quatro linhas o futebol jogado na Nigéria ou na Espanha é o mesmo, fora delas, o esporte transcende em seu sentido catártico: constrói signos, relações e subjetivações próprias da cultura de cada país. Pretendo analisar o futebol no Brasil considerando-o como uma prática social que, como tal, reflete esta sociedade, com todas suas aspirações, desejos e contradições camufladas. Esta compreensão sociológica é compartilhada por autores como Dalmo (1989) e Gastaldo (2006), para eles compreender o futebol é compreender a parte relevante da nossa sociedade. O esporte é mais que o seu conjunto de regras, técnicas e táticas. Considerado como expressão da cultura brasileira, traz consigo todas as suas virtudes e todas as suas distorções. Desde sua origem amadora e elitista, em que apenas pessoas de alta classe o praticavam, o futebol escancarava dentro dos estádios problemas que o Brasil enfrentava fora deles. Frequentador assíduo das arquibancadas, acostumei-me desde cedo a ver naturalizadas cenas e gestos, que deveriam ser no mínimo problematizadas em seu contexto, mas que, pela força do habito, passam muitas vezes estouvadas pelo olhar do torcedor e do cidadão.
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São muitas às cenas: o goleiro adversário se prepara para cobrar um tiro de meta, a torcida o acompanha em um progressivo e crescente cântico: “oooh bicha!”. O jogador palmeirense Gabriel Jesus domina a bola no canto do campo, a câmera que transmite a partida captura o gesto cênico do torcedor uruguaio, que incisivamente imita um macaco. Mesmo animal que a torcida do Grêmio escolheu para ofender os rivais do Internacional no Rio Grande do Sul. A torcida do Vasco, clube que, apesar de extrema importância no combate ao racismo no futebol mundial, crucifica a pobreza do torcedor do Flamengo o chamando de “mulambo”. A torcida do São Paulo é denominada de “bambi” pelos rivais paulistas e a do Atlético Mineiro, meu clube do coração, utiliza o simples nome “Maria” para, de maneira misógina, atingir os adversários do Cruzeiro. Não existe no país uma só torcida que não se comprometa com estes valores em seus cânticos. A homofobia, o racismo e o machismo são comuns às provocações clubistas. Aqui se torna necessário reconhecer que o racismo outrora fora menos combatido pelas instituições que comandam o esporte. Se por um lado a mídia se cala diante a escalada de homofobia e machista das torcidas, os casos de racismo no esporte causam alguma comoção, seja na disseminação da hashtag #somos todos macacos em solidariedade ao atacante Neymar em 2014, ou da execração pública da torcedora do Grêmio que foi flagrada pelas câmeras chamando o goleiro Aranha do Santos de macaco no mesmo ano. Casos de discriminação racial fazem parte da história do futebol no país. Quando o gosto pela bola se espalhou pelas favelas e subúrbios cariocas, o escritor Lima Barreto, mulato e avesso aos circuitos aristocráticos, criticou a nova coqueluche trazida pelos ingleses. Lima não teve tempo de acompanhar os dribles e o talento de Didi e Pelé, entre tantos craques de pele escura que reinventaram o jogo bretão. No futebol, o negro existe e é reconhecido por seu
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talento, ainda que, muitas vezes, discriminado pela sua cor. Aos poucos se tornaram protagonistas, obrigando os órgãos que o gerenciam a se preocupar, ainda que de forma incipiente, com o racismo. No exterior, nem a formação da atuante rede Football Against Racism in Europe (Fare), composta por 150 organizações internacionais empenhadas em sensibilizar e tomar posições firmes contra toda a forma de discriminação nos estádios, conseguiu o inibir as crescentes manifestações de racismo no mundo. Neste contexto de discriminação, a mulher aparece ainda mais marginalizada. Na prática do esporte, faltam patrocinadores, torcedores, clubes e visibilidade. A Copa do Brasil Feminina, único torneio chancelado pela Confederação Brasileira de Futebol , acontece apenas desde 2007. Mais assustador é saber que o Estado Novo de Getúlio criou o decreto 3.199 em 1947, que proibia às mulheres a prática de esportes considerados incompatíveis com as condições femininas. O futebol estava dentre eles. Quando o decreto foi regulamentado pelo regime militar (1964-1985), em 1965, o futebol feminino foi proibido no Brasil. Só 16 anos depois foi revogado pelo Conselho Nacional do Desporto. Este sem dúvidas é um dos aspectos menos explorados na história do futebol brasileiro. A inserção da mulher nesse espaço eminentemente masculino. Se no contexto da pratica esta inserção é lenta e difícil na questão do consumo não é muito diferente: falta respeito e reconhecimento. O último grito de protesto contra o machismo veio de dentro da própria torcida. Uma nota de repúdio a abordagem machista da empresa dryword, fornecedora de material esportivo do Clube Atlético Mineiro. A nota pede respeito e aponta para questões de misoginia que se apresentam de maneira naturalizada na relação da mulher com o futebol produto.
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A nota foi assinada por 25 mulheres. Atleticanas que nos alertam sobre um episódio de objetificação da mulher. O fato ocorreu no desfile do novo uniforme do clube, que colocou mulheres para desfilar com um biquíni, enquanto os modelos masculinos desfilaram com o uniforme completo. Parte da nota dizia: “E não há motivos, muito menos econômicos. Tais como fiéis de uma igreja, pagamos o dízimo fazemos parte do programa de sócio-torcedor, consumimos produtos licenciados, pagamos o pay per view e frequentamos os estádios sem necessariamente, pasmem!, estar acompanhadas de homens. Reiteramos que não existem razões para recebermos do clube qualquer tipo de tratamento diferenciado, ofensivo ou constrangedor por sermos o que somos: mulheres.” A nota repercutiu em toda a imprensa nacional. Nos programas esportivos, sobretudo nos do canal ESPN, primeiro veículo a divulga-la. A resposta do clube se ateve a liberdade de expressão. O pedido de desculpas não veio. Nem por parte do Atlético nem pela patrocinadora, que apenas se desculpou por uma etiqueta da camisa, que instruía as mulheres dos torcedores a lava-las da melhor maneira. No mundo o futebol também funciona como o espelho de nossas mazelas. O futebol, tido por muitos como espaço democrático, expõe a intolerância religiosa, os preconceitos de gênero, raça e também as diferenças econômicas. Nesse sentido, os movimentos sociais não por acaso voltam o olhar para este esporte, que pretende ser de todos, mas que ainda se faz de cego as mais primárias exigências da humanidade.
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Referências: GASTALDO, Édison. Pátria, Chuteiras e Propaganda – o brasileiro na publicidade da Copa do Mundo. São Paulo: Anna Blume, 2002. RODRIGUES FILHO, M. O Negro no Futebol Brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p.23-4.
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CULTURA VIVA: POR UMA AVALIAÇÃO DA FELICIDADE INTERNA BRUTA Jocastra Holanda
É possível medir os resultados da cultura? Em que medida as políticas públicas de cultura são capazes de transformar a realidade das sociedades de forma efetiva? E se as políticas públicas, projetos e programas de cultura fossem avaliados por sua influência em proporcionar felicidade e qualidade de vida às pessoas? E se pudéssemos mensurar o impacto das políticas culturais com indicadores que medissem o “brilho do olhar”, a “entonação da voz” e o “tamanho do sorriso” das pessoas? Essas e outras questões fizeram parte das reflexões do Fórum Programa Cultura Viva: Impactos e Transformações Sociais, no qual participei a convite do Observatório de Políticas Públicas Culturais (OPCULT) da UnB, realizado no dia 29 de fevereiro, no Memorial Darcy Ribeiro – “Beijódromo”, na Universidade de Brasília – UnB. Se não temos todas as respostas para essas questões, que cercam a pesquisa, a análise e a avaliação das políticas públicas no campo da cultura, a pesquisa realizada pelo OPCULT e discutida no Fórum, apontou um horizonte possível de análise qualitativa e sistêmica da cultura pelo que ela pode gerar em termos de impacto positivo e de felicidade na vida das pessoas. Reunidos no “Beijódromo” para a apresentação e debate sobre os resultados obtidos na pesquisa, estiveram os professores e coordenadores do Programa de Pós-graduação de Cultura da UnB e pesquisadores do OPCULT, Maria de Fátima Makiuchi, Mário Lima Brasil, Hugo Ribeiro, Wanessa
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Souza e Mariana Saturnino Silva; e ainda o Diretor da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC) do Ministério da Cultura, Alexandre Santini. Além dos pesquisadores Débora Lima, da Casa Rui Barbosa, César de Mendonça Pereira, da Fundação Joaquim Nabuco, eu (Jocastra Holanda), do Observatório da Diversidade Cultural, compondo a Mesa Cultura Viva; e os Ponteiros José Maria Reis, Maria Fulgência, Célia de Fátima e Leandro Anton, representantes da Rede Nacional dos Pontos de Cultura, integrando a Mesa Pontos de Cultura junto com outros Ponteiros participantes do estudo. O Fórum Programa Cultura Viva: Impactos e Transformações Sociais foi realizado com o objetivo de apresentar o relatório final da pesquisa realizada pelo Observatório de Políticas Públicas Culturais (OPCULT) da UnB, em parceria com o Ministério da Cultura, que analisou de forma qualitativa as experiências de transformação social a partir do Programa Cultura Viva e dos Pontos de Cultura. O estudo é um projeto piloto resultado de uma demanda da Rede Nacional de Pontos de Cultura, no qual um grupo de pesquisadores ligados ao OPCULT organizou estudos e pesquisas de campo, entre os anos de 2014 e 2015, que possibilitaram estruturar uma avaliação do Programa Cultura Viva a partir dos possíveis impactos e transformações sociais ligados à presença e ação dos Pontos de Cultura. Em breve os resultados serão disponibilizados para o acesso de todos por meio de publicação em dois livros, um livro dedicado à pesquisa em si e outro reunindo as reflexões e debates entre Ponteiros e pesquisadores participantes dos Fóruns realizados no percurso do projeto. Para o estudo, foram selecionados todos os Pontos de Cultura existentes no Distrito Federal e oito Pontos de Cultura pertencentes à região Centro-Oeste (quatro em Mato Grosso, três em Mato Grosso do Sul e dois em Goiás). A pesquisa partiu da hipótese de que uma investigação qualitativa em torno de tais Pontos de Cultura poderia apontar indicativos de impactos e transformações sociais ligadas ao Programa, para além de resultados meramente quantitativos, estatísticos,
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numéricos e dos indicadores obtidos em outras avaliações – não desconsiderando a importância destes. Com o desafio de utilizar metodologias, parâmetros e instrumentos para uma avaliação qualitativa da experiência dos Pontos de Cultura, os pesquisadores chegaram à proposta do conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB) como indicativo para analisar os dados coletados na pesquisa de campo à luz dos domínios apontados pelo FIB. Com origem no Butão, o conceito do FIB aponta para o fato de que existem diversos outros fatores, para além apenas dos recursos financeiros e econômicos, que podem proporcionar a felicidade, como bem-estar psicológico, padrão de vida, uso do tempo, governança, vitalidade comunitária, cultura, saúde, educação e meio ambiente. A pesquisa realizada pelo OPCULT propôs então uma abordagem puramente qualitativa, etnográfica e sistêmica acerca dos ganhos positivos, impactos e transformações sociais que o Cultura Viva gerou na sociedade brasileira. De posse dos domínios relativos ao conceito do FIB foram elaboradas entrevistas semiestruturadas e realizou-se a pesquisa de campo. Os dados coletados foram transcritos e analisados com base nas nove dimensões do FIB. O nível de felicidade das pessoas impactadas pelos Pontos de Cultura foi mensurado tanto entre os que trabalham com a ação, Ponteiros, coordenadores e instituições, como entre os beneficiários, isto é, os membros da própria comunidade. Segundo o professor Mário Brasil, coordenador do estudo, "com a pesquisa de fato conseguimos provar que o trabalho dos Pontos de Cultura tem impacto positivo nas comunidades, que atuam no sentido da melhora dos indicadores de qualidade de vida, que podem ser medidos através dos índices de Felicidade Interna Bruta. A felicidade só se realiza plenamente em processos coletivos como esses".
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Mensurar algo transcendente e essencial à vida das pessoas como a cultura já é um grande desafio. Mensurar algo tão subjetivo como a felicidade é outro grande desafio. Mensurar como estes dois domínios, cultura e felicidade, podem se influenciar mutuamente é uma provocação interessante e desafiadora, que pode nos apontar um horizonte possível de análise acerca da capacidade de transformação social positiva das sociedades pelas políticas públicas, projetos e programas de cultura. O FIB tem se mostrado uma ferramenta que tem legitimidade científica na avaliação dos índices de felicidade e bem-estar atrelados ao desenvolvimento das sociedades e como instrumento capaz de oferecer às políticas públicas orientações para seus programas, e vem sendo utilizado nesse sentido em diversos países no mundo. No campo da cultura, que não se conforma facilmente aos modelos quantitativos, estatísticos, e com a dureza e frieza dos números, a ferramenta poderá ser incorporada aos indicadores para a avaliação qualitativa e sistêmica das políticas culturais, constituindo assim mais uma possibilidade de avaliação, indicadores e orientações para as políticas públicas de cultura. E se pudéssemos criar outros tantos indicadores criativos, sensíveis, inovadores e orgânicos assim como é a cultura?
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INDICADORES DE FELICIDADE >> COMO A FELICIDADE É CALCULADA?
SÃO 9 EIXOS QUE COMPÕEM O INDICADOR UTILIZADO NO PAÍS BUTÃO. 1. PADRÃO DE VIDA
>> RANKING
PAÍSES COM MAIOR ÍNDICE DE FELICIDADE INTERNA BRUTA, SEGUNDO O RELATÓRIO DA FELICIDADE GLOBAL: 1º DINAMARCA 2º SUÍÇA 3º ISLÂNDIA 4º NORUEGA 5º FINLÂNDIA . . . 17º BRASIL . . . 155º TOGO 156º SÍRIA 157º BURUNDI
2. BEM ESTAR PSICOLÓGICO 3. SAÚDE 4. EDUCAÇÃO 5. DIVERSIDADE ECOLÓGICA 6. BOA GOVERNANÇA 7. USO DO TEMPO 8. DIVERSIDADE CULTURAL 9. VITALIDADE COMUNITÁRIA
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UM RELATO SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CULTURA NA FRANÇA: entrev ista com o Conseiller Municipale da área de cultura, Celso Libânio, da Agglomeration Coeur D’Essonne, arredores de Paris. Renata Melo
Celso Libânio é brasileiro, agente consular e mora na França há 34 anos. Foi reeleito para o segundo mandato de Conseiller Municipale na Aglomeração em que reside, respondendo sobre a área da cultura. A intenção desta entrevista é extrair um relato sobre a experiência de participação social na França e saber se há algum tipo de espaço em que se discuta (entenda-se: formule e implemente) políticas públicas para a área de cultura no país. E, com isso, refletir sobre as semelhanças e diferenças entre esta e a experiência brasileira. Renata Melo Em primeiro lugar, fale um pouco sobre a cidade onde mora, o cargo que exerce e qual período de exercício do cargo e descreva as atividades que exerce em função do cargo, bem como, qual o seu papel na formulação/implementação de políticas públicas para a cidade onde mora. Celso Libânio: Eu sou vereador da cidade de Sainte-Geneviève-de-Bois e de mais 21 cidades em volta, que antes de janeiro desse ano eram 10 cidades e se chamava Communauté D’ Agglomération du Val D'Orge e agora passou a se chamar Agglomeration Coeur D’Essonne, por uma decisão do Ministério (Reforma do Território). A minha competência é justamente a área cultural. A minha cidade participa com 10 vereadores nesta aglomeração de 21 cidades, porque é a cidade mais importante. Eu sou o vereador que representa a parte cultural, quer dizer, o enviado pela minha
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cidade para tratar sobre os assuntos relativos à cultura. A minha cidade é quarta cidade mais importante do departamento Essonne, nº 91 na França, com 35.000 habitantes, o que parece pouco, mas é muito para a França, e eu sou o conselheiro há 07 anos. Fui eleito pela primeira vez em 2008 para um mandato de 06 anos e fui agora reeleito (há um ano) para a pasta cultural. A minha atribuição basicamente é, na cidade, uma espécie de Conseiller Municipale e minha delegação é o Conservatório. Nós temos um conservatório importante aqui com 900 alunos e 42 professores, então eu represento os interesses da cidade junto ao conservatório, pois como o conservatório é subvencionado pela cidade, qualquer decisão administrativa tomada pelo conservatório necessita da aprovação da municipalidade. Então, nesse momento, o conservatório faz apelo a mim no sentido de que eu aprove ou que eu tenha conhecimento do que acontece lá e assine embaixo. E esse é apenas um dos locais culturais da cidade, pois ela tem vários outros centros culturais. A cidade é o centro da Agglomeration du Val D'Orge, que foi criada em 2001, começou com 05 cidades e, depois, aglomerou 10 cidades. Então eu fui eleito em 2008, com mais 10 colegas, e minhas atribuições eram duas na época, a cultura e o tratamento de lixo. Nós éramos obrigados a participar de várias comissões. Em 2014, fui reeleito para um segundo mandato de 06 anos. Essa aglomeração cresceu tanto em importância como politicamente e com a decisão do ministério francês, a famosa “Reforma do Território”, nós fomos obrigados a nos fundir com outra aglomeração e fundimos então com Communauté de Communes de l'Arpajonnais e viramos Agglomeration Coeur D’Essonne. O que isso quer dizer? Qual o objetivo disso? É a “mutualização” de benefícios para serem aplicados no interesse comum.
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Renata Melo : E todas essas mudanças se deram a partir de reivindicação da população? Celso Libânio: Vou explicar como é formado administrativamente “o negócio”. Essas 10 cidades que agora se tornaram 21, cada prefeito é eleito vice-presidente da aglomeração, a aglomeração tem 01 presidente que é o nosso prefeito aqui (da cidade central) e todos os prefeitos das cidades que compreendem a aglomeração são considerados vice-presidentes e participam do bureau como notários. Eu sou membro conselheiro, nós somos 61 conselheiros. E as decisões e projetos são discutidos e debatidos nas comissões (eu sou o membro da comissão de cultura... mas existem muitas outras comissões). A presidente da minha comissão, que é, por sua vez, vice-presidente da aglomeração, leva ao presidente e a todos os demais colegas vice-presidentes o que foi debatido na comissão e qual foi a decisão tomada pela comissão. E aí o projeto é aprovado ou não. Em termos culturais a gente tem 03 teatros (antes da reforma territorial), 04 salas de filmes, um centro de arte contemporânea e 12 médiathèques (são bibliotecas informatizadas que contém, além de livros, CDs, áudios e etc.).Tudo isso aí é dinheiro que a prefeitura subvenciona. Renata Melo: Em sua opinião, há alguma experiência em termos de participação social no ambiente institucional na França? Se há, qual a sua dinâmica de funcionamento, composição, forma de elaboração da pauta e como se dão as deliberações nestes ambientes de gestão compartilhada? Há alguma que seja destinada à área da cultura? Celso Libânio: Bom, eu acho o seguinte: aqui na França a força das instituições é muito grande, e a participação social na cultura é mínima aqui, porque as administrações são pesadas, os projetos são realizados
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com um ou dois anos de antecedência, não é de uma hora pra outra. Você não faz uma consulta ao público para saber o que eles querem ver, por exemplo, não há isso. O que há (e isso é eventual) é uma espécie de sondagem. Existem as MGC (Maison de Genèse) de cada cidade que fazem sondagens sobre as necessidades de políticas públicas para as determinadas áreas. Por exemplo, eles fazem uma sondagem e percebem que existe um grupo forte de “grafiteurs” e que há ali uma demanda de investimento para aquele segmento, aí o vice-prefeito da cultura fica sabendo disso e avisa ao conselho comunitário da necessidade de ter um espaço reservado a eles. O conselho, por sua vez, passa a pensar em projetos para contemplar a demanda. Entendo que aqui as coisas já existem há muito tempo, e que são diferentes do caso do Brasil que não tem nada e você precisa lutar pra ter alguma coisa. Renata Melo: Então você considera que a França chegou a um patamar em que as políticas públicas são extremamente desenvolvidas e que tudo funciona sem a necessidade de participação popular? Ou existe algum espaço que se discuta a elaboração de políticas? Celso Libânio: Isso, as coisas aqui já funcionam e acontece o inverso do Brasil, é necessário muitas vezes ir atrás, estimular essa participação. Não existe nenhum espaço para se discutir a elaboração de política pública. A nossa maior dificuldade é fazer com que os jovens participem.Os jovens não estão nem um pouco interessados no que se faz. É o grande problema. Existe incentivo, existe dinheiro, mas não existe o interesse por parte da juventude. A questão é que os jovens estão desmotivados com o que se passa na política atual. Eu fui presidente de “bureau de voto” várias vezes, eu não vejo os jovens votarem. Em torno de 15% apenas dos jovens votam, pois não é obrigatório. Então quando tem um jovem que vai lá ao meu “bureau de voto” é uma festa. Quer dizer, é exatamente ao contrário do Brasil que a faixa etária é mais jovem, falta dinheiro, falta equipamento, a juven-
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tude carece de opções, mas luta pra ter opções e muitas vezes são expulsos a pauladas (risos). Aqui não, a gente está querendo é estimular a participação dos jovens em virtude de que aqui na França a faixa etária é bem mais elevada e há um desinteresse por parte dos jovens. Mas a gente faz a programação pensando em agradá-los e eles vêm ou não vêm. Considero sim que a França tem as políticas públicas extremamente desenvolvidas, não quero dizer que são as melhores, mas funcionam sem a necessidade de participação popular. Vou dar um exemplo concreto: Nós construímos um centro náutico há 07 anos. Investimos 8 milhões de euros. Com 03 piscinas, sauna, tobogã... uma coisa fantástica. E a piscina antiga ficou desativada. O espaço era grande e a ideia foi transformar em algo de utilidade para os jovens. Então fomos investigar na França o que existia de espaços culturais pra jovens. Tivemos então várias propostas de arquitetos para a recuperação do espaço a ser dedicado às diversas manifestações culturais. Fomos então aos lugares públicos da cidade levar o projeto pra atrair jovens e diversos representantes e membros associativos das diversas áreas (pintores, recuperadores de bicicletas usadas, circo) pra que viessem opinar sobre o projeto. E eles vieram. Reuniram-se na própria piscina pra opinarem sobre esse projeto... sobre o projeto de ideias... mas isso tudo pra te dizer que nós precisamos ir atrás deles, nós é que temos que estimular esta participação. As pessoas não estão precisando de grana, nem de nada... elas estão precisando de cultura, de lugar pra se manifestar. Eu posso citar outro exemplo que considero que houve uma consulta popular que são os referendos. Nós decidimos fazer um referendo aqui quando houve a decisão do ministro sobre a reforma territorial e deu ao entender que nossa aglomeração seria unida à aglomeração de Ivry que é a maior aqui e nós ficamos desgostosos com essa possível fusão, fizemos um referendo público, com carta “T” (que eles chamam) que é uma carta que já vem selada e você vota e devolve pelo correio. Então, nesse referendo, 20.000 e tantas pessoas responderam, num universo de 35.000 é muita gente. E resultou que não houve fusão, pois o Estado considerou que a aglomeração não ficaria satisfeita com a decisão. Daí que acabamos nos fundindo com outra aglomeração, mais
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parecida com o nosso tipo. Esse é um exemplo político de consulta popular. Outro exemplo de consulta é esse: conseguimos recuperar uma base aérea militar de 300 hectares que estava desativada. Essa base ficava entre duas cidades que fazem parte da nossa aglomeração. Então fizemos uma consulta, um trabalho de participação com todas as cidades da aglomeração no sentido de recuperar a base e criar projetos e entramos com um pedido no Estado para a recuperação da base. E depois foram apresentados inúmeros projetos ecológicos, um teleférico para locomoção interna na base e criação de zonas industriais. A população não participou, mas foi informada desde o início. Ela não vota, mas acompanha todo o andamento dos projetos. Um terceiro exemplo (e esse bem importante!) foi decisão da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, que instituiu, acerca de 02 anos, a consulta popular sobre projetos pela internet. Você não precisa ser parisiense. A consulta, chamada “Lettre de Paris” envolve todos os residentes em Paris e aglomerações do entorno, bem como estrangeiros e imigrantes residentes. E você participa pela internet. Ela reservou uma parte (400 milhões de euros) do orçamento de Paris (que gira em torno de 1 bilhão de euros) para projetos por consulta popular. Renata Melo: E, a partir de todos esses exemplos, como você dimensionaria a efetividade da participação social nos ambientes de gestão pública na França? Qual a sua impressão sobre esta participação? Ela consegue interferir nas políticas públicas de cultura da cidade? Celso: Olha, já conversei com o presidente da aglomeração sobre a necessidade de maior participação popular nos projetos, mas chegamos à conclusão que é muito trabalho e se perde muito tempo e que é quase impraticável porque já pra ter condições de votar os nossos projetos no formato em que está são exigidas dezenas de reuniões. Temos reuniões sempre e tudo é muito discutido. E há
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transparência também, se a sociedade civil quiser ter acesso basta entrar no site da aglomeração e vai encontrar todas as atas das reuniões e discussões. E, somente em situação específica, há movimentação para consulta pública nesses espaços. Por exemplo, o caso da piscina. Mas não é corriqueiro. Acreditamos sim que a participação social seria muito importante, mas é inviável, pois o peso administrativo das instituições já é muito grande. O conjunto de normas técnicas que os projetos têm que seguir é tão grande, que para que a sociedade pudesse opinar, ela teria que ter ciência dessas normas e ela não tem então isso inviabiliza muitas dessas opiniões da sociedade civil. Quanto às associações, elas também podem sugerir, mas as decisões são sempre do poder público. Acredito que é um formato utópico num país como a França, pesado em termos de administração. Acredito que seja mais fácil no Brasil onde as políticas ainda estão se consolidando, onde existe uma vontade da população muito grande de realização, existe entusiasmo. Aqui, além de serem questões bem mais pontuais, não tem tantos jovens, e não se vê esse entusiasmo desde a revolução de maio de 1968, quando os jovens ainda tinham força para sair nas ruas e exigir mudanças no país. Hoje em dia existem coisas pontuais que os franceses lutam. É o caso do projeto do “Aéroport du Grand Ouest Project” em Notre-Dame-des-Landes, perto da Normandie. Tem um grupo de pessoas, agricultores, aliados aos ecologistas que não querem este aeroporto, pois entendem que vai impactar na fauna e na flora da região e para isso é necessária uma decisão ministerial. Então eles estão lá acampados impedindo que o projeto vá em frente. Essa é a força dos jovens, eles podem ir de encontro a um projeto, lutar e resistir pra que não seja realizado caso eles entendem que isso pode prejudicar determinada causa. Mas batalhar por um projeto, não vejo necessidade, pois, se o projeto é desejado e não fere as normas, “ça va!” Para mais informações, acesse o site : http://www.agglo-valdorge.fr/ .
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Fonte: Shutterstock
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SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇAO: Tailze Melo
Doutora em Estudos Literários pela UFMG. Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas. Coordenadora da pós-graduação lato sensu Processos Criativos em Palav ra e Imagem na PUC-Minas. Professora do Centro Universitário Estácio de Belo Horizonte. Pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural, em que atua também como editora do Boletim.
Camila Alvarenga
Mestranda em Comunicação Social na PUC-Minas, bacharel em Comunicação Social pela mesma instituição e em Gestão de Organizações do Terceiro Setor pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Pesquisadora do grupo de pesquisa Observatório da Diversidade Cultural.
Pedro Vasconcelos
Jornalista. Mestrando pela PPGCOM PUC Minas. Pesquisador do grupo de pesquisa Observatório da Diversidade Cultural.
Jocastra Holanda
Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará, graduada em Comunicação Social pela Faculdade Evolutivo e integrante do Observatório da Diversidade Cultural.
Renata Melo
Pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural. Doutoranda em Cultura e Sociedade na UFBA.
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SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL: O O Observatório da Diversidade Cultural – ODC – está configurado em duas frentes complementares e dialógicas. A primeira diz respeito a sua atuação como organização não-governamental que desenvolve programas de ação colaborativa entre gestores culturais, artistas, arte-educadores, agentes culturais e pesquisadores, por meio do apoio dos Fundos Municipal de Cultura de BH e Estadual de Cultura de MG. A segunda é constituída por um grupo de pesquisa formado por uma rede de pesquisadores que desenvolve seus estudos em várias IES, a saber: PUC Minas, UEMG, UFBA, UFRB e USP, investigando a temática da diversidade cultural em diferentes linhas de pesquisa. O objetivo, tanto do grupo de pesquisa, quanto da ONG, é produzir informação e conhecimento, gerar experiências e experimentações, atuando sobre os desafios da proteção e promoção da diversidade cultural. O ODC busca, assim, incentivar e realizar pesquisas acadêmicas, construir competências pedagógicas, culturais e gerenciais; além de proporcionar experiências de mediação no campo da Diversidade Cultural – entendida como elemento estruturante de identidades coletivas abertas ao diálogo e respeito mútuos. Pesquisa Desenvolv imento, orientação e participação em pesquisas e mapeamentos sobre a Diversidade Cultural e aspectos da gestão cultural. Formação Desenvolv imento do programa de trabalho “Pensar e Agir com a Cultura”, que forma e atualiza gestores culturais com especial ênfase na Diversidade Cultural. Desde 2003 são realizados seminários, oficinas e curso de especialização com o objetivo de capacitar os agentes que atuam em circuitos formais e informais da cultura, educação, comunicação e arte-educação para o trabalho efetivo, criativo e transformador com a cultura em sua diversidade. Informação Produção e disponibilização de informações focadas em políticas, programas e projetos culturais, por meio de publicações e da atualização semanal do portal do ODC e da Rede da Diversidade Cultural – uma ação coletiva e colaborativa entre os participantes dos processos formativos nas áreas da Gestão e da Diversidade Cultural. Consultoria Prestação de consultoria para instituições públicas, empresas e organizações não-governamentais no que se refere às áreas da cultura, da diversidade e da gestão cultural.com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes.
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SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL: O Boletim do Observatório da Diversidade Cultural é uma publicação mensal em que pesquisadores envolv idos com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes. Para colaborar com o Boletim, env ie textos para: tailzemelo@yahoo.com.br
Expediente: Concepção e coordenação geral: José Márcio Barros Conselho Editorial: Giselle Dupin – MINC – http:// lattes.cnpq.br/ 2675191520238904 Giselle Lucena – UFAC – http:// lattes.cnpq.br/ 8232063923324175 Humberto Cunha – UNIFOR – http:// lattes.cnpq.br/ 8382182774417592 Isaura Botelho – SESC SP – http:// lattes.cnpq.br/ 3961867015677701 Luis A. Albornoz – Universidad Carlos III de Madrid – http:// portal.uc3m.es/ portal/ page/ portal/ grupos_ investigacion/ tecmerin/ tecmerin_ investigadores/Albornoz_ Luis Núbia Braga – UEMG – http:// lattes.cnpq.br/ 6021098997825091 Paulo Miguez – UFBA – http:// lattes.cnpq.br/ 3768235310676630 Coordenação editorial: Camila Alvarenga e Tailze Melo Projeto gráfico: Dânia Lima Rev isão editorial e rev isão de texto: Tailze Melo Contato: boletim@observatoriodadiversidade.org.br w w w.observatoriodadiversidadecultural.com.br
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