Boletim Observatório da Diversidade Cultural - AGOSTO 2016

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BOLETIM

Culturas Populares, Tradicionais e Identitรกrias

V60, N.08.2016 - Agosto 2016


PATROCÍNIO 814/2013 FPC: Manutenção das atividades Observatório da diversidade Cultural

Realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte

REALIZAÇÃO Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural

PARCEIROS Programa de Pós-Graduação em Comunicação

Programa de Pós-Graduação em Artes


BOLETIM DO OBSERVATร RIO DA DIVERSIDADE CULTURAL Culturas Populares, Tradicionais e Identitรกrias



SUMÁRIO Giordanna Santos

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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS CULTURAS POPULARES: DILEMAS E DESAFIOS

Jaqueline de Oliveira e Silva

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CULTURA POPULAR, CIRCULAÇÃO E AUTENTICIDADE: QUESTÕES SOBRE OS GRUPOS PERCUSSIVOS DE MARACATU DE BAQUE VIRADO

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AS MULHERES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CHACRINHA DOS PRETOS, BELO VALE - MG

Daniela Rodrigues

Jocastra Holanda

Tailze Melo

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MESTRES DA CULTURA: PARA ALÉM DA TITULAÇÃO

MOVIMENTO ARMORIAL: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA OBRA DE ARIANO SUASSUNA NA CENA DAS CULTURAS POPULARES BRASILEIRAS

SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL



POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS CULTURAS POPULARES: DILEMAS E DESAFIOS Giordanna Santos

Apesar de em décadas anteriores a área da cultura popular ter tido importantes ganhos – tais como a criação do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), ações da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e do Movimento Folclorista, entre outros avanços – foi principalmente a partir de 2003 que vivenciamos no Brasil uma mudança na gestão pública para esse setor, quando assumiu a presidência da República o ex-presidente Luiz Inácio da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). Uma das principais marcas desse período foi a participação social, por meio de conferências, rodas de conversas, consultas públicas, etc. Na cultura, as diretrizes se basearam no documento “A Imaginação a serviço do Brasil” (PT, 2002). Tal projeto de campanha trazia como princípios norteadores a “gestão democrática”, “cultura como política de estado”, “cultura como direito social básico”, dentre outros. Entre as políticas propostas está a criação de um “Sistema Nacional de Política Cultural”, que durante sua implantação na gestão Lula foi chamado de Sistema Nacional de Cultura (SNC). Desde o início, ainda no projeto de campanha, a concepção desse sistema esteve ancorada no federalismo na cultura, com base nos princípios constitucionais, principalmente o de soberania popular. Logo, um dos elementos essenciais para a efetividade desse modelo é a participação social. Dessa maneira, o SNC propõe instâncias participativas, seja de escuta social esporádica, como conferências; ou permanentes, que é o caso dos conselhos de políticas. Para subsidiá-los, podem contar com comissões, comitês, grupos de trabalho e colegiados setoriais. Estes espaços são constituídos

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por atores da sociedade civil e poder público, que atuam de modo consultivo, deliberativo, normativo, executivo ou fiscalizatório, a depender do que rege a norma. É nesse contexto que podemos observar alguns avanços significativos para o setor das culturas populares, tais como o Colegiado Setorial de Culturas Populares, que é um ente da estrutura do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Este último é dividido por setoriais de cada área temática da cultura. A composição de ambos é paritária e com assentos destinados a sociedade civil – estes representantes eleitos por seus pares em espaços participativos – e poder público – escolhidos pelo Presidente da República. Esse Colegiado iniciou suas atividades em 2010, durante a Pré-Conferência de Culturas Populares, na qual se elegeram representantes da sociedade civil para a formação do primeiro mandato do órgão. Além desse espaço participativo, podemos citar também as conferências setoriais, encontros, rodas de conversa que ocorreram em diversos estados, sob responsabilidade do MinC e com apoio de outros entes federados. Destacamos também a construção do Plano Setorial de Culturas Populares, editais de Prêmios para área e fomento aos Pontos de Culturas voltados paras os diversos segmentos do setor das culturas populares e tradicionais. É importante ainda destacar que tais ações capitaneadas pelas Gestões Gil/Juca dão a devida notoriedade para uma área que em décadas passadas já vinha se mobilizando, sobretudo, a partir das ações do Movimento Folclorista, bem como da atuação de órgãos como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN) e organismos internacionais como a UNESCO. Apesar de consideráveis avanços, há vários desafios e também alguns dilemas. Um deles é, por exemplo, de ordem conceitual, sobretudo, com uma distinção entre folclore e cultura popular. Afinal, o que são culturas populares?

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Consideram-se as culturas populares brasileiras como um campo que compreende uma ampla diversidade de manifestações, saberes e práticas culturais, sendo suas origens iniciadas com a colonização europeia, que gerou processos culturais de hibridizações entre etnias portuguesas, indígenas e africanas, além de influências francesa, holandesa e outras (Bezerra, 2014). Para além dos embates conceituais, é importante que haja um conceito definido para se trabalhar políticas públicas para área. Afinal, como planejar e executar políticas das quais não se há delimitação de objetos e públicos atendidos. Este é um dos papeis de definir o que é cultura popular. Diz-se que houve um avanço a partir dos anos 2000, pois até mesmo a noção ampliada de cultura (por um viés antropológico) possibilitou que os programas, os projetos e as ações do MinC pudessem alcançar um público mais diverso, contemplando assim a diversidade cultural brasileira. Como apontamos no início deste texto, as culturas populares passam a se constituir enquanto campo para desenvolvimento de política pública principalmente a partir de 2003, com ações importantes como os I e II Seminário Nacional de Culturas Populares e Tradicionais. Esses seminários surgem de uma demanda popular (dos movimentos dos Fóruns de Culturas Populares de São Paulo e Rio de Janeiro) e a partir deles se inicia a discussão da criação de uma câmara ou colegiado setorial para área, vinculado ao então recém-reinstalado Conselho Nacional de Política Cultural (2005). Este órgão é parte integrante do Sistema Nacional de Cultura (SNC). O Colegiado Setorial de Culturas Populares pode ser considerado com uma experiência de valorização das culturas populares e, também, um marco para as políticas públicas do segmento, por instituir um canal de participação entre atores sociais de uma área tão fragmentada e com histórico de baixa visibilidade e relevância nas gestões anteriores do Ministério da Cultura.

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Desafios para as políticas públicas para as culturas populares Ao mesmo tempo em que o Colegiado é uma forma pioneira e muito importante de políticas culturais para as culturas populares, é preciso reconhecer as fragilidades de órgão. Um dos pontos é, por exemplo, a questão da descontinuidade no MinC. Este é um dos maiores desafios para as políticas culturais, em quaisquer áreas. Este problema impacta, por exemplo, na importância que se dá ou não para essa instância consultiva. No que diz respeito às culturas populares, outro grande problema é que o setor é fragmentado, pois as culturas populares agregam uma diversidade de atores sociais de diferentes manifestações e saberes populares, assim como outros sujeitos que compõem as várias dimensões da cadeia produtiva do setor, mas que não há uma organização e uma articulação consolidada no país. Diferente do que possa ocorrer com outras setoriais, no caso das culturas populares ainda não há uma conformação do campo; afinal, diversos são os grupos e agentes culturais incluídos como povos e comunidades tradicionais (povos indígenas, ciganos, grupos e mestres de cultura popular, etc.). Esse contexto de não conformação ocorre mesmo com as várias tentativas de institucionalizar e consolidar as culturas populares enquanto saber acadêmico, sendo estas ocorridas a partir da década de 1940 e encabeçadas pelo movimento folclórico. Sendo assim, ainda há várias limitações e obstáculos a serem superados. No entanto, é de se destacar que, a partir de 2003, várias ações do Ministério da Cultura buscam ultrapassar esses limites, sobretudo por conta da mobilização dos próprios agentes culturais e movimentos organizados da sociedade civil. Dentre essas ações, os seminários de culturas populares foram de extrema importância para que se inicie não somente o próprio Colegiado, mas também uma concepção de política pública setorial. O próprio Colegiado é uma maneira de superar as limitações e as fragilidades que a área, tradicionalmente, sempre teve.

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Identifica-se que essas instâncias participativas ainda têm muito que avançar, bem como observamos que, por vezes, a atuação política dos conselheiros pode ser vista como bastante instrumental, ou seja, competências restritas e ligadas (muitas vezes) aos interesses mais próximos e imediatos da organização a que se vincula. Assim como em boa parte de outros setores culturais, uma das grandes e principais demandas é a formação. No caso das culturas populares, essa realidade também não muda. O que difere é a especificidade da conformação da área, ou melhor, a ausência dela. A linguagem e a abordagem para lidar com o público das culturas populares é complexa. Há desde mestres de saber popular, que possuem mais acesso às informações e à Internet, como aqueles que mal sabem escrever. Somam-se a essas realidades, outros problemas; tais como: desconhecimento das legislações para área de cultura, burocratização dos processos administrativos, dentre outros. Dessa maneira, é um desafio conseguir mobilizar os mestres e as mestras de cultura popular para poderem ter acesso aos bens e equipamentos culturais, para poderem compreender as formas de fomento à cultural, para fazerem a circulação e a difusão de seus conhecimentos e trabalhos culturais. REFERÊNCIAS: BEZERRA, Jocastra. Quando o popular encontra a política cultural: a discursividade da cultura popular nos pontos de cultura “Fortaleza dos Maracatus”, “Cortejos Culturais do Ancuri” e “Boi Ceará”. 2014. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade) Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, Ceará, 06 fev. 2014.

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Parintins, Amazonas, Brasil Fonte: Shutterstock

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CULTURA POPULAR, CIRCULAÇÃO E AUTENTICIDADE: QUESTÕES SOBRE OS GRUPOS PERCUSSIVOS DE MARACATU DE BAQUE VIRADO Jaqueline de Oliveira e Silva

Todos os domingos nas ruas do Bairro do Recife e nas ladeiras da cidade de Olinda, estado de Pernambuco, pode se ouvir o som das alfaias, agbês, gonguês, caixas e mineiros – os instrumentos que compõem a batucada do Maracatu de Baque Virado, expressão cultural múltipla que envolve sentidos religiosos, comunitários e sociais. A intensidade deste som aumenta progressivamente com a aproximação do carnaval, de modo que, nos meses de janeiro e fevereiro, o “baque virado” compõe a paisagem sonora das históricas ruas destas cidades pernambucanas. Aos olhos, e ouvidos, de um leigo, a referência é direta: são os maracatus. Ícones da identidade e da cultura popular pernambucana.

Rainha Elda à frente do Maracatu Nação Porto Rico. Foto: Cristiana Dias. 2015. Fonte: http://www.cultura.pe.gov.br/canal/culturapopular/recife-celebra-culturas-de-matrizes-africanas-na-noite-do-dende-2015

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Porém, ao analisar com mais atenção, em especial para alguém que já tenha visto uma Nação de Maracatu ali mesmo em Recife, ao vivo no carnaval ou por vídeo, as diferenças vão sendo ressaltadas. Vemos que a preponderante batucada está ali desacompanhada de reis, rainhas ou pajens. Os grupos são compostos por jovens, predominantemente brancos, aparentando, pela sua estética e comportamento, serem oriundos de uma classe média. Às vezes, vemos alguma dança, mas esta é coreografada e bem marcada. As dançarinas, predominantemente mulheres, no lugar das grandes saias de armar e dos vestidos brilhantes, ostentam saias longas ou mesmo curtas, acima do joelho, brancas ou de “chita”. Não vemos símbolos religiosos. Se for um momento de ensaio, turistas e curiosos podem ser convidados a compor o coletivo participando de uma “oficina”, ocasionalmente mediante o pagamento de uma pequena taxa. Estes coletivos chamados de grupos percussivos, grupos de maracatu de baque virado ou apenas de grupos maracatus, se diferenciam substancialmente das nações de maracatu de baque virado por uma série de fatores. No momento, podemos salientar que uma das principais diferenças é territorial: as nações realizam seus ensaios em suas sedes ou nas ruas próximas das sedes que estão predominantemente nos bairros periféricos de Recife e região metropolitana. Estas, ocupam os principais pontos turísticos da cidade – as ruas do Bairro do Recife, a Praça do Carmo e as ladeiras do centro de Olinda e outros espaços centrais, nos dias de carnaval ou em eventos como a Terça Negra, no Pátio de São Pedro, ou o Pátio do Terço, na noite dos Tambores Silenciosos, no centro do Recife. Já os grupos percussivos têm nos pontos turísticos da cidade seu principal espaço para oficinas, ensaios e apresentações, durante todo o ano. A expressiva existência de grupos tão distintos que executam a mesma linguagem musical, o baque virado, é mote para uma série de conflitos e tensões, além de motivo para recorrentes e acalorados debates que envolvem moradores locais, comerciantes, poder público, artistas e turistas, nordesti-

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nos ou não1. O principal argumento a ser mobilizado nestas discussões gira em torno da noção de autenticidade, como detalharei agora. Logo quando cheguei em Olinda para cursar o mestrado em Antropologia, no ano de 2012, disse para uma moradora, natural da cidade de São Paulo que vivia em Pernambuco a mais de dez anos: “A Praça do Carmo [em Olinda] fica cheia de maracatu tocando no domingo! É lindo!”. E ela me respondeu: “Não, aquilo não é maracatu. Aquilo ali é de mentira, tá mais pra maracujá!” se referindo aos grupos percussivos. Outro amigo, natural da cidade, me disse noutra ocasião: “Aquilo ali que fica batucando no Recife é maracatu pra turista ver! maracatu de gringo, de playboy!”. Ainda, um mestre de maracatu disse numa entrevista para um site de notícias: “É um absurdo estes grupos concorrerem com a gente nos editais [para tocar nos palcos, financiados pelo governo durante o carnaval]. Eles tem tudo, tem engenheiro, tem advogado. E a gente não tem nada e tem que comprovar currículo, foto, cachê. Mas nós é que fazemos o carnaval”. Noutra direção, ouvi do presidente do maracatu Nação Aurora Africana, com sede na periferia de Jaboatão dos Guararapes: “Eu não condeno os grupos percussivos! Se não fosse por eles, a polícia estava perseguindo a gente até hoje”. Outro importante mestre, da Nação Porto Rico, disse com orgulho: “O Porto Rico tem vários filhos pelo Brasil e pelo mundo. Meu sonho é que o maracatu um dia 1 Ressaltamos, no Brasil, a existência (e persistência) de uma importante dicotomia envolvendo o imaginário de “nordeste” em oposição ao “sudeste”. A ideia de “nordestino” ou de “cultura nordestina” advém de uma concepção preconceituosa que trata de forma indiferenciada os nove estados que compõe a região, como a região mais pobre do país e culturalmente menos desenvolvida, em oposição ao sudeste, região que historicamente concentrou os investimentos financeiros e estruturais do país, agravando a já existente desigualdade de rendas e oportunidades. Para mais informações ver: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009. 340 p

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seja tão respeitado quanto o frevo2, que é de todos, é patrimônio da humanidade”. Motivada por estas questões, comecei a aguçar meu olhar para os conflitos e tensões envolvendo as nações de maracatu e os grupos percussivos, atentando, em especial, para os discursos mobilizados pelos diversos autores para atestar a legitimidade ou não da existência dos grupos percussivos, o que culminou no projeto de doutoramento em curso a respeito da circulação do maracatu de baque virado no interior do Brasil e na Europa. Num processo de circulação que acontece por caminhos muito mais complexos que o da circulação de migrantes pernambucanos, encontramos no Brasil cerca de cento e dezessete (117) coletivos autodenominados grupos percussivos ou grupos de maracatu. Na Europa, localizamos quinze (15)3, que se reúnem a cada dois anos desde 2006 no Encontro Europeu de Maracatus. Algumas questões podem ser levantadas inicialmente, a partir da existência dos grupos percussivos, mas ressalto que as respostas a algumas delas seriam possíveis apenas a partir de um exercício etnográfico mais intenso. A despeito disso, as transcrevo para orientar e sinalizar os possíveis caminhos de uma pesquisa a ser desenvolvida neste sentido: sendo o maracatu de baque virado repleto de significados simbólicos e de uma organização extremamente ritualizada em seu contexto de origem, o campo de estudos do ritual seria o mais profícuo para ressaltar distanciamentos e aproximações entre as nações e os grupos percussivos? Em outra direção, sendo uma manifestação descontextualizada, os grupos de maracatu desterritorializados podem ser considerados “vazios” 2 O termo “frevo” designa a dança e a música, de compasso binário e andamento rápido, surgida no final do século XIX. Ritmo de carnaval, extremamente popular em Recife e Olinda, foi inscrito na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO em 2011. Mais informações em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/62. Acesso em 24 de janeiro de 2016. 3 Cabe ressaltar que a contagem destes grupos é bastante complexa especialmente por dois fatores: a quantidade de grupos percussivos tende a aumenta sensivelmente na primeira e no verão (na Europa) e próximo ao carnaval (no Brasil); os grupos podem mudar de linguagem por um ou outro período (ou seja, de maracatu de baque virado passarem a tocar coco ou samba) sem necessariamente atualizarem suas informações nos sites e grupos pessoais.

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de significados simbólicos, e portanto, sua análise deve ressaltar a forma, a vivência e experiência efêmera, situações que o diálogo com os estudos da performance se adequaria melhor? E ainda, os mitos que dão significado ao maracatu de baque virado no contexto das nações estariam presentes, e de que forma, nos grupos percussivos? Como eles poderiam ser atualizados e vivenciados, num contexto aparentemente tão espetacularizado e objetificado? Os grupos percussivos operariam uma ressemantização dos sentidos do maracatu de baque virado? Parte significativa das referências bibliográficas estão empenhadas em compreender e definir o maracatu de baque virado – os processos históricos de sua constituição, como funcionam, seus símbolos, mitos e significados, os grupos sociais envolvidos e a singularidade de suas performances exclusivamente a partir do seu locus “autêntico”, as nações. No entanto, acreditamos que no momento em que o maracatu torna-se, no discurso dos intelectuais, algo que pertencente à “cultura”, à “identidade” e posteriormente, ao “patrimônio”, são somados a sua existência novos significados, ao qual é acrescentada uma nova vida, “uma nova carreira, novos públicos, novas funções, novas potencialidades” (LEAL, p. 475, 2009). A autenticidade precisa então ser compreendida como um “discurso”, que por vezes não acompanha todas as transformações sofridas por um determinado bem. REFERÊNCIAS: LEAL, João. Da arte popular às culturas populares híbridas. Etnográfica. Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, v. 13, n. 2, p. 472-476, 2009.

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AS MULHERES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CHACRINHA DOS PRETOS, BELO VALE - MG Daniela Rodrigues

Este texto é um relato de visitação à comunidade quilombola de Chacrinha dos Pretos, localizada no município de Belo Vale, em Minas Gerais, e também é um momento de reflexão sobre as formações e manutenções das tradições, possível através deste exercício de escrita. Pensar em comunidades tradicionais parece ser, a princípio, um questionamento das construções, (re)invenções ou até mesmo rememorações das tradições e significa pensar a longevidade destas ao longo das décadas e séculos de história. Não se pretende, aqui, encontrar respostas à essas questões, mas sim levantá-las. A descoberta do ouro, no final dos seiscentos, é fato fundante de uma importante fase da história colonial, pois representa o deslocamento populacional da costa para o interior do Brasil e uma alteração do eixo econômico, político e administrativo da colônia. A região mineradora se tornou, ao longo dos setecentos, centro econômico e trouxe consigo uma população diversa de brancos, índios e negros. As bandeiras e o processo de interiorização desbravaram as minas gerais, inclusive a região onde se localiza o município de Belo Vale. Nesse período, os primeiros arraiais, capelas e igrejas foram edificados. Trago esse breve comentário histórico, pois é fundamental para o entendimento das comunidades quilombolas de Minas Gerais, dentre elas a de Chacrinha dos Pretos. Foi no período aurífero, no deslocamento costa-interior, que a escravidão teve um de seus mais expressivos momentos no Brasil, tanto para o trabalho minerador quanto para o de abastecimento das minas, com a agro-

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pecuária desenvolvida por algumas fazendas da região. Como um desdobramento desta conjuntura, têm-se a formação dos quilombos. Na visita à Chacrinha dos Pretos fui recebida por um grupo de mulheres com suas crianças. Articuladoras da associação comunitária, desenvolvem atividades de valorização da memória de seus antepassados e da formação atual do quilombo. Durante uma tarde de conversas e provas das tradicionais quitandas da Chacrinha, várias memórias foram trazidas à tona. A oralidade que ronda a ruína de pedras, um sítio arqueológico de uma antiga fazenda, de posse do famoso “Barão do Milhão e Meio”, pseudônimo do português José de Paula Peixoto, permeou todo o tempo ali. O barão, segundo os relatos, viveu com uma escrava chamada Amázia, até sua morte, e a deixou este bem. Ela, por sua vez, libertou todos os escravos da fazenda, assim como recebeu outros fugidos de “todo canto”, assumindo protagonismo na história e memória da Chacrinha dos Pretos, como libertadora e acolhedora dos pretos. Por mais que o “Milhão e Meio” seja um personagem importante na comunidade, é a sua esposa negra quem parece ter dado os primeiros passos para a atual formação identitária e feminina de Chacrinha. Não bastando a memória de Amázia, outras mulheres foram citadas recorrentemente na tarde de conversas. A Vó Domingas, já falecida e muito presente no imaginário, aparece como uma das grandes matriarcas. Vó Domingas foi quem ensinou Dona Rita a entrar nas ruínas, um sítio espiritual, de expressiva importância simbólica para o lugar, onde é preciso pedir licença e rezar pelas almas que ali ainda habitam, antes de adentrar. Dona Rita entoou cantos e depois nos contou quem lhe ensinou esse ritual e essa postura de respeito. Falou também sobre a importância de propagar essa lembrança da história e memória da Chacrinha dos Pretos. Elas não podem morrer. O sincretismo religioso apresentado por essa vivência abre porta para discussões sobre as heranças afrodescendentes e

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as marcas da colonização dos negros, tão presentes nas manifestações religiosas dessa região de Minas Gerais, como as guardas de Congado e a Folia de Reis. Mais uma mulher de destaque é a professora Sheila, quem contou sobre as atividades que realiza com seus alunos sobre a formação identitária dos quilombos, assim como a afirmação destas personagens femininas da Chacrinha dos Pretos como fazedoras da história local e da valorização de seus antepassados. O patrimônio imaterial e material, vivo e presente no cotidiano da comunidade, é levado para a sala de aula, possivelmente promovendo uma localização das crianças na História oficial. Tradicionalmente, a História conta a história dos homens, sendo que a história das mulheres tem ganhado lugar desde pouco tempo na historiografia. Chacrinha dos Pretos é uma comunidade de mulheres, mesmo que fundada na macro-história masculina da exploração mineradora dos setecentos. Amázia, Vó Domingas, Dona Rita e Sheila evidenciam isso. A expressiva atuação feminina, assim como a formação matriarcal da comunidade, aguça a curiosidade e a perspectiva contemporânea da história das mulheres, em uma comunidade tradicional tão próxima à capital de Minas Gerais, Belo Horizonte. A visualidade e o empoderamento assumido pelas mulheres de Chacrinha dos Pretos é um paradigma que apresenta uma questão atual – a do lugar feminino na História – já que a maioria dessas mulheres são sujeitadas apenas às histórias tradicionais, contexto em que não possuem protagonismo. Chacrinha dos Pretos questiona a História, reinventa a tradição, valoriza a memória, o patrimônio, a negritude e as mulheres, todas essas discussões de extrema importância na atualidade. Apresenta uma grande riqueza cultural e, através da oralidade, torna possível reviver o passado escravocrata, quilombola e feminino de períodos marcantes da História do Brasil. A afirmação do passado no presente promove deslocamentos dos lugares a serem assumidos pelas mulheres enquanto sujeitos ativos da história.

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A ida até lá provocou uma série de interesses e perguntas sobre a afirmação que se tem de algumas mulheres para a memória local. Interessante que durante essa tarde os homens de Chacrinha permaneceram sem narrar a história que ao longo do tempo foi se tecendo.

Ruínas da Chacrinha dos Pretos, Belo Vale, MG Foto: Lidiane Arantes

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MESTRES DA CULTURA: PARA ALÉM DA TITULAÇÃO

Jocastra Holanda

Conta-nos Manoel de Barros: Um fotógrafo-artista me disse outra vez: Veja que pingo de sol no couro de um lagarto é para nós mais importante do que o sol inteiro no corpo do mar. Falou mais: que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balança nem com barômetro etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós. Assim um passarinho nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que a Cordilheira dos Andes. Que um osso é mais importante para o cachorro do que uma pedra de diamante. E um dente de macaco da era terciária é mais importante para os arqueólogos do que a Torre Eiffel. (veja que só um dente de macaco!) [...]”

O poeta mato-grossense nos inspira a refletir, no poema citado acima, sobre aquilo que, na dimensão individual das experiências de vida, consideramos importante, cuja medida deve observar o encantamento que “a coisa produza em nós”. Também podemos trazer essa reflexão para uma dimensão coletiva e política, sobre aquilo que é possível identificar e selecionar como importante para todos. Especialmente no âmbito da gestão pública da cultura e da proteção e promoção da diversidade cultural, o que selecionar e reconhecer por sua relevância para a nossa memória e identidade cultural? Como garantir sua proteção e continuidade? Esses têm sido alguns dos desafios das políticas de patrimonialização de bens culturais imateriais, como é o caso das “Leis de Patrimônio Vivo”, “Leis de Tesouros Vivos da Cultura”, ou também denominadas “Leis de Mestres”. O lugar da cultura popular e tradicional no âmbito das políticas públicas é sempre alvo de um debate “espinhoso”. As políticas culturais voltadas para a promoção e proteção de saberes da cultu-

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ra tradicional e popular, embora revelem avanços no sentido de reconhecer a importância desses saberes, como é o caso das “Leis de Patrimônio Vivo” existentes em vários estados brasileiros, ainda apresentam limites e lacunas para a garantia da sua transmissão e mesmo a salvaguarda dos mestres, além de levantar questionamentos a respeito dos próprios critérios de seleção e ainda acerca do conceito de cultura popular e tradicional apropriado pela Lei. As Leis de Patrimônio Vivo, que visam reconhecer, valorizar, difundir e garantir a perpetuação de saberes e fazeres tradicionais e populares que se constituem como bens de natureza imaterial, são instrumentos da política pública de cultura em alguns estados do país, como Ceará, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte, e em processo de implantação em outros estados e municípios brasileiros. Em síntese, tais Leis consistem em premiar anualmente pessoas ou grupos que detenham saberes e fazeres de relevância e reconhecimento público das tradições culturais desenvolvidas, assim como detenham as técnicas para a transmissão do conhecimento tradicional e popular e estejam em risco de desaparecimento ou extinção. Assim, o Estado concede uma titulação de Mestre da Cultura e oferece uma bolsa mensal vitalícia aos premiados, no valor de um salário mínimo para mestres e em torno de dois salários mínimos para grupos, que como contrapartida deverão participar dos programas fomentados pelo governo visando o ensino e aprendizagem dos seus saberes e técnicas. A antropóloga Márcia Mansur de Oliveira (2010, p. 20) explica que “a especificidade desse sistema em relação às políticas de registro do patrimônio imaterial é que o bem cultural patrimonializado não é, por exemplo, o gênero musical, a culinária, a pintura, a cerâmica de um determinado grupo sociocultural”. No caso das Leis de Patrimônio Vivo, “a distinção de patrimônio é destinada a pessoa ou grupos de pessoas, tesouros vivos que detém conhecimentos ou uma vida dedicada ao desenvolvimento, criação e recriação de expressões culturais.”

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Conforme aponta a antropóloga Maria Acselrad (2008, p. 3), “a Lei do Patrimônio Vivo surge no rastro de uma série de discussões acerca da salvaguarda do patrimônio imaterial que encontram repercussão no âmbito nacional e internacional.” Como marco histórico no âmbito internacional, a antropóloga cita os instrumentos jurídicos para proteção dos bens culturais instituídos pela Unesco, que tem como marco inicial a publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1945; seguida pela Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972; pela Recomendação sobre a Salvaguardada da Cultura Tradicional e Popular de 1989; e a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, de 2003. Soma-se a essas Convenções, que versam sobre os direitos culturais e o patrimônio cultural, a própria Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade Cultural, de 2006. Márcia Mansur de Oliveira (2010), que realizou pesquisa de mestrado a respeito da Lei do Patrimônio Vivo em Pernambuco, destaca que o conceito de diversidade cultural, tal como definido pela Unesco, é integrante da compreensão e definição acerca dos patrimônios vivos. Segundo a antropóloga, “a ‘diversidade’ é categoria integrante do coletivo dos patrimônios vivos. ‘Diversidade’ de formas de expressão, de estilos e condições de vida e de percepções sobre efeitos dessa política cultural” (OLIVEIRA, 2010, p.13). Para Oliveira (2010, p.19), “a valorização da cultura tradicional e popular em tempos de globalização”, a exemplo da Lei de Patrimônio Vivo, “é uma maneira de garantir tanto a diversidade cultural quanto as identidades locais.” Embora seja inquestionável a relevância das Leis de Patrimônio Vivo para o reconhecimento e valorização dos saberes tradicionais e populares, é importante pontuar seus limites e lacunas para o debate da proteção e promoção desses saberes. Gestores, agentes culturais e pesquisadores levantam questionamentos acerca dos próprios critérios de seleção para a titulação dos mestres, como carência social e precariedade econômica, idade avançada do candidato ou antiguidade do grupo, o que aponta para uma necessária revisão das

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Leis. Conforme questiona Acselrad (2008, p.1), uma interpretação crítica destes critérios permitiria levantar reflexões a respeito da própria concepção de cultura popular e tradicional, “revelando os limites e as possibilidades desta apropriação no espaço da gestão pública da cultura popular”. Além disso, na maioria dos estados que implementaram tais Leis não há programas de ensino e aprendizagem, ações de transmissão ou de valorização da memória com o repasse dos saberes, executados de forma sistemática. Nesse sentido, a ação do Estado tem se restringido mais ao caráter de reparação da Lei, com a concessão da titulação e das bolsas, do que no fortalecimento da difusão dos saberes e fazeres populares e tradicionais. As Leis do Patrimônio Vivo tiveram, no primeiro momento, o mérito de promover o reconhecimento dos mestres e mestras por meio das titulações. Contudo, o grande desafio agora é “colocar em prática projetos que garantam a transmissão dos saberes e fazeres dos Tesouros Vivos” (ANCHIETA, 2014, p. 14). Assim, para além da titulação, faltam ações de garantia de repasse dos saberes. Um passo importante em direção a isso tem sido o título de Notório Saber nas Universidades como abertura para inclusão dos saberes tradicionais no ensino superior. Assim, instituições como a Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade de Brasília, já reconheceram ou anunciaram que irão reconhecer com o título de Notório Saber em Cultura Popular mestres de saberes tradicionais. Em relação à inclusão dos saberes tradicionais e populares no ensino superior, a UnB tem realizado, desde 2010, o inovador “Encontro de Saberes”. O projeto visa incluir em disciplinar livres os saberes e práticas populares através de mestres e mestras em todas as áreas de conhecimento (arte, cosmologia, espiritualidade, meio ambiente, psicologia, saúde, tecnologia), como forma de reconhecimento do valor e transmissão destes saberes. A proposta já foi replicada na Universidad Javeriana de Bogotá, em 2014, e em outras cinco universidades brasileiras: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Esta-

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dual do Ceará (UECE), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). A titulação de Notório Saber, para além do que possa representar em termos simbólicos e de legitimação desses saberes, é um avanço prático no sentido de superar entraves burocráticos por parte de setores educacionais, tanto do ensino superior que poderá remunerar os mestres e mestras como doutores por aulas-espetáculo, seminários, oficinas, entre outras ações de ensino e aprendizado, quanto do ensino fundamental e médio, abrindo espaço para uma maior aproximação dos mestres com as escolas. Outra demanda, igualmente importante, é garantir o fomento à transmissão dos saberes e fazeres dos mestres nos próprios locais e contextos de origem, em suas casas, ateliês e oficinas. Além de ocupar outros espaços, como escolas, universidades, centros culturais, Pontos de Cultura, centros comunitários e festivais, a transmissão de saberes deve acontecer, sobretudo, nas próprias comunidades e no cotidiano de origem dos mestres. Por fim, ressalta-se a relevância e o avanço de tais políticas e legislação no reconhecimento e salvaguarda dos saberes e fazeres dos mestres e mestras da cultura. Todavia, tais instrumentos de titulação e legitimação de saberes devem vir acompanhados de programas e ações para a transmissão e valorização da memória com o repasse dos saberes de forma sistemática. Assim, reafirma-se a necessidade de políticas públicas e ações que não só resguardem e reconheçam este patrimônio, mas que garantam e estimulem o repasse de saberes em ambientes de educação formais e informais, para a preservação e promoção desses importantes bens culturais coletivos.

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REFERÊNCIAS OLIVEIRA, Márcia Mansur de. Vidas dedicadas. A Lei do Registro do Patrimônio Vivo: transmissão, reconhecimento e tradição. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco - CFCH, Antropologia, 2010. Disponível em: <http://repositorio.ufpe.br:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/1106/arquivo826_1.pdf?sequence=1&isAllowed=y> acesso em 29.junho 2016. ACSELRAD, Maria. Registro do Patrimônio Vivo: limites e possibilidades da apropriação do conceito de cultura popular na gestão pública. Anais 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2008. Disponível em: <http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%2013/maria%20acselrad.pdf > acesso em 29.junho 2016. ANCHIETA, José. “Tesouros Vivos e Mestres da Cultura”: uma política pública de preservação da cultura tradicional popular no Ceará. Anais III Seminário Políticas para Diversidade Cultural, 2014. Disponível em: <https://diversidadeculturaldotorg1.files.wordpress.com/2014/07/spdc14_ jose-anchieta-da-cunha.pdf> acesso em 29.junho 2016.

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Mestre do bumba-meu-boi e da cultura popular ĂŠ reverenciado na UnB Foto: EmĂ­lia Silberstein Fonte: Flickr (Secom UnB)

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MOVIMENTO ARMORIAL: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA OBRA DE ARIANO SUASSUNA NA CENA DAS CULTURAS POPULARES BRASILEIRAS Tailze Melo

O Movimento Armorial, fundado nos anos 1970 por um grupo de artistas, foi a base da produção artística do genial escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) que também se destacou na produção imagética com suas fabulosas Iluminogravuras e xilogravuras. Instituiu-se oficialmente em Recife no dia 18 de outubro de 1970 no concerto da Orquestra Armorial de Câmera, intitulada Três séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial, acompanhada por uma exposição de artistas plásticos filiados ao movimento. Esses eventos foram patrocinados pela Universidade Federal de Pernambuco. Lembramos que a palavra armorial significa o conjunto de brasões, bandeiras e insígnias de um povo, já apontando para uma formulação estética na qual as referências às obras de artistas populares são tomadas por escritores, dramaturgos, músicos, artistas plásticos, teatrólogos, ceramistas e bailarinos como instrumentos de recriação de outras obras. No caso do processo criativo de Ariano Suassuna fazia parte um tratamento reciclante da cultura oral e popular nordestina – o folheto de cordel, a gravura, a cantoria, os espetáculos de marionetes, as danças populares – tomadas como matriz de uma nova organização estética que tinha como preceito a busca da poética popular como base de criação, relacionando assim a produção popular e a erudita. Idellete Muzart, em texto dos Cadernos de literatura brasileira dedicado ao autor, investiga o diálogo entre arte popular e erudita na produção artística de Suassuna, observando que as manifestações orais e escritas advindas da cultura popular, ao serem absorvidas e recriadas na obra do autor, são recebidas como arte e não mais sob o rótulo de arte popular.

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Canto improvisado, folheto ou romance tradicional, danças populares ou espetáculos de marionetes, o conjunto complexo constituído pelas manifestações tradicionais orais ou escritas impõe-se através da obra de Suassuna como um objeto artístico. Essa objetivação representa uma etapa conduzindo a uma reflexão estética nova: deixa de se considerar a arte popular como primitiva ou “naive” para vê-la simplesmente como arte, cujo grau de elaboração e complexidade pode ser apreciado de modo autônomo e independente de qualquer hierarquia social dos valores estéticos, agindo como um revelador cultural. (MUZART, 2000, p.97)

Assim, estamos diante de um processo criativo cuja base intertextual pode assumir diversas direções. Uma delas é a da citação como acontece, por exemplo, no livro Romance d’A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, em que vários poemas de cordel, xilogravuras e cantos populares são evidenciados literalmente na trama narrativa. Outra é quando há um processo de reciclagem de formas de produção cultural, como acontece quando o romance situa sua enunciação em referências populares nordestinas. Nesses processos tradutórios, pode acontecer uma reescritura sucessiva de várias referências que, ao final, forma uma nova obra, pois a esses materiais constitutivos também são acrescidas as indicações de outros contextos criativos que estão fora do domínio do popular. Assim, por exemplo, foram referências para Suassuna – declaradas em várias entrevistas – o teatro de Gil Vicente, Calderón de La Barca e Federico Garcia Lorca,a literatura de Cervantes, José de Alencar, Euclides da Cunha, dentre outras. Essa mescla entre produções populares e eruditas torna o “nacionalismo” defendido por Suassuna uma linguagem que, na sua atitude criadora, ultrapassou as dicotomias entre popular e letrado, local e universal. Na longa entrevista que concedeu a João Alexandre Barbosa e Luiz Fernando Carvalho – em ocasião da edição dedicada a sua produção artística para os Cadernos de Literatura Brasileira – , Ariano Suassuna comenta sobre esses enlaçamentos do popular com o erudito exemplificando com seu teatro:

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O povo brasileiro entende o meu teatro – e não estou com isso fazendo um auto-elogio. Esse entendimento vem das histórias populares, nas quais eu me baseio. Eu pensava que essas histórias fossem locais. Mas não. São universais, simbólicas. Quando o padre do Auto da Compadecida se deixa subornar para fazer o enterro do cachorro em latim, o que é isso? É o velho mito de Fausto, não? Ele está vendendo a alma ao diabo. E esse não é um problema nordestino nem local – é humano. Sobre a recepção crítica da peça, afirma: “[...] o francês pensava que era uma história popular do seu país, o espanhol pensava que a origem estava na novela picaresca espanhola – até que outro crítico espanhol mostrou que ambas eram do século XV. Tinham vindo do norte da África, com os árabes, alcançando a Península Ibérica e de lá vieram parar no Nordeste brasileiro. Quer dizer: eram histórias universais e atemporais (SUASSUNA, 2000, p.25-26).

É bastante interessante pensar na relação entre o Armorial e os procedimentos próprios da arte contemporânea, destacando, nessa direção, a questão da reciclagem estética. Jean Klucinskas e Walter Moser (2007) consideram a reciclagem, no sentido lato do termo, um denominador comum para sintetizar as transformações significativas que ocorreram, na cena contemporânea, no âmbito da produção cultural em geral e sobretudo, no campo artístico. Como salientam os autores, a prática da reciclagem estaria marcada por deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-culturais ocorridos em processos criativos que comportam, ao mesmo tempo, a repetição e a transformação. Nesse sentido, podemos situar o Movimento Armorial como um projeto estético ao qual se pode aplicar a noção de reciclagem. Isso porque o gesto de repetir e transformar está no cerne da Arte Armorial cujas transferências culturais deslocadas do popular para o erudito induzem a um processo de metamorfose inerente à dimensão recicladora. Estamos diante de uma reciclagem estética muito particular em que formas e estratégias da cultura oral e popular nordestina são reconceituadas e recolocadas no contexto da prática artística. O Movimento Armorial coincide, nessa perspectiva, com a dominante recicladora da contemporaneidade cultural da qual nos fala Klucinskas e Moser, uma vez que os preceitos armoriais implicam em retomada, deslocamento e refuncionalidade em um processo de incorporação de referências

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diversas. O artista armorial, assim como outros envolvidos em projetos estéticos aos quais se pode aplicar a noção de reciclagem, utiliza materiais culturalmente disponíveis, evidenciando e valorizando esse processo reciclador. É desse modo que, no Movimento Armorial, a xilogravura, por exemplo, aparece recontextualizada no trabalho de artistas plásticos, caso das próprias iluminogravuras de Suassuna que misturam as iluminuras medievais com o processo moderno da gravura como ilustração para poemas escritos à mão. Podemos dizer, assim, que os preceitos regidos pelo Movimento Armorial, que foram defendidos de modo amoroso por Suassuna ao longo de sua produção artística, buscam preservar e promover as culturas populares, valendo-se para isso de procedimentos contemporâneos como os que ocorrem na reciclagem estética. REFERÊNCIAS Cadernos de Literatura Brasileira – Ariano Suassuna. Instituto Moreira Salle, n.10, novembro de 2000. KLUCINSKAS, Jean, MOSER, Walter. A estética à prova da reciclagem cultural. In: Scripta: Revista do programa de pós-graduação em Letras e do Centro Luso-afro-brasileiro da PUC-Minas, v.11, n20, 2007, p.17-42.

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IIluminogravura de Ariano Suassuna. Fonte: Cadernos de Literatura Brasileira, volume dedicado ao autor, n.10, 2000.

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SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO:

Doutora em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia (UFBA), integrante do Observatório da Diversidade Cultural e Superintendente de Políticas Culturais, da Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso (SEC-MT).

Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais e Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Possui experiência de pesquisa nas áreas de patrimônio cultural, cultura popular e comunidades tradicionais. Atualmente é professora substituta do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais.

Supervisora de educação do Instituto Inhotim. Atua em parte dos programas de formação do Educativo, além do Centro Inhotim de Memória e Patrimônio, na coordenação da Biblioteca e Rede Educativa, todos na mesma instituição. É pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural, especialista em Gestão Cultural, pelo Centro Universitário Una, e licenciada e bacharela em História, pela Universidade Federal de Viçosa.

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), graduada em Comunicação Social pela Faculdade Evolutivo (FACE) e integrante do Observatório da Diversidade Cultural (ODC).

Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais e Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É coordenadora da pós-graduação Processos Criativos em Palavra e Imagem na PUC-Minas e integrante do Observatório da Diversidade Cultural (ODC).

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SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL: O O Observatório da Diversidade Cultural – ODC – está configurado em duas frentes complementares e dialógicas. A primeira diz respeito a sua atuação como organização não-governamental que desenvolve programas de ação colaborativa entre gestores culturais, artistas, arte-educadores, agentes culturais e pesquisadores, por meio do apoio dos Fundos Municipal de Cultura de BH e Estadual de Cultura de MG. A segunda é constituída por um grupo de pesquisa formado por uma rede de pesquisadores que desenvolve seus estudos em várias IES, a saber: PUC Minas, UEMG, UFBA, UFRB e USP, investigando a temática da diversidade cultural em diferentes linhas de pesquisa. O objetivo, tanto do grupo de pesquisa, quanto da ONG, é produzir informação e conhecimento, gerar experiências e experimentações, atuando sobre os desafios da proteção e promoção da diversidade cultural. O ODC busca, assim, incentivar e realizar pesquisas acadêmicas, construir competências pedagógicas, culturais e gerenciais; além de proporcionar experiências de mediação no campo da Diversidade Cultural – entendida como elemento estruturante de identidades coletivas abertas ao diálogo e respeito mútuos. Desenvolvimento, orientação e participação em pesquisas e mapeamentos sobre a Diversidade Cultural e aspectos da gestão cultural. Desenvolvimento do programa de trabalho “Pensar e Agir com a Cultura”, que forma e atualiza gestores culturais com especial ênfase na Diversidade Cultural. Desde 2003 são realizados seminários, oficinas e curso de especialização com o objetivo de capacitar os agentes que atuam em circuitos formais e informais da cultura, educação, comunicação e arte-educação para o trabalho efetivo, criativo e transformador com a cultura em sua diversidade. Produção e disponibilização de informações focadas em políticas, programas e projetos culturais, por meio de publicações e da atualização semanal do portal do ODC e da Rede da Diversidade Cultural – uma ação coletiva e colaborativa entre os participantes dos processos formativos nas áreas da Gestão e da Diversidade Cultural. Prestação de consultoria para instituições públicas, empresas e organizações não-governamentais no que se refere às áreas da cultura, da diversidade e da gestão cultural.com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes.

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SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL: O Boletim do Observatório da Diversidade Cultural é uma publicação mensal em que pesquisadores envolvidos com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes. Para colaborar com o Boletim, envie textos para: tailzemelo@yahoo.com.br

Concepção e coordenação geral: José Márcio Barros Conselho Editorial: Giselle Dupin – MINC – http:// lattes.cnpq.br/ 2675191520238904 Giselle Lucena – UFAC – http:// lattes.cnpq.br/ 8232063923324175 Humberto Cunha – UNIFOR – http:// lattes.cnpq.br/ 8382182774417592 Isaura Botelho – SESC SP – http:// lattes.cnpq.br/ 3961867015677701 Luis A. Albornoz – Universidad Carlos III de Madrid – http:// portal.uc3m.es/ portal/ page/ portal/grupos_investigacion/ tecmerin/ tecmerin_investigadores/Albornoz_Luis Núbia Braga – UEMG – http:// lattes.cnpq.br/ 6021098997825091 Paulo Miguez – UFBA – http:// lattes.cnpq.br/ 3768235310676630 Coordenação editorial: Camila Alvarenga e Tailze Melo Projeto gráfico: Dânia Lima Revisão editorial e revisão de texto: Tailze Melo

boletim@observatoriodadiversidade.org.br www.observatoriodadiversidadecultural.com.br

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