BOLETIM
PolĂticas culturais, financiamento, gestĂŁo cultural e diversidade cultural
V61, N.09.2016 - Setembro 2016
PATROCÍNIO 814/2013 FPC: Manutenção das atividades Observatório da diversidade Cultural
Realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte
REALIZAÇÃO Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural
PARCEIROS Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Artes
BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL Políticas culturais, financiamento, gestão cultural e diversidade cultural
SUMÁRIO José Marcio Barros
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DIVERSIDADE BIOCULTURAL: UMA PERSPECTIVA AINDA POUCO TRABALHADA ENTRE NÓS
José Oliveira Junior
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ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES À ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS MUNICIPAIS DE FINANCIAMENTO DA CULTURA COM ÊNFASE NA DIVERSIDADE CULTURAL
Sérgio de Azevedo
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POR UMA CIDADANIA ARTÍSTICA
Juan Brizuela
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A VIGÊNCIA DA ESCOLA CUBANA DE POLÍTICAS CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA
Plínio Rattes
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COLEGIADOS DE GESTÃO PARTICIPATIVA NO ÂMBITO DE EQUIPAMENTOS CULTURAIS PÚBLICOS: ALGUMAS REFLEXÕES
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SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL
DIVERSIDADE BIOCULTURAL: UMA PERSPECTIVA1 AINDA POUCO TRABALHADA ENTRE NÓS José Marcio Barros
O termo diversidade biocultural ainda é muito pouco utilizado no Brasil, tanto por acadêmicos1 e militantes, tanto no campo da defesa e promoção da diversidade cultural quanto da biodiversidade. Essa ausência parece revelar que, a despeito da aparente existência de um consenso sobre as relações de imbricamento entre cultura e natureza, ainda separamos, hierarquizamos e alimentamos oposições entre uma e outra. É correto reconhecer o sociólogo ambientalista mexicano Enrique Leff (2006), que vivemos na atualidade uma superação da cisão realizada pela Modernidade. Em sua visão, com a crise ambiental a partir da segunda metade do século XX, parece ter havido uma reaproximação que passou a alimentar uma complexa agenda ambiental. Entretanto, se olhamos para as nossas políticas culturais, a perspectiva instrumentalista e redutora da relação cultura e natureza parece persistir e o enquadramento da diversidade biocultural resta tímida e pontual. A utilização cindida da diversidade cultural e da biodiversidade, mais do que limitar a efetividade das políticas públicas, é, ela própria, a negação da própria diversidade. O legado da Modernidade – que de certa forma se estrutura na perspectiva antropocêntrica de superioridade da cultura sobre a natureza – e as apropriações e usos distorcidos e oportunistas do modelo de desenvolvimento sustentável como alternativa à crise ambiental que década a década recrudesce, parecem ser os responsáveis por essa sutil e paradoxal realidade. Discursivamente integramos natureza, cultura e 1 Uma edição ampliada e que analisa a questão no âmbito das metas do Plano Nacional de Cultura foi apresentada na abertura do Seminário Nacional de Políticas Culturais e Ambientais realizado pelo PPG Ciências Sociais Unisinos entre 20 e 22 de julho de 2016 e será publicada em breve em livro.
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suas diversidades. No entanto, tal integração parece não transbordar da esfera dos discursos, das idealidades e das formalidades, à exceção de ações na forma de programas e projetos de resistência tanto na área cultural como ambiental que ora reforçam as tradições ora constroem posturas inovadoras que apontam para uma nova práxis da diversidade biocultural. O socioambientalismo e as ações em torno do Programa Cultura Viva parecem ser, pelo menos no Brasil, as duas expressões mais evidentes das potencialidades e limites desta reafirmação da articulação cultura e natureza. Mas o que se entende por biodiversidade e diversidade cultural? Por biodiversidade entende-se aqui, como explicita a Convenção da Diversidade Biológica da UNESCO, promulgada em 1992, [...] a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas. (UNESCO,1992, Art.2)
Isso significa dizer que biodiversidade é um conjunto tríplice de potencialidades: a diversidade biológica no planeta, a variabilidade genética das espécies e a diversidade de ecossistemas formados por diferentes combinações de espécies. (Mendonça,2014 p.31) Decorre desta visão duas outras características fundamentais, a saber: a biodiversidade é uma característica da natureza, que se mantém e preserva por si própria, desde que não tenha que enfrentar a ação predatória do homem; a biodiversidade é um sistema que pressupõe equilíbrio e que possui importância crucial para todos os demais sistemas de uma sociedade (a economia, a saúde, a agricultura, etc).
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Já o conceito de diversidade cultural, como explicitado na Convenção da UNESCO sobre a proteção e promoção da Diversidade das Expressões Culturais, [...] refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. (UNESCO, 2005, Art.4)
Depreende-se desta conceituação constatações, especialmente importantes quando nosso propósito é cotejar a diversidade biocultural. Trata-se de [...] reconhecer certas características básicas que podem auxiliar na superação de posturas românticas e ingênuas, oportunizando a transformação da articulação proposta em um projeto. Isso significa reconhecer que a Diversidade Cultural é diversa, ou seja, não se constitui como um mosaico harmônico, mas um conjunto de opostos, divergentes e contraditórios. A Diversidade Cultural é cultural e não natural, ou seja, resulta das trocas entre sujeitos, grupos sociais e instituições a partir de suas diferenças, mas também de suas desigualdades, tensões e conflitos. A Diversidade Cultural se apresenta, portanto, como uma resposta, uma procura deliberada, e não apenas uma constatação antropológica. É o resultado de uma construção deliberada, e não apenas um pressuposto, um ponto de partida. Um projeto, e não apenas um inventário. (BARROS, 2008, p.18)
Desse modo, tal como a biodiversidade, existem características peculiares que necessitam ser cuidadosamente retidas na análise, quais sejam: a diversidade cultural não se renova naturalmente; a diversidade cultural é dinâmica e precisa ser pensada conjugando proteção e promoção e, por fim, a diversidade cultural encerra um conjunto de tensões e não pode ser pensada como um mosaico harmônico de diferenças.
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Fica evidente, a dimensão relacional e complexa que fundamenta ambos os conceitos. Tanto a biodiversidade quanto a diversidade cultural resultam da capacidade de articulação e integração entre seus componentes. Mais que resultantes de qualidades imanentes, em ambas, é o aspecto interacional de seus componentes que define a presença e a potência da diversidade. Isso nos remete a uma terceira questão, o aspecto dinâmico e mutante da diversidade: em ambas as dimensões, da biodiversidade e da diversidade cultural, a mudança é uma variável sempre presente, contribuindo para a manutenção e para a transformação de suas realidades. Emerge daqui outro ponto importante. Se no campo da biodiversidade, a proteção se apresenta como ação suficiente para a sua preservação e potencialização, no campo da diversidade cultural, a realidade se mostra outra. A diversidade cultural só se potencializa pela ação conjunta e equilibrada entre as ações de proteção e promoção, dado que, ao contrário da biodiversidade, se constitui como um processo de aprendizado socialmente conduzido. Decorre daí a importância do conceito de diversidade biocultural, que no Brasil parece ter sido configurado e utilizado pela primeira vez no I Encontro da Sociedade Internacional de Etnobiologia (ISE) realizado em 1988 na cidade de Belém (Pará). Com Maffi & Woodley (2010), compreendemos no escopo da existência três questões centrais: • a diversidade de vida não é apenas a diversidade biológica, é composta também pela diversidade de culturas e línguas; • a diversidade biológica, linguística e cultural constitui a expressão de um todo; • a diversidade é fruto de processos cumulativos, adaptações e da natureza co-evolutiva do homem e seu ambiente de vida.
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Novamente o caráter complexo e relacional é intrínseco ao conceito: a diversidade biocultural seria o resultado da qualidade das relações entre suas dimensões naturais e culturais, consubstanciadas nos saberes e práticas que, atualmente, parecem exclusivos e em processo de depredação nos povos tradicionais e que se referem ao uso e manejo da diversidade genética e da diversidade das espécies, além da diversidade das formas de expressão e nominação linguística. A diversidade biocultural expressa, segundo PRETTY (2008) citado por Mendonça (2014), outras três dimensões complementares, a saber: os sentidos e crenças da relação homem e natureza; as concepções e práticas de gestão da natureza; e os saberes sobre a natureza. Com exceção das políticas voltadas aos segmentos das culturas tradicionais e de raiz, essa perspectiva não comparece de forma efetiva em nossas políticas, programas e projetos. É evidente que houve avanços e foram significativos nas políticas culturais brasileiras. A ampliação das ações de proteção e promoção dos patrimônios culturais no Brasil, as articulações basilares do Programa Cultura Viva (transformado em Política), o Plano Setorial para as Culturas Populares e o Plano Setorial para as Culturas Indígenas são exemplos destes avanços. Entretanto, tudo isso convive com a descontinuidade entre uma gestão e outra; com uma institucionalidade ainda formal e burocrática no âmbito do SNC; com uma incapacidade gerencial dos órgãos públicos da cultura em efetivamente suportarem aquilo que induzem ou desencadeiam. Além disso resta a questão: e o contexto urbano e contemporâneo? Como pensar a diversidade biocultural em nossas cidades?
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REFERÊNCIAS: BARROS, José Marcio, Cultura, diversidade e os desafios do desenvolvimento humano. In: BARROS, José Marcio (org.). Diversidade Cultural: da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental - a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. MAFFI, L. & WOODLEY, E. Biocultural diversity conservation: a global sourcebook. ed. London: Earthscan, IUCN, 2010. MENDONÇA. Guilherme Cruz de. Diversidade Biocultural, Direito e Cidades: implementação do marco jurídico sobre diversidade biocultural na cidade do Rio de Janeiro. 245f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. PRETTY, J. et al. How do Biodiversity and Culture Intersect? [s.l.] Plenary paper for Conference “Sustaining Cultural and Biological Diversity In a Rapidly Changing World: Lessons for Global Policy”. Organized by American Museum of Natural History’s Center for Biodiversity and Conservation, IUCN-The World Conservation Union/ UNESCO. Cultural policy: a preliminary study. UNESCO: Paris, 1969. UNESCO, Convenção sobre a Diversidade Biológica, disponível em https://www.cbd.int/ UNESCO, Convenção sobre a Proteção e Promoção das expressões da diversidade cultural, disponível em http://es.unesco.org/creativity/
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Mergulhรฃo-caรงador. Foto Erick Capanema Fonte: Flickr
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ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES À ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS MUNICIPAIS DE FINANCIAMENTO DA CULTURA COM ÊNFASE NA DIVERSIDADE CULTURAL José Oliveira Junior
Vamos pontuar sobre alguns dos principais elementos que compõem a perspectiva dos sistemas municipais de financiamento a Cultura. Independente do desejo específico de financiamento do seu projeto por parte dos artistas, grupos e produtores culturais, há um intrincado e complexo conjunto de fatores a se levar em conta quando se pensa o orçamento municipal e mecanismos que efetivamente contribuam para que o Estado cumpra seu papel no financiamento à diversidade cultural em todo o município. Mais do que pensar em quanto recurso vai ser destinado ao financiamento público da cultura, cabe refletir melhor sobre a constituição dos próprios mecanismos, das prioridades que o município define e uma série de desafios concretos. Vamos nos concentrar neste mês em dois destes desafios, a saber: • descentralização dos recursos por todas as regiões administrativas do município e Fomento às práticas regionais; • equidade no uso dos recursos. Descentralização dos recursos Para que os mecanismos públicos de financiamentos à cultura reflitam a diversidade da produção cultural no município é fundamental que se pense tanto no local de origem dos produtores (endereço onde moram ou atuam) e no local de realização das ações a serem financiadas, uma vez
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que não só a fruição das ações precisa ser regionalizada, que podemos identificar como acesso aos bens culturais produzidos com recursos públicos, mas a própria dinâmica de realização, identificada com o acesso às condições de produção cultural. Em síntese, ter atenção para aprovar projetos não apenas onde a realização esteja distribuída regionalmente, mas também onde se dê espaço para a produção das próprias localidades. Sobre as regionalidades, há alguns outros aspectos que precisamos levar em conta. A regionalização pressupõe participação regionalizada em diversos níveis, o que nossos conselhos e comissões ainda não alcançam. Enquanto as comissões e conselhos não conhecerem concretamente a cidade em suas várias regiões, sempre haverá alguma dificuldade de se valorizar efetivamente a produção cultural regional. Por outro lado, esta discussão não é sobre oposição entre a região central das cidades e as outras regiões. A região central de qualquer cidade normalmente tem mais opções, inclusive de disponibilidade de equipamentos, sendo também por onde circulam mais pessoas. Assim, numa primeira leitura, realizar ações nas regiões centrais deve sim ser uma opção a se considerar quando pensamos em acesso aos bens culturais produzidos (caso de grandes festivais, de ações em equipamentos públicos no centro, etc). Ocorre que, nem sempre, o centro das cidades é de fácil acesso em termos de mobilidade urbana, o que invariavelmente nos leva a pensar que, para realizar ou apoiar financeiramente estas ações nas áreas centrais, seria necessário melhorar as possibilidades de acesso físico. Equidade no uso dos recursos Igualdade não significa todos tendo as mesmas coisas, mas sim as mesmas oportunidades. E não há como ter igualdade de condições se há tanta disparidade de formação, de tempo de atuação, de portfólio construído, entre tantos outros aspectos. Assim, pensar em editais para áreas, regiões ou práticas específicas pode ser uma solução importante para garantir que quem participa de uma seleção pública tenha possibilidade ao menos de lançar-se em um certame em que as condições e
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exigências sejam adequadas àquele grupo. Um dos exemplos concretos disto é o caso dos grupos de cultura popular, que normalmente tem mais dificuldade na elaboração de projetos complexos (e até de prestação de contas), mas que normalmente apresentam propostas com menor valor. Para os editais gerais, uma alternativa concreta (principalmente se os recursos são escassos) é a alternância no acesso e uso dos recursos públicos, ou seja: um proponente que teve seu projeto aprovado este ano em um determinado edital não poderá participar no ano seguinte. Assim, podese garantir que mais artistas e grupos artísticos sejam beneficiados. Para igualdade concreta não basta apenas atendimento de demandas expressas, mas um equilíbrio entre este atendimento e aquelas não expressas (que alguns chamam de indução de Estado). Pode ser que alguma região da cidade ou alguma área cultural não apresente demanda suficiente para um edital. Em muitos casos, as comissões podem entender que, não tendo demanda ali, o recurso vai ser destinado às regiões ou áreas que tiveram maior solicitação. Ocorre que este procedimento pode aprofundar distorções no mecanismo que atentem contra a diversidade cultural. Assim, cabe desenvolver ações de estímulo à apresentação de projetos por parte daquelas regiões da cidade ou áreas artísticas, como forma de induzir à demanda qualificada e garantir que as comissões tenham oportunidade de ampliar a diversidade de projetos para selecionar entre eles. Duas situações deveriam ser evitadas: pouco recurso para muitos, que aponta para precariedade e baixo profissionalismo, e muito recurso para poucos, o que invariavelmente leva à concentração e desigualdade. Em síntese, podemos apontar a necessidade de uma atenção específica aos seguintes pontos, que devem ser considerados quando se elaboram ou planejam os mecanismos de financiamento da cultura: • distribuição de linguagens/áreas culturais envolvidas;
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• distribuição regional de recursos; • distribuição de recursos por proponente; • monitorar quantidade de ações / realizações por edital (apresentações, títulos em música, cursos, etc.); • identificar e monitorar número e qualificação relativos aos públicos e dados decompostos (gênero, faixa etária, faixa socioeconômica, horários, estilos artísticos, etc.); • levantar e organizar os dados relativos aos artistas e técnicos profissionais na cidade e condicionar o acesso aos editais à participação no cadastro único; • identificar e organizar número e qualificação de profissionais remunerados por meio dos mecanismos de financiamento à cultura (artistas e técnicos). REFERÊNCIAS: OLIVEIRA Jr., José. Fomento e financiamento: compartilhar responsabilidades para cidades melhores. In.: BARROS, José Márcio, OLIVEIRA Jr., José. Pensar e Agir com a Cultura: Desafios da Gestão Cultural. Belo Horizonte: Observatório da Diversidade Cultural, 2011. BENHAMOU, Françoise. A Economia da Cultura. São Paulo: Ateliê editorial, 2007.
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POR UMA CIDADANIA ARTÍSTICA Sérgio de Azevedo
A ideia de uma cidadania artística, elaborada e aprofundada durante o período em que coordenei o programa Viva arte viva1 , foi inspirada no conceito de cidadania cultural de Marilena Chauí, desenvolvido quando esteve à frente da Secretaria Municipal de Cultura do município de São Paulo. Sua proposta foi centrada na compreensão da cultura como elaboração coletiva e socialmente diferenciada de símbolos, como direito de todos os cidadãos, como resultado de um trabalho de criação pautado pela sensibilidade, imaginação e inteligência, e, por fim, como ação de sujeitos históricos que articulam o trabalho cultural e a memória social (Chauí, 2006, p.72). 2 A ideia de cidadania artística partiu dessa proposta e foi sendo construída ao longo de uma década de execução do programa, redefinindo alguns aspectos e dando luz para outros. Ao final de um período de construção, focou-se, essencialmente, em garantir alguns direitos. Foram eles: 1 Viva arte viva é um programa de cidadania artística da Prefeitura de São Caetano do Sul, SP, realizado pela Fundação das Artes com o objetivo de oferecer atividades formativas nas áreas de teatro e de música para munícipes, estudantes da Rede de Ensino e seus familiares. Em 2012 atendia cerca de 2000 alunos por ano, de diferentes faixas etárias. O programa da área de teatro foi tema da dissertação de mestrado [Arte(Gestão)Educação], defendida na ECA-USP. 2 CHAUI, Marilena. Cidadania cultural. O direito à cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. Em ‘Cidadania cultural - O direito à cultura’, a filósofa Marilena Chauí critica três tipos de visão de cultura - aquelas que a concebem como saber de especialistas, como o campo das belas-artes, e como instrumento de agitação política. Nos três casos, a cultura ora é vista como um domínio de uma parte da sociedade que sabe sobre aquela que não sabe; ora é vista como meio de lazer e diversão. E, por fim, a cultura também é vista como uma reunião dos dois pontos de vista anteriores, mediante a produção de ‘mensagens’ para atrair e persuadir a consciência da massa.
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• direito à formação continuada e completa, o que significava condições para uma prática artística regular, incluindo a apresentação/circulação da produção artística resultante desse processo; • direito à participação na formulação de propostas e decisões do programa; • direito de acesso físico aos bens culturais; • direito de acesso à informação e comunicação dos serviços e atividades culturais; • direito de uso e de apropriação de espaços públicos; • direito de encontro, reflexão, debate e crítica. A cidadania artística foi um eixo aglutinador dos objetivos que foram se construindo ao longo dos anos e, a partir de sua elaboração (em substituição às ideias anteriormente utilizadas de difusão cultural e desenvolvimento sociocultural), tornou-se um princípio definidor das práticas do Programa para o futuro. Foi um “centro”, uma espécie de “lugar-princípio” em que as ideias de arte, cultura e educação possibilitaram a formação e o desenvolvimento de um cidadão-artista. Centrado na concepção de um cidadão-artista – indivíduo que, ao exercer seu direito à formação continuada e ao acesso à arte, qualifica sua participação social na esfera artística e encontra espaço para ampliar sua esfera de presença e, posteriormente, inventar seus próprios fins –, um Programa de cidadania artística pode criar condições para que a participação social por meio da arte tenha significado para um cidadão. Não basta ser autor de práticas sociais; é preciso que essas práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza. Não consiste em receber, mas em realizar o ato pelo qual cada um marca aquilo que os outros lhe dão para viver e pensar (CERTEAU, 1995, p. 141) .3 3 CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. SP: Papirus, 1995. A primeira edição deste livro data de 1974. Compilação de vários textos do autor, este livro nasce da vontade de falar sobre a ocupação de espaços de movimentação onde possa surgir uma liberdade.
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Inspirado em uma cidadania artística, o Programa Viva arte viva propôs ao cidadão ser o centro de sua cidade por meio da arte. Teve por objetivo, também, ampliar a “fala” do indivíduo de múltiplas maneiras: criando instrumentos expressivos durante o processo formativo, expressando-se artisticamente por meio de apresentações, frequentando debates, fóruns e encontros de participação e decisão e, por fim, descobrindo ou inventando formas de interferir na realidade de seu território, compreendendo o mundo como passível de modificação. No Programa Viva arte viva, a cidadania artística e a educação estética constituiram-se como campo que possibilitou interseções entre cultura e educação, de forma que cidadão-artista exercitasse ampliar sua esfera de presença e, assim, inventar seus próprios fins4 , outra forma de dizer que o esperado era que o participante passasse a ser o artesão de sua própria educação, produzindo-se a si mesmo5 . Essas proposições artísticas e pedagógicas necessitaram de uma contraparte para sua consolidação: uma Gestão Cultural implicada. Dentre muitos aspectos, destaco que coube à Gestão cultural “abrigar” artistas e cidadãos envolvidos no processo, criando condições para a realização de suas propostas e práticas e respeitando o inesperado e as singularidades da produção artística. A Gestão foi, também, constituindo-se como 4 TEIXEIRA COELHO. A cultura e seu contrário. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural. 2008. Se valendo dos mais diversos conceitos para a cultura, o autor questiona muitos deles e passa a propor uma leitura a partir da perspectiva da política cultural (ou seja, a de interferir e não apenas estudar a cultura). Por fim, contrariando, em parte, a consideração, sempre reiterada, de que toda arte é também cultura, embora nem toda cultura seja arte (o que resume a questão ao fato da arte estar contida na cultura), e destacando o inegável o papel que a arte tem como fonte renovadora e revigoradora da cultura, o autor propõe uma nova relação entre ambas.Contra o processo de domesticação da cultura, Teixeira Coelho insiste em lembrar que a cultura só faz sentido se for expressão da negatividade. 5 KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1984. Estabelecendo relações entre Viola Spolin, Jean Piaget e Susanne Langer e partindo de uma abordagem essencialista defendida por Elliot Eisner na qual “a arte não necessita de argumentos que justifiquem sua presença no currículo escolar, nem de métodos de ensino estranhos à sua natureza intrínseca”, Ingrid Koudela apresenta um sistema de trabalho que reitera a arte como meio para a liberdade, além de permitir aos orientadores inventar e reinventar seus próprios processos.
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poliglota, multirreferencial e fomentadora de diálogos entre as mais diferentes instâncias por ela mediadas, por vezes, rígidas e distantes do fato cultural. Eis um desafio central para a Gestão cultural como um todo: traduzir as demandas e necessidades da cultura para outras instâncias, muitas vezes burocratizadas e pouco implicadas. Essa foi e é a matéria, a inspiração e o desafio da Gestão: encontrar liberdade desejada e criada por artistas e alunos em meio a muitas regras. O poeta Octávio Paz, em seu livro O labirinto da solidão6 , diz que se vive, na América Latina, a crise da cultura sem ter tido a expansão da cultura. E nos deixa uma questão: seremos agora, por
fim, capazes de pensar por nossa própria conta? Seremos artesãos de nossos próprios caminhos?
Chegará o dia em que dormiremos tranquilos sabendo que o cidadão é, por direito e de fato, o centro de sua cidade. Nesse dia, poderemos responder tranquilamente: sim, somos todos artesãos de nossos próprios caminhos. Enquanto esse dia não chega, creio que cabe à Gestão cultural, além das já conhecidas competências administrativas, abrigar e mediar, de forma que o indivíduo desenvolva e potencialize o entendimento, como cidadão-artista, de que ele pode, e deve, interferir no desenvolvimento do território e do mundo.
6 PAZ, Octávio. O labirinto da solidão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Um ensaio de restituição do nosso tempo. Neste texto, o filósofo Octávio Paz mostra que, na América do Sul, Central e no México se vive a crise da cultura sem ter tido a cultura. Uma reflexão que nos leva a perceber a importância de que devemos, urgentemente, construir nossos próprios caminhos.
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REFERÊNCIAS: CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. SP: Papirus, 1995. CHAUI, Marilena. Cidadania cultural. O direito à cultura. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1984. PAZ, Octávio. O labirinto da solidão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. TEIXEIRA COELHO. A cultura e seu contrário. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural. 2008.
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Diagrama Educação, cultura e cidadania artística Fonte: Desenho do autor
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A VIGÊNCIA DA ESCOLA CUBANA DE POLÍTICAS CULTURAIS NA AMÉRICA LATINA Juan Brizuela
Os pesquisadores em políticas culturais já cansaram do relato sobre a história do primeiro ministério de cultura do mundo que, de acordo com a teoria, foi criado na França em 1959. Outro mito da nossa área é que os Estados Unidos, sem ministério de cultura, nem ingerência governamental nos negócios privados, conseguiram atingir a indústria cultural mais próspera do mundo (GARCÍA CANCLINI, 2004). No entanto, voltando a nossa atenção aos países latino-americanos, quantas vezes ouvimos falar do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica, criado também em 1959? Ou do fato de que, durante décadas, a única Constituição do mundo que registrou expressamente o direito à cultura, em sua extensão e profundidade, foi a cubana? Em síntese, o quanto ainda (des) conhecemos sobre as experiências e práticas intelectuais da escola cubana de políticas culturais? Tradicionalmente, os estudiosos das políticas públicas de cultura se dividem em duas escolas. Por um lado, a escola estadunidense propõe que o mercado capitalista, através da “mão invisível” das empresas privadas, seja o principal responsável pelo incentivo e promoção das atividades artísticas e culturais que a “sociedade civil”, de forma aparentemente livre e espontânea, deseja fruir e consumir. Por outro, a escola francesa se destaca como paradigma da intervenção estatal no intuito de promover uma democratização da cultura. Partindo de uma determinação histórica e canônica das belas artes pela elite de turno, suas políticas visam “levar a cultura” para o resto dos cidadãos, junto com determinados padrões de comportamento sobre o fazer cultural nas civilizações modernas. Contudo, existe uma falsa oposição entre estas escolas, criando uma rivalidade entre Estado e Mercado, quando na verdade ambas são completamente funcionais ao sistema capitalista e aos
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paradigmas centrais do establishment acadêmico mundial. Sendo assim, questionamos: é possível pensar em uma corrente alternativa que não pertença ao eixo norte de produção do conhecimento e que também se nutra de experiências não capitalistas de gestão e produção cultural? Três pesquisadores latino-americanos da área, Martin Cezar Feijó, Néstor García Canclini e Teixeira Coelho – com fundamentações ideológicas muito diferentes entre si –, não duvidaram em registrar, nos anos 1980, que a escola cubana expressa um paradigma diferencial e muito importante no campo das políticas culturais. De acordo com a perspectiva histórica de Feijó (1983), Rússia e Cuba representam, junto com China, os momentos onde mais explícita foi a relação entre Estado e as produções artísticas e culturais. Para o autor, o propósito das três grandes revoluções socialistas do século XX – que aconteceram nestes países – foi atingir uma coerência e, no pior dos casos, uma submissão da arte e da cultura ao partido e às políticas estatais. Em oposição a esse modelo, os países ocidentais ofereciam, durante a guerra fria, a possibilidade de vivenciar uma sociedade civil teoricamente livre e autônoma do poder político. Contudo, nestas civilizações modernas, os artistas e produtores culturais tinham que ser coerentes, ou ainda, submissos ao poder econômico do mercado capitalista. Neste contexto, o conjunto organizado de intervenções realizadas pela revolução cubana no campo da cultura foi elogiado até por seus críticos e dissidentes, pelo menos até o final dos anos 1980. O diferencial da escola cubana de políticas culturais foi trabalhar suas ações e definições programáticas neste campo de forma transversal e sistêmica. Ao invés de exaltar, de forma setorial, o protagonismo de um Ministério ou Ministro de Cultura, como foi o caso francês, a revolução buscou investir no desenvolvimento humano dos habitantes da ilha de forma integral. Isto é, trabalhar a cultura em conjunto com saúde e educação, formando três pilares de uma proposta civilizatória, cujos resultados são acompanhados, desde 1961, por um Conselho Nacional de Cultura. Não surpreende, portanto, a afirmação de García Canclini (1983) de que o principal escopo de
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uma política popular na área da cultura é promover uma progressiva democratização dos meios, das instituições e das linguagens artísticas, através das quais a comunicação social é realizada e a consciência crítica do povo é cotidianamente estruturada. Assim sendo, o objetivo final da política cultural é reorganizar as relações entre significado e poder, com uma deliberada orientação socialista. Para o pesquisador, falhas e equívocos da revolução cubana – e de outras experiências no continente – não diminuem a legitimidade ética e política da construção socialista em política pública de cultura, que reconheceram as organizações populares como principais protagonistas. Finalmente, Teixeira Coelho (1986) registra em seu livro sobre os usos da cultura que o modelo cubano das casas populares de cultura, criadas em 1961 e organizadas em sistemas de cultura totalmente capilarizados nas centenas de municípios da ilha, deveria ser um exemplo a ser seguido pelo Estado de São Paulo na sua época. Em visita a esse país caribenho, em 1985, Coelho constatou que cada um dos municípios de Cuba tinha nove instituições culturais básicas: além das Casas de Cultura, o sistema de cultura completo incluía uma galeria de artes plásticas, uma biblioteca municipal, um cinema, um museu, uma loja de bens culturais, uma livraria, um coro de vozes, um teatro e uma orquestra musical. Nos anos 1980, era uma utopia pensar nessa quantidade de equipamentos culturais para cada uma das localidades paulistas. Mas passados 30 anos, qual é a realidade atual dos mais de 600 municípios do Estado de São Paulo neste quesito? Isso sem falar da ausência de equipamentos culturais básicos nas mais de seis mil cidades brasileiras. Sem dúvidas, muitas coisas aconteceram no mundo e no campo específico dos estudos em políticas culturais desde os anos 1980. Contudo, resulta pertinente indagar a vigência das práticas e objetivos não capitalistas da escola cubana de políticas culturais no Brasil contemporâneo e no resto dos países latino-americanos e caribenhos. No caso específico das universidades brasileiras, uma parte importante dos saberes e conhecimentos produzidos nos territórios profundos do nosso continente continuam sendo periféricos e, muitas vezes, propositalmente invisibilizados. A longa tradição e trajetória das instituições e políticas culturais em Cuba – no mínimo tão antigas quanto as francesas – nos instiga a aprofundar reflexões atuais sobre o quanto podemos aprender, com erros e acertos registrados historicamente, deste outro paradigma de estudos para a nossa área.
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REFERÊNCIAS FEIJÓ, Martin Cezar. O que é política cultural. Coleção primeiros passos nº 107. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. GARCÍA CANCLINI, Néstor. ¿La mejor política cultural es la que no existe? In: Revista Telos – Cuadernos de comunicación e innovación, Madrid, Nº 59, 2004. _______________________. Políticas culturais na América Latina. In: Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 39-51, jul. 1983. Trad. Wanda Caldeira Brant. TEIXEIRA COELHO, José. Usos da cultura: políticas de ação cultural. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Capa livro Casa de las Américas 1959-2009. Design de Pepe Menéndez, 2011.
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COLEGIADOS DE GESTÃO PARTICIPATIVA NO ÂMBITO DE EQUIPAMENTOS CULTURAIS PÚBLICOS: ALGUMAS REFLEXÕES Plínio Rattes
Em novembro de 2014, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBa) publicou, em Diário Oficial, a Portaria 338/2014, em que institucionaliza colegiados de gestão participativa no âmbito dos equipamentos culturais. Segundo a Secretaria, estes colegiados são instâncias de controle social para acompanhamento da gestão dos centros de cultura e devem ser instituídos em todos os equipamentos culturais geridos pela SecultBa e suas vinculadas1 . Em caráter opinativo e consultivo, o objetivo é que os colegiados possam, entre outras coisas, “apoiar e avaliar a gestão do espaço cultural, propor estratégias para a dinamização do mesmo e contribuir para tornar o Centro numa referência na produção e difusão cultural do seu território”2. A portaria define que o colegiado deve ser composto por agentes culturais e representantes de instituições de reconhecida atuação na área cultural, social ou educacional no bairro, cidade e/ou território de identidade, onde o espaço cultural estiver sediado, com o limite mínimo de 05 (cinco) e máximo de 30 (trinta) membros titulares, a depender das características de cada espaço cultural.
1 A SecultBa possui quatro unidades vinculadas: Fundação Cultural do Estado da Bahia - FUNCEB, Centro de Culturas Populares e Identitárias - CCPI, Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural - IPAC e Fundação Cultural Pedro Calmon – FPC. 2 A Portaria está disponível no link: https://espacosculturais.files.wordpress.com/2015/08/portaria-colegiados-de-gestc3a3o-participativa.pdf. Acessado em 01 de setembro de 2016.
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Os interessados em participar do colegiado, pessoas físicas ou jurídicas, devem comprovar ao menos um ano de residência fixa em qualquer cidade do território de identidade3 onde está localizado o espaço cultural e se inscrever através de formulário disponibilizado no site da Secretaria. A seleção dos membros é feita pelo secretário estadual de cultura e os dirigentes das unidades vinculadas, do Conselho Estadual de Cultura e da Associação dos Dirigentes Municipais de Cultura da Bahia. Não está previsto remuneração para nenhum dos participantes do colegiado. Até agosto de 2016, quase dois anos após a publicação da portaria, foram instituídos colegiados em apenas quatro dos mais de 40 equipamentos culturais mantidos pela SecultBa, foram eles: Centro de Cultura de Porto Seguro, Centro de Cultura Olívia Barradas (Valença), Centro de Cultura Adonias Filho (Itabuna) e Centro de Cultura Alagoinhas4. Conforme relato dos integrantes dos colegiados já instituídos, embora ainda estejam em processo de amadurecimento e finalização do regimento interno, já é perceptível certo esvaziamento nas reuniões. Juscimare Souza, membro do colegiado do centro de cultura da cidade de Valença, comenta que “inicialmente houve uma grande adesão por parte da comunidade, tendo-se 16 titulares
e 16 suplentes, porém com o decorrer das atividades só aqueles empenhados mesmo com a causa cultural continuaram”. Já Gilson Ramos, representante do colegiado do Centro de Cultura de Ala-
goinhas, pontuou a dificuldade de os membros de cidades vizinhas participarem das reuniões, em geral, realizadas na cidade sede do equipamento cultural, o que tem dificultado o andamento dos trabalhos5.
3 O Governo da Bahia, com o objetivo de identificar temas em comum a partir da realidade local, possibilitando o desenvolvimento equilibrado e sustentável entre as regiões, reconheceu a existência de 27 Territórios de Identidade, constituídos a partir da especificidade de cada região. 4 Relação dos equipamentos culturais da SecultBa: http://www.cultura.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=68. Acessado em 01 de setembro de 2016 5 Entrevista concedida ao autor por telefone e e-mail, nos dias 23 e 24 de agosto de 2016.
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Embora se saiba que a existência de mecanismos de participação não significa participação ativa ou automática, nem democrática, e que desigualdades sociais, econômicas e culturais podem gerar disparidades entre representação política nestes fóruns (Grau, 2010), ainda assim é válido e de fundamental importância que o Estado crie canais de diálogo, incentive a participação e considere as demandas expostas na formulação das políticas públicas. Estes canais de diálogo precisam ser constantemente aprimorados, buscando sempre uma participação qualificada da sociedade civil. Até porque o embate em torno de ideias e interesses é a essência da política pública (SOUZA, 2006), sendo assim necessário que se crie também a ambiência e instrumentos necessários para o saudável debate. Garantir, portanto, a participação social nos rumos das políticas públicas de cultura é afiançar um direito cultural universal, previsto, também na constituição brasileira, que cita a dimensão cidadã da cultura como um de seus três pilares. Os colegiados de gestão participativa atendem, em certa medida, a Lei Orgânica da Cultura do Estado da Bahia, de 2011, que prevê, entre outras ações, a criação de instâncias de consulta, participação e controle social6. Vale registrar que documentos oficiais e registros na imprensa à época da construção de alguns centros de cultura no interior, durante a década de 1980, dão conta que a intenção do Estado era gerir aqueles espaços envolvendo outras pessoas de fora da administração pública, como pode ser observado nesse trecho de uma matéria do jornal INTERURB: Todavia, para gerir o Centro de Cultura sempre será escolhido alguém do próprio município’. Os critérios de seleção, segundo a Drª. Olívia Barradas [Diretora da Funceb entre os anos de 1983 e 1986] serão o conhecimento das rotinas administrativas do Estado e a sensibilidade para área cultural. Por outro lado, para apoiar o trabalho do diretor do centro, a FCEBa [antiga sigla da Funceb - Fundação Cultural do Estado da Bahia] estuda a alternativa de compor um conselho consultivo em cada município, integrado pelos representantes mais importantes de cada segmento artístico e cultural.”7 6 Artigos nº 4 e 6 da Lei nº 12.365 - Lei Orgânica da Cultura, de 30 de novembro de 2011. 7 CENTRO DE CULTURA É EXPRESSÃO DO RESPEITO À CULTURA POPULAR, Jornal Interurb, Salvador-Ba, julho de 1986, p. 4 e 5. A INTERURB era a Companhia de Desenvolvimento e Articulação Municipal, órgão estadual criado em 1983. Foi responsável pela construção dos centros de cultura da Funceb no interior do estado, durante a década de 1980.
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Apesar das intenções positivas, alguns questionamentos sobre a iniciativa são necessários: a sociedade civil terá outras formas de participar da gestão dos equipamentos não sendo através dos colegiados? O que será feito de outros modelos já consolidados de inserção da sociedade civil na gestão de equipamentos culturais da própria Secretaria, a exemplo do Centro Cultural Plataforma e Espaço Cultural Alagados8? Quais os critérios/parâmetros que estão sendo usados para selecionar os interessados em participar dos colegiados, além do fato de residir e integrar instituições culturais do território? Como garantir a participação de membros de diversos municípios sem que haja dotação orçamentária para despesas como transporte e alimentação? Entretanto, há talvez uma pergunta ainda mais importante, necessária e que deveria vir antes de todas as demais: até que ponto os equipamentos culturais precisam de fato de um colegiado neste modelo e com a estrutura da qual foi pensada? Como replicar um mesmo modelo de forma seriada em centros de cultura que possuem especificidades próprias, que são diferentes uns dos outros, que estão inseridos em comunidades/cidades/territórios que possuem necessidades e demandas específicas e que podem diferir entre si? A gestora cultural Ana Vaneska, membro do Conselho Estadual de Cultura e ex-coordenadora do Centro Cultural Plataforma, pondera que “você não pode pegar
um mesmo modelo de roupa que eu visto e colocar em minha irmã que tem um corpo diferente. Você vai ter que fazer algum ajuste ali. Claro, nós estamos na máquina do Estado, mas se você tiver de fato vontade política e interesse de fazer com que a participação, ela seja a dinâmica, a tônica daquele processo é preciso que você tenha um pouco mais de trabalho porque o processo de participação que envolve vários sujeitos, que é dialógico, precisa de mais tempo, precisa de mais paciên8 Os Centro Cultural Plataforma e Espaço Cultural Alagados, localizados na periferia de Salvador, são equipamentos com significativa participação de atores da sociedade civil organizada (grupos artísticos profissionais e semiprofissionais, associações de bairros, coletivos de produção cultural, etc.) na condução dos trabalhos desenvolvidos naqueles espaços de forma mais orgânica, ou seja, sem muita interferência do Estado na forma como se organizam e deliberam. Em Plataforma, por exemplo, há o Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio Ferroviário, que atua paralelamente à gestão do espaço desde sua reabertura em junho de 2007. No fórum se discute e, por vezes, delibera diversos temas sobre o centro cultural conjuntamente com a gestão do espaço, como projetos e programação, recursos humanos, relação com a comunidade, entre outros.
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cia, precisa de mais sensibilidade”. Ela ainda completa: “a condição fundamental para a participação é a autonomia. Não existe na minha avaliação nenhuma construção de processo participativo com autonomia sem que você dialogue com as especificidades de cada espaço”.9 Ainda é muito cedo para avaliar o impacto dos colegiados no âmbito dos equipamentos culturais, no entanto, a perspectiva é que estes fóruns possam contribuir para tornar a gestão destes espaços mais democrática, republicana, com o olhar mais plural e próximo das reais demandas locais. Vale acompanhar esta iniciativa e seus desdobramentos, avaliar como será tratada às particularidades de cada território e a garantia da autonomia na participação nestas instâncias. REFERÊNCIAS BAHIA. Lei nº 12.365 - Lei Orgânica da Cultura. 30 de novembro de 2011. Disponível em <http:// www.fundacaocultural.ba.gov.br/colegiadossetoriais/LEI-ORGANICA-BAHIA.pdf> Último acesso em 16 de agosto de 2015. GRAU, Nuria Cunill. La gobernanza democrática en la administración federal brasilera. Una valoración de la contribuición a la accountability y a La democratización de la gestión pública de los modelos de participación implantados. Relatório elaborado para o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão/ Banco Mundial / PNUD. 16 de novembro de 2010. SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45.
9 Entrevista concedida ao autor em maio de 2016, em Salvador-Ba.
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SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO:
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós Graduação em Comunicação da PUC Minas, além de integrar o corpo docente do Curso de Comunicação Social. Professor da UEMG - Universidade do Estado de Minas Gerais, onde integra o corpo docente do Mestrado em Artes e coordena a Pós Graduação Lato Sensu em Gestão Cultural. Professor convidado do Programa de Pós Graduação em Cultura e Sociedade da UFBa. Coordena o GP Observatório da Diversidade Cultural, integra o Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura - CULT, coordena o Programa Pensar e Agir com a Cultura e integra a Rede de Pesquisadores em Políticas Culturais.
Mestre em Comunicação Social, Especialista em Novas Tecnologias em Comunicação; Pesquisador associado do Observatório da Diversidade Cultural; Assessor Especial da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte para a implantação do programa BH Cidade Líder da Agenda21 da Cultura (2015-2016), responsável pela reformulação da Lei Municipal de Incentivo à Cultura e outros marcos regulatórios no município; Consultor UNESCO para a implantação do Sistema Nacional de Cultura em Minas Gerais (2012-2013).
Artista-gestor-educador. Doutorando na Faculdade de Educação da Unicamp, SP, fez mestrado em Artes na ECA-USP. Integrante do Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural. É professor de teatro na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e docente na Faculdade de Artes da FAAP.
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Doutorando do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (UFBA). Pesquisador em formação e membro do CULT - Centro de Estudos Multidisciplinares em (IHAC/ UFBA) e da Rede Nacional de Formação de Pesquisadores em Políticas Culturais. Integrante do grupo Diversidade Cultural e Midiática liderado pelo prof. José Márcio Barros (UEMG/ PUC Minas). Participa do Projeto Planos Municipais de Cultura em Ambiente de Aprendizagem à Distância (MinC/ UFBA). Participa, também, do projeto pesquisa e formação em gestão e políticas culturais na América Latina aprovado pelo Mercosul Educativo.
Mestrando do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, do Instituto de Artes, Ciências e Humanidades, da Universidade Federal da Bahia. Exerce atualmente o cargo de professor substituto da Faculdade de Comunicação/ UFBA e atua como produtor cultural do Teatro Sesc Senac Pelourinho, em Salvador-Ba, desde 2011.
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SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL: O O Observatório da Diversidade Cultural – ODC – está configurado em duas frentes complementares e dialógicas. A primeira diz respeito a sua atuação como organização não-governamental que desenvolve programas de ação colaborativa entre gestores culturais, artistas, arte-educadores, agentes culturais e pesquisadores, por meio do apoio dos Fundos Municipal de Cultura de BH e Estadual de Cultura de MG. A segunda é constituída por um grupo de pesquisa formado por uma rede de pesquisadores que desenvolve seus estudos em várias IES, a saber: PUC Minas, UEMG, UFBA, UFRB e USP, investigando a temática da diversidade cultural em diferentes linhas de pesquisa. O objetivo, tanto do grupo de pesquisa, quanto da ONG, é produzir informação e conhecimento, gerar experiências e experimentações, atuando sobre os desafios da proteção e promoção da diversidade cultural. O ODC busca, assim, incentivar e realizar pesquisas acadêmicas, construir competências pedagógicas, culturais e gerenciais; além de proporcionar experiências de mediação no campo da Diversidade Cultural – entendida como elemento estruturante de identidades coletivas abertas ao diálogo e respeito mútuos. Desenvolvimento, orientação e participação em pesquisas e mapeamentos sobre a Diversidade Cultural e aspectos da gestão cultural. Desenvolvimento do programa de trabalho “Pensar e Agir com a Cultura”, que forma e atualiza gestores culturais com especial ênfase na Diversidade Cultural. Desde 2003 são realizados seminários, oficinas e curso de especialização com o objetivo de capacitar os agentes que atuam em circuitos formais e informais da cultura, educação, comunicação e arte-educação para o trabalho efetivo, criativo e transformador com a cultura em sua diversidade. Produção e disponibilização de informações focadas em políticas, programas e projetos culturais, por meio de publicações e da atualização semanal do portal do ODC e da Rede da Diversidade Cultural – uma ação coletiva e colaborativa entre os participantes dos processos formativos nas áreas da Gestão e da Diversidade Cultural. Prestação de consultoria para instituições públicas, empresas e organizações não-governamentais no que se refere às áreas da cultura, da diversidade e da gestão cultural.com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes.
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SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL: O Boletim do Observatório da Diversidade Cultural é uma publicação mensal em que pesquisadores envolvidos com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes. Para colaborar com o Boletim, envie textos para: tailzemelo@yahoo.com.br
Concepção e coordenação geral: José Márcio Barros Conselho Editorial: Giselle Dupin – MINC – http:// lattes.cnpq.br/ 2675191520238904 Giselle Lucena – UFAC – http:// lattes.cnpq.br/ 8232063923324175 Humberto Cunha – UNIFOR – http:// lattes.cnpq.br/ 8382182774417592 Isaura Botelho – SESC SP – http:// lattes.cnpq.br/ 3961867015677701 Luis A. Albornoz – Universidad Carlos III de Madrid – http:// portal.uc3m.es/ portal/ page/ portal/grupos_investigacion/ tecmerin/ tecmerin_investigadores/Albornoz_Luis Núbia Braga – UEMG – http:// lattes.cnpq.br/ 6021098997825091 Paulo Miguez – UFBA – http:// lattes.cnpq.br/ 3768235310676630 Coordenação editorial: Camila Alvarenga e Tailze Melo Projeto gráfico: Dânia Lima Revisão editorial e revisão de texto: Tailze Melo
boletim@observatoriodadiversidade.org.br www.observatoriodadiversidadecultural.com.br
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