Boletim Observatório da Diversidade Cultural - Abril 2017

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BOLETIM

Democracia e Diversidade Cultural em Tempos de Crise

Foto: MĂ­dia Ninja

V67, N.03.2017 - Abril 2017


REALIZAÇÃO

Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural

PARCEIROS Programa de Pós-Graduação em Artes

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social


BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL DEMOCRACIA E DIVERSIDADE CULTURAL EM TEMPOS DE CRISE



SUMÁRIO

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SOMAR AS DIVERSIDADES PARA SUPERAR O FASTIO DAS CRISES Jorge Edson Garcia

A DISFONIA DAS MINORIAS EM TEMPOS DE CRISE

Carlos Vinícius Lacerda

O FUTEBOL FEMININO EM TEMPOS DE CRISE: HOJE, ONTEM E AMANHÃ Mariana Luiza Augusto• Pedro Vasconcellos

COMO A CRISE ECONOMICA AFETA O SETOR CULTURAL E SEU PAPEL SOCIAL Júlia Demolin Roscoe

SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL


SOMAR AS DIVERSIDADES PARA SUPERAR O FASTIO DAS CRISES Jorge Edson Garcia

De tempos em tempos, os países enfrentam diferentes tipos de crises que impactam direta e indistintamente as sociedades globalizadas, promovendo súbitas mudanças nos comportamentos das pessoas e nos hábitos de consumo. Seus efeitos são percebidos também na política, nas instituições, nas ideias e nas relações que as sociedades mantêm com seus costumes, práticas e patrimônios culturais. Não há, portanto, como rejeitar a ideia de que as crises afetam as ecologias ambientais, sociais e culturais. Mais ainda, atingem frontalmente os esforços dos governos e das sociedades para garantir e ampliar o exercício da diversidade de gênero, étnica, religiosa e cultural. Nessas circunstâncias, essas crises colocam os governos, as empresas e as sociedades diante de um dilema, pois pesquisas mostram que justo a(s) diversidade(s) pode(m) ser a saída para superá-las. Estudo da Harvard Business Review (2016), com cerca de 700 empresas americanas, indicou que políticas de diversidade na contratação dos seus colaboradores tornaram-nas mais competitivas e inovado6


ras. Essa pesquisa revelou que companhias que privilegiam a diversidade têm 45% a mais de chances de aumentar a sua participação no mercado, quando comparadas com outras que não o fazem. No Brasil, a pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas de 2016, patrocinada pelo Instituto Ethos em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)1, evidenciou que somente 13,6% dos executivos são mulheres e 4,7% são negros(as), conquanto 43,1% contam com políticas para a inclusão de pessoas com deficiência. Confrontando essas duas pesquisas, percebe-se que a diversidade ainda não é um tema comum às corporações brasileiras, o que demonstra o quanto a exclusão de gênero e étnica estão inscritas na gestão dos negócios. Ampliando a visão sobre essa questão vislumbra-se o quanto é homogêneo e uníssono o perfil de uma corporação que exclui a diversidade dos locais de discussão, de reflexão e de decisão. Difícil entrever diálogo criativo nesse espaço, onde subjaz a busca irrefreável da lucratividade. Para Furtado (1964, p. 14), “a essência do pensamento dialético está na ideia simples de que o todo não pode ser explicado pela análise isolada de suas distintas partes”. A dialética se manifesta num ambiente composto de diferentes partes, com características distintas, complementares e preferencialmente sinérgicas. Observadas as proporções, significa dizer que a diversidade é intrínseca à dialética, que ambas se retroalimentam mantendo suas particularidades ao mesmo tempo em que criam novas possibilidades.

Disponível em https://www3.ethos. org.br/wp-content/ uploads/2016/05/Perfil_Social_Tacial_Genero_500empresas.pdf. Acesso em 21 mar. 2017. 1

Nessa perspectiva, é plausível que a diversidade contribua para tecer 7


soluções às crises, minimizando impactos negativos na economia, na política, nas instituições e entre grupos culturais particulares, e até engendrar convergências e/ou consensos entre ideologias distintas. Segundo o dicionário Michaelis2, diversidade significa “qualidade daquilo que é diverso... conjunto que apresenta características variadas, multiplicidade”, portanto, pode-se mobilizar esse vocábulo para se referir tanto à diversidade ambiental quanto à diversidade cultural. Ao associá-lo à cultura, constata-se a multiplicidade de manifestações, bens, patrimônios e serviços que moldam os modos de vida de diferentes povos, cujas formas de fazer, viver e sentir as suas culturas configuram os ambientes onde vivem e os distinguem dos demais. Para o Plano Nacional de Cultura (PNC)3, instituído pela Lei 12343/2010, Art. 3o Compete ao poder público, nos termos desta Lei: IV - proteger e promover a diversidade cultural, a criação artística e suas manifestações e as expressões culturais, individuais ou coletivas, de todos os grupos étnicos e suas derivações sociais, reconhecendo a abrangência da noção de cultura em todo o território nacional e garantindo a multiplicidade de seus valores e formações;

Disponível em http:// michaelis.uol.com.br/ busca?r=0&f=0&t=0&palavra=diversidade. Acesso em 23 mar. 2017 2

Disponível em http:// www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L6938.htm. Acesso em 23 mar. 2017. 3

Constituinte do meio ambiente cultural, a diversidade cultural brasileira é protegida também pelo artigo 216, da Constituição Federal de 1988, que explicita: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (...)”. Esse sistema de normas não guarda restrição a qualquer tipo de bem a ser determinado como patrimônio cultural, sendo eles materiais ou imate8


riais, singulares ou coletivos, móveis ou imóveis. Porém, segundo Álvarez (2008, p.69), as políticas culturais de salvaguarda à diversidade cultural, assim como os mecanismos de fomento à produção cultural, “são considerados incompatíveis com os dispositivos inerentes ao espírito dos acordos de livre-comércio bilaterais e multilaterais”. De acordo com essa autora, as políticas públicas de cultura variam de um país para outro, mas podem ser classificadas em duas categorias: as financeiras e as regulatórias. As financeiras referem-se às subvenções, empréstimos e isenções fiscais. As regulatórias incluem restrições quantitativas como quotas de mercado interno, assim como qualitativas que delimitam aos empresários nacionais a propriedade de empresas culturais e de mídia em seu nome. Nesse sentido, as políticas culturais que incluem a concessão de subsídios ao processo de produção e distribuição cultural são consideradas, por alguns países desenvolvidos, contrárias ao livre comércio e questionadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) (ÁLVAREZ, 2008). Em economias em desenvolvimento como no Brasil, por exemplo, as políticas culturais servem para incentivar a atividade cultural e reservar parte do mercado local aos produtos nacionais. Não fossem essas medidas, ainda que frágeis e em construção, a diversidade cultural, os espaços e os mercados de circulação e veiculação nacional já estariam integralmente em poder das grandes corporações internacionais do entretenimento, da mídia e da comunicação. Historicamente, a diversidade enfrenta inúmeras dificuldades para a sua conservação, valorização e promoção por descumprimento das legislações existentes, a especulação de territórios tradicionais, 9


a invasão de espaços sagrados, a ausência de proteção e de investimentos dos órgãos públicos, além do desrespeito de empresas transnacionais e de governos estrangeiros aos acordos de defesa e cooperação em favor da diversidade cultural (idem ambiental). Concorre, também, o avanço acelerado das tecnologias da informação e da comunicação que ignoram as barreiras geográficas, políticas, sociais e econômicas, ocasionando significativas alterações – algumas irreparáveis – em complexos sistemas socioambientais e socioculturais, afetando a tudo e a todos. Consequentemente, atingem as comunidades e os grupos culturais mais vulneráveis, via de regra menos organizados e pouco representados nos espaços de decisão política e econômica, causando crises que conduzem a fragmentação, a ressignificação e até a extinção dos seus modos de vida. Cite-se, a construção da usina de Belo Monte, em Altamira (PA), que desalojou ao menos cinco etnias indígenas e destruiu parte significativa da biodiversidade; ou ainda, a disputa pelo território da secular comunidade do Cajueiro, em São Luis (MA), área que sediou o Terreiro do Egito – um dos primeiros locais de culto afro do Maranhão – e que luta pela criação da Reserva Extrativista do Tauá-Mirim, ameaçada pela construção de um terminal portuário privado. Similarmente, as crises contribuem para solapar o direito ao trabalho, a educação e o usufruto dos patrimônios culturais tangíveis e intangíveis, ameaçando a diversidade e afetando a sociedade. Os seguidos cortes orçamentários nas áreas culturais causam desemprego, fecham equipamentos culturais, interrompem obras e impactam negativamente a prática da educação patrimonial, o cumprimento dos direitos culturais e o exercício da cidadania. Criado em 2013, o 10


PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) Cidades Históricas é uma ação governamental de recuperação e revitalização dos sítios históricos urbanos reconhecidos pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 44 cidades de 20 estados, com investimento em obras de restauração de R$ 1,6 bilhão4. No entanto, cortes sucessivos no orçamento têm comprometido o andamento dos projetos, a exemplo da redução de R$ 10,5 bilhões recentemente anunciada pelo governo federal. De outro modo, os cenários de crises suscitam conflitos comerciais, bélicos, étnicos e até culturais como frequentemente se observa na pirataria ou na expropriação dos saberes de povos e comunidades tradicionais. Não raro, violam os tratados bilaterais e/ou multilaterais, os direitos humanos e as fronteiras dos países que litigam por causas “sagradas”. Intencionando harmonizar essa situação, vários acordos foram e são habitualmente constituídos entre grupos humanos, empresas e governos para mitigar os danos dessas crises. Entre os resultados estão a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972)5, a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial6 e a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005)7. Teoricamente, são pactos multilaterais ratificados pelos governos, assumidos pelas empresas e disseminados nos grupos humanos para que as diversidades sejam valorizadas, preservadas e compartilhadas. Subjacente a essas convenções, existe a premissa de que as ameaças às diversidades afetam o progresso social, político, ambiental e econômico, mas se inversamente forem apreciadas podem alavancar e dinamizar

Disponível em http://portal.iphan.gov.br/pagina/ detalhes/235. Acesso em 06 abr. 2017.

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Disponível em http:// www.unesco.org/culture/ ich/doc/src/00009-PT-Portugal-PDF.pdf. Acesso em 07 abr.2017 6

Disponível em http://unesdoc.unesco. org/images/0015/ 001502/150224por.pdf. Acesso em 23 mar. 2017. 7

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o desenvolvimento sustentável e inclusivo. Com esse quadro, as crises tornam-se mais agudas e ampliam os conflitos econômicos e culturais, pois, institucionalizam disputas comerciais em torno da diversidade que hipoteticamente deveria forjar acordos de cooperação entre países e promover a união dos povos. Fomentar políticas de salvaguarda das diversidades culturais significa respeito às diferenças e reconhecimento da capacidade de interação umas com as outras, numa sociedade globalizada. Como sublinha Álvarez (2008, p. 30), a “maioria das sociedades contemporâneas é multicultural, multiétnica ou mestiça, o que significa dizer que a enorme variedade de identidades simbólicas e expressivas as caracteriza”. Sobre o risco do estabelecimento de um padrão mundial de cultura, a pesquisadora pondera que essa interação não implica na eliminação da diversidade [...] ao contrário, provê o contexto para a produção de novas formas culturais, as quais estão marcadas por especificidades locais e evoluem em um processo virtuoso e dinâmico a partir dos inputs que recebem, perfazendo o eterno ciclo de recriação e reprocessamento, que é próprio da cultura. (ÁLVAREZ, 2008, p. 31).

Concluindo, é oportuno que as crises suscitem na sociedade, no empresariado e na política o debate sobre quais contribuições as diversidades podem emprestar para superar essa circunstância – cíclica, estrutural ou sistêmica. Para Rubim (2011), uma alternativa é a democratização e a ampliação das políticas culturais que privilegiam a diversidade de criação, pois “cabe imaginar – a imaginação em tempo 12


de crise é fundamental – um novo e ativo papel para o Estado” (RUBIM, 2011, p. 23). As crises, localizadas ou globalizadas, podem gerar as oportunidades para ampliar o campo das políticas públicas de cultura, a identificação de potenciais endógenos para novos modelos de desenvolvimento, assim como alçar esse setor a um espaço de discussão mais privilegiado. E, enquanto houver quem produza cultura, a diversidade cultural será a única “commoditie” com matrizes inesgotáveis, dado o excesso de oferta de criatividade instalada em diversos setores artísticos.

Referências ÁLVAREZ, Vera Cíntia. Diversidade cultural e livre-comércio: antagonismo ou oportunidade? Brasília: UNESCO, IRBr, 2008. 292 p. FURTADO, Celso. Dialética do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1964. RUBIM, Antônio Albino Canelas. Crise e políticas culturais. In: Cultura e desenvolvimento: perspectivas políticas e econômicas. BARBALHO, Alexandre et al, organizadores. Salvador: Edufba, 2011. 287 p.

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A DISFONIA DAS MINORIAS EM TEMPOS DE CRISE Carlos Vinícius Lacerda

No dia 6 de abril de 2017, o Ministério da Educação (MEC) publicou o documento norteador de ações educacionais para todo país, o Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Essa declaração é entendida e interpretada como o principal instrumento para estabelecer “os direitos, os conhecimentos, as competências e os objetivos de aprendizagem para todas as crianças e adolescentes brasileiros desde a Educação Infantil até o Ensino Médio” , como cita a apresentação no site oficial. É um documento que abrange todo o país e orienta sobre as formas de tratamento, normas e afins para serem adotadas no ensino. Por tudo isso, o documento deve(ria) considerar todos aspectos da diversidade cultural encontradas no Brasil, como etnia, posicionamento religioso, orientação sexual, identidade de gênero, povos indígenas, negros, ambientalistas e afins. No entanto, a versão apresentada do BNCC vai na contramão da manutenção e estímulo à diversidade cultural. Essa última versão, que se refere apenas ao ensino infantil e ao fundamental, omite as expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual” em trechos que discorrem sobre práticas de tratamento e de criação de um ambiente

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saudável para estudantes. Na página 11, por exemplo, o fragmento tratava de como as instituições escolares deveriam ser ambientes abertos e agradáveis da seguinte forma: ``independentemente de aparência, etnia, religião, sexo, identidade de gênero, orientação sexual ou quaisquer outros atributos, garantindo que todos possam aprender``. Na versão em vigor, as expressões identidade de gênero e orientação sexual foram eliminadas. A ação do governo do presidente, Michel Temer, além de apontar para um retrocesso em relação às conquistas da comunidade LGBT, ilustra como em tempos de crise as minorias tornam-se mais vulneráveis. Mas, de qual minoria estamos falando? E o que chamamos de tempos de crise? O estudioso Muniz Sodré tem um breve e belo texto, “Por um Conceito de Minoria”, que contribui para o entendimento de como esses grupos têm seus direitos expostos em momentos em que pilares da democracia são danificados. Para Sodré, em uma perspectiva prática, os grupos minoritários são caracterizados, principalmente, pela busca para ter uma “voz ativa ou intervirem nas instâncias decisórias do Poder aqueles setores sociais ou frações de classe comprometidos com diversas modalidades de lutas assumidas pela questão social” (SODRÉ, 2009, p.12). Vítimas de tratamento desigual, as minorias encontram-se em situação vulnerável perante a organização social vigente e, além disso, segundo 15


Sodré (2009), assimilam os seguintes aspectos: 1. Vulnerabilidade jurídico-social: integrantes de minorias não têm seus grupos integrados ou institucionalizados pelas regras do ordenamento jurídico. Como regras em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção de crianças por casais formado por pessoas do mesmo sexo, uso de nome social etc. 2. Identidade in statu nascend: segundo Sodré, essa seria a condição de identidade em formação que se alimenta da força e dos estados nascentes. 3. Participam de luta contra-hegemônica: a luta dos grupos minoritário estrutura-se em torno do objetivo de redução do poder hegemônico tomado pelas instituições e pelo interesse dos indivíduos que as dirigem. Os lugares de interação midiática, como jornais, TV e redes sociais, são um local de disputa. 4. Estratégias discursivas: passeatas, invasões episódicas, manifestos, revistas e campanhas em geral são um dos meios que as minorias utilizam para demonstrar sua luta e mostrar a sociedade os assuntos os quais devem ser debatidos para que a igualdade de direitos aconteça. De outro lado, o autor completa sua acepção sobre minoria ao afirmar que essa está em um lugar (no sentido topológico) “em que pro16


duz um fluxo de discursos e ações com o objetivo de transformar um determinado ordenamento fixado no nível das instituições e organizações” (SODRÉ, 2009, p. 11). Dentro desse arcabouço, podemos citar os homossexuais, mulheres, povos indígenas, os ambientalistas, entre outros. O que um grupo minoritário almeja é sensibilizar a sociedade, por meio de seu discurso, para, assim, conseguir intervir em decisões do Poder que influenciam no estabelecimento dos direitos de igualdade, na acessibilidade de seus integrantes e no reconhecimento de suas subjetividades e identidades. Por outro lado, percebemos que, ao precisar lutar para ter sua voz propagada - e, com sorte, ouvida - as minorias vivem em penumbra discursiva, na qual seus atos, mesmo pertinentes do ponto de vista histórico e social, têm visibilidade reduzida e, embora sejam muitas vezes vistos, não recebem atenção que necessitam e muito menos ações efetivas esperadas. Esse cenário, no entanto, vinha aos poucos se modificando no Brasil ao longo do governo de Lula e Dilma Rousseff, como aponta o cientista político e professor da Universidade Federal de Brasília (UNB), Luiz Felipe Miguel: Os anos petistas foram acompanhados por uma sensação de que hierarquias seculares estavam sob ameaça. As mulheres, lésbicas, os gays e as travestis, as populações negras, as periferias - grupos em posição subalterna passaram a reivindicar cada vez mais o direito de falar com sua própria voz, a questionar sua expulsão de muitos espaços, 17


a reagir à violência estrutural que os atinge. Políticas de governo apoiaram tais movimentos, desde as cotas nas universidades até o financiamento para a produção audiovisual periférica. Os privilegiados perderam a sensação de que sua superioridade social era natural, logo incontestável, e perderam também a exclusividade na ocupação de posições de prestígios. (MIGUEL, 2016 p. 35)

Ato em Solidariedade às vítimas de LGBTfobia em Orlando em Brasília. Foto: Mídia Ninja

Como exemplificado no início deste texto, esse cenário começa a ser modificado porque estamos em tempo de crise. Mas, como indagado acima, o que significa este ‘‘tempos de crise’’? E, de posse desse breve relato sobre minoria e sua recente história no Brasil, como essa crise influencia os direitos conquistados dessa minoria? Certamente, responder a essas perguntas demandaria um aprofun18


damento maior sobre o contexto político brasileiro do que prevê o escopo deste texto. No entanto, não é impossível fazer uma parca explanação sobre elas. Em uma das explicações do dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a palavra crise é descrita pela perspectiva medicinal como ‘’uma mudança súbita ou agravamento que sobrevém no curso de uma doença aguda (por exemplo, crise cardíaca ou crise de epilepsia)’’ . Embora a descrição seja direcionada para área médica, talvez seja uma oportuna definição para traçar um paralelo com aquilo que chamamos de tempos de crise no Brasil devido o caráter intempestivo e pernicioso das transformações que o país experimenta atualmente. Antes do dia 31 de agosto de 2016, a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, eleita por voto direto, foi deposta de seu cargo no Executivo por um processo de impedimento orquestrado pelo Congresso Nacional. O vice-presidente, o já citado Michel Temer, assumiu o governo brasileiro e, desde então, promove políticas que vêm causando profunda transformação social. Obviamente, essa não foi a única mudança que aconteceu no país para instaurar o “tempo de crise”. Diferentes perspectivas irão apresentar vários acontecimentos, como as manifestações de 2013 e o crescimento de operações de investigação anticorrupção, como a Lava Jato, como fatores que influenciaram e (continuam a fazê-lo) para a desestabilização política e econômica do Brasil. Infelizmente não é difícil citar episódios que contribuam para a constituição desse estado.

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Contudo, foi a destituição da presidente Rousseff de seu cargo o fato mais impetuoso de todos eles, tanto pelo processo de impedimento ser altamente questionável e, por isso, ferir a democracia então vigente, quanto pela repercussão midiática, social e política. Por isso, a queda da presidente é o melhor símbolo de transição de um estado brasileiro com estabilidade para um outro, bem menos estável, que, devido a sua gênese, fatalmente se tornaria cenário para implementação de medidas impopulares. Considerando, novamente, o exemplo do significado médico para crise, podemos estabelecer uma comparação para a situação descrita com uma crise cardíaca: depois de tê-la você poderá ou não ter sequelas. Mas, se as tiver, será preciso saber que elas não serão agradáveis e provocarão alterações na sua vida. E são justamente alterações que as políticas adotadas pelo sucessor da presidente vêm causando. São políticas que apontam para um novo direcionamento, que abraçam aspectos do neoliberalismo. O que, grosso modo, resulta em um achatamento dos espaços para minorias e suas reivindicações, uma vez que a base do congresso brasileiro é formada por políticos ligados aos interesses de empresas privadas que, vorazes, não titubeiam em manipular aparelhos estatais em virtude de seu próprio enriquecimento. Vide as reformas da Previdência e da Terceirização. Basicamente, nesse contexto, as minorias vivem à mercê dos objetivos das instituições que, desinteressadas pelo discurso desses grupos, tomam as decisões relacionadas a políticas públicas que desdenham tanto da representatividade almejada quanto da adquirida, como exemplificado pelo desaparecimento das expressões “identida20


de de gênero” e “orientação sexual” no documento da BNCC. Retomando as comparações, o “tempos de crise” talvez seja como uma laringite para minorias que, entre as diversas dores causadas pela inflamação, sofre muito com a disfonia. Esse sintoma, no entanto, desaparece graças a luta constante do organismo e uma (possível) contribuição externa de remédios. De qualquer forma, é preciso lutar.

Referências BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov. br/a-base>. Acesso em: 10 de abril de 2017. GOMES, Weslaine Wellida. A Diversidade Cultura e o Direito à Igualdade e à Diferença. In:_________. Revista Observatório da Diversidade Cultura. Belo Horizonte: Observatório da Diversidade Cultural, 2014. Volume 1, número 1. Pág. 141-152. MIGUEL, Luiz Felipe. A democracia na encruzilhada. In: JINKINGS, Ivana; KORIA, Kim; CLETO MURILO (Org). Por que gritamos golpe?. São Paulo. Boitempo; 2016. 1ª Edição.. Pag. 31-37. SODRÉ, Muniz. Por um Conceito de Minoria. In: Comunicação e Cultura das Minorias, Raquel Paiva e Alexandre Barbalho (Org). São Paulo: Paulus, 2005. Pag. 11-14.

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O FUTEBOL FEMININO EM TEMPOS DE CRISE: HOJE, ONTEM E AMANHÃ Mariana Luiza Augusto Pedro Vasconcelos

Imaginem um clube de futebol da primeira divisão de um estado importante do Brasil que, sem recursos para pagar as taxas básicas das inscrições de seus atletas junto à Federação da qual é associado, abdica de sua vaga no principal torneio da região. A vaga permanece em aberto, não existem outros clubes profissionais dispostos a arcar com os valores padrões, que fazem parte do cotidiano burocrático de grande parte das modalidades de futebóis1. Este é um cenário inimaginável no futebol de espetáculo. O futebol profissional masculino – evidenciado no Brasil, sobretudo pelos clubes inscritos nas séries A e B, (Primeira e Segunda divisão, respectivamente), do campeonato nacional, em que se concentram os maiores salários e os melhores patrocínios. Embora possua uma infinidade de dívidas e, seja atingida pelos efeitos da crise econômica, a matriz espetacular definida por Damo (2005) opera com cifras altas, que diferencia o futebol de outros esportes no Brasil. Já no futebol de várzea2, essa situação seria facilmente visualizada. Nele convivem, organicamente, a precariedade e a prática do jogo.

Arlei Sander Damo (2005) é um pesquisador referência para os investigadores do futebol das mais diversas áreas acadêmicas. Adota o termo futebol no plural: futebóis e, os dividem em matrizes que nos fazem entender suas diferenças. 1) A matriz do futebol bricolado – a que compreende configurações nas quais se admite as mais diversas variações a partir da “unidade futebolística”, como é o caso da pelada do final de semana, futebol em família ou com os amigos e da brincadeira entre as crianças; 2) A matriz escolar – normalmente compreendida por sua característica educadora e integradora, que 1

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Inevitavelmente, os clubes tradicionais fecham as portas por algumas temporadas, seja pela falta de recursos nestes contextos ou por problemas como a especulação imobiliária envolvendo a perda de seus campos, fontes primárias de renda dessas equipes. Os dois exemplos de futebóis tão destoantes apresentados servem para contextualizar em que lugar se encontra, hoje, o futebol feminino profissional no país; guarda mais semelhanças com a prática esportiva varzeana do que com o futebol profissional praticado por equipes das séries inferiores do futebol masculino. A situação que descrevemos, no início do texto, aconteceu há pouco menos de um mês para o início do Campeonato Pernambucano de Futebol do ano de 2017 e foi retratada em uma matéria 3 de um importante portal esportivo do estado de Pernambuco, o portal do superesportes. O texto descreve a situação vivida pela equipe feminina do Central, que desistiu da sua participação no torneio por meio de um ofício. O clube culpou a crise financeira por afetar diretamente a sua receita que depende, sobretudo, de incentivos fiscais e de doações de empresas. Por falta de outras equipes profissionais interessadas na vaga junto a FPF (Federação Pernambucana de Futebol) abriu-se o precedente para que a equipe amadora do Sete de Setembro da cidade Garanhuns-PE se candidatasse à vaga deixada pela equipe de Caruaru-PE. Situação, no mínimo, inusitada. A substituição de um time profissional por uma equipe do circuito varzeano expõe um futebol feminino, composto de instituições bastante fragilizadas, não apenas pela crise financeira

valoriza as disputas entre classes e colégios distintos, aonde tardiamente o futebol feminino foi incorporado às grades escolares.; 3) O futebol espetacularizado – que exige a presença de público, seja no estádio ou em plataformas midiáticas. No Brasil entendemos como futebol espetacularizado aquele futebol da primeira e da segunda divisão do campeonato Brasileiro. Compreendemos como futebol de várzea, neste texto, o futebol comunitário. Também destacado nas matrizes de Arlei Damo (2005) como o lugar de futebol amador, normalmente praticado nos famosos terrões 2

Matéria disponível em: <http://www.pe.superesportes.com.br/app/ noticias/futebol/futebol-nacional/2017/04/05/ noticia_futebol_nacional,47082/alegando-crise-financeira-central-desativa-time-feminino-e-abdica-de.shtml>. Acesso em: 19 de abril de 2017. 3

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atual que reflete algumas das dificuldades, mas, por uma crise perene, presente desde os primórdios da prática do futebol pelas mulheres. A crise perene, destacada neste texto, pode ser percebida desde os primórdios do desenvolvimento do futebol na Inglaterra no final do século XIX, quando o futebol, assim como outros esportes, se desenvolveu sob a égide da moralidade masculina. Nobert Elias e Eric Dunning (1992), em seus trabalhos de referência, associam o processo de desportivização ao procedimento “civilizador” das sociedades, canalizador da violência intuitiva dos atletas outrora despendida nas guerras e barbáries, cometidas, em sua maioria, pela figura masculina. Na escalada da globalização, o futebol masculino se desenvolveu paralelamente à produção capitalista. Tornou-se o epicentro de uma rede complexa de produtos esportivos, que extrapolam as tensões produzidas pelo jogo dentro de campo, e geradora de uma espécie de produto derivado da falação esportiva, ou seja, do discurso que se produz a partir do jogo, como define Eco (1984). Não nos aprofundaremos nestas questões por agora, embora seja crucial identificar as naturezas organizativas distintas que operam no futebol masculino e feminino. Para facilitar a discussão que estamos propondo, vamos nos ater a comparações acerca do futebol nacional. Uma vez que o futebol feminino, em países com uma tradição esportiva maior, tem um grande fôlego na matriz escolar definida por Damo (2005). Reafirmamos que os futebóis são muitos e variam dentro da mesma modalidade. O futebol de espetáculo masculino, por exemplo, corres24


ponde a uma porcentagem mínima. Dados4 recentes da Federação 4 Dados disponíveis em : Nacional dos Atletas Profissionais (Fenapaf), mostram que, dos mais http://www.fenapaf.org.br/. Acesso em 19 de abril de de 30 mil atletas que atuam no futebol do Brasil, cerca de 82% dos 2017 jogadores registrados recebem, no máximo, dois salários mínimos — incluindo atletas que jogam apenas por amor a camisa. Aqueles que recebem mais de 20 salários mínimos são exceção, estes jogadores, superstars, estão na outra extremidade desta estatística e correspondem somente a 2% dos jogadores do país. Visto por este ângulo ampliado, a situação do profissional do futebol é desalentadora. O caso se agrava se tomarmos como parâmetro a inexistência de dados sobre médias salariais das jogadoras mulheres. A ausência de investimentos sistemáticos faz com que clubes e atletas vivenciem um cenário de incertezas. A ausência de patrocinadores e de investimentos sistemáticos, por parte das federações, faz com que os clubes não consigam se solidificar, impede que se estruturem, criem laços com suas comunidades e, em longo prazo, consigam implementar um modelo de negócio autossustentável. Recentemente, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) realizou um esforço para criar o campeonato nacional. Desde 2013, em parceria com a Caixa Econômica Federal5, a instituição organiza um torneio com 20 clubes. Nste ano houve mais um avanço, a CBF anunciou a formulação da série A2, a correspondente segunda divisão do campeonato nacional. Para toda a temporada do futebol feminino a Caixa investiu, em 2016, cerca de 16 milhões de reais somando os recursos destinados à Copa Verde, competição da região nordeste do futebol masculino, e ao Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino. O valor

Dados e valores disponíveis em:http://www20. caixa.gov.br/Paginas/ Noticias/Noticia/Default. aspx?newsID=3316. Acesso em: 19 de abril de 2017. 4

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é distribuído pela CBF através das permeações, publicidades e ajuda de custo para viagens e manutenção das equipes. Valor que, embora pareça ser substancial, é insuficiente para manter um circuito de futebol sustentável e com uma periodicidade que extrapole a duração do torneio. Em contrapartida, o banco público investe quase 115 milhões de reais em patrocínios diretos a 12 clubes de futebol masculino do país. Lócus de uma série de investigações por parte do FBI (Federal Bureau of Investigation), a CBF sofre em 2017 com a debandada de alguns de seus principais doadores. Em meio à crise financeira e moral, a entidade pretende transferir, no próximo ano, a responsabilidade do futebol feminino para os clubes de futebol masculino. Em 2018, o Regulamento de Licença dos Clubes passa a incluir que os clubes que disputam os principais torneios de futebol brasileiro e do continente mantenham uma equipe feminina. Para muitos, esta será uma medida infrutífera. Alguns dirigentes já se posicionaram em relação à lei que consideram autoritária. Outros afirmam que, provavelmente, nada vai mudar e que alguns clubes vão apenas se apropriar de equipes varzeanas já existentes, sem lhes dar as condições necessárias para disputar competições importantes. Embora esses incentivos sejam louváveis e necessários, o que se constata, na prática, é que o futebol feminino é um problema do qual todos querem se livrar: o Estado, os clubes e a iniciativa privada. O resultado são as péssimas médias de público nos estádios e a baixa repercussão dos torneios nacionais femininos de futebol nas grades dos canais fechados de esporte que detêm o direito de transmissão 26


das partidas, além, é claro, do esforço sobrenatural das jogadoras que insistem em jogar futebol. O desinteresse geral nos faz acreditar que a crise do futebol feminino não é só econômica, mas, também, cultural e estruturante. Comumente, ainda escutamos a famigerada frase: ‘’futebol é coisa para homem!’’. Segundo Chaves (2007), a figura da mulher sempre apareceu de forma tímida nos estudos e nos relatos históricos do futebol no país. Em parte, devido ao Decreto-Lei 3.199 de 1941, publicado no período de governos do mandatário Getúlio Vargas, que persistiu até o ano de 1975. O pesquisador atribui grande parte do atraso do futebol feminino a esta proibição, que, quando revogada, já encontrou um futebol masculino pleno, com clubes desenvolvidos e torcedores formados. Desse modo, quando discutimos a influência do futebol na cultura brasileira; a paixão do brasileiro pelo futebol; ou até a formação do caráter do brasileiro a partir da modalidade esportiva, precisamos deixar claro de qual futebol estamos falando. O futebol feminino carece não só de investimentos financeiros e institucionais, mas, de ser entendido como uma modalidade esportiva com suas especificidades, cultura e pernas próprias. O esporte não é um capitulo a parte da sociedade e precisa ser pensado de forma sistêmica. As iniciativas, tanto institucionais como governamentais, só funcionarão efetivamente se estiverem em diálogo com a demanda das mulheres jogadoras que, aparentemente, anseiam por dar passos maiores, com um calendário que viabilize a profissão todos os anos. A diversidade de gênero precisa ir além das celebrações promovidas em torneios esporádicos e em período olímpico. Quem deve conduzir esse processo de mudança são as próprias mulheres. 27


Dos campos de várzea às grandes arenas, a macheza como valor e o machismo como padrão, ainda imperam, embora valentes jogadoras, torcedoras e pesquisadoras perseverem em adentrar neste ambiente tão hostil e sexista – suscitando importantes discussões, que podem ser o ponta pé inicial para primeiro compreender e depois superar esta “crise” que nunca esteve distante do universo do jogo feminino.

Referências CHAVES, Alex Sandro. O futebol feminino: uma historia de luta pelo reconhecimento. Revista Digital, Buenos Aires, Ano 12, n.111, agosto de 2007. Disponível em: <http://www.efdeportes.com/efd111/o-futebol-feminino.htm> Acesso em 19.04.2017 DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. 2005. 435 p. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola Superior de Educação Física, 2005. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/5343>. Acesso em 03.04.2016. ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992. ECO, Umberto. A falação esportiva - viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1984. ALEGANDO crise financeira, Central desativa time feminino e abdica de vaga no Estadual. Superesportes. Recife. 05 de abril de 2017. Disponível em: <http://www.pe.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/futebol-nacional/2017/04/05/noticia_futebol_ nacional,47082/alegando-crise-financeira-central-desativa-time-feminino-e-abdica-de. shtml>. Acesso em: 19 de abril de 2017. 28


COMO A CRISE ECONÔMICA AFETA O SETOR CULTURAL E SEU PAPEL SOCIAL Júlia Demolin Roscoe

Diversos projetos culturais dependem da Lei Rouanet, um incentivo fiscal que permite a doação de uma porcentagem do imposto de renda (IR) do ano anterior (4% para pessoa jurídica e 6% para pessoa física). Com a atual crise econômica brasileira, a arrecadação conquistada por meio dessa lei diminuiu de tal forma que afeta a ação social que os projetos culturais desempenham nas comunidades, assim, muitas instituições precisam fazer uso de outras possibilidades de financiamento a fim de manter seus trabalhos. Em 2014, 3.273 projetos culturais foram beneficiados pela Lei Rouanet que arrecadou cerca de R$ 1,3 bilhão. Esse valor manteve-se na média dos anos anteriores. Contudo, com a crise, em 2015, o número de projetos artísticos-culturais baixou para 2.977, com uma arrecadação total de R$ 1 bilhão. Nesses valores, não está incluso a ajuda financeira do próprio Governo.

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Efeitos da crise Segundo a economista Eleonora Bastos, os “desdobramentos sobre o patrocínio cultural via Lei Rouanet são difíceis. Ainda que mantidos como percentual do lucro, houve redução significativa no resultado das empresas com o aumento de déficits e fechamento de empresas.” Como as pessoas jurídicas desempenham um importante papel dentro dessas arrecadações, representando a maior soma delas, o resultado negativo decorrente da crise impossibilita a participação no incentivo da Lei Rouanet. Portanto, a recessão econômica afeta diretamente as instituições culturais. “Sem considerar que a Lei Rouanet implica em renúncia fiscal, num momento de queda da arrecadação e aumento de gastos, sejam sociais (previdência), sejam financeiros com déficit fiscal acumulado desde 2014”, explica Eleonora quanto ao motivo de muitas pessoas não conseguirem realizar as doações. Afinal, é necessário já ter o dinheiro que só será descontado do imposto de renda no ano seguinte. Ela aponta que, “até o momento, há resposta positiva [do mercado], porém, muito fraca, indicando que a recuperação será lenta”. Esse é mais um motivo para as instituições culturais encontrarem outras formas de apoio financeiro. A engenheira civil, Maria Angélica Santana conta que “com o imposto de renda, eu não ajudo. Na verdade, eu nem sei como fazer, eu gostaria de aprender”. Esse é um exemplo do que acontece na realidade. Em uma pesquisa básica**, buscando quem entrevistar para a escrita desse tex30


to, percebemos que a maioria da população brasileira não sabe como utilizar a Lei Rouanet para doar parte do imposto de renda para uma instituição de sua escolha e, indo além, muitos nem mesmo conhecem essa possibilidade. Apesar de não estar familiarizada com o processo da doação do IR, Angélica encontrou outras maneiras de fazer sua parte. “Eu faço outras doações, para o Criança Feliz, que é uma instituição que ajuda crianças de rua; para a Embaixada do Altíssimo, que ajuda crianças e mães em estado de risco [...]; e a Cidade Refúgio, que é uma instituição para moradores de rua”. Mesmo com a crise econômica no Brasil, Angélica e sua família continuam ajudando com parcelas mensais. “Eu tenho visto redução. Realmente, eles estão pedindo mais ajuda por causa que muitas pessoas perderam o emprego”. As três instituições ajudadas por Angélica fazem o trabalho de, não apenas abrigar e tratar pessoas necessitadas, como também de possibilitar o reingresso na sociedade. “Nas [instituições] de criança, eles têm aula de artesanato; na Cidade Refúgio, eles tentam inserir uma profissão, seja na construção civil, seja na culinária, marcenaria, carpintaria, alguma coisa manual”. A aplicação de trabalhos manuais é uma forma muito utilizada para ocupar o tempo dessas pessoas que, caso contrário, estariam nas ruas possivelmente em más condições de vida, sujeitas a violência, crimes e dro31


gas. Além disso, o uso da arte ajuda a desenvolver habilidades que podem ser aplicadas como meio de sustento. Por exemplo, aprender a cozinhar abre possibilidades como vender quitutes em feiras de rua, trabalhar como doméstica(o) ou até mesmo ser cozinheira(o) em restaurantes.

Workshop Raízes Ancestrais realizado na Fundação de Educacão Artística por meio de evento que conta com recursos da LFIC. Foto: Ana Slika

Papel social Berenice Menegale, pianista e uma das criadoras da Fundação de Educação Artística (FEA), percebe a relevância do contato de pessoas carentes com a cultura artística. “A Fundação, desde o começo, teve objetivo de ser inovadora, de ter projetos para ajudar a comunidade”, ela conta sobre a história da instituição autônoma que foi inaugurada, em 1963, para que “todo mundo que quisesse estudar música não deixasse de estudar”. 32


Atualmente, a FEA conta com 25% de bolsistas em seu quadro estudantil. A inscrição de bolsistas é realizada duas vezes ao ano. Berenice conta que “de uns anos para cá, foi aumentando o número de jovens que querem estudar música, isso em todas as faixas econômicas”. No entanto, a educadora nota diferenças entre esses jovens. “Esse aumento da demanda por bolsas mostrou uma realidade para a Fundação que é o seguinte: existe um número crescente de jovens nas comunidades de baixa renda com uma demanda muito grande por profissionalização em música. Os jovens na faixa do ensino médio estão à procura de alguma coisa para a vida deles”. Enquanto a maioria dos alunos de classe média em fase de vestibular optam por outras opções de curso, os bolsistas da FEA escolhem cursar música, seguindo o caminho musical iniciado na Fundação. “Os que entram na Fundação, a gente vê que eles estão salvos daquele ambiente de violência e de drogas”, comenta Berenice. Ela fala que o desempenho e a dedicação dos bolsistas são muitas vezes maiores do que dos outros. Contudo, são destacados dois problemas. O primeiro é a dificuldade de auxiliar crianças carentes, pois, diferentemente dos jovens, elas dependem de responsáveis para terem acesso aos lugares. Já o segundo problema é uma questão que compromete toda a existência da instituição: o patrocínio. Sendo uma organização autônoma e sem fins lucrativos, a Fundação de Educação Artística encontra dificuldades em arrecadar fundos, realida33


de essa vivida por muitas outras instituições culturais. Apesar de ter o benefício da Lei Rouanet, essa somente não é suficiente para conseguir doações à FEA. Com a crise econômica iniciada em 2015, Berenice Menegale conta que a dificuldade financeira aumentou. “Hoje há muitas empresas que não tiveram lucro, se a empresa não tem lucro ela não pode usar a Lei Rouanet”. Para tentar suprir a lacuna da arrecadação feita por empresas, a Fundação criou uma campanha para que as pessoas façam contribuições mensais com o valor que puderem ajudar. “Não podemos sobreviver sem patrocinadores e os patrocínios caíram muito, estão mais difíceis de conseguir, então estamos partindo para outro tipo de campanha, que é conclamar a sociedade a se filiar à Associação de Amigos da Fundação”, ela explica que a comunicação entre os associados será estreita, a fim de ambas as partes se beneficiarem. Para quem não puder fazer doações em dinheiro, há outras maneiras de contribuir. A pianista Berenice menciona alguns voluntários que se ofereceram a darem aulas e, assim, ajudarem a instituição. Essas são algumas das alternativas frente à crise econômica. Existem outras possibilidades de se obter ajuda, como parcerias com empresas e comunidades. Este é apenas mais um desafio para o meio cultural que já enfrenta dificuldades ao não ser priorizado na sociedade e no governo. Entretanto, essa é uma discussão para outra hora.

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SOBRE OS COLABORADORES DESTA EDIÇÃO Mestre em Desenvolvimento Regional, Especialista em Gestão Cultural e Bacharel em Ciências Sociais.

Jornalista e produtor cultural, Carlos Vinícius é atualmente mestrando em Comunicação Social na PUC-Minas, bolsista pela Capes e gestor de comunicação do Savassi Festival e do Café com Letras. É também integrante do grupo Observatório da Diversidade Cultural. E-mail: vinnielacerda@gmail.com.

Graduada em filosofia, mestre em sociologia e doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Jornalista, documentarista e mestre em Comunicação Social pela PPGCOM PUC Minas. É pesquisador do grupo Observatório da Diversidade.

Graduanda em Comunicação, com habilitação em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), integrante do Observatório da Diversidade Cultural.

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SOBRE O OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL O O Observatório da Diversidade Cultural – ODC – está configurado em duas frentes complementares e dialógicas. A primeira diz respeito a sua atuação como organização não-governamental que desenvolve programas de ação colaborativa entre gestores culturais, artistas, arte-educadores, agentes culturais e pesquisadores, por meio do apoio dos Fundos Municipal de Cultura de BH e Estadual de Cultura de MG. A segunda é constituída por um grupo de pesquisa formado por uma rede de pesquisadores que desenvolve seus estudos em várias IES, a saber: PUC Minas, UEMG, UFBA, UFRB e USP, investigando a temática da diversidade cultural em diferentes linhas de pesquisa. O objetivo, tanto do grupo de pesquisa, quanto da ONG, é produzir informação e conhecimento, gerar experiências e experimentações, atuando sobre os desafios da proteção e promoção da diversidade cultural. O ODC busca, assim, incentivar e realizar pesquisas acadêmicas, construir competências pedagógicas, culturais e gerenciais; além de proporcionar experiências de mediação no campo da Diversidade Cultural – entendida como elemento estruturante de identidades coletivas abertas ao diálogo e respeito mútuos. Desenvolvimento, orientação e participação em pesquisas e mapeamentos sobre a Diversidade Cultural e aspectos da gestão cultural. Desenvolvimento do programa de trabalho “Pensar e Agir com a Cultura”, que forma e atualiza gestores culturais com especial ênfase na Diversidade Cultural. Desde 2003 são realizados seminários, oficinas e curso de especialização com o objetivo de capacitar os agentes que atuam em circuitos formais e informais da cultura, educação, comunicação e arte-educação para o trabalho efetivo, criativo e transformador com a cultura em sua diversidade. Produção e disponibilização de informações focadas em políticas, programas e projetos culturais, por meio de publicações e da atualização semanal do portal do ODC e da Rede da Diversidade Cultural – uma ação coletiva e colaborativa entre os participantes dos processos formativos nas áreas da Gestão e da Diversidade Cultural. Prestação de consultoria para instituições públicas, empresas e organizações não-governamentais no que se refere às áreas da cultura, da diversidade e da gestão cultural.com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes.

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SOBRE O BOLETIM DO OBSERVATÓRIO DA DIVERSIDADE CULTURAL O Boletim do Observatório da Diversidade Cultural é uma publicação mensal em que pesquisadores envolvidos com a temática da diversidade cultural refletem sobre a complexidade do tema em suas variadas vertentes. Para colaborar com o Boletim, envie textos para: info@observatoriodadiversidade.org.br.

Coordenação geral: José Márcio Barros Conselho Editorial: Giselle Dupin – MINC – http:// lattes.cnpq.br/ 2675191520238904 Giselle Lucena – UFAC – http:// lattes.cnpq.br/ 8232063923324175 Humberto Cunha – UNIFOR – http:// lattes.cnpq.br/ 8382182774417592 Luis A. Albornoz – Universidad Carlos III de Madrid – http:// portal.uc3m.es/ portal/ page/ portal/grupos_investigacion/ tecmerin/ tecmerin_investigadores/Albornoz_Luis Núbia Braga – UEMG – http:// lattes.cnpq.br/ 6021098997825091 Paulo Miguez – UFBA – http:// lattes.cnpq.br/ 3768235310676630 Comissão editorial: José Márcio Barros e Giuliana Kauark Revisão editorial: José Márcio Barros e Giuliana Kauark Revisão de texto: Camila Alvarenga, Carlos Vinícius Lacerda e Julia Roscoe Diagramação: Carlos Vinícius Lacerda

info@observatoriodadiversidade.org.br www.observatoriodadiversidadecultural.com.br 39


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