Revista O BULE nº Dois

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servido pelo BULE

poemas »

08

micronarrativas »

05, 29

06, 34 resenhas » 22, 52 especial » 57 contos » 04, 09, 25, 26, 31, 37, 38, 54, 56 ensaio »



o vendedor de datas

claudio parreira

– Que tipo de datas o senhor vende? – Todos eles. Tenho datas de casamento, de nascimento, datas para espetáculos e solenidades, datas para sorrir e para chorar, et cetera. O meu catálogo é o mais completo. – E datas de falecimento? – São as mais procuradas, tanto que para elas ofereço diversas modalidades: falecimentos acidentais, criminosos, por tédio e, é claro, naturais. Lógico que para tais datas cobro uma taxa extra, mas o serviço é de primeira. – Posso escolher? – Por favor. – Esta aqui parece boa: 1° de abril de 2300. – Perfeitamente. Mas devo lhe avisar que períodos superiores a cem anos sofrem um acréscimo de cinqüenta por cento. – Dinheiro não é problema. Pago agora. – Quem manda é o senhor. Já escolheu a modalidade? – Morte natural. – Naturalmente. – Agora me diga: quais são as garantias de que só morrerei na data prevista? – Garantias? Do que o senhor está falando? – Do que eu estou falando? Essa é boa! Acabei de pagar uma fortuna pela data, não paguei? – Disse bem: pela data. Quem vende garantias é outra pessoa. E agora, com licença. O fim do mês está aí e o aluguel, o senhor sabe, não espera.

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Foto: Jonas Merian/Flickr

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pecados (sete microcontos)

bruna mitrano

Orgulho Abaixo a cabeça, o sangue pinga na letra redonda (a tal carta). Borra vermelha sobre fundo falso, minha tela mais viva. Inveja O desgraçado tão calmamente lambe o próprio saco, depois levanta os olhos pra mim como se me desafiasse a fazer o mesmo. Mas eu, que, apesar de curvo, mal consigo olhar pra baixo sem sentir a nuca , perdi de vista o meu, esquecido entre os pelos longos e embaraçados, sobre os quais descansa um pedaço de carne flácida, meu pau indolente. “Cachorro filho da puta, sabe como humilhar um velho”, digo rosnando, minha boca salivosa. Ira Ela enrosca um fio de cabelo no meu mindinho. O fio ruivo faz um torniquete no meu dedo. Ela me quer mutilado, ela me quer incompleto.

Afundo as unhas nas minhas coxas e arranco um pedaço da casca dura que brotou sobre minha pele. Surgem pontos vermelhos que crescem. Vejo pouco. Meus olhos foram abraçados por véus de poeira. Mas os pontos vermelhos crescem, na carne branca que, antes, escondia-se sob a casca. Avareza “Não dou”, ela diz. Gula Nunca passei fome, mas é como se passasse. Esconda essa nuca melada de suor, ou sua cabeça penderá sem metade do alicerce. Luxúria Não acreditava no papo engana-trouxa de amor sem sexo. Era uma mulher e tudo o que queria era ser vista como tal. Foi por isso que ela empinou o tronco e, com o dedo indicador como um pêndulo inverso disrítmico na direção do nariz dele, encheu a boca para dizer:— não preciso de um homem que me ame [pausa] preciso de um homem que me coma com vontade.

Bruna Mitrano - Tem 24 anos e mora no “velho oeste carioca”. Trabalhou tanto em micropaleontologia como em alfabetização de idosos. Hoje não faz muita coisa além de ler, ouvir música e observar pessoas desconhecidas. Teima em manter o www.deliriolilas.blogspot.com. Ah: e nunca publicou um livro.

Foto: Autor desconhecido/Morgue Files

Indolência

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{#malagueta 7}

as falsas autoriais

geraldo lima

É

público e notório que a internet encurtou a distância entre as pessoas. A facilidade de comunicação através de E-mail, Facebook, Orkut, MSN etc. é a comprovação do que acabo de dizer. Nesse espaço virtual, a informação circula livre e, às vezes, sem critérios. Um texto pode ser repassado ad infinitum e sofrer, nesse percurso, modificações. Isso, no entanto, não é novidade. Os textos orais, compilados tempos depois, sofrem também esse tipo de intervenção: os copistas podem introduzir ali modificações que alterarão o sentido do texto. Os textos bíblicos são um bom exemplo disso. Esse preâmbulo todo tem um único objetivo: arejar o ambiente para que eu fale de um fenômeno que tomou conta da internet: os tais textos atribuídos, de maneira equivocada ou não, a alguns escritores e artistas, como Luís Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor, Charles Chaplin, Artur da Távola e, acabo de descobrir, nosso poeta-mor Carlos Drummond de Andrade.

6 Fotos: Von Hedwig/Flickr

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Tocadas pelo caráter positivo de muitos desses textos, as pessoas vão repassando-os, numa cadeia infinita, sem se preocuparem com a veracidade da autoria. O importante, nesse caso, é o teor da mensagem. Logo, o impulso maior é passar adiante essa mensagem tocante, instrutiva e apaziguadora. É um processo contagioso. Como nos diz Jean Baudrillard, “... a mídia moderna tem em si uma potência viral, e sua virulência é contagiosa”. E esse vírus, esse texto de falsa autoria, mas engraçado ou edificante, vai bater, sem dúvida, na sua caixa de mensagens. A essa altura do texto, alguém já deve estar me indagando indignado: E qual o problema de se repassar esses textos, seu estraga-prazeres, se a intenção é sempre a melhor possível? A princípio, não vejo nenhum problema, mas para alguns autores cujo nome aparece nesses textos talvez haja sim. Alguns sentiram a necessidade de negar publicamente a autoria do texto atribuída a eles. Ariano Suassuna, por exemplo, negou, num programa de TV, a autoria de uma carta que começou a circular na internet após a derrota do Sport na Libertadores. Na carta, entre outras coisas, havia provocações à torcida de outros times pernambucanos, coisa que o autor de O Auto da Compadecida jamais faria, ainda que seja torcedor apaixonado do Sport.


O que me deixa pasmo é a facilidade com que as pessoas vão tomando esses textos como verdadeiros em relação à sua autoria. Se você conhece o texto de Luis Fernando Veríssimo, jamais vai tomar como de sua autoria um texto que apresente um humor grosseiro, sem sutilezas, e de linguagem deselegante. O mesmo pode-se dizer do texto de um Jabor, sempre inteligente. O estilo deve ser inconfundível. A temática também. Desde 1999, circula na internet um poema atribuído ao ganhador do Nobel de 1982. Trata-se do poema La marioneta, ou a despedida de Gabriel García Márquez. De teor sentimental, o poema espalhou-se pela rede e chegou a ser comentando em importantes jornais. Como se descobre a falsa autoria do tal poema? O uso insistente da invocação a Deus. Marxista e humanista, o autor de Cem anos de solidão dificilmente faria uso desse recurso. Linguagem e conteúdo, nesse caso, estão distante do estilo do autor colombiano. Recebi, dia desses, um texto atribuído a Carlos Drummond de Andrade. O título do poema: Eterno. De cara tomei os primeiros versos como sendo, realmente, do autor de A rosa do povo; os outros, porém, destoavam em muito do seu estilo. Não dava para engolir aquilo como obra do poeta itabirano. Eis os primeiros versos: “Eterno é tudo aquilo que dura uma fração de segundo,/mas com tamanha intensidade, que se petrifica,/e nenhuma força jamais o resgata”. Caramba, isso é lindo! E é lindo não só pela mensagem, mas por apresentar um estilo elegante, refinado. Nota-se, por trás de cada verso, o labor do poeta, o domínio da técnica e da língua. Aí vem a segunda estrofe e a coisa desanda. É como se você saltasse do lombo de um mangalarga marchador para o de um pangaré trotão. Vejam se não tenho razão: “Fácil é ouvir a música que toca./Difícil é ouvir a sua consciência./Acenando o tempo todo,/mostrando nossas escolhas erradas”. Onde que isso é Drummond?! Você pode achar que é bonito, que é construtivo, sei lá, mas a quebra de estilo é violenta. Sai-se do alto padrão de expressão para o simplismo da construção frasal. Pesquisando na internet, descobri variações desse texto, onde os versos de Drummond (os verdadeiros!) vêm ora no início, ora no meio, ora no final. O que mostra as intervenções que cada copista faz no texto, adaptando-o, talvez, ao seu gosto e, por que não dizer, ao seu estilo. O poema de Drummond, cujo título é Eterno, passa longe do tom otimista e edificante desse texto ( ou textos) que circula na rede. Nesse poema, Drummond apresentase irônico como em muitos dos seus textos, e logo no início deixa isso bem claro: “E como ficou chato ser moderno./Agora serei eterno.” Aqui o eu lírico afirma sua intenção de ser eterno, talvez por enxergar no espírito do moderno apenas o transitório, a precariedade da existência. Nos textos apócrifos, tudo isso desaparece. E continuará desaparecendo na grande rede da globalização.

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poemas

sylvia beirute

Cidade-Ponto {ao tiago gomes, com amizade}

Foto: Joakim Buchwald/Stock.xchng

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não escrevi um livro em miniatura sob uma lupa falsa. não pedi qualidade aos clássicos. não pretendi reparar a eficácia de qualquer sistema humano. não endossei poemas porque os poemas não são cartas. não tenho um cativeiro de poetas. não visitei cidades-poema. não segui preceitos que se vejam. não azuleci por pertencer ao céu. não tive ilusão e coragem para crer na desistência. não escrevi que o fingimento pode ser um ódio com casca. não tenho maneiras puramente estéticas. não tenho processos literários. não tenho dois corações. não li masaoka shiki ou matsuo bashō. não li a crítica para não perder a liberdade e o meu dom impreparado. não peguei no tempo e o atirei para dentro do corpo como células estaminais. não escrevi sobre a revolução industrial. não respeitei o meu passado enquanto índice temático. não estimulei diagnósticos de subtileza grosseira. não recuperei emoções com a cabeça. não coloquei questões delicadas no campo da poesia suprema. não transferi permissões de mim para mim. não imaginei versos paralelos para prender significados.

Pudor

o leitor não deve saber que resisto à fragilidade de ocultar a razão, que as modas me recebem pela cintura, que cortei o cabelo, ou que estive em são paulo com 36 graus. o leitor deverá saber, para que lhe percorra a extensão do iodo da sua leitura, que estou clinicamente só e que o meu fim espera num marsúpio entre o compromisso e a morte, e a vida que me resta flutua num passado convulsivo.

Sylvia Beirute é natural de Faro, Portugal. Estuda cinema e teatro e nasceu em 10 de Dezembro de 1984. Escreve poesia e teatro para mudar o seu mundo e diz-se a favor do Acordo Ortográfico na versão de 1945. Integra o grupo literário texto-al (www.texto-al.blogspot.com) e é autora do blogue “uma casa em beirute” (www. sylviabeirute.blogspot.com). Tem colaborações dispersas em revistas literárias de Portugal, Espanha, Argentina e Brasil.


rahakanariwa

rodrigo novaes de almeida

Foto: Michele de Notaristefani/Stock.xchng

– espírito abutre, entidade canibal, devorador de pombas virgens, luas cheias brancas e senhor dos corvos – Ivan observará o desenho em nanquim e nada falará. Uma montanha coberta de neve. Dentro da sua alma. Estranhamento. A aldeia mais próxima estava do outro lado do vale. Um lago negro se estendia até os seus pés. O musgo se estendia até as primeiras ruas da aldeia. Havia apenas uma estrela no céu, que tudo iluminava, menos o lago negro. Os camponeses trabalhavam. Os artesãos trabalhavam. Os comerciantes trabalhavam. As prostitutas dormiam. Enquanto os monges oravam. Os soldados marchavam para mais uma guerra. E as feiticeiras dançavam nuas na floresta. O poeta da aldeia morrera afogado no lago negro na última noite de lua cheia. Ivan observará o desenho em nanquim e nada falará. Um fluxo de consciência abruptamente interrompido; realidade fissurada e a trilha sinuosa da mente exposta pelo silêncio. O silêncio dos mortos. Horror! Ivan observará o desenho em nanquim e nada falará. E três vezes trezentos e trinta e três Rahakanariwa, espírito abutre, entidade canibal, devorador de pombas virgens, luas cheias brancas e senhor dos corvos, renascerá. E mil anos se passarão. Ivan observará o desenho em nanquim e nada falará. Uma montanha coberta de neve. Dentro da sua alma. Estranhamento. A aldeia mais próxima estará do outro lado do vale. Um lago negro se estenderá até os seus pés. O musgo se estenderá até as primeiras ruas da aldeia. Haverá apenas uma estrela no céu, que tudo iluminará, menos o lago negro. Os camponeses trabalharão. Os artesãos trabalharão. Os comerciantes trabalharão. As prostitutas dormirão. Enquanto os monges orarão. Os soldados marcharão para mais uma guerra. E as feiticeiras dançarão nuas na floresta. Mas o poeta da aldeia não morrerá afogado no lago negro na última noite de lua cheia.

Do livro “Rapsódias – Primeiras histórias breves” (Ed. Multifoco, 2009) Rodrigo Novaes de Almeida

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Ornamental Neces

os colunistas d’O BULE entrevist


ssรกrio

Foto: Matheus Dias

tam Luis Henrique Pellanda


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média. Quando escrevo contos, num primeiro momento, desenvolvo minhas ideias e meus enredos a caneta, num bloco de papel barato, ou numa caderneta comum. Rascunho o começo, o meio e o fim de cada história. Depois que tenho tudo estruturado — trama, subtexto, significados etc. —, me sento ao computador e escrevo, reescrevo e reescrevo tudo, frase a frase, com calma e cuidado, várias vezes. Também costumo ler tudo que escrevo UÍS HENRIQUE PELLANDA em voz alta. No caso d’O Macaco Ornamental, – O momento em que estreamos quando achei que já possuía um conjunto editorialmente não é definido por nossa decente de contos, eu os entreguei à leitura de vontade — ainda bem, pois nem todo mundo meu amigo e colega Rogério Pereira, editor estrearia com algum sucesso antes dos dezoito do Rascunho. Por ser meu amigo, exigi dele anos, como Rimbaud. a sinceridade plena. É coisa de maturação, Sua aprovação me deu simplesmente. O leitor não tem a obrigação certa segurança para Primeiro, é muito bom procurar o escritor e nem a necessidade de ler que um escritor viva e jornalista José Castello, o que escrevemos, portanto, descubra, ou encontre, a quem também pedi temos que oferecer algo bom no decorrer de sua vida, uma opinião rigorosa. algo a dizer; no caso Cerca de um ano a ele. Parece um raciocínio da minha literatura, depois, Castello leu óbvio, mas para muita gente que, muitas vezes, é meus contos e me uma recriação bastante não é. Muito se protesta contra aconselhou a enviáo desinteresse dos outros. Por los à Bertrand Brasil. livre das minhas lembranças, isso foi outro lado, pouco se reflete Um semestre após a fundamental. Depois, acerca do valor daquilo que se remessa do material é bom que um autor à editora, recebi uma oferece a eles. aproveite os seus anos resposta — positiva, pré-publicação para felizmente. Mas o processo todo, entre a buscar o aprimoramento de uma voz e de escrita e a publicação do livro, levou uns três um pensamento minimamente originais. Há anos. Lembrando que tudo que escrevi antes muita gente escrevendo por aí e, se quisermos disso, desde a minha primeira adolescência, ser lidos por alguém, precisamos oferecer já foi merecidamente para o lixo. alguma excelência ao leitor — ou, quem sabe, como sugeriu certa vez Harold Bloom, pelo CLAUDIO PARREIRA e GERALDO menos uma pretensão de excelência. O leitor LIMA – Orelha de José Castello, quarta capa não tem a obrigação nem a necessidade de assinada por Ruffato, Scliar e Carpinejar. ler o que escrevemos, portanto, temos que Como livro de estreia, a responsabilidade oferecer algo bom a ele. Parece um raciocínio pesa por conta dessas apresentações? Seu óbvio, mas para muita gente não é. Muito se livro foi apresentado como a grande novidade protesta contra o desinteresse dos outros. Por do ano por escritores de peso como esses. Isso outro lado, pouco se reflete acerca do valor fez com que o livro tivesse uma repercussão daquilo que se oferece a eles. maior? Quanto ao processo de criação de meu livro de estreia, acho que ele não diferiu muito da LAUDIO PARREIRA – Você já tem uma larga experiência no jornal Rascunho, além de publicar semanalmente no Vida Breve (um blogue coletivo de crônicas). Então, por que o livro de estreia só agora? Fale sobre o processo de criação e de publicação d’O Macaco Ornamental.

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LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Não HOMERO GOMES – O que foi preciso fazer senti esse peso, em momento algum, e muito para que um escritor “morto literariamente” menos por conta das apresentações elogiosas (conforme Jamil Snege afirma a respeito da ao meu livro. Quando elas vieram, a obra natalidade curitibana) pudesse publicar seu já estava acabada, meu trabalho já estava livro em um selo ligado a um dos maiores feito. Ou seja, tal carga de responsabilidade grupos editoriais do Brasil? Os contatos, as já não teria mais como interferir em nada amizades e os comentários influenciam na de importante. É claro que gostei de saber seleção de um original? que meus contos foram tão bem lidos, e por autores que respeito muito. Isso me LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Entendo envaideceu, de certa maneira, mas dentro de o que Jamil Snege quis dizer com esse “morto um limite razoável. Acho, sim, que O Macaco literariamente”, mas também sei que isso era Ornamental teve uma repercussão um pouco um pouco de jogo da parte dele. Porque os maior do que teria se não fosse oficialmente curitibanos, somente por serem curitibanos, apresentado por Scliar, Castello, Ruffato e não estão mortos literária ou culturalmente. Temos o Dalton e o Carpinejar — o que não Cristovão, hoje, como quer dizer, de forma alguma, que ele tenha Estamos falando de mercado, bons exemplos disso. A longevidade do sucesso repercutido de modo e o mercado sempre de Leminski também estupendo no ambiente envolverá dinheiro e redes de prova que, apesar de literário nacional. Até agora, o livro não fez contatos. Isso sempre foi assim, morto e curitibano, muita marola, não. O e não será o nosso incipiente ele ainda não morreu literariamente. São que também me parece século XXI o primeiro a se exceções relevantes, e muito natural, tendo guiar por regras comerciais. certamente há outras. em vista que se trata do livro de estreia de Há a literatura e há o mercado Em relação a contatos e amizades, eles um autor relativamente literário. influenciam tanto na desconhecido. A seleção de um original literatura também quanto na publicação exige o seu tempo. É um trabalho lento. Por outro lado, algumas do novo livro de um autor já consagrado, pessoas já me disseram que, quando as ou mesmo na reedição ou na ressurreição apresentações a uma obra e os elogios a um de autores mortos há séculos, cultuados autor são muitos, é melhor desconfiar de ou não. Estamos falando de mercado, e o ambos, do livro e do escritor, pois tudo lhes mercado sempre envolverá dinheiro e redes cheira à politicagem. Bem, generalizações de contatos. Isso sempre foi assim, e não será também me soam um tanto cabotinas. Mas o nosso incipiente século XXI o primeiro a se cada um pensa o que quer. De minha parte, guiar por regras comerciais. Há a literatura prefiro que me leiam e que, disso, tirem algum e há o mercado literário. Às vezes, as coisas proveito. Quem gostaria de ter seu trabalho se misturam. Às vezes, uma ou outra coisa dá rechaçado? Reforço, aqui, que também não certo e encontra o seu público. Muitas outras, devemos nos deixar embalar por elogios. É o porém, às vezes muito boas, morrem e se mesmo princípio das críticas negativas: elas perdem para sempre. não podem nos tirar o sono. Com os elogios Mas isso não é novidade, não é um mal da e as críticas, devemos somente calibrar nosso nossa época. Se Shakespeare e sua trupe não tivessem amigos e contatos influentes, Hamlet trabalho.

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seria menos que um fantasminha gritando “Jurai!” madrugada afora e se arrepiando ao canto dos galos. A obrigação de um escritor, no entanto, é não permitir que o mercado contamine a sua escrita. Tampouco se deve escrever para o deleite e o desfrute dos amigos.

CLAUDIO PARREIRA – Como ficam agora o roteirista, dramaturgo, jornalista & músico? Ou foi sempre tudo isso junto com o escritor? LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Já adiantei parte dessa resposta na primeira LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Ficam pergunta. Vamos, portanto, ao seu bem, obrigado, Claudio. Na verdade — e no complemento, aos horários em que trabalho. meu caso —, o músico, o jornalista, o roteirista Impossível fixá-los. Escrevo quando dá, e o dramaturgo trabalham, quase sempre, geralmente nas frestas de outros serviços — em grupo. O cantor estes, sim, remunerados com os músicos da sua —, como a preparação ...gostei imensamente da banda, o roteirista com de entrevistas e leitura que fizeram do o cineasta e sua equipe, mediações de eventos, meu O macaco ornamental, a revisão e a edição de o dramaturgo com sua trupe, e o jornalista textos jornalísticos ou conto-título de meu livro. com o resto da redação literários, a redação e Desnecessário frisar que o a que estiver atrelado. a criação de roteiros Recorro, portanto, ao filme que criaram é uma obra e argumentos etc. velho clichê: o escritor de arte independente do meu Mas, falando de escreve solitariamente minhas preferências, livro e do meu conto, e que e seu texto é o produto transcende a ideia básica que se possível, procuro final de seu esforço. escrever literatura pela Vai direto aos leitores, se faz de um mero “material de manhã, quando estou divulgação”. sem o intermédio mais descansado, após de outros artistas. uma corrida de meiaQuanto a minhas outras atividades, seguem hora. Também faço questão de não abrir as normalmente. Esta semana, acabei de entregar janelas ou as cortinas enquanto escrevo. o roteiro de um curta-metragem ao diretor Não por gostar do escuro, mas por gostar curitibano Marlon Klug; chama-se, por ora, de silêncio, apesar de morar no Centro de O Fator Humano. Também aguardo a estreia Curitiba. de uma peça minha, Astério, com direção do Flávio Stein. Como jornalista, permaneço GERALDO LIMA e RODRIGO NOVAES como subeditor e colunista do Rascunho, DE ALMEIDA – Novos meios de divulgação acumulando outros trabalhos esporádicos. de livros têm conquistado espaço entre nós, E, como músico, preparo, juntamente com desde outdoors até hotsites. No caso de O minha velha banda, o Woyzeck, um pacote de Macaco Ornamental, você usou um meio novas canções para breve. Estamos compondo, que é ainda pouco explorado entre nós: o arranjando e gravando algumas faixas. Mas, booktrailer. Os resultados com o emprego adianto: sem quaisquer compromissos. desse recurso na divulgação do seu livro foram satisfatórios?

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HOMERO GOMES – Conte para o leitor d’O BULE mais detalhes sobre o seu processo de criação. É “uma coisa de cada vez, tudo ao mesmo tempo, agora” ou é demorado, metódico, na ponta do lápis e da caneta na agenda? Escreve em horário e dias fixos ou seu processo é caótico e vai conforme o tempo lhe permite?


Que tipo de repercussão ele obteve? Os leitores se manifestaram? Em sua opinião, que papel a internet pode desempenhar em relação à literatura?

lançamentos que precisa desovar no mercado e na imprensa quase que diariamente. É claro que a internet também favoreceu a publicação de muito material literário que, caso ela não existisse, estaria mofando na gaveta de seus autores. Essa facilidade de publicação é algo ótimo, mas não é tudo. Nem sempre é bom ser seu próprio editor. Há filtros necessários. Mas compete a cada escritor saber de si. Quem é ruim provavelmente se queimará — estou falando de literatura, e não de “celebridade”. Quem é bom, infelizmente, talvez não consiga aparecer em meio a tantas opções. Alguém tem alguma certeza?

LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Em primeiro lugar, preciso falar dos diretores do meu booktrailer, Rodrigo Stradiotto e Rosane Melink. Melhor dizendo, preciso agradecer a eles por toda a atenção que dedicaram a esse trabalho — que acabou, muito justamente, premiado no Bibliofilmes Festival, em Portugal. Também digo que gostei imensamente da leitura que fizeram do meu O macaco ornamental, conto-título de meu GERALDO LIMA – livro. Desnecessário José Castello diz numa frisar que o filme que O cantor com os músicos resenha sobre O Macaco criaram é uma obra da sua banda, o roteirista Ornamental que “Um de arte independente com o cineasta e sua equipe, o conto só é um grande do meu livro e do meu dramaturgo com sua trupe, e o conto quando se desvia conto, e que transcende a ideia básica que se faz jornalista com o resto da redação do que um conto deve de um mero “material a que estiver atrelado. Recorro, ser”. E ele completa dizendo que “Em geral de divulgação”. portanto, ao velho clichê: o só na maturidade os Agora, como material escritor escreve solitariamente e contistas conquistam de divulgação que efetivamente é, o seu texto é o produto final de seu essa liberdade interior”. esforço. Vai direto aos leitores, A grande surpresa é que booktrailer d’O Macaco com você isso aconteceu sem o intermédio de outros... Ornamental foi mais bem antes. Num conto que satisfatório. como Duas cartas, que Atraiu muitos novos leitores à minha obra de estreia e despertou retoma o gênero epistolar, o emprego de a curiosidade de outros tantos, que me gírias, de frases curtas e cortantes, além do mandaram mensagens, e-mails, perguntas tom raivoso, exemplificam bem essa liberdade etc. Aliás, quem estiver interessado em com que você escreve. A que você associa conhecer melhor o trabalho dos diretores essa sua “liberdade interior” de escrever? Melink e Stradiotto pode visitar o site da Há aí a influência do rock, já que você é músico e participou da banda Woyzeck? A dupla: www.melinkstradiotto.com.br. poesia também tem um papel fundamental Quanto ao papel da internet em relação à nesse caso, já que alguns dos seus contos se literatura, acho que o principal deles, até avizinham da poesia? agora, está ligado também à divulgação, e por motivos óbvios. Por meio da web, em blogs e LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Geraldo, redes sociais, um autor pode divulgar o seu acho que o rock e a poesia me influenciaram, trabalho de maneira muito mais eficiente e sim, já que, de certa forma, fazem parte da adequada do que qualquer grande editora, minha formação pessoal e profissional desde pressionada pela imensa quantidade de a infância. Não me influenciaram, porém, de

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maneira direta, como escritor. A liberdade LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Vários de escrever, todos a temos, desde que não personagens me acompanham vida afora, escrevamos visando a conquistar, como alguns até contra a minha vontade, como bárbaros das letras e das ideias, o tal mercadão conhecidos incômodos e inconvenientes. literário. Mesmo assim, essa liberdade de Mas, para não abrir muito o leque, vou citar escrever terá sempre um limite, estabelecido aquele que para mim foi, sem dúvida, o mais por cada autor no momento em que define o importante e revelador. Trata-se de Hans que quer transmitir aos seus leitores. Castorp, protagonista d’A Montanha Mágica, Mas quero falar um pouco de poesia. Fui um de Thomas Mann, livro que li, pela primeira grande leitor de versos na adolescência, como vez, entre os 15 e os 16 anos de idade. Castorp, acho que todo escritor que se preze deve ter então, me pareceu um grande personagem sido. Na época, lia, muito e anarquicamente, por me indicar as várias possibilidades de poetas como Castro Alves, Augusto dos crescimento, mudança e — em certo sentido Anjos, Fernando Pessoa, W. B. Yeats, Paul — revolução pessoal que eu tinha pela frente. Verlaine, Rimbaud, Baudelaire, Maiakovski, Não acho que, sem ele, eu não as descobriria, Camões, Dante, Milton, mais dia, menos dia, Drummond, Bandeira, mas aquela foi uma A liberdade de escrever, Gonçalves Dias, Dylan leitura que me marcou todos a temos, desde que Thomas, T. S. Eliot, muito. Castorp é, para não escrevamos visando a William Blake, Ovídio, mim, com toda a sua Shakespeare, Virgílio, “inocência” ultrajada, conquistar, como bárbaros Bocage, Leminski, um companheiro das letras e das ideias, o tal Shelley e muitos sempre desejado. E, mercadão literário. Mesmo outros. Depois, houve sempre que releio assim, essa liberdade de um período em que aquela obra-prima de escrever terá sempre um limite, a prosa tomou conta Mann, e sempre que de quase todo o meu estabelecido por cada autor no refaço a trajetória de tempo de leitura, e momento em que define o que Castorp, a sensação de meus gostos variaram, que, como ele, estou quer transmitir aos seus leitores. me levaram por outros ainda no começo de caminhos. Hoje, voltei alguma coisa grande se a ler bastante poesia, e com grande prazer, renova. Isso, estranhamente, me parece bom, me concentrando na obra de autores como mesmo que essa “grande coisa” a que me Herberto Helder e Murilo Mendes. Ao escrever refiro, sem saber ao certo de que se trata, não meus contos, portanto, é claro que não penso exista, ou que seja, simplesmente, a nossa formalmente em poesia. Mas estou certo de passagem final para a inconsciência. que essa poesia toda, e todos os versos que li e reli durante a minha vida, me ajudaram, sim, RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – a apurar meu olhar sobre as coisas do mundo. Quais autores e livros mais o marcaram?

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RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Uma pergunta que você costuma fazer aos seus entrevistados no Rascunho, faço agora para você: Que personagens mais o acompanham vida afora?

LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Pergunta sempre difícil, Rodrigo, se quisermos uma resposta completa. Nem tentarei. Mas vamos a uma parcial: me marcou, como disse há pouco, a obra de Thomas Mann, que li quase toda — ou pelo menos a parte dela que está traduzida para o português. Shakespeare foi sempre


uma leitura prazerosa, em vários sentidos, desde o estético até o intelectual, e uma leitura sobretudo clareadora de pensamentos. Na adolescência, certamente me marcaram Oscar Wilde, Voltaire, Camus, Kafka, Dostoievski, Dalton Trevisan e Machado de Assis, além de vários poetas aos quais já paguei meu tributo. Pouco depois, Dickens, Cervantes, Melville, Conrad, Guimarães Rosa, Raduan Nassar e Thomas Pynchon. Mais recentemente, Campos de Carvalho, Sérgio Sant’Anna e Cormac McCarthy.

que escrevo. Mas a Curitiba de meus contos ou de minhas crônicas não é a mesma cidade que está nos livros do Dalton, ou do Cristovão, ou do Roberto Gomes. Não é a mesma cidade do Luiz Felipe Leprevost, ou da Assionara Souza, ou do Carlos Machado, ou do Paulo Sandrini. Cada um desses autores descreverá, sempre, a sua cidade particular, uma cidade recriada, reconstruída literariamente a partir de suas idiossincrasias e obsessões, a partir de seu humor ou até mesmo de sua falta de humor. Nem o jornalismo, com todo o seu delírio pela verdade, é capaz de dar conta de uma HOMERO GOMES – Perdemos cidade real. Portanto, as Curitibas que lemos recentemente o escritor Wilson Bueno, em por aí têm mais a ver com os autores que as um incidente trágico criaram do que com e ainda misterioso. A ela própria. Também Curitiba é minha cidade, e respeito disso, se quis desprezo conceitos minha cidade é, também, passar a impressão como patriotismo, a minha cultura. Faz parte de nacionalismo, bairrismo de que, além de não possuir herdeiros ou provincianismo minha cultura, não se separa literários, Bueno era o de mim. Em Curitiba, ou sob a — defendê-los é uma último de uma geração. sua influência, vivi quase todas forma convencional de Para você, esses isolar-se e de isolar o as minhas experiências mais comentários, por mais diferente, o alienígena. fundamentais. Por isso, ela está que não pretendessem Acredito que a literatura, ao assassínio por ser pessoal, não se em mim e no que escrevo. moral da literatura compartimenta assim, curitibana, carregam e talvez só se costume o isolacionismo a compartimentá-la com tiracolo? Para você, o fins mercadológicos. que representa ser um escritor curitibano? O Garanto, aqui, que nunca, jamais gostarei que é a literatura feita em Curitiba? de um escritor por ele ser, primeiramente, curitibano. E, se ele for um mau escritor, sei LUÍS HENRIQUE PELLANDA – De fato, que o fato de ser curitibano não será a causa não acho que essa tentativa de homicídio da má qualidade de sua escrita. moral tenha acontecido, Homero. Considero Agora, para mim, a literatura curitibana — mais perigoso — inclusive no sentido que compreendo como sendo a literatura isolacionista da coisa — defender a existência produzida por escritores que moram em de uma literatura suposta e essencialmente Curitiba — está muito bem em termos curitibana. O melhor, porém, é responder quantitativos. Quanto mais gente escrevendo, por partes. Curitiba é minha cidade, e minha mais chances de se produzir algo bom — ou, cidade é, também, a minha cultura. Faz parte quem sabe, isso só aumente as chances de de minha cultura, não se separa de mim. se produzirem confusão e escritores ruins? Em Curitiba, ou sob a sua influência, vivi Não sei dizer. Mas gosto, sim, da diversidade quase todas as minhas experiências mais literária que encontramos em Curitiba. Da fundamentais. Por isso, ela está em mim e no diversidade, da mistura e do diálogo de uma

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literatura com outra, de um autor com outro, da vanguarda com a tradição, é que nascem as coisas boas e contundentes. Tendências unificantes, pelo contrário, serão sempre estéreis. São conversas com a parede. E, se algum escritor curitibano discordar de tudo isso que eu disse acima, tenho certeza absoluta de que concordará comigo nisto aqui: não quero ter somente leitores curitibanos.

Em relação à imbricação entre música e literatura, me parece que ela se faz notar, em meu trabalho, por meio de certa contagem interna de tempo, algo que, possivelmente, MAURO SIQUEIRA – Conversando no somente eu percebo, e só a mim, enquanto Twitter com uma amiga, discutíamos a escritor, vai interessar. Quando redijo uma importância da literatura e da música na frase, por exemplo, naturalmente lhe confiro composição da nossa identidade e como essas um ritmo, um andamento específico. Busco artes dialogam entre colocar as tônicas onde elas. Você é jornalista acho que devam ficar, de formação. É escritor, como se houvesse À imbricação entre música e além de dramaturgo literatura, me parece que ela um lugar fixo para e roteirista; ou seja, se faz notar, em meu trabalho, cada sílaba em cada sempre às voltas com sentença. Enfim, não por meio de certa contagem a escrita, e além disso é algo fácil de explicar, interna de tempo, algo que, está na banda Woyzeck, e muito menos de se possivelmente, somente eu homônima da famosa detectar no resultado peça de Büchner. percebo, e só a mim, enquanto final do meu trabalho. Para você como é essa escritor, vai interessar. Quando Para mim, funciona e imbricação de literatura redijo uma frase, por exemplo, me satisfaz. É por isso, e música, onde uma inclusive, que leio meus naturalmente lhe confiro um está mais impregnada textos em voz alta: para na outra? Foi difícil não ritmo, um andamento específico. reproduzir esse ritmo, fazer algo à Nick Hornby às vezes quebrado, às ou Mark Lindquist? vezes quadrado, que, LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Mauro, ao me sentar para escrever, eu desejei dar para você ter uma ideia de como estou distante a eles. Fora isso, acho que a música — e o da literatura pop, precisei me esforçar para convívio íntimo com ela — nos empresta uma lembrar quem era Mark Lindquist. Com sensibilidade necessária à própria vida e, por isso, não quero dizer que Lindquist seja um consequência, à boa literatura. Mas não vou autor ruim, mas simplesmente que não ele generalizar ou teorizar sobre maluquices do não me interessa. Quanto a Nick Hornby, por gênero. Maluquice, cada um tem a sua. exemplo, o único livro dele que li foi Frenesi Polissilábico, obra que considerei divertida, e MAURO SIQUEIRA – Acompanho boa de consumir. Mas só. A melhor coisa que semanalmente as suas crônicas, em especial a extraí dela foi a descoberta da banda de rock série Trípticos, no site Vida Breve, e admiro as americana Marah, que Hornby afirmava ser a propostas representadas pelos títulos da série melhor do mundo. Fui atrás, conferi e fiquei e a manipulação disto nos textos. Poderia nos impressionado. Indico a todos que gostam de falar mais sobre os seus Trípticos e quais as rock: Marah. Incrível. Obrigado, Nick Hornby. chances deles virarem livro? Mas nunca me interessei por seus romances.

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Gosto de muitas coisas ligadas à cultura popular, mas a cultura pop, principalmente da forma como é vendida hoje, não me pega. Seus principais atores me desinteressam facilmente. Questão de gosto, creio.


LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Obrigado, Não é o que busco. A ideia geral, no entanto, Mauro. Concebi a série de crônicas Trípticos tem muito a ver com uma sensação de pensando na possibilidade de se criar, dentro deslocamento que percebo no homem da escrita — e, mais especificamente, da moderno, sempre — ou ainda — em busca de narrativa curta —, uma forma de se discorrer comida, companhia, amor, sexo, vida eterna, sobre um mesmo tema apresentando três motivação e salvação, num mundo (e não me cenas distintas a seu respeito, cada uma delas refiro, aqui, ao mundo natural) que, cada vez exercendo sua influência sobre as outras e, mais, nos dá sinais de prescindir de nossa muitas vezes, modificando a interpretação presença. Penso no homem como um animal que faríamos de cada história se as lêssemos caprichoso, já sem função em seu próprio isoladamente. Enfim, tem funcionado. Se ambiente, e muitas vezes preso a preocupações a série vai virar livro ou não, depende de de segunda ordem. Acho até que o livro pode muita coisa, a maior parte delas alheia à ser considerado o extravasamento natural minha vontade. Se compreendermos um de uma antiga desconfiança minha: a de que estamos, sem querer, livro como sendo um tomando consciência conjunto de narrativas de nossa própria ligadas por um mesmo Penso no homem como desnecessidade. E fio conceitual, então um animal caprichoso, já isso não é exatamente Trípticos já é um sem função em seu próprio uma crítica. Não sei se livro, em constante ambiente, e muitas vezes preso a haveria outro caminho, construção, e publicado semanalmente na preocupações de segunda ordem. entende? Acho até que o que nos difere dos internet. Para que Acho até que o livro pode ser outros bichos é uma vire um livro de considerado o extravasamento atração apaixonada papel, contudo, a natural de uma antiga pelo inútil. história é outra. Se desconfiança minha: a de que Daí estarmos alguma editora se estamos, sem querer, tomando discutindo literatura. interessar por ele, consciência de nossa própria Aliás, vou além: o nós o publicaremos, pragmatismo que nos é claro. Mas eu teria desnecessidade. é cobrado, hoje, não que “pentear” os textos destrói somente a antes disso. Talvez reescrever uma ou outra coisa, com menos literatura. Destrói a própria humanidade que a literatura representa. pressa. Nada estrutural, no entanto.

ROGERS SILVA – Em seu livro, homossexualismo/lesbianismo embutido ou explícito (Duas cartas, O buquê), perversão, estupro e pedofilia (Little boat of love, Chaleira), heresia (Nós, os limpos) convivem harmoniosamente com a densidade poética de outros (ou nos mesmos) contos (Ladrão de cavalo, Caldônia beach etc.). No afã de escrever obras realistas, cruas, que discorram LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Mais ou sobre a violência ou que sejam de alguma menos, é uma interpretação possível e bacana. forma provocadoras, com linguagem coloquial Mas não gosto do verbo “problematizar”. e concisa, você acha que muitos autores contemporâneos estão se lixando para essa força: o poético? MAURO SIQUEIRA – Após a leitura de O Macaco Ornamental ficou uma impressão de incompletude das ações das personagens, um dissabor e uma inadequação que encontro paralelo com o homem hoje e metaforizada no conto homônimo do seu livro. É isso? Esse é o “projeto” do seu primeiro livro: problematizar o nosso papel no mundo?

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LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Fico feliz machão”. E o Noll terminava afirmando o com a sua leitura, Rogers. Sim, eu considero seguinte: “Não tenho mais medo de adjetivo. o poético uma força literária importante, Às vezes, o adjetivo é a única forma de você uma das maiores, e busco usá-la com certa mostrar sua percepção do real. Você não está constância — sem derramamentos líricos, dentro da substância e, às vezes, tem que porém, e com algum derramamento irônico, celebrar os atributos da coisa”. para não me tornar enfadonho. Quanto aos outros autores contemporâneos, não sei dizer se estão se lixando para esse recurso, ou se ROGERS SILVA – Transcrevo, agora, simplesmente os interessa mais a concisão. trechos da orelha, escrita por José Castello, É uma questão de discurso, ou de postura. do seu livro de contos O Macaco Ornamental: Creio que há autores de todo tipo, e isso é “A fórmula clássica do conto não passa de excelente. Houve, recentemente, uma grande uma fronteira imaginária que o contista, em tendência ao naturalismo, que não é mesmo vez de aceitar, deve derrubar (...). Um conto a minha praia, embora eu ainda não saiba, só é um grande conto quando se desvia do que um conto deve e nem deva, nomear a praia que eu frequente. Voltando à falta de concisão ser (...) Pellanda não vacila: em vez de agir Mas, voltando à falta e de coloquialismo do meu como um narrador de concisão e de texto, sei, por exemplo, que aplicado, que ‘escreve coloquialismo do meu texto, sei, por exemplo, muita gente cultiva um ódio bem’, ele se aventura que muita gente cultiva mortal ao adjetivo, como se ele em um salto no escuro”. Nesses trechos está um ódio mortal ao só servisse para enfeitar uma embutido um discurso adjetivo, como se ele só servisse para enfeitar frase, ou como se estivéssemos de boa parte da crítica uma frase, ou como todos proibidos, sabe-se lá por brasileira – aquela que se estivéssemos todos quais motivos, de recorrer a exige que cada novo autor seja o novo gênio proibidos, sabe-se lá acessórios ornamentais... da literatura brasileira e por quais motivos, de escreva obras originais; recorrer a acessórios aquela que espera que ornamentais — para usar, aqui, um adjetivo presente no próprio todo novo livro de literatura, mais do que título de meu livro. Confesso que isso, essa bom e/ou bem escrito, seja “original”. birra geral com o texto não naturalista, foi Eis então minhas provocações (no bom algo que me incomodou durante muito tempo. sentido da palavra): não acha que esse é um Mas, outro dia, ouvi o João Gilberto Noll discurso que pode prestar um desserviço à discorrer sobre o assunto e algumas coisas se leitura e à literatura brasileira na medida iluminaram. Ele se perguntava por que, em em que não aceita nada que não seja nossa época, sempre que algo é bom dizemos “novo”, “moderno”, “original”, segundo os que ele é “substantivo”. Para o Noll, hoje, a parâmetros que esse próprio discurso cria/ substância das coisas, a substância do nosso criou? Independentemente de qualquer mundo, estaria cada vez mais difícil de ser julgamento de valor do seu livro O Macaco apreendida, e esse horror ao adjetivo, apesar Ornamental, se ruim, regular, bom, excelente ou genial, você acha mesmo que os contos disso, se fortaleceria por ser “uma coisa de

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dele se desviam da fórmula clássica de conto? digo isso por mim, e talvez você me considere Que salto no escuro em que o autor Pellanda também exigente ou injusto. Não é necessário aventura é esse a que José Castello se refere? reinventar a roda, longe disso. Também não é necessário elaborar diariamente uma língua nova, atirar neologismos na cara de seus LUÍS HENRIQUE PELLANDA – Não leitores, abolir a pontuação, a acentuação ou posso responder pelo Castello, Rogers, mas os pingos nos is, ou, num acesso guerrilheiro, não acho que ele cobre, de mim ou de qualquer abater toda e qualquer vaca sagrada que muja outro autor brasileiro contemporâneo, ao nosso redor. O novo que deve ser buscado, algo tão impalpável e duvidoso quanto a neste caso, me parece ser a renovação do genialidade. O Castello é um dos caras que próprio fôlego da literatura, a renovação de mais trabalham pela literatura no Brasil, e sua vitalidade, de seu ânimo. Nesse sentido, não consigo ver qualquer desserviço no que não buscando modelo algum, e cavando ele faz ou no que ele diz. Muito pelo contrário. alguma originalidade dentro de mim, acredito Por outro lado, se ninguém precisa ser um que dei, sim, um salto no escuro. Se vou cair gênio, acredito, sem dúvida, que um escritor, de pé, a história é outra. Mas é comigo. qualquer escritor, tem o dever de ser original, único, e de várias formas. Outra obrigação do escritor é a de seduzir, e só escrever bem, no sentido formal da coisa, obedecendo a fórmulas e regras, realmente não basta para se produzir uma obra diferenciada e sedutora —

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Foto: Matheus Dias

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Luís Henrique Pellanda nasceu em Curitiba (PR), no dia 6 de abril de 1973. É escritor, jornalista, dramaturgo, roteirista e músico. Coeditor e cronista do site Vida Breve, também atua como subeditor e colunista do jornal literário Rascunho. É autor do livro de contos O Macaco Ornamental, editado pela Bertrand Brasil, em 2009. Como jornalista, trabalhou nas redações dos jornais Gazeta do Povo e Primeira Hora. Cantor, tem passagens por diversos grupos, como as bandas de rock Woyzeck e Svetlana e a orquestra de samba Gente Boa da Melhor Qualidade.


resenha O Projeto Portal e uma difícil tarefa

sinvaldo júnior

A

ntes de tudo, é necessário apresentar o Projeto Portal: é uma série de livros de narrativas de ficção científica e literatura fantástica com periodicidade semestral. Ao final, serão no total seis números (impressos). Cada número homenageia, no título, uma obra célebre do gênero: Portal Solaris, Portal Neuromancer, Portal Stalker, Portal Fundação, Portal 2001 e Portal Fahrenheit. A idealização do projeto é de Nelson de Oliveira. De acordo com o idealizador, “o projeto pretende ampliar o limite temático auto-imposto pela literatura, abrindo as possibilidades para que a arte da palavra se renove e saia da mesmice em que se encontra”. O objeto desta resenha é o terceiro da série, o Portal Stalker. Em agosto, agora, está sendo lançado e divulgado o Portal 2001.

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Antes de mergulhar nos contos (ou de ser experimentados por eles?) do Portal Stalker, eis uma interessante (e nada comum) apresentação de Nelson de Oliveira: Nas próximas páginas, boas mordidas e muitos beijos. Muitos mesmo. Dos outros. Pois a outridade é o que nos define. (...) Através deles (dos contos) você visitará outros mundos, outros metabolismos, outros sistemas de pensamento. Ou será por eles visitado. E é exatamente essa a impressão do leitor ao final da leitura: de que se transmigrou (termo usado pelo Nelson em sua apresentação), de que visitou mundos antes nunca visitados. E isso é bom. O primeiro conto do livro, Gigantes, de Mayrant Gallo, é razoável (diferentemente do seu conto, que é muito bom, publicado no primeiro número do Projeto Portal), sobretudo por causa do seu final sem vigor e por gastar três páginas até chegar à essência do enredo – o encontro com o anão. Apesar da renovação da linguagem e da literatura de fc (ou de gênero) proposta pelo projeto, o enredo é – e deve continuar a ser – o principal de uma narrativa de gênero, seja ela fc ou policial. Sendo assim, quando nessas narrativas há problemas de enredo, ela deve se “salvar” de outra forma – ou por sua linguagem experimental, ou pelo impacto causado, ou pela sua poeticidade tocante etc. etc. Não há, no conto supracitado, nenhuma dessas características, mas sim o objetivo de contar uma história. Uma vez que ele se propôs a apenas isso, pode-se dizer que ele falhou. Em O novo protótipo, Roberto de Sousa Causo sabe exatamente o que quer e, a partir disso, faz/escreve com esse objetivo – contar uma boa história (aliás, excelente), com aventura e tensão do começo ao fim. Este seu conto futurista é continuação da série iniciada no primeiro número do Projeto Portal, e continuada no segundo, que discorre sobre a saga de Bella Nunes, filha de Mara Nunes. Muito bom. Vale a pena acompanhá-la, se não no Projeto Portal, pelo menos em alguma outra publicação, impressa ou virtual.


Muitos são os adjetivos que poderiam (podem) ser usados para o conto Ontem ferido, de Maria Helena Bandeira: lindo, metafórico, original, difícil, poético etc. Já em seu título, a junção das palavras causa estranheza – ontem ferido? Muitas palavras desse conto possuem novas funções na frase – ora um advérbio funciona como substantivo, ora um substantivo como adjetivo: A sacerdotisa permaneceu calada alguns minutos roxos. Violetas inundaram perceptivelmente o ambiente. Diferente, não? No conto seguinte da mesma autora, Alguém que fui, há uma tentativa de explicação que mais confunde, que mais mistérios cria. Embora a autora continue com o mesmo estilo do primeiro, o segundo conto fica aquém da poeticidade conseguida naquele. Maria Helena Bandeira é de uma leitura razoavelmente difícil que compensa. Sérgio Tavares, para escrever o seu conto Sagrado, parece recorrer a Kotler e Porter ou a outros autores de disciplinas de graduação ou pós-graduação de Administração: O job solicitado à equipe partiu de uma Igreja que procurava, basicamente, uma prospecção da empresa para uma joint-venture de lançamento de um novo produto. Além do mais, há um exagero sem sentido no uso de estrangeirismos: ...percebemos que o trabalho iria além, exigindo também um serviço de brand equity, expansão de mercado e reposicionamento. Os períodos do conto ora são longos; a escrita ora confusa. Há, nele, uma descrição de um culto religioso inverossímil, que não convence. O final é fraco. Kripton, um conto sobre o fim do mundo, do autor Brontops, é bom e bem escrito: alguns trechos são irônicos e engraçados. {Os quereres}, do mesmo autor, discorre sobre a possibilidade de escolha do sexo e das características do(a) filho(a). Bom. Interessante. Buraco no céu, apesar do enredo bastante clichê e explorado por vários filmes e livros (a invasão de alienígenas a Terra), é muito bom, sobretudo por causa do seu final surpreendente. Um recurso bastante interessante do conto é a citação de nomes/personagens por todos conhecidíssimos: Carla Perez, Alf, Will Smith, Chuck Norris, Bono Vox etc. É a pósmodernidade na literatura. Artigo 15.720 (provisório), de Tiago Araújo, provavelmente faz parte de um projeto maior (uma coletânea de contos autoral com unidade temática?, uma novela?, um romance?). O futuro dirá. Curto e grosso, o conto é excelente. Sua linguagem formal proporciona à história um quê de seriedade que se transforma em ironia embutida: A estranha máquina de sucção cutânea mais lembra um aracnídeo do que um dos aparatos tecnológicos de maior utilidade deste ano da graça de 2009.

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A função dessa máquina é complexa e o produto que resulta do seu processo é caríssimo, até porque a procura por ele é alta: ódio. Os outros dois contos do mesmo autor são parecidos em seus títulos e propósitos (Artigo 16.831 (translúcido) e Artigo 20.053 (revelação)), mas não tão bons quanto o primeiro. Fênix: missão urano, de Rodrigo Novaes de Almeida, é o típico conto sessão da tarde: bom, divertido (no sentido de entretenimento), com ênfase no enredo, desprovido de maiores pretensões do que contar uma história. Nele não há espaços para rodeios. Eis o seu início: Estavam todos na cabine que servia de refeitório da nave espacial Fênix (...), já fazia uma hora que o comandante Samuel Ferdinand encontrava-se na Sala de Comunicações do lado, falando com o QC da Companhia, localizado em Europa, lua de Júpiter. Após o título e este trecho inicial o leitor terá alguma dúvida do que tratará a história? Duvido. Esses não são todos os contos da coletânea. Há mais e melhores. No entanto, esses foram os escolhidos para ser comentados. Após o Portal Stalker, o Portal Fundação foi publicado e, agora em agosto de 2010, o Portal 2001 acaba de ser lançado. Como provavelmente será difícil do leitor conseguir algum exemplar das coletâneas anteriores, basta tentar – se for do seu interesse – conseguir e ler o Portal 2001. Não vai se arrepender de conhecer esse projeto desbravador, cujo objetivo é, além de expandir as linguagens auto-impostas pela literatura de gênero, derrubar preconceitos dos autores mainstream. Tarefa difícil?

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Sinvaldo Júnior nasceu em Uberlândia-MG. Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Pós-graduando em Letras – Mestrado em Teoria Literária. Mestrando em Administração, com ênfase em organizações envolvidas em Artes & Cultura. Publicou artigos acadêmicos e jornalísticos em diversos sites, revistas e jornais, dentre os quais: “A vingança do ícone iconoclasta”, com Nelson de Oliveira (Jornal Rascunho, nov-2008), “Os ensinamentos de Poe” (Jornal Rascunho, abril-2009), “Para qualquer hora” (Jornal Rascunho, ago-2009), “Realidades alternativas” (Jornal Rascunho, março-2010) e “Satã rouba a cena” (Jornal Rascunho, abril-2010). É pesquisador das obras de Campos de Carvalho e Drummond.


lullaby

mauro siqueira

“Não quero dormir”. Disse a pequena com o sorriso de janelinha. A Mamãe sabia o que ela queria; queria uma canção ou historinha. “O que você quer ouvir? A do Tio das Sandálias ou da Dona Pandinha?” De chiquinhas e pijama pulava na cama,... cama,... cama macia. Ela pedia: “Tio..., Tio..., Tio das Sandáias,... Tio das Sandáias...” Com os olhinhos fechando, mas lutando; e o urso Osvaldo num abraço apertado; a voz da Mãe sumindo; no teto, estrelas de adesivos brilhando; o livro no finzinho, quando num grito pede: “Chega. Não quero mais...” “Agora só falta um tiquinho: ‘o Tio, que curioso era, sabia onde o calo apertava! Arrastou o grande armário atrás das suas sandálias, que voaram..., mas para a sua surpresa, uma aranha gigantesca soltou!...’” Mamãe parou assustada, sua filha dera um grito e, agora, debaixo do cobertor chorava (e com força enforcava o urso Osvaldo). “Foi a aranha?” Ela só balançou a cabeça que sim. A Mãe sóabraçou a filha. “Não conto mais essa história, filhinha”. Ela beijou a menina e riu, fezlhe cosquinhas e a janelinha apareceu de novo. Ela beijou e beijou. “Não precisa ter medo...” “Como você sabe?” “Por que já fui do seu tamanho”. A janelinha estava toda aberta, mas ainda preocupada. “Mas se ele voltar?” “Quem?” “O Aranha-grande” A Mãe não entendia e achou melhor repetir, era tarde: “Não precisa ter medo, não vai acontecer nada; ela não vai te pegar.” Acordou espantada como das outras vezes, os olhos demoraram para se acostumar com o negror do seu quarto, ora rosa. Como antes, ela sabia: “não estou sozinha”, ela parou de respirar para ouvir... em vão. Segurava o urso Osvaldo, quis gritar. Mergulhou na sua cama querendo afundar nela... Engolfado na escuridão, escondido num canto, cheirando o medo; sua respiração era sólida. Estava do lado da janela (fechada), do lado da cama, como antes fizera. E não estava sozinha. Ela tentou gritar. Começou a chorar de mansinho: era o Aranha-grande que vinha para jantar. Sentiu o estalo da cama, seus braços de pêlos, suas pernas de pêlos, seu rosto de pêlos pelo o seu. Um gosto amargo. Ela sabia gritar, mas como? Não tinha força. Estava com raiva da mamãe. O Aranha-grande veio para jantar hoje.

Foto: Juan Bernardo Angel/Stock.xchng

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clarissa

rogers sila

Por que papai vai trabaiá todo os dia?, e perguntei pra mamãe e ela disse que senão eu não comia nem tinha como estudá nem nada. E nem presente, eu lembro que ela completou e eu pensei Mas que presentes? Só pensei. Não falei nada pra mamãe porque ela era meio braba. Papai era bonzinho. Todos os dia ele chegava umas sete horas da noite, me dava um beijo no rosto que eu logo limpava a baba, me colocava no colo e dizia que no Natal eu ia ganhá do Papai Noel um presentão. E eu ficava feliz imaginando que depois de dormir e acordá eu ia pra árvre de Natal (esse ano tinha que tê árvre de Natal. Em todas casas tinha. Até naquelas da televisão!) – eu ia pra árvre e lá ia tê uma caixa bem bonitinha e tudo, com um lação desse tamanhão, ó, e ia abrir e ia tê uma bicicleta e um vídeo-game e um monte de fitas. Depois ia, voltava pro meu quarto, e de debaixo da cama ia tê mais presentes: um monte de caixinhas e outras grandes assim, ó. Mas ainda não era Natal. Até lá...

Nós passava o dia inteiro juntados, eu e a Clarissa. A mãe dela era legal e dizia que eu era o índio mais bonito do mundo inclusive aqueles lá de lonjão.

Foto: Carlos W/Stock.xchng

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Eu tinha uma amiga que era muito esperta e se chamava Clarissa. Ela tinha a mesma idade que eu mas era mais inteligente. Ela dizia umas coisa estranha tipo que a água da chuva saía das nuvens e na lua era tudo escuro e o sol que era clarinho, clarinho e quente. Eu dizia algumas coisas também, mas tudo que eu ouvia dos professor tipo Pedro Álvares Cabral e células e outras coisas mais sobre o Brasil. E ela dizia Mas isso todo mundo sabe e eu dizia Que mentira! e saía chateado porque ela era mais conhecedora do que eu. Um dia ela, branquinha, coitada, com aqueles cabelos pretinhos e grandes, disse que o vô dela era forte que carregava um cimentão assim, ó, bem pesado, com um só dedo. Eu disse Meu avô é mais e carrega um Escort com uma mão só. Ela disse Mentira porque seu vô já morreu. Eu fiquei chateado e disse Ih, você é bobona bobona bobona e fui sentar de debaixo da árvre que a gente sempre falava que ia fazê uma casinha e nunca fizemo. Ela veio todo boazinha e pediu desculpas e falou que quando os avôs morre eles vai prum lugar que nem a casinha que nós queria fazer, bem calmo, só que bem maior. De repente deu um barulho forte do trovão e ela disse Sabia que os relâmpos vêm antes dos trovão só que eles é o mesmo? Não entendi. Mas ri daquele jeito meu assim que nem um indinho, como todo mundo falava. Ela riu também e eu senti uma coisa estranha e ruim aqui dentro, ó, e depois à noite na minha cama eu chorei, chorei.


Foto: Gilbert Tremblay/Stock.xchng

Dizia que ia namorá com a Clarissa, mas eu dizia Sai fora.Eu nem vou namorá. Clarissa sorria com aquele jeito dela igual da mãe. As duas tinha uns olhos meio claros. A mãe da Clarissa também era muito bonita. Na escola ela era mais adiantada uma série do que eu, mas no recreio a gente ficava sempre juntado. O povo lá dizia que a gente namorava e eu ficava brabo. Eu nem vou namorá, dizia sem graça quando não ficava com raiva. Ela ria. Depois de outubro vem novembro, depois dezembro e depois o Natal, ela disse. A gente tava em frente da represa que minha mãe não gostava que eu ia. Mas eu não entrava, eu era medroso, a Clarissa mesmo que falava. Ela entrava, mas só um pouquinho, e nadava. Ela me chamava e dizia pra mim entrar. Tô sem vontade. Cê tá é com medo. Tô nada! Medroso, medroso, medroso, e jogava água em mim. Eu corria brabo, voltava pra olhar pra ela e ela ria. Perdia com isso minha brabeza. Por que ela sempre ria? Um dia à noite a gente brincando de pique-esconde com outros meninos perto de casa, aconteceu uma coisa estranha. O Felipinho que tava contando Um! Dois! Clarissa me pegou o braço e fomos correno prum pradão aqueles de luz assim, ó, bem longe do lugar que o Felipinho tava contando. O Xandão e o Dedé subiu em cima da casa do Dedé. E a Vanessa e a Paulinha entrou na casa da Vanessa que era irmã do Felipinho. Quarenta e nove! Cinqüenta! Pronto! Eu sentia a respiração da Clarissa, távamo muito perto, o pradão era pequeno e apertado e tava até meio escuro lá dentro. Eu ia falá alguma coisa mas ela disse shhhiii e colocou o dedo na minha boca. Távamo pertinho um do outro e ela foi assim chegano, chegano e pegou na minha mão. Eu tremi e senti uma coisa assim estranha. Credo. Aí então ela me deu um beijo na boca assim tão rápido e aí o Felipinho apareceu e gritou Clarissa e Hugo! Peguei! A Clarissa correu bem depressa mas eu fiquei paradinho dentro do pradão sentino aquele gosto estranho além do friozinho. À noite, na cama, eu pensava que Clarissa era minha namorada e beijava o travesseiro e sentia uma coisa boa mas estranha. E chorava. Mas não chorava assim de dor ruim. Era bom. Chegando perto do Natal a gente tava brincano de naviozinho porque tinha chovido e ficou meio alagado, a gente pegou e brincava de pirata e tudo. Eu disse que ia ganhá um monte de presentão do Papai Noel esse ano, inclusive um vídeo-game e que tudo ia tá na árvre de Natal de manhãzinha. E ela riu. Disse que Papai Noel ia só pr’as crianças lá dos Estados Unidos e Europa e lá de bem longe, aquelas crianças boazinhas. Eu disse Mentira. Ele já foi lá em casa e me deu um caminhãozinho ano passado, menti. Eu nunca tinha visto o Papai Noel. À noite, távamo deitados assim no chão e olhando pro céu. Seus olhos parecia brilhar que nem uma lanterna esverdeada do Dedé. Ela disse As estrelas mudam de lugar. Elas andam. Eu ri. Ih, ó. Cê tá doida?, falei. Falamo de um montão de coisa mas principalmente do Natal que tava chegano.

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Dezembro chegou e as casas ficaram bonita cheia de luzinhas coloridas e toda enfeitada inclusive a minha que nunca tinha sido antes. Mamãe até colocou uma árvre na sala mas não tão bonita quanto aquelas da televisão. Eu ia perguntá, mas mamãe era meio braba. A festa mesmo, aquela que todo Natal tem, foi na casa da Vanessa e Felipinho. Os pais deles eram altões assim e brancos. Diziam que eram gaúchos, mas eu num sabia o que que era isso. A Clarissa de vestidinho verde claro e a mãe também tavam, e outras pessoas mais. Minha mãe tava até mais feliz nesse dia e menos braba. Conversava muito com a mãe da Clarissa. Dessa vez ficamo eu, a Clarissa, a Vanessa, o Felipinho, o Dedé, o Xandão e outros meninos que eu não conhecia juntados, todos. Todas as crianças ganhou um presentinho, uma caixa de bombom, do Sr. Ricardo, pai do Xandão. Foi bom até esse dia. Mas eu queria mesmo era chegar em casa, dormir e acordá e vê aquele tantão de presente na árvre lá de casa, de debaixo da cama que Papai Noel ia deixá. Fomo pra casa e eu já tava com sono e cansado e deitei e dormi sem vê. Nem vi. Sonhei com eu e com a Clarissa na nossa casinha da árvre que a gente num tinha feito.

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Acordei e fui correno pra árvre de Natal, nem escovi os dentes nem nada, fui é pra árvre de Natal pra vê se Papai Noel tinha passado lá em casa e deixado presentes pra mim. Tinha uma caixona grandona assim, ó, bem grande mesmo e eu tava muito feliz por que era a primeira vez que eu tinha ganhado presente no Natal e era grande. Abri correno correno e quando abri vi que era uma bicicleta. Eu fiquei feliz e fui correno pro quarto do papai e da mamãe falá pra eles que Papai Noel tinha me dado um presentão que eu queria há muito tempo. Eles riam, riam, felizes. Até mamãe. Perguntei pra mamãe se eu podia andá com a bicicleta. Ela disse que à tarde sim, agora não. Eu nem importei. À tarde eu ia com a minha bicicleta que eu tinha ganhado do Papai Noel pra casa da Clarissa e falá pra ela que Papai Noel passa nas nossa casa sim, e não só do povo lá de lá. À tarde eu peguei minha bicicleta novinha, novinha e fui pra casa da Clarissa que ficava um pouco perto, mas nem tanto, da minha. Chegando lá eu vi algumas pessoas lá fora no jardim, estranhas. Passei, como Ayrton Senna, por entre assim, vrummmm, no meio das pessoas, até chegar na porta. Sua mãe tava vermelha, vermelha e o olho também e ela gritava e chorava e uma outra abraçava ela muito. Eu não entendi. E nem vi Clarissa. A mãe da Clarissa não me viu porque saí assim pouquinho depois e perguntei lá fora pro Xandão que era um pouco mais velho e conhecedor que eu e entendia mais as coisas, o que que tava aconteceno. Ele disse que a Clarissa pegou um naviozão assim, ó, que tinha ganhado da mãe e foi pra represa sozinha, sem falar com a mãe. Ih, ela é doida, ri. E parece que ela afogou, continuou Xandão. Ih, mentira!, gritei e pedalei bem forte minha bicicleta rumo à minha casa. Tinha chovido, parece, à noite, por isso um ventozinho meio frio batia em meu rosto. Eu corria muito e brequei forte quando cheguei em casa e quase caí, chorando. Perguntei pro papai depois, noutro dia, o que tinha acontecido e ele disse que Papai Noel tinha levado Clarissa. E eu ficava feliz porque assim ela não ia mais, nunca mais duvidar do Papai Noel porque tava com ele, pertinho, e ficava triste porque eu sentia uma coisa ruim aqui assim, ó, uma vontade de ver ela e aquele sorrizinho e queria ouvir aquelas estranhices que ela falava, mas não podia. Eu nunca mais ia vê Clarissa? Ah, nem! Nem aquele sorriso, assim, ó? Nem!...

* Do livro Manicômio, ainda inédito.


VIII.

zezão

geraldo lima

A figura atravessou a ponte e veio no rumo de casa. Menos que um homem visto assim mais de perto: um espantalho, um bicho. Corremos pra dentro de casa. De lá, espiando pela greta da janela o ser desgrenhado especado ali no terreiro. Nosso pai veio lá do curral e se aproximou dele. Com certa alegria, a voz do nosso pai: Ora, mas se não é o Zezão de guerra! Quem é vivo sempre aparece... Abrimos então a janela: ali, à nossa frente, no ser maltrapilho, a lendária figura de Zezão. Com quantas festas acabara? Havia roubado a mulher de quem? Duas mortes nas costas, nenhum peso na consciência. Louco. Andara pelas estradas e pelos ermos. Nos campos, entre o gado, roendo coco e chupando ingá — João Batista, no deserto, sobrevivendo com quase nada. Noção nenhuma de vida e morte. De cócoras, quase nu diante da nossa casa. Por pudor, as mulheres lá na cozinha. Em troca da roupa limpa, a mão suja estendida cheia de coco indaiá. Um quase sorriso em meio à barba cerrada. Ruína de dentes. Tudo o que lhe restara: o silêncio e uma generosidade insana.

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Foto: Csaba J. Szabo/Stock.xchng

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IX. vômito

Foto: Tim & Annette/Stcok.xchng

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Situação mais ridícula aquela: o Sol prestes a desabrochar, o dia acordando laborioso, responsável, e ele, ali, de quatro junto ao vaso, a cara quase lá dentro, o azedume recendendo, sobressaindo-se ao odor agradável do desodorizador, comida estragada, carne, vinagrete, arroz, feijão tropeiro, e a cerveja e a vodka fermentando tudo, ácido, e acordara de madrugada com um deserto na garganta, quase um litro d’água ingerido, e o Saara resistindo, até o estômago começar a se mover de dentro de si mesmo, subindo, vindo à tona pelo cano da garganta, um bolo inchando, impossível retê-lo mais, por fim o jorro, duas, três... setes vezes, como se não fosse sobrar mais nada dentro dele, esvaziando-se na marra, contraindo-se num parto de alto risco, via oral, e suando frio, o tal friozinho da morte, e mais um jorro, e outro mais, manhãzinha quase, um dia começando já estragado, uma broca na cabeça, perfurando, lembrar-se nessa hora dos zelos da mãe, o chá de boldo preparado por ela, melhor ainda os conselhos dados ali no banheiro mesmo, pensar no futuro, não estragar a vida com esses vícios, a mãe orando baixinho, Deus Pai Todo poderoso, dava até pra sentir-lhe a mão sobre a cabeça, terna, milagrosa; lembrar-se do irmão nessa hora, desejando tanto que ele o encontrasse ali, junto à parede, definhando, sem forças até para suportar as contrações estomacais, e o carregasse até o chuveiro, resmungando, é bom que se diga, mas zeloso também, sempre sóbrio, correto; lembrarse também da esposa que nem existia ainda, mas que, se Deus quisesse, estaria por aí nalgum lugar, ela que por certo viria ficar ao lado dele, amparando-o junto ao vaso, uma companheira de verdade, na alegria e na tristeza, tão perfeita que talvez nem existisse, daí a solidão, o vazio, e ele suando frio junto à parede, achando o vaso tão distante agora, a felicidade então nem se fala, não restava mais nada dentro dele, a não ser a sensação de que ficaria ali para sempre, colado aos azulejos, à espera apenas da morte ou de um milagre qualquer.


impulsos (des)humanos

Foto: Byron Solomon/Stock.xchng

ricardo novais

A dúvida me consumia. Andei pela rua. Jantei fora. Minha mulher me traía, de repente eu tive certeza. Não resposta absoluta, mas tive todos os indícios que vieram da primeira dúvida – se esta confusão mentia um pouco, e é possível que mentisse, não era por mal. Além de que a dor e a vergonha são maiores que o sentimento de ciúme. Madalena enganava-me com o primo. Isto, irrefutavelmente, torna tudo mais obtuso. Ao jantar, eu tomei a decisão. Daria cabo de minha vida. Sim, senhor que lê este triste conto, é caso de honrar-me com meu próprio sangue; não há descrédito maior a um homem que a desonra familiar perante aos vizinhos. A figura do sangue escorrendo de meus miolos abertos por arma de fogo devolver-me-ia a honra perdida; entretanto, como esta imagem sanguinária trouxe muito asco às minhas mãos, fui à casa farmacêutica. O balconista olhou-me, desconfiei dele. Voltei para minha casa. Entrei ao site da mesma farmácia e solicitei uma droga que me levasse para o além-túmulo. Não pense que foi necessária prescrição médica; oh, não. E, afinal de contas, quem precisa de opinião de um doutor para dormir em sono eterno sem sonhos? Além de que por certo que qualquer doutorzinho com ares positivistas dir-me-ia diagnóstico de cientista arauto: “Não é patológico, meu rapaz, estais a sofrer da síndrome de Otelo”. Ora! Eu não precisava de tanta ciência, apenas desejava facilitar o caminho do anjo da capa preta. De modo que na tarde seguinte, chegaram a mim os comprimidos devidamente lacrados e exclusivos; ação tranquila e sem empecilhos de nenhuma autoridade do governo ou de casa de saúde, qual, inclusive, eu indico àqueles leitores que, por ingerência afetiva ou outra grave afetação, estejam ajuizando encontro mais discreto com a morte.

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Peguei do envelope contendo a droga e coloquei-o no bolso direito do paletó. Fui à cozinha. Servi-me de caneca de café pela metade e não muito quente. Encaminhei-me, vagarosamente, à saleta que servia de pequenina biblioteca. Descansei a caneca à escrivaninha. Fiquei a olhar para os livros velhos, espantei-me. A ironia apresentou-se diante de coleções de títulos de leis, de decorações, de jardinagens etc. que pareceram uma chamada de volta à vida. Ignorei a repreensão. Levei a mão ao bolso, peguei do pacote e retirei os comprimidos. Amasseios raivosamente com uma colher pequena até virarem pó branco. Empurrei a substância mortífera todinha para dentro da caneca de café; à mesa não sobrou visível nenhum vestígio do conteúdo esmagado. O café já apresentava aspecto gélido; mas a dose era boa. Quando encostei a borda da caneca à boca para beber a coquetel letal, desisti. Tive outro medo. O que existe no além-túmulo? Eu estava nesta consideração metafísica quando Madalena entrou, repentinamente, ao gabinete avisando que o jantar estava pronto. - Que há? - Nada. - Você anda muito estranho estes dias, Pedro... – ela trazia um olhar triste e jogava-o fingidamente, assim o julguei. – Diga tudo, Pedro; diga, diga, diga... A insistência em dissimular daquela mulher comoveu-me...

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Ai, dona leitora, eu tenho certeza que irá julgar-me sórdido e cruel agora; e é possível que o senhor leitor arrepie-se e diga-me coisas feias. Chamaram-me: assassino monstruoso. De modo que quase me arrependo de contar-lhes o que fiz, mas digo tudo, vá, que isto é confissão. Tive ideia boa de oferecer à minha querida esposa a caneca de café. Isto mesmo; eu apontei gentilmente um brinde mortal à minha Madalena, a adúltera. - Quer café? - Não, já tomei. - Beba. - Obrigado! - Beba, querida, está bom; beba e acalme-se antes de conversarmos. - Não quero; está frio! Não julgue, leitor; já disse! Eu era o homem, ela a mulher, e havia ciúmes. Maldito impulso que também é infiel à condição humana! Levantei a cabeça, dei com a figura de Madalena me fitando assustadoramente. - Que está acontecendo, meu amor? Eu nada dizia. Meu silêncio era constrangedor até para mim. Ela continuava perguntando, eu continuava mudo. Disse-me tolo, louco, insano. Falou que eu fantasiei algo doente que saiu do meu cérebro afetado. Mas não, amiga leitora. Quem dera fosse... Havia algo lá entre ela e o meu comborço.


O desgraçado do primo dela já estava morto. Morrera três meses antes de desastre automobilístico. Mas a infelicidade era saber que Madalena pensava nele, não como parenta de finado fresco, ela lembrava como quem lamenta a perda do amante. Que vá encontrar-lhe então! Pro diabo com isto! - Insinua que o traio? - Não disse nada. - Tem coisas que não precisam dizer... - Foi ao cemitério hoje? - Que tem isto? - Nada. - Os mortos não traem, Pedro. - Mas os vivos, sim! - Sórdido!... Louco! Está louco, Pedro, louco! Os olhos dela eram incrédulos. Por fim, com olhar tão triste fingido, de súbito, ela saiu da sala, subiu correndo as escadas e trancou-se em nosso quarto de casal venturoso. Não jantamos. Eu ainda fiquei naquele recinto melancólico por algum tempo. Ficaria lá toda a noite e o resto da eternidade, mas não. Olhei os livros velhos, escrevi um bilhete sorumbático, peguei da caneca de café e desliguei as luzes. Fui à cozinha e... derramei o café funesto no ralo da pia – sempre haverá sites de farmácias para qualquer eventualidade. Dei às costas, subi as escadas, pé ante pé, pé ante pé, bati à porta do quarto, Madalena abriu e eu entrei. Fizemos sexo por quarenta minutos e fomos dormir.

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Ricardo Novais - Escreveu o romance debochado O Boêmio e o livro de contos Trem Noturno, ambos pela editora Bookess. Bloga em: blogdoricardonovais.blogspot.com


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literatura estrangeira é muito melhor rogers silva

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Fotos: Debora Prado/Stock.xchng

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m dia visite as listas dos livros mais vendidos de qualquer revista brasileira. Não se contente em ver a lista do mês corrente. Se possível, pegue as listas mensais dos mais vendidos de todo o ano de 2010 no Brasil. Se tiver paciência, aproveite e pesquise as listas de 2009. E de 2008. Perceberá nelas algo estranho: em todas, entre os mais vendidos está uma maioria esmagadora de livros estrangeiros. O que explica esse fenômeno? Como este texto não tem a pretensão de ser científico nem O BULE é uma revista acadêmica que me exige os objetivos, a justificativa, a descrição metodológica e dados empíricos para comprovar meus argumentos, discorrer sobre o assunto fica mais fácil, uma vez que parte de uma opinião pessoal baseada em impressões, mas também em fatos. Assim, não julgue o texto pelo que ele não é nem se propôs a ser – um texto científico. Este texto é uma introdução a um (outro) texto a ser publicado n’O BULE, ainda sem data definida, mas com nome definido: Literatura é uma merda. Não vem ao caso discorrer sobre ele, mas nele discuto – além de muito do que coloco a seguir – sobre a literatura de entretenimento, a leitura no Brasil e opino sobre os possíveis motivos de se vender menos (em quantidade de livros, e não necessariamente em número de autores) literatura nacional do que literatura estrangeira. No texto Literatura é uma merda listo as possíveis causas para essa realidade. A mais óbvia e, em contrapartida, mais arraigada e de difícil mudança é cultural – o brasileiro tem um fetiche histórico e “inexplicável” por coisas de fora, sobretudo da Europa (ocidental) e dos EUA. Alguns chamam isso de síndrome de vira-lata. Outros, de colonização. Alguns, de alienação. E muitos, de burrice mesmo. Ou seja, sentimos (um) prazer (anal) em admirar, idolatrar, ouvir conselhos e teorias sobre nós mesmos, e enriquecer gringos. Já admiramos Portugal, França, Inglaterra, EUA, mas sempre sentimos uma dificuldade enorme de admirarmos a nós mesmos (situação que parece estar mudando um pouco nos últimos anos...). Para nós, eles são melhores do que nós: o metal nórdico é melhor do que o metal mineiro; Fernando Pessoa é melhor do que Drummond; filmes imbecis de Hollywood são melhores do que ótimos filmes brasileiros; o futebol espanhol é duzentas mil vezes melhor do que o futebol brasileiro; Dan Brown é melhor do que André Vianco etc. Para alguns inclusive (veja o absurdo a que o complexo chega...), sobretudo gaúchos, Maradona é melhor do que Pelé (bah, esqueci que muitos gaúchos não se consideram brasileiros...).


Para nós, mesmo sem conhecimento de causa (alguns não conhecem o metal mineiro, nem Drummond, nem o cinema nacional, nem profundamente o futebol brasileiro, nem a literatura de André Vianco, nem as jogadas geniais de Pelé), eles são melhores do que nós. Sem dúvida. Se um gringo falou, deve ser verdade (Harold Bloom falou que entre os 100 maiores gênios da literatura universal, um tantão era estadunidense e um, só unzinho era brasileiro – e nós acreditamos). Sentimos devoção por gringos. Seres iluminados e superiores, impõem o que vamos pensar, falar, fazer e gostar. E gostamos. Somos extremamente obedientes. Para nós, os brasileiros são todos um bando de ladrões. Os políticos brasileiros, corruptos. No Brasil nada funciona. Não só a literatura, mas também o Brasil é uma merda. Paradoxalmente, nos incomodamos quando algum gringo fala a verdade sobre nós, sobretudo quando essa verdade toca em nossa ferida, quando a verdade é um defeito evidente (vide Sylvester Stallone quando disse que qualquer um pode vir ao Brasil e explodir tudo e mesmo assim receberia um ‘Obrigado’ e um macaquinho de presente (essa parte do macaco é mentira!)). Nossa auto-estima é inexistente. Nossa capacidade de autocrítica é abaixo de zero. Enquanto isso, porque alguém falou e recomendou e impôs, compramos livros estrangeiros... É um argumento/discurso simplista, claro está, mas a meu ver esse traço cultural é a base primeira do problema: editores acreditam que a literatura estrangeira vende mais e, em conseqüência, a chance de lucrar com ela é maior; os publicitários aceitam essa verdade e trabalham em prol do produto estrangeiro; os consumidores (influenciados e impressionados pela propaganda de tal livro de tal autor estrangeiro, que nos EUA vendeu trocentos milhões de exemplares), por sua vez, compram os livros estrangeiros, muito melhores do que os nacionais, é óbvio. A ordem não necessariamente é essa (editores, publicitários e consumidores), nem muito menos os atores são apenas esses. Os editores, por acreditarem que o autor Fulano dos EUA venderá muito mais, pagam R$ 200.000 pelo direito autoral de determinada obra ao invés de investirem R$ 10.000 em 20 autores nacionais para cada qual publicar 1.000, 2.000 exemplares de sua obra. É uma atitude condenável? Financeiramente falando, de forma alguma. Ao contrário, já que buscam o lucro, é o mais sensato a se fazer. Os outros profissionais do ramo, que não têm muito a ver com essa história toda, trabalham arduamente para aquele autor estrangeiro, porque aquele autor estrangeiro é quem paga o seu salário. Afinal, é aquele autor estrangeiro que é comprado/ consumido pela grande maioria pensante da população leitora do Brasil. Sim, com muitos itálicos. Voltando aos editores, é possível que esses mesmos que gastam R$ 200.000 pelo direito de um livro não gastem R$ 1.000 para pagar um tradutor (brasileiro) por uma tradução (de qualidade). Até porque alguns tradutores fariam o serviço por R$ 500... Por outro lado e a contribuir indiretamente com a situação, parte da intelligentsia, dos professores, dos pesquisadores especialistas, dos críticos brasileiros faz sua parte, prestando

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um desserviço à literatura brasileira, ao não aceitar qualquer coisa que não seja clássico ou original, na sua concepção de originalidade. Não valorizam a importância da literatura brasileira de entretenimento, mesmo que de qualidade. Apedrejam autores que se propõem a tão-somente entreter o leitor. Inteligentíssimos, eles não aceitam obras que não sejam originalíssimas, ou que posem como tal, ou que a partir delas não se possa explicar a cultura e a história brasileiras. Para essa tribo (parte da intelligentsia brasileira), ou você é um clássico ou você é um gênio ou você é, no mínimo, vanguardista. Fora disso, você, caro escritor, é uma merda. É difícil saber, após essas reflexões, o que é causa e conseqüência nessa história toda – se a causa das editoras não publicarem autores nacionais é o fato dos leitores brasileiros não lerem a leitura do próprio país; se os brasileiros não lêem a literatura brasileira porque o que sempre está em destaque e chamando a atenção é a literatura estrangeira; se a literatura de qualidade brasileira é mais do que os leitores brasileiros exigem e querem para se entreter; se, ao contrário, a literatura brasileira de entretenimento é de qualidade baixa, aquém da literatura estrangeira, e por isso preterida pelos leitores brasileiros; etc. etc. A fobia é de quem: das editoras, dos leitores, da intelligentsia? Ou de todos? E fobia a quê: aos escritores nacionais, à literatura nacional, à literatura de entretenimento? Nossa, que complexo...

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a talassádia e os talassadianos

rodrigo novaes de almeida

“O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.” (Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão)

Dizem os talassadianos que a sua cidade, Talassádia, fora construída sobre um antigo cemitério indígena, outrora gradualmente tragado pelo mar. Com a revolução das costas, durante a estação de nevoeiros que se estendeu por dois ciclos além do cabimento, tiveram exílio as ondas e os ancestrais anfíbios dos talassadianos deram por satisfeitos assentar-se ali. Simultaneamente, brisas de leste sopravam com alguma regularidade, afastando pneumáticos espíritos insurgentes. Quanto aos talassadianos, são uma gente púrpura, qual os fenícios, curtidas pelo sol, embora cultivem donzelas pálidas como iguarias aos deuses. Cada família, que se diga logo, tem mesmo hoje o seu deus particular, sendo o fogo espécie de instrumento para consagração comum entre todos os talassadianos e todos os seus deuses. Os homens usam cabelos decaídos nos ombros e as mulheres trazem fitas em cachos salpicados de pequeninos búzios. Ambos mantêm os peitos nus e não usam calçados. Um mero saiote, ou tanga, reveste o sexo. Exageram, contudo, nos ornamentos e pinturas, alcançando, por vezes, grande sofisticação e elegância. Diademas de metais preciosos, argolas, pingentes, correntes, braceletes. Cobre, prata, ouro, esmeralda, ametista, ágata, rubi. Nenhum outro povo supera os talassadianos no gosto pela beleza e pelos detalhes. Cada jóia é um trabalho imaculável de arte. Cada corpo, de homem ou mulher, é como um estuário impecavelmente adornado, dia após dia, pelo capricho das marés. Suas edificações chegam a nove pavimentos, cuja decoração luxuriante sugere uma vida principesca mesmo às mais humildes das famílias. Palácios aglutinam-se em torno de praças e jardins meticulosamente trabalhados. Teatros, arenas para jogos e mercados sucedem-se em cada quadra, e as paredes e muros têm uma infinidade de afrescos de encher os olhos dos visitantes. O vermelho e o amarelo sobressaemse em um maneirismo em vias de explodir qualquer geometria, atiçando até a imaginação mais enfadada. Supersticiosos, os talassadianos adoram desde a cordilheira que parece sempre Foto: Roger Kirby/Stock.xchng querer empurrá-los para o mar, até a população etérea de ninfas marinhas que se esconde nas conchas de suas praias. Todavia, acima de tudo, adoram seus corpos, seus largos flancos, seus peitos opulentos, e, nesta fôrma, exumem também seus deuses particulares, como se cada talassadiano fosse também um pouco o seu deus, ou fosse o seu filho mais querido, cujo pai se orgulhasse do que vê legado de si próprio. Porém, na ordem do mundo e das coisas do mundo, notamos uma sociedade matriarcal, tendo na figura de Eleonora a atual matriarca semi-divina dos talassadianos. E será ela a nos contar enxergar existir uma outra cidade co-habitando Talassádia, ancestral de todas as cidades já construídas por mãos humanas, nomeada, deste ou desse ou daquele modo no tempo muito afastado do mundo e das coisas do mundo ainda existentes, Arquemàdria. Dizem os arquemadríacos que a sua cidade, Arquemàdria...

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genêsis 1995 dc

claudio parreira

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E eis que então, cansado do tédio celestial, o Supremo Todo Poderoso resolveu inventar o Homem. Batizou-o com o nome de Adão, que não quer dizer “Pai dos Homens” coisa nenhuma, mas sim Nuinho da Silva. Pois é. Sem nunca ter trabalhado um só minuto em sua breve existência, Adão – ou Nuinho, como queiram – já pisou nestas terras como o maior latifundiário de que se tem notícia. Exercendo o seu direito de ir e vir, ia e vinha pelos campos e vales, avenidas e vielas, sempre com flores perfumadas adornando seus lindos cabelos encaracolados. Mesmo pelado – ou nuinho – não sentia frio nem calor, tudo isso, claro, graças ao sofisticado sistema de arcondicionado instalado pelo Supremo no Jardim do Éden – ou Paraíso, como queiram. Pois é de novo. Toda essa felicidade, porém, toda essa viadagem quase angelical (Adão era bem chegado a um colóquio meio libidinoso com os bichinhos da floresta...), levou o STP a ficar assim assim preocupado. Sua cria ia de mal a pior, passava horas e horas se admirando no espelho das águas numa espécie de antecipação a Narciso e sua liberdade no modo de andar era de causar inveja a uma passista de escola de samba. Por isso o desespero divino: o menino precisava ocupar o seu tempo ocioso com algo mais edificante. Mas com o quê? Um anjo deu a dica: - Bota lá uma mulher com ele antes que aconteça o pior. Do jeito que vão as coisas, ele é bem capaz de conhecer todos os bichos da floresta menos a aranha. Já imaginou a vergonha no futuro? Idéia genial. O STP não vacilou: botou sua cria pra dormir à força de uísque paraguaio e com um peteleco bem dado arrancou-lhe um belo naco da nádega (ou bunda, como queiram). Com essa carne tenra e macia modelou a Miss Éden, que o mundo aprendeu a chamar de Eva, que não quer dizer “Mãe dos Homens” coisa nenhuma, mas sim Peladona da Silva. Tava ali então a dona Peladona à disposição de Adão, guapo nunca antes vislumbrado por ela (claro!), exemplo único de virilidade macha. Acontece, porém, que o guapo não acordava de jei’ninhum, amortecido que estava pelo veneno dito anestésico. Eva pacientemente esperou três quatro segundos e por fim desistiu, cansou de esperar pelo bofe que bufava a sono solto. Percebeu que seu homem demoraria muito muito para acordar e que quando acordasse não iria dar no couro por causa da bruta ressaca. E por isso ela resolveu dar uma voltinha pelas redondezas. Caminhando bucolicamente pelo bosque (não era floresta?), ouviu de repente um psiu. Voltou o rosto e os peitos na direção do chamado e se deparou com aquela coisa espetacular, sinuosa, deslumbrante, maravilhosa: a cobra. Não deu outra: foi amor à primeira vista, love at first feel. Eva se encantou pela cobra a cobra se encantou pela Eva e não demorou muito para os dois se encontrarem completamente enroscados numa paixão digna de Roliúdi. Foi aí que surgiu Adão, tadinho. Colérico, espumante, a cabeça doendo em razão da ressaca e da repentina galharia, ele não pensou duas vezes: com o corpo da cobra fez um laço e com o laço enforcou a jovem e bela Eva, sangue do seu sangue, carne da sua bunda, pedaço de mau caminho nunca trilhado, vaca amante de cobra. E assim a história seguiu outros caminhos. Adão, dizem, embrenhou-se na floresta (não era bosque?) e as más línguas dão conta de que ele juntou seus galhos com os galhos de um veadinho chamado Bambi. Ninguém nunca provou isso, é claro, mas quem é que, nos dias de hoje, depois de tanta baboseira, pode afirmar que não foi isso mesmo o que aconteceu?

Foto: Michelangelo/Wikimedia Commons


Foto: Carol Almeida/ Arte: mvs²


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LAUDIO PARREIRA – Nos anos 70, ao lado de Cacaso, Chacal e Ana Cristina Cesar, você era considerado “marginal”. Como você lida agora com o fato de ser considerado celebridade, por conta das antologias que organizou?

anos 70, pode ser considerado como uma manifestação tardia de “poesia marginal”, na medida mesmo em que esta expressão acabou ficando consagrada pela história literária estabelecida. Eu nunca fui marginal, no sentido de que a partir dos 20 anos de idade, sempre tive emprego, ralei, etc. Comecei a TALO MORICONI – Caro Claudio, gostei trabalhar aos dezenove anos como tradutor e da expressão “ser considerado”. “Ser professor do inglês. Então meu perfil maior considerado” significa que nem sempre sempre foi o do bom aluno e depois o do aquilo que vêem na gente é a expressão da ralador. Tive sorte de nascer num ambiente verdade. Eu não era considerado marginal de classe média ascendente que me permitiu nos anos 70. Minha relação com a turma dos só começar a trabalhar aos 19-20 anos. Meu que hoje são chamados de poetas marginais pai e minha mãe eram profissionais de nível era muito oblíqua. Eu me mudei de Brasília de formação equivalente ao universitário para o Rio em 1976 e trabalharam de sol e as turmas dos a sol a vida inteira, o A minha turma de amigos marginais tinham sido que permitiu a mim e e parentes da mesma formadas alguns anos meu irmão termos uma antes. Meus grandes idade provavelmente tinha infância e adolescência amigos na época foram feliz e de pura formação, os mesmos hábitos que a Ana Cristina Cesar sempre com muitos turma dos poetas marginais e Paulo Henriques estudos e esportes Britto, independente – nós éramos contraculturais, (meu irmão mais nos de turmas, e se fui de esportes do que eu). libertários, fumávamos alguma turma, eram a Quanto a ser maconha, ficávamos pelados celebridade, eu não turma do suplemento da Tribuna da Imprensa em acampamentos em praias acho que seja tanto e a da pós-graduação desertas ou no meio do mato, assim. A relação com da PUC. Havia, claro, isso é ambígua. Por fazíamos macrobiótica... uma identificação um lado é bom pela geracional. A minha turma de amigos e vaidade e pelo fato que cria um elo afetivo a parentes da mesma idade provavelmente tinha priori muito legal com muitas pessoas. Por os mesmos hábitos que a turma dos poetas outro lado isso te deixa preso a uma máscara marginais – nós éramos contraculturais, social que às vezes incomoda. Mas eu acho libertários, fumávamos maconha, ficávamos que me divirto e que na verdade gosto dessa pelados em acampamentos em praias desertas coisa de “criar o meu próprio personagem”. ou no meio do mato, fazíamos macrobiótica, A chamada celebridade, ou simplesmente, acreditávamos e praticávamos a liberação a visibilidade pública, faz com que a pessoa sexual total (eu era meio tímido e tive que viva cada vez mais em função de criar a sua fazer análise para me adaptar ao clima de máscara social, o seu personagem. Me sinto soltura geral). Portanto, não me considero um preso a ele e faço muitas fantasias de me poeta marginal, mas alguém que na juventude libertar dele e a melhor maneira para isso, viveu as loucuras dos anos 70, apesar de não claro, é preservar uma privacidade. de uma maneira excessiva. Porém, concordo Eu na verdade tenho uma vida privada que que meu primeiro livro de poesia, de 1988, eu acho que prevalece sobre a vida pública, juntando coisas que eu escrevia desde os por isso acho o termo celebridade um pouco

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exagerado para definir a minha situação. Na cultura da celebridade, acho que existem taxas diferenciadas, taxas de visibilidade diferenciadas. Eu me dou uns 3 numa escala de 0 a 10. Ainda bem!

CLAUDIO PARREIRA – Italo, como foi para você mergulhar no mundo turbulento de Caio Fernando Abreu?

ITALO MORICONI - Foi bastante pesado psicologicamente fazer algumas entrevistas, CLAUDIO PARREIRA – João Silvério mas depois o peso maior veio mais da exaustão Trevisan odeia quando se referem à sua obra provocada pelo trabalho em si. Deu muito como literatura gay, assim como o próprio trabalho fazer o volume de cartas. Tinha Caio Fernando Abreu. Já rotularam a sua muito material no caso de alguns missivistas e poesia dessa forma? Como é que você reage precisava sair em campo procurando pessoas diante desse “enquadramento”? para aumentar o leque dos mesmos. Mas literariamente eu gosto, pois me identifico ITALO MORICONI - Eu não tenho problemas muito com a turbulência dele, embora Caio que classifiquem minha poesia como gay. tenha um lado sentimental que é diferente, Certamente, não a acho, da maneira como escrevo pensando nisso, eu lido e me relaciono Me situo de maneira muito pois embora eu seja com sentimentos. Caio hesitante e ambígua em totalmente a favor do era hiper radical na movimento gay/lésbico vida e eu o admiro por relação a toda e qualquer e da luta pelos direitos reivindicação de identidade. isso, mas eu não sou gay/lésbicos, me situo tão radical em termos Prefiro dizer que meus de maneira muito de atitude quanto ele. poemas são homoeróticos. hesitante e ambígua Nunca conheci o Caio em relação a toda e pessoalmente. Quando Intelectualmente, eu me qualquer reivindicação ele estava vivo, eu identifico mais com as de identidade. Prefiro acompanhava mais de perspectivas “queer” do que dizer que meus poemas perto outros autores, são homoeróticos. como o Noll, o Silviano com as identitárias duras... Intelectualmente, eu Santiago, a Hilda Hilst, me identifico mais o Sérgio Sant’Anna, o com as perspectivas “queer” do que com Rubem Fonseca, ele menos. Eu gostava muito as identitárias duras, que eu acho que são de Morangos Mofados, mas foi com Dulce importantes politicamente mas tendem a se Veiga no início dos 90 e logo em seguida o tornar simplórias, dogmáticas e autoritárias, episódio da AIDS que passei a mergulhar pelo menos na versão anglo-saxônica. Fiz uma mais forte no universo do Caio. opção de tratar desses assuntos relacionados à homossexualidade e bissexualidade no JEAN ROBERTO (correspondente) – Em 1º plano puramente artístico. Não me agrada de agosto de 2001 você foi entrevistado pela nem pretendo expor autobiograficamente Revista Veja e naquele dia declarou o seguinte: minha vida pessoal, mas basta ler a minha “São tantas sensibilidades feridas que tenho poesia para ter uma ideia de aspectos da medo de me pegarem de tocaia”, referindo-se minha intimidade. A poesia como discurso à sensibilidade dos escritores não escolhidos lírico da intimidade (e a minha se situa nessa para as coletâneas organizadas por você. linha) dá sempre um retrato teatralizado e Quais os escritores – merecedores – ficaram deslocado dela ou de sua versão fantasmática, de fora das suas antologias? fantasiosa.

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ITALO MORICONI - Lembro-me de ter feito essa declaração, mas não me lembro de que tenha sido na matéria da Veja. Muitos escritores merecedores ficaram de fora. A antologia é de poemas e não de poetas. Sempre disse aos editores que adoraria fazer uma nova antologia, intitulada Mais Cem Melhores Poemas.

Morte e Vida Severina do Cabral. Atualmente, não tenho achado Uma faca só lâmina tão superiormente imprescindível. Ocorre que esse poema foi emblemático de um modo de compreensão da poesia brasileira muito importante num dado momento, que galvanizou toda uma geração de críticos, justamente a geração de meus mestres – Costa Lima, Merquior, Haroldo de Campos, JEAN ROBERTO (correspondente) – No Silviano Santiago. Creio que o Affonso livro Cem melhores contos brasileiros do Romano nunca gostou tanto assim de Uma século, você publicou o conto do escritor faca só lâmina. Cada vez mais me liberto Moacyr Scliar chamado A balada do falso das amarras transmitidas por meus mestres, messias. O conto narra a saga de Shabtai porque cheguei a uma idade em que o mestre Tzvi, um lunático aspirante a Messias. O que sou eu, para o bem ou para mal. Mestre no levou você a publicar sentido que lhe deu Atualmente, não tenho este conto e que você Guimarães Rosa, achado Uma faca só acha do Moacyr Scliar aquele que de repente lâmina tão superiormente escritor? aprende, como adorava imprescindível. Ocorre que citar outra de minhas ITALO MORICONI – O esse poema foi emblemático grandes mestras, a que me levou a publicar de um modo de compreensão Dirce Riedel. Cecilia esse conto é que o acho Meireles tem ligações da poesia brasileira muito excelente. E também profundas com a raiz importante num dado pelo fato de trazer o mais vernácula possível elemento judaico. Acho do nosso lirismo, daí momento, que galvanizou que o Scliar é um dos toda uma geração de críticos, a importância. Eu a grandes escritores considero uma poeta brasileiros vivos. justamente a geração de meus tão rigorosa quanto mestres... Admiro a produtividade Cabral. Mas não no e a imaginação de sentido ideológico que primeira linha dele. Ele traz em si muito a palavra “rigor” adquiriu nessa geração forte o DNA do contador de histórias, mas supracitada. não na linha épica de um Érico ou na linha costumbrista de Jorge Amado e do mainstream GERALDO LIMA – Você viveu em Brasília modernista brasileiro em geral. É numa linha durante um bom tempo (de 1960 a 1975). urbana e, por que não dizer?, judaica mesmo. Formou-se, inclusive, em Sociologia na UNB. Ele não é um narrador de longo fôlego e Você ainda tem alguma ligação afetiva com sim, curto, irônico, anedótico, mesmo em a cidade? Tem acompanhado a produção romances. Viva Scliar! poética dos seus autores?

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JEAN ROBERTO (correspondente) – Os versos de Cecília Meireles ganham mais espaço do que os do rigoroso João Cabral de Melo Neto. Por quê? ITALO MORICONI - Foi algo fortuito. Eu me arrependo de não ter colocado também o

ITALO MORICONI - Sim, minha mãe, irmão, cunhada, amigos do peito de infância e adolescência moram lá e viajo bastante para lá, sempre no Natal e algumas vezes durante o ano. Minha família foi pioneira, somos muitíssimo ligados à Brasília dos brasilienses,


dos candangos, não à Brasília dos políticos. Acompanho pouco a nova produção poética de lá. Gosto do Nicolas Behr, o poeta brasiliense ícone da minha geração, amigo de meu irmão, Sergio Moriconi, que é crítico de cinema lá.

da década de 70, é o seu mais recente trabalho nesse sentido. Há algum outro projeto de antologia sendo pensado ou já em andamento? E qual seria a importância dessas antologias para a cena literária brasileira?

GERALDO LIMA – No seu poema O Efebo, O Efebo..., há a presença da temática homoerótica e uma dicção que nos lembra, de certo modo, a de Allen Ginsberg e a de Roberto Piva, claro, com um pouco mais de contenção. Estou extrapolando ou há realmente a influência desses dois poetas na sua poesia de temática homoerótica?

ITALO MORICONI - No momento não há proposta de antologia em andamento. Antologias são importantes do ponto de vista da divulgação e da formação de leitores. Não acredito que influenciem a cena literária em termos de determinar tendências. No entanto, elas certamente ajudam a levar pessoas para a literatura.

ITALO MORICONI BRUNA MITRANO Não sei se há influência. (participação especial) Antologias são importantes – Faz tempo li no site da Mas Ginsberg e Piva do ponto de vista da são dois poetas que Veja uma matéria sobre amo. Gosto muito você e as antologias Os divulgação e da formação também dos poemas de leitores. Não acredito que cem melhores. O título homoeróticos do era Intelectual, mas influenciem a cena literária Whitman, inclusive pop. Logo no início em termos de determinar fiz uma tradução do tinha uma foto sua. A Calamus, que é o poema tendências. No entanto, elas legenda da foto era: em que Whitman, ao “Moriconi, no local onde certamente ajudam a levar faz musculação: ‘Só completar quarenta pessoas para a literatura. anos de idade, sai do entra o que eu gosto’”. armário. Outro poeta O que você acha/ homoerótico que achou do fato de terem amo muito é Kavafis, colocado em destaque apesar de não ser capaz de lê-lo no original. uma frase com um duplo sentido evidente? Quem me apresentou ao Kavafis foi o Paulo Ao dizê-la, você teve intenção de fazer um Henriques Britto, lá pelos idos de 77, 78. O trocadilho ou o mérito foi todo do jornalista Piva e o Kavafis celebram o amor dos homens Marcelo Marthe? maduros pelos rapazes mais jovens, já o que Tal frase está relacionada ao fato de você me agrada em Whitman é que ele fala do assumir sua homossexualidade. Como você amor entre homens feitos, homens maduros, reage a esses rótulos (intelectual gay, pop trabalhadores. Mas o Kavafis eu gosto ainda etc.)? mais do que do Piva, porque fala do ponto de vista do cara que está envelhecendo, gosto do ITALO MORICONI - Sinceramente, não tom nostálgico do homoerotismo dele. lembro desta legenda, nem guardei a matéria, GERALDO LIMA – Você se tornou um porque na época ela me deixou constrangido. respeitado organizador de antologias. Parece- A história de intelectual pop deu muito me que DESTINO: POESIA (Editora José pano pra manga, teve uns desdobramentos Olympio, 2009), livro no qual você reuniu interessantes. Acho que o deboche é uma cinco poetas emblemáticos da poesia marginal linguagem típica da Veja. Esses são os ônus

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da visibilidade. Eu conquistei visibilidade, BRUNA MITRANO (participação especial) mas fui vítima desse tipo de humor gênero – As antologias – tanto a de poemas como “zorra total”. Mas eu não me sinto ofendido a de contos – deram muito certo. São lidas, até porque não considero que a sodomia seja inclusive, por quem até então não conhecia pecaminosa e muito menos anormal, por muitos dos autores escolhidos. Como você isso eu faria humor com este tema de outra vê esse “processo” de escolhas suas passarem forma, não como vergonha ou estigma, e sim a ser as dos outros (ou por identificação como pulsão orgiástica. Na época, preferi imediata ou por algo que surge durante a ficar com a visibilidade, que para mim é um leitura)? capital. Além disso, a visibilidade é a forma que formata hoje o espaço público. Portanto, ITALO MORICONI - Também tenho ela é um capital profissional mas é também problemas com esse tipo de processo. A gente um capital político. Quanto a rótulos, são sempre alimenta a utopia de querer descobrir rótulos. Sempre simplórios. Porém, o clichê é tudo de maneira completamente autônoma, uma necessidade da comunicação. Eu ainda de não termos mestres nem guias. No entanto, me sinto um intelectual, sejamos realistas. que tento ver tudo de Oitenta por cento do Eu conquistei visibilidade, maneira mais complexa que escolhemos para mas fui vítima desse tipo de ler, já vem por algum que o rótulo, por isso humor gênero “zorra total”. não me movo pelos tipo de conduto, de rótulos, embora conviva Mas eu não me sinto ofendido recomendação. A na boa com eles, gente gosta daquilo até porque não considero que porque de outra forma que querem que a eu estaria assumindo a sodomia seja pecaminosa e gente goste. Mas nesse uma postura elitista e muito menos anormal, por isso processo, a gente vai arrogante. Os rótulos eu faria humor com este tema descobrindo coisas de existem e o debate que ninguém gosta, de outra forma, não como político-cultural em boa mas que a gente gosta e vergonha ou estigma, e sim parte se dá em torno descobre que não gosta como pulsão orgiástica. deles. Mas eu acho tanto de coisas que todo muito mais interessante mundo gosta. Aí vai se a desconstrução de todo e qualquer rótulo, a desenvolvendo a autonomia crítica de cada exploração das nuances e das contradições um. O papel do acaso aumenta na medida internas. No entanto, verdade seja dita, é em que por conta própria descobrimos impossível valorar arte sem a utilização de coisas em livrarias, sebos e bibliotecas. E categorias que são basicamente rótulos: fundamental é quando chegamos ao ponto de classicismo, romantismo, modernismo, termos um grupo de amigos e companheiros minimalismo, o abjeto, o sublime, irônico, amantes e praticantes da literatura. O papel desconstrutivo, formalista, construtivo, das antologias é fazer uma ordenação prévia barroco, neobarroco, pós-modernismo, do que já existe para ajudar os iniciantes vanguardismo, maneirismo, etc. etc. etc. Você a começaram a conhecer um universo sempre está etiquetando arte: colocando proliferante. rótulos, por um lado, e, paralelamente, dando um valor xis relacional, inclusive monetário. BRUNA MITRANO (participação especial) – É o supermercado das sensorialidades Em diversos artigos, ao falar sobre a Internet, objetificadas. você apresenta uma visão otimista. Acredita que Internet está resgatando o hábito de

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leitura/escrita. Gostaria que você comentasse sua relação com as revistas literárias virtuais (considerando que você escreve para o Cronópios, por exemplo); com os blogs e sites de escritores que já têm livros publicados (no caso, a versão impressa) e que usam o espaço virtual para divulgar o trabalho; e com os blogs de escritores iniciantes, aqueles que começam a publicar na Internet.

HOMERO GOMES – Você afirma que como leitor é possível saber o que é bom e o que é ruim; entretanto como acadêmico o conceito de qualidade é relativizado. Houve uma luta interna, entre o leitor e o acadêmico – com mais de 30 anos de sala de aula –, durante a seleção dos contos presentes em Os cem melhores contos brasileiros do século?

ITALO MORICONI - Não houve uma luta ITALO MORICONI - Assim como várias interna, pois eu como acadêmico e como leitor pessoas da minha geração, que se encontram tenho sido um só e me sinto como um só. O na faixa dos 50 e 60 anos de idade, sou problema do acadêmico é que o repertório é entusiasta na Internet, mas não sou tão usuário limitado a alguns autores canônicos, que se quanto outras pessoas mais jovens. Ainda você é professor de graduação, acaba lendo acompanho muito e relendo centenas de mais a comunicação Creio que quando me vezes. Isso enriquece a impressa do que a erudição e a capacidade aposentar vou mergulhar virtual, em todas as de análise, mas esferas. Geralmente mais fundo no mundo dos sites empobrece o alcance da vou à internet movido e blogs. Meus amigos e amigas sensibilidade estética por uma necessidade que se aposentaram entraram e afetiva. Por isso para específica. Mas gosto do mim foi benfazejo me todos nessa, acho um barato, que vejo. No entanto, jogar no mercado e fazer eu desde muito cedo são grandes navegadores na as antologias. Minha sou viciado em leitura rede. Só não tenho um blog meu estrutura de gosto de livro, de jornal, ampliou-se com esse por absoluta falta de tempo. então creio que no meu trabalho, fiquei mais caso não haverá uma aberto, principalmente substituição do suporte em relação a questões impresso pelo virtual, menos intelectuais haverá apenas a convivência de ambos. Creio e mais próximas do senso comum. Mas que quando me aposentar vou mergulhar você jamais terá em mim um inimigo do mais fundo no mundo dos sites e blogs. saber universitário. Eu continuo sendo um Meus amigos e amigas que se aposentaram intelectual e amo as questões conceituais entraram todos nessa, acho um barato, são intrincadas da teoria e da filosofia, embora grandes navegadores na rede. Só não tenho meu temperamento seja muito voltado para a um blog meu por absoluta falta de tempo. prática e para a politização de toda e qualquer Em matéria de poesia, eu acho que no futuro questão. Eu sou muito sanguíneo, mesmo no preferirei colocar todos os meus poemas num cerebralismo. blog do que publicá-los em livro. Cheguei a HOMERO GOMES – Os contos de Guimarães abrir um blogspot, chamado “italomori” mas Rosa não foram incluídos na antologia por só o alimentei uma vez, depois nunca mais. questões de direitos autorais. O que isso Coloquei lá dois poemas do meu livrinho representou para a antologia e para você História do Peixe. E um comentário sobre o pessoalmente? filme A Fita Branca.

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ITALO MORICONI - Foi um baque muito grande e uma perda imensa para a antologia. Os contos de Primeiras Estórias estão realmente entre os melhores de todos os tempos, em matéria de literatura brasileira e mesmo universal. No entanto, meu Guimarães Rosa preferido é o das narrativas mais longas, particularmente das novelas de Corpo de Baile, que tenho em altíssima conta, sem desmerecer, claro, Grande Sertão: Veredas. HOMERO GOMES – O critério empregado para a seleção dos melhores poemas brasileiros do século foi a essencialidade. Por favor, professor, explique esse conceito para os leitores d’O BULE.

ITALO MORICONI - A arte é a coisa mais maravilhosa que existe na vida, depois, claro, da experiência erótica e da alegria de conviver com amigos e familiares. Aliás, são três esferas da vida que se complementam e que se energizam uma à outra. Não vejo crise na arte, vejo sim muitas novidades na produção e circulação do artístico, como decorrência das inovações tecnológicas. A arte enquanto mercado especializado descendente das tradições da pintura e da ITALO MORICONI A arte é a coisa mais escultura foi implodida Repito aqui a definição pelas instalações e maravilhosa que existe performances e passou a dada na introdução da antologia: na vida, depois, claro, da se confundir muito com essencialidade é a experiência erótica e da alegria entretenimento, por capacidade de um um lado, ou fortaleceude conviver com amigos e poema ser exemplar se sua relação com uma dentro do seu gênero familiares. Aliás, são três esferas espécie de artesanato de específico. Que gênero? da vida que se complementam e luxo, que aliás sempre Os muitos tipos de que se energizam uma à outra. foi desde que deixou de poema, de poesia. Não vejo crise na arte, vejo sim ser religiosa e passou a Poema curto, poema ser burguesa. Não acho longo, poema piada, muitas novidades na produção que haja crise, acho e circulação do artístico... poema meditativo, que existe um contexto poema lírico, poema de superprodução e de elegíaco, poema com marca de gênero disseminação globalizada. Uma das coisas (gender) e por aí vai. que mais gosto de fazer é visitar exposições e museus. Também gosto muito do pensamento RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – filosófico voltado para questões estéticas. Na introdução de seu Os cem melhores Sinceramente, não sei como viver sem arte poemas brasileiros do século você afirma e acho uma perda de tempo esse pessoal que a antologia destinava-se ao leitor(a) que passa a vida criticando a banalidade das marciano(a) no planeta da poesia. Quem é instalações. A banalização das instalações esse quase virgem em poesia? é em si uma questão de sociologia da arte e sobretudo de sociologia e filosofia da estética. ITALO MORICONI - Somos eu e você quando Não sei em nome de que ou de quem falam os começamos a nos interessar e a ler poesia, eu detratores da arte contemporânea. Ninguém na minha adolescência. Comecei a escrever é obrigado a acompanhar o movimento poesia aos 13 anos e a ler sistematicamente, artístico e acho patético remeter ao passado para estudar e aprender, a partir de uns 16, 17. para denegrir e não para iluminar as Esse foi o meu momento marciano. propostas contemporâneas. Adoro inclusive a

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RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Como você analisa a arte contemporânea? Está ela sob um signo de crise mais veemente do que em outras épocas?


expansão do mercado e do comércio de arte, com obras lindas e originais sendo vendidas por preços baratos nas galerias que trabalham com novas gerações. Sou fã da arte dos muros urbanos, os grafittis, o trabalho de pessoas como Os Gêmeos e Smael. Também acho a fotografia uma força poderosa, apesar de estar uma coisa meio excessiva e banal. A fotografia hoje permite que qualquer pessoa seja artista. Todo mundo tem fetiche pelas fotos que tira e exibir o que se tem é o modo de ser da cultura/comunicação contemporânea. Reality show. Art show, reality show, ficcional ou não, abstratizado ou literalizado.

poética de Caio, quando se deparam com esses textos pela primeira vez, apesar de no caso da Ana às vezes acharem um pouco difícil, hermético. Não resta dúvida que o fim trágico dos dois acende o interesse por suas vidas, até porque, em geral, pessoas com perfil inquietoestético passam por experiências ou fantasias ligadas a suicídio, a inadequação em relação a papéis sexuais e sociais, etc. No caso de Caio, o fato dele ter pego AIDS é visto por muitos como uma forma de suicídio, um suicídio impensado ou lento, certamente um descuido muito grande, embora se possa argumentar que talvez ele tivesse pego o vírus antes de se detectar cientificamente sua existência (que RODRIGO NOVAES ocorreu em 83, quando DE ALMEIDA – Você a minha geração e a A biografia sempre foi um é um dos pioneiros do Caio e da Ana C. já gênero favorito no mercado. em escrever sobre a estava na faixa entre Ela é um gênero da história, 30 e 40 e poucos anos escrita íntima (diários, cartas, memórias, vida) de idade). Em suma, mas uma biografia bem de Ana Cristina Cesar escrita conflui também para a existem todas essas e do Caio Fernando conexões clássicas entre literatura. Do ponto de vista do Abreu. Atualmente a homo ou bissexualidade Paula Dip lançou uma crítico literário, não há porque e doença, homo ou biografia sobre o Caio bissexualidade e morte, separar dogmaticamente Fernando Abreu e o literatura e morte. Tudo romances de biografias Instituto Moreira Salles isso tem sido matéria de como material analítico e um segundo sobre a muita literatura desde o comparativo. Ana Cristina César. pós-romantismo e deu Como você enxerga esse nas obras primas de um interesse pelo biográfico no nosso mercado e, Thomas Mann, por exemplo, com a sífilis em em especial, sobre esses dois autores? Doutor Fausto e a tuberculose em Montanha Mágica, sem falar na biografia de Marcel ITALO MORICONI - A biografia sempre foi Proust. um gênero favorito no mercado. Ela é um gênero da história, mas uma biografia bem MAURO SIQUEIRA – Você foi o curador do escrita conflui também para a literatura. Do Café Literário durante a última edição da ponto de vista do crítico literário, não há Bienal do Livro do Rio. É sabido que a FLIP porque separar dogmaticamente romances vem ganhando espaço como referência no de biografias como material analítico e ponto de vista do debate literário, ao passo que comparativo. Esses dois autores continuam a Bienal, para o senso-comum, consolidoudespertando interesse biográfico, em primeiro se como um evento mais comercial. Vejo na lugar porque suas obras continuam atraindo intenção dos organizadores escolherem um leitores novos, jovens ou não. Leitores novos “intelectual pop” como você numa tentativa de de perfil inquieto e estético continuam sendo frear essa ideia e ao mesmo tempo garantir à atraídos pela poesia prosa de Ana e pela prosa Bienal a posição de evento-chefe da literatura

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nacional. Ao fim do Café Literário, acha que papel da crítica literária à maneira como conseguiu recuperar esse olhar sobre a Bienal? a própria crítica vem sendo realizada nos anos 90/00. Em entrevistas e conferências ITALO MORICONI - Sim, acho que fui bem anteriores, você também já se posicionou a sucedido nessa empreitada. Pelo menos é o esse respeito. Poderia nos fazer uma síntese que todo mundo diz. Porém, não acho que sobre o caminho que a crítica literária parece tenhamos abalado a posição da Flip. São seguir atualmente? espaços completamente diversos, as Bienais de livros, que são feiras de livro no sentido ITALO MORICONI - A crítica literária clássico da palavra e a Flip, que, como o contemporânea continua existindo muito nome diz, é uma festa literária. O universo de dentro das universidades e agora na interlocutores de uma Bienal é infinitamente Internet, além da imprensa escrita. Existe mais amplo e diversificado que o de uma uma tendência da crítica hoje ser mais Flip. Mas a Flip é um acontecimento cult de celebratória, quase como se os críticos primeira. O meu Café Literário tentou ser um estivessem sobretudo interessados em fazer cult dentro da grande propaganda dos autores feira, uma oferta de Existe uma tendência da crítica a que estão ligados ou chique, um momento hoje ser mais celebratória, quase de quem gostam muito. propiciador de curtição Por outro lado, quando para pessoas que como se os críticos estivessem a crítica é crítica, no gostam de curtir/ sobretudo interessados em fazer sentido de restritiva ou pensar mas têm pouco propaganda dos autores a que estão negativa, vem em geral tempo para isso. Gostei ligados ou de quem gostam muito. escrita em termos de de ver que o Café atrai Por outro lado, quando a crítica é ressentimento e até de muito professor, revi crítica, no sentido de restritiva ou incivilidade. Acho que gente que não via há falta humor às críticas séculos no Café. E negativa, vem em geral escrita em negativas. Uma crítica tem um clima liberal e termos de ressentimento e até de negativa tem que ser esclarecido que é muito incivilidade. bem-humorada, tem gostoso. A Bienal do Rio que deixar espaço para é um acontecimento de uma certa leveza. Acho identidade super carioca e eu acho que o Café que está faltando hoje um tipo de crítica mais Literário é um espaço que tem tudo a ver com profunda, baseada na experiência de leitura, o modo pelo qual o carioca escolarizado gosta mas que não seja intuitiva e sim culta. Uma de curtir cultura. Promove o encontro de crítica literária que seja ao mesmo tempo Madureira com o Leblon e eu pessoalmente muito culta, muito informada, e totalmente tenho muito apreço por esse tipo de junção, baseada na experiência da leitura, escrita tem algo hiperafetivo nisso, o Café me ela própria de maneira literária. Em suma, propiciou toda uma memória afetiva, toda precisamos de uma crítica literária mais uma integração comunitária, que eu não ensaística, mais relacionada com uma paixão sentia desde os meus tempos de líder sindical, sofisticada pela criação poética (poético aqui vê se pode isso. em sentido amplo). Gosto de um ensaísmo literário que conecte a experiência de MAURO SIQUEIRA – A professora Flora leitura com grandes questões da vida ou do Sussekind recentemente suscitou polêmica pensamento. com um artigo no suplemento Prosa e Verso, sacudindo e reacendendo o debate sobre o

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ser escritor ou intelectual, eu fui e acho que ainda sou ou serei um operário, um professor de sala de aula mesmo. Passar de autor a editor me revelou que fazer vários livros ao mesmo tempo é tão ou mais exigente do que escrever um. Então são atividades que se equivalem em termos de exigência de trabalho, a de escrever e a de editar. Editar livros é fascinante, pois eu por natureza tenho interesses de leitura bem generalistas ITALO MORICONI - Estar na editora e, apesar de ser literato, convivo muito introduziu na minha vida o diferencial do mais com a escrita ensaística e informativa expediente diário e do exercício de uma chefia. (jornalística, sociológica, histórica) do que Eu sou uma pessoa que sempre trabalhei de com a propriamente ficcional e poética. seis a sete dias por semana, mas o trabalho Atualmente minhas horas de leitura de ficção e poesia correntes intelectual em casa tem são determinadas um ritmo mais orgânico A experiência de editor está por obrigações e menos maquínico, me obrigando a prestar mais profissionais. Quanto apesar de que a leitura atenção ao objeto livro e à parte ao conhecimento do analítica e a escrita gráfica (...) como leitor e como mercado editorial, ensaística, assim como a realização de autor eu sempre negligenciei os dois últimos anos trabalhos editoriais de muito esse lado. Quando você tem têm sido de intenso qualquer tipo, cansam mania de ler, e a origem da minha aprendizado para mim. A visão que eu já tinha mais do que qualquer opção profissional está na mania do mercado editorial coisa e impõem grandes correta, sacrifícios à vida e à de ler, você lê qualquer coisa, revelou-se desde que prenda sua atenção, mas eu aprofundei saúde pessoais. Você muito mais o meu tanto faz se o livro é feio e está se recupera de um dia conhecimento de como pesado de expediente caindo em pedaços... uma editora funciona diário com uma boa noite de sono. Já o intenso trabalho e de como se configuram os negócios e as intelectual, no meu caso, nunca acontece logísticas nesse ramo de comércio. Mercado num ritmo de dia a dia, e sim em arrancadas editorial é comércio de livros. As experiências de dois a três, quatro dias. Depois de uma da Bienal do Rio e da ida à Feira de Frankfurt arrancada dessas, que não respeita fim de foram os momentos em que mais aprendi semana nem às vezes a hora das refeições e sobre mercado editorial no meu período de ir dormir, você precisa de pelo menos um atual de vida. A experiência de editor está me número equivalente de dias sem nada fazer, obrigando a prestar mais atenção ao objeto embora esse nada fazer inclua a constante livro e à parte gráfica. Apesar de sempre ter tido revisão e melhoria do já feito, assim como algum interesse estético pela questão, como um pensar e meditar sobre o realizado e um leitor e como autor eu sempre negligenciei planejar da próxima arrancada de trabalho. muito esse lado. Quando você tem mania de Claro que no meu caso esse “nada fazer”, ler, e a origem da minha opção profissional como complemento necessário do momento está na mania de ler, você lê qualquer coisa, intenso e exaustivo, sempre esteve ocupado desde que prenda sua atenção, tanto faz se o pelas aulas que tinha que dar, pois, antes de livro é feio e está caindo em pedaços ou se é MAURO SIQUEIRA – Professor, crítico, ensaísta, pesquisador, poeta, escritor, curador e mais recentemente editor. Parece não haver mais fronteira a ser enfrentada no mundo cultural por você. Como está sendo a experiência de estar à frente de uma editora? Como é, para você, que tem nove livros publicados, conhecer esse outro lado? Mudou a sua forma de ver o mercado editorial?

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uma edição de luxo. Já do ponto de vista do editor, o objeto livro é tão ou mais importante que o próprio conteúdo dele.

ITALO MORICONI - Volto a dizer que minhas antologias foram de contos e de poemas, e não de autores, embora o dado do “quem” tenha alguma importância. Bernardo ROGERS SILVA – Na coletânea Os cem Carvalho certamente é um dos grandes melhores contos brasileiros do século, autores contemporâneos, que tem inclusive particularmente gostei bastante das seções revelado capacidade de se autodiversificar, De 1900 aos anos 30, Anos 40/50 e Anos 60 fundamental para quem pretende construir e, por outro lado, não gostei da seção Anos 90, uma carreira de vida como escritor. André de autores contemporâneos. Houve alguma Sant’Anna é um satirista muito interessante pressão – seja direta ou indireta, pessoal e original. Veríssimo é um grande escritor ou editorial – na escolha de determinados popular, hábil narrador, humorista de autores contemporâneos? primeira linha, imaginativo e inteligente. Veríssimo é top de linha, é um intelectual ITALO MORICONI - Não, não houve pressão. que escreve para o público medianamente A seção contemporânea informado. Ele é o tipo é mais polêmica, porque A crítica literária do de escritor que faz não existe ainda um muito sucesso em vida, contemporâneo é sempre merecidissimamente, juízo claro e firmado por uma maioria de críticos aposta. Nada mais que aposta. mas que nas histórias sobre o valor relativo Hoje tenho uma visão mais literárias do futuro, se das obras e autores. profunda da produção dos anos estas existirem, talvez Não há hierarquias não fique entre os gênios canônicas, há apenas 90 e agora temos toda uma excepcionais. Mas os indicadores de década, a dos anos 00, que Veríssimo é modelar no circuitos – quem foi está aí para ser avaliada já de uso da língua e por isso publicado por qual sua leitura é imperativa, maneira retrospectiva. editora, quem recebeu incontornável e vai qual prêmio, quem foi ficar como acervo resenhado por quem, sempre reutilizável. quem começou em qual Como dizia Antonio site, etc. Na seção contemporânea da minha Candido, uma literatura, para existir, tem que antologia, foram feitas apostas. A crítica ter muitos escritores como Veríssimo. Ele é literária do contemporâneo é sempre aposta. patrimônio nacional. Fernando Bonassi teve Nada mais que aposta. Hoje tenho uma visão uma aparição inicial muito promissora, mas mais profunda da produção dos anos 90 e no momento não sei muito bem para onde ele agora temos toda uma década, a dos anos 00, está indo como escritor. que está aí para ser avaliada já de maneira ROGERS SILVA – Agora uma pergunta retrospectiva. A decantação canônica se dá indiscreta... Nos últimos dez anos – lado a lado com o adensamento da visão sobretudo após a publicação da coletânea Os histórico-relativa das obras e trajetórias cem melhores contos brasileiros do século, autorais. organizada por você – multiplicaram-se as coletâneas dos “melhores”. Tudo indica ROGERS SILVA – Fernando Bonassi, que, comercialmente, esse tipo de obra é André Sant’Anna, Bernardo Carvalho, Luis lucrativo, tanto para a editora quanto para Fernando Veríssimo – todos eles possuem o organizador. Procede? Sinceramente, contos na coletânea organizada por você. ganhou muito dinheiro com as coletâneas Acha mesmo que esses são os grandes autores organizadas, uma vez que parecem ter sido contemporâneos da literatura brasileira? muito vendidas?

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ITALO MORICONI - Não, não ganhei muito dinheiro. Ganhei dinheiro, mas não muito. Nada que pudesse me levar a abandonar meu salário de professor. Sou organizador, portanto o que recebo como royalties é uma parcela ínfima do que recebe um autor. Em muitos casos, o que um organizador de antologias recebe é simplesmente uma paga única pelo trabalho.

O BULE – Professor Italo Moriconi, O BULE, em nome de todos os seus colunistas, colaboradores, parceiros e, principalmente, leitores, gostaria de agradecer pela entrevista, pelo tempo investido e pelos exemplares cedidos para sorteio. E esteja à vontade para nos deixar a sua opinião sobre essa singela experiência. Mais uma vez, obrigado! ITALO MORICONI - Desejo a vocês milhões de acessos.

Foto: Carol Almeida

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Italo Moriconi é poeta, editor, organizador de antologias e professor de Literatura Brasileira e Comparada na UERJ. É autor de A Provocação Pós-Moderna (ensaio acadêmico, 1994), Ana Cristina César – O Sangue de uma Poeta (Relume Dumará, 1996) e Como e Por Que Ler A Poesia Brasileira do Século XX (ed. Objetiva, 2002). Organizou as antologias Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (ed. Objetiva, 2000) e Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (ed. Objetiva, 2001). Editou Cartas de Caio Fernando Abreu (ed. Aeroplano, 2002). Publicou 3 livros de poesia: Léu (1988), Quase Sertão (1996) e História do Peixe (2001).

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resenha e a sua leitura trouxe aquele sentimento de acabamento

rodrigo novaes de almeida

“A dança dos desejos, opus 13” Autor: Esdras do Nascimento Romance, Ed. A Girafa, 2006 “O tempo é o sistema fictício que tem por única finalidade impedir que tudo aconteça de uma vez.”, página 372.

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camadas da obra.

São os anos noventa do século passado. Leonardo é um homem comum. Professor universitário, faz bico como redator substituto num jornal carioca e tem um caso ou outro com mulheres que entram e saem da sua vida sem que ele pareça se importar muito. Leonardo é um entre as dezenas de personagens que flanam por A dança dos desejos, opus 13, de Esdras do Nascimento. À parte o relevo balzaquiano de incontáveis figuras – Balzac é também um personagem do livro, um cão –, a cidade do Rio toma corpo como quase-persona do romance. Uma localidade que resultará em universalidade, pela sofisticação dos artifícios narrativos elaborados pelo autor. Corpo, localidade, universalidade e artifício são elementos para se pensar as muitas

Não seria apenas um dado curioso a presença de uma seleção de notícias da época entrecortando a narrativa ficcional. Do estranhamento inicial, devido à diferença de linguagem, percebemos que o artifício se adapta à história, de tal forma que o desfecho do livro abre mão da ficção para apresentar mais uma dessas notícias. Se no começo, ao ler as primeiras notas jornalísticas, com o seu lead, em sua forma clássica, apresentando os fatos de acordo com o que seria mais importante informar, ignorando a cronologia dos acontecimentos, a artificialidade ainda tem força, aos poucos essa força vai se perdendo, a artificialidade do arranjo de notas verídicas e de narrativas ficcionais vai se diluindo, como se umas passassem às outras as suas características delimitadoras, terminando na troca de polaridade – a história ficcional não tem um fim, posto que é “vida que continua”, ao passo que uma última notícia determina a ruptura da história, ou a provisória, e artificial, ruptura dessa “dança dos desejos”. Corpos que flanam, amam, ou, como diz um trecho, “não amam ninguém”, coexistem com mentes que pensam – talvez de um jeito mais parecido com o nosso do que gostaríamos de admitir –, vozes que falam, na maior parte das vezes simplesmente para exercer a propriedade da fala, em ações cotidianas muito mais reativas ou, em alguns outros momentos, meramente acidentais. Existe, no autor, uma preocupação de refletir a padronização de comportamentos,


ou, quem sabe, até mesmo uma padronização existencial, nesses e desses dias de avalanche de informações, consumo desenfreado e instabilidade referencial. Entra aí uma deliciosa sacada do livro: além de uma seleção de notícias entrecortando a história, estão presentes também relatos sobre Confúcio, Esparta e Kant. Os relatos sobre Esparta são os mais interessantes, porque dialogam diretamente com uma outra cidade, o Rio de Janeiro, que, como já disse, é uma espécie de personagem no livro. Temos, então, a cultura da forma física, da beleza, da boa alimentação, dos corpos saudáveis e, principalmente, sarados desfilando seminus nas praias, a obsessão por academias, não as academias platônicas ou liceus aristotélicos, mas as academias de ginástica. Esparta. Rio. A dança dos desejos, opus 13 tem a substancialidade dos clássicos, e a sua leitura traz aquele sentimento de acabamento, de que não se precisa dizer mais, já está tudo ali. A sofisticação da narrativa, com os personagens falando, pensando e (re-)agindo congruentemente, ao passo que nós, leitores, os acompanhamos, deslizando através dessas múltiplas falas e pensamentos e ações/reações, identificados neles... Sim, é uma dança, Nietzsche tinha certa razão. Opus 13. E sem estender mais as minhas digressões, tenho por fim a pretensão de dizer que A dança é uma leitura indispensável. Expressão catártica do nosso tempo, aquele mesmo tempo que tanto precisa (é a nossa crença) de nós e de nossas construções narrativas, sejam elas ficcionais ou não (embora suspeite de que toda construção seja, de fato, ficcional), para ser definido ou ter, mesmo sob velamento, alguma significação.

Abre aspas – Por que Copacabana, Vivaldo? – perguntou Roberto de Aquino. – Não acha que tem gente demais morando lá? Aquilo parece um formigueiro. – Nem sei dizer por quê, Roberto. Copacabana me atrai, tudo lá me parece mais autêntico, mais verdadeiro. Tem milionário, tem gente fodida, tem puta, camelô, pivete, turista, gosto dos bares com as cadeiras nas calçadas, aquele povo bebendo, fazendo negócios, namorando, comendo, traficando drogas, discutindo comissão em investimentos, essa merda toda, com o sol nas fuças e um tesão incrível na alma.

* Livros podem ser enviados a’O BULE para serem resenhados, cabendo aos editores d’O BULE a seleção. Tratar pelo e-mail coisaprobule@yahoo.com.br

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as (im)perfeições do nosso amor rogers silva

Eu te amo eu te amo eu te amo, saiba, insistia em dizer. Sei, murmurei. E eu também. Mas...

Um vôo entre as estrelas e o chão – Rogers Silva

Foto: Murat Cebi/Stock.xchng

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Seu amor me faz mal, Jalousie (sempre odiei seu nome, achava meio feminino). Anulou o que mais de essencial e prazeroso a vida pode (e pôde, antes de você) me oferecer. Sim, são reclamações, à altura dos instantes (e instante é tudo) que me fez perder. E ganhar, porque com você instantes de companheirismo e amizade eu pude (como não conhecera antes) ter. Você me faz falta, Jalousie. Três dias são o bastante para a dor entrar, e corroer. Três dias foram o máximo (em vinte e três anos) que ficamos longe um do outro. A falta que você me faz é semelhante ao mal que você me faz. A falta – a que fui obrigado a render – dói. A falta, a ausência doem, meu Cego-luz (prefiro assim). Com você, a falta do sublime, do transcendental. Sem você, a falta de você. Tudo é ausência. Como me acostumar a um mundo onde tudo é ausência? Com você (porque você insiste em não querer transgredir), a mesmice enfim. Seu amor é pouco: não se entrega. Às vezes preferiria que fosse uma paixão ardente, passageira, mas sublime, feita de instantes intensos e inesquecíveis. Seu amor é muito, e bonito: não consegue ficar sem mim. Seu amor é estranho, Jalousie. Está sempre adiando. Um dia (um dia em que não estarei) vai perceber que o amanhã não existe. Seu medo é maior que seu amor. Suas convicções são maiores (muito maiores) que seu amor. Seus preconceitos. Porém, seu amor me faz bem, Jalousie. Me trouxe calma e segurança num mundo outrora caótico, o mundo meu. Seu amor, meu Cego-luz, me faz muito bem: me fez enxergar beleza na rotina, no banal. Seu amor é banal. Tão banal quanto as tradições a que dá tanto valor. Tão banal quanto as leis e leis que tentam sufocar o amor (o intenso), e possíveis e infinitas concretizações desse amor. Seu amor é bonito, Jalousie. Um amor que suporta e perdoa e esquece tão facilmente. Um amor bonito, que acredita no renovar espontâneo do amor. Um amor ingênuo, abstrato, ainda livre da crueza do mundo. Livre das corrupções do mundo. Da crueldade do mundo. Livre. Seu amor é estranho, meu Cego-luz. Conforma-se com pouco. Conforma-se, às vezes, com o nada, e o nada me angustia. Com esse amor ganhamos força para enfrentar (juntos ou separados) o futuro. Mas perdemos o instante. Estamos sempre adiando o amor para um futuro, um futuro que não virá. O amanhã não existe. Com você passei a valorizar o dia-a-dia. Por outro lado, me afastei da magia. Aprendi, com você, a enxergar magia onde magia não havia. Mas anulei minhas fantasias, as grandes (que provavelmente nunca seriam realizadas). Com você, a esperança. Com você, a falta (tempos em tempos ela morre) de esperança. Jalousie, me faz bem o seu amor. Faz tão bem que assassinei os “amores


(inventados) da minha vida”. Pois você (sem eu ou você querer) se tornou o amor da minha vida. Não precisei mais de viver de fantasias: você se tornou minha fantasia diária. Seu amor, porém, não excede: está sempre normal. É preciso deixá-lo por si só exceder, pois é no excesso que surgem a beleza e a felicidade extrema. Seu amor adia: não é um amor que valoriza o presente. Seu amor é desprendido. Seu amor é premeditado: vem ao meu encontro com a intensidade contada. Hoje, tanto. Amanhã, tanto. Seu amor é medroso: tem medo de mim. Tem medo de se aumentar. Tem medo da solidão e do abandono. Seu amor é covarde. É forte, pois não necessita de magia. Necessita, tão-somente, de se saber amado. Se tem dúvidas, chora. Se tem certeza, se fortalece, e se recupera. Seu amor é forte: me suporta. Seu amor é forte: está arraigado às suas convicções que nunca lhe trouxeram vida. Apenas segurança. Jalousie, com você eu posso dançar ou não dançar. Fazer ou não fazer. Com você não tenho vergonha de ser apenas eu. Com você posso andar descalça e não me constranger, pois a sua humildade me traz serenidade, e segurança. Me sinto segura com você: posso fechar os olhos. Me sinto fortalecida com você: enquanto estamos juntos, caminhamos juntos, sempre de mãos dadas. É, meu Cego-luz, a minha fortaleza: sempre espero (com razão) de você: “Eis o meu apoio”. Um amor pueril, de menino que não sabe nada da vida. Nem do amor. Um amor a la Jalousie, frio e forte. Um amor que necessita de manual de instruções: faça isso, faça aquilo. Não tem o encanto da audácia e da descoberta. É covarde, pois é insosso. É forte, pois perdura apesar dos espinhos do dia-a-dia. É um amor simples, despretensioso, que dá valor no pastel de todas as sextas-feiras. Dá valor no almoço de domingo juntos. Dá valor no encontro marcado. Porém desvaloriza e subestima a saudade: tem medo da distância, pois viciamos um no outro. Vicio só é vício quando se torna necessidade: temos necessidade diária um do outro. Seu amor é grande: nasceu grande, do tamanho da vida, tanto que a entregou a mim (está guardada aqui, na caixinha de anéis, protegida por minhas mãos. Vou levá-la comigo). Seu amor é paciente. Jalousie, seu amor subsiste aos meus ataques de fêmea ferida. Seu amor é maior do que minhas chantagens. Seu amor não se excede: não grita, mas chora quando há dor. Seu amor suporta, pacientemente, a dor. Seu amor é como sua beleza: constante, imutável. É impalpável: não tem como pegá-lo. Você, assim como seu amor, é admirável: não pela grandeza, mas pela simplicidade (em que há grandeza). Em seu rosto, como em seu amor, não há mau humor: está sempre disposto a sorrir, inclusive por entre as lágrimas e apesar de não poder admirar a beleza de uma flor. Seu amor é flexível, disposto a aprender, mas aprende devagar e despreocupadamente. Seu amor é inflexível, pois as aprendizagens nunca são concretizadas: espera por um momento que não virá. Nunca virá: o amanhã não existe. O que os outros pensam e falam é maior que seu amor. Acostumou-se a viver assim: tenso, preso, preocupado com as manifestações do seu amor. E por isso as manifestações do seu amor são poucas, quase inexistentes. Mas são muitas, a seu ver, e isso é tudo. Infelizmente é tudo para você, não para mim. De alguém que não pretende mais voltar, Dona.

*Do livro Manicômio, ainda inédito.

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influenza mauro siqueira

“Era uma vez um rapaz...; rapaz não, um homem de 31 anos. Ele sentiu o pânico que todos estavam sentindo naqueles últimos meses bem em uma sala de cinema escondida no bairro da Tijuca; alguém no escuro tossiu e tossiu alto e de repente, não mais que de repente ele percebeu que a sua volta estavam mais 150 pessoas dividindo o lugar com ele. “Evite aglomerações”, foi o que lhe veio à mente. Era como se já estivesse contaminado... começou a suar, a se engasgar com a pipoca, a Sprite Zero não ajudou, tossia-tossia-tossia, alguém também no escuro fez “shhhiii” – e só pioraca: “é mesmo muito rápida”. Sua namorada ali, “Outra vítima”, soltoulhe a mão livre, um “Que foi?” sem muita emoção, ela não se preocupou muito (o garoto de raio na testa na tela era mais interessante),ele disse que não foi nada, iria ao banheiro lavar o rosto. Não foi. Não conseguiria tocar na torneira imunda de possibilidades. A luz fria do imenso hall o partia em dois, não sentia o ar nos pulmões puxava e puxava e só o ââârhhhh afônico como resposta, buscou a bombinha – “putaquepariu” –, deixou na mochila, na sala 2 do cinema, poltrona h1, ironia... sentia o peito queimando, não podia sequer abrir a camisa, pois não tinha botões... Ele mataria por uma máscara de gás daquelas da I Guerra Mundial ou mesmo um lenço umedecido... E ninguém vinha acodir a sua agonia... tudo girava... todo curvado, mãos no joelho, cabeça pendida, em busca do ar fugidio, como se ali em baixo ele fosse menos raro. Dispneia. Dissabor. Delírio. Sua mente desatou a só pensar em Orwell e a sacanagem com que o site da Amazon® fez com os compradores do seu “1984” e ele, ali, quase contaminado e semimorto e em pânico só ouvia as ovelhas de “A Revolução dos Bichos”, desse mesmo autor, balindo nos seus ouvidos: “quatro patas bom, duas patas melhor... quatro patas bom, duas patas melhor... quatro patas bom, duas patas melhor... quatro patas bom, duas patas melhor” e o cortejo de suínos bípedes nus feito nós, a marcharem em todas as direções. E sua namorada não vinha, foi se dando conta de que nada viria e subitamente tudo parou de girar, os porcos sumiram da mesma forma que apareceram, as ovelhas se calaram, a luz de fato fria já não cegava, a respiração ainda agitada, mais o ar, o ar ali estava e tudo voltou ao normal. Mas... por vias das dúvidas foi embora, pegou o primeiro voo para Índia, onde, hare baguandi, ele se banharia no Ganges e se purificaria no rio sagrado. Antes, deixou um recado a namorada com o lanterninha: que ela podia ficar com o seu original de Animals, do Pink Floyd...

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Foto: Tyello/Flickr

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CorraAtrásDessesLivros

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orraAtrásDessesLivros é a campanha que O BULE criou para chamar a atenção da leitura off line e, sobretudo, daquelas obras capitais de cada um dos seus colunistas e colaboradores – os seus preferidos e importantes –, aquelas que te formaram como leitor ou leitora. É uma tentativa d’O BULE divulgar principalmente os clássicos e aqueles livros facilmente encontráveis nas bibliotecas, sebos, sites e até grandes livrarias. Nosso intuito é propagar a leitura de livros seminais, uma vez que para obras mais recentes – a literatura contemporânea – O BULE dedica outras áreas, como os releases, os sorteios, as colaborações e as resenhas... Se a 1ªedição da campanha publicada originalmente em 24 de junho de 2010. CLAUDIO PARREIRA sugere: Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa - Duas histórias em uma só: o amor proibido entre Riobaldo e Diadorim e uma outra, de amor pelas palavras. Linguagem elevada à máxima potência. Dom Quixote, de Miguel de Cervantes - Herói ou vilão, gênio ou idiota? Cervantes não responde a nenhuma dessas perguntas, mas planta no leitor a semente da aventura e do sonho. GERALDO LIMA sugere: Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - Depois da leitura desse livro, compreende-se que é possível escrever com liberdade, irreverência e senso crítico. O melhor da sátira menipeia, assimilada por Machado, aparece aí na ousadia do enredo e no estilo sério-cômico que ele impõe à narrativa. Enquanto agonizo, de William Faulkner - O que impressiona nesse livro é a multiplicidade de narradores. Em cada capítulo, um personagem diferente e com estilo próprio narra a história. O mosaico que resulta dessa narrativa fragmentada deve ser montado pelo leitor. É impressionante como Faulkner faz isso acontecer de modo natural, sem artificialismo. A aventura empreendida pela família para transportar o corpo da matriarca até a cidade onde ela queria ser enterrada torna-se uma das mais trágicas e absurdas da literatura universal. É um desses livros que nos impressionam pela forma e pelo conteúdo. HOMERO GOMES sugere: Eu, de Augusto dos Anjos - Impossível ler mais de dois poemas sem sofrer uma overdose de termos obtusos e anatômicos, mas poemas devem ser lidos a conta-gotas mesmo. Na literatura brasileira, Augusto dos Anjos possui uma dicção pouco seguida e, ainda hoje, original. A Varanda do Frangipani, de Mia Couto - Nada melhor do que encontrar um escritor que conseguiu colocar no papel, com talento extremo e poesia, palavras que, como colega de ofício, apenas havia sonhado. Mia Couto é um irmão de escrita; alma gêmea literária. Embora sua obra não influencie diretamente minhas criações, tenho nele fonte de referência em língua portuguesa do que deve ser buscado: uma ótima história em um texto burilado cuidadosamente, resultando em poesia em prosa que dá prazer de ler.

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MAURO SIQUEIRA sugere: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar - A concatenação mais poética em prosa – e por isso mais perigosa – da literatura brasileira. O esmero e o cuidado em soar lírico por vezes me fizeram esquecer o enredo e me fazendo reler trechos anteriores. Não será esse o feitiço? Ensaio sobre a cegueira, José Saramago - ao falar do processo de desumanização, o livro mais humano que li. Não vou cair em lugar-comum em comentar sobre a sua pontuação e afins; prefiro a mensagem e a crítica inseridas num texto vigoroso. RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA sugere:

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Crime e Castigo, de Dostoievski - Faça deste livro tua iniciação em Dostoievski. É sobre um quarto pequeno, úmido e escuro com um jovem dentro. Ou sobre um jovem dentro de um quarto pequeno, úmido e escuro que pensou que não se sentiria péssimo assassinando um ser humano medíocre e mesquinho. Se ferrou, não aguentou a parada, se ferrou mais ainda, mas Dostoievski traz quase sempre aquela luzinha no fim do túnel. Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez - Demora umas páginas para você entrar realmente na narrativa, mas, quando percebe, você já está irremediavelmente afogado num mundo fantástico muito semelhante ao nosso. Se você vive por essas bandas sulamericanas, Gabriel é obrigatório. Não tem nem desculpa. ROGERS SILVA sugere: Emissários do Diabo, de Gilvan Lemos - Tão bom quanto desconhecido. Uma obraprima esquecida. Um livro bem escrito, com uma história interessante que une regionalismo, humanismo, crítica social e psicologia. Vale a pena procurá-lo e lê-lo. Após o término da leitura, a dívida do leitor para com o escritor estará parcialmente sanada. Quer conhecê-lo? O Google e os sebos lhe serão úteis. A hora da estrela, de Clarice Lispector - Um soco no estômago. Impossível sair incólume da leitura. Macabéa, a protagonista, é tão ingênua que chega a ser dolorido conhecê-la. É Clarice em sua melhor forma – questionadora, dolorosamente consciente e epifânica. Vai encarar ou tá com medinho?


O BULE é top 100! Caros leitores, nós, editores, temos o prazer de informar que o nosso bloguesite O BULE está entre os 100 selecionados do Prêmio TOPBLOG na categoria Variedades. Acesse http://bit.ly/voteobule e confira. Agora, estamos concorrendo tanto ao prêmio do júri popular quanto ao prêmio do júri acadêmico. Ou seja, continuem votando n’O BULE para ele - quem sabe - ganhar pelo júri popular. Em relação ao júri acadêmico, é torcer... Muito obrigado a todos pela votação. E continuem votando! É só clicar http://bit.ly/voteobule


www.O-BULE.blogspot.com Os Editores: Claudio Parreira Geraldo Lima Mauro Siqueira Rodrigo Novaes de Almeida Rogers Silva Colaboraram para essa edição Homero Gomes Jean Roberto Bruna Mitrano Ricardo Novais Sinvaldo Júnior Sylvia Beirute

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crônica, contos, micronarrativa, hiperliteratura, resenha, ensaio, Nelson de Oliveira, Moacir C Lopes, Ana Paula Maia

Diagramação desta edição mvs² O BULE é um projeto coletivo de literatura. Contos, entrevistas, micronarrativas, resenhas, folhetins etc. Somos cinco colunistas + colaboradores e convidados. Para entrar em contato com os colunistas d’O BULE, enviar textos, releases de livros, sugestão de postagem, propostas de parceria, escreva para coisaprobule@yahoo.com.br www.O-BULE.blogspot.com www.twitter.com/obule_blogue Facebook: http://bit.ly/facebule As fotos utilizadas nesta edição estão disponíveis para uso e manipulação, na Internet, conforme certificação correspondente Creative Commons, exceto as fotos das páginas 10, 11, 21, 39 e 51.

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crônica, contos, micronarrativa, resenha


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