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o-bule.blogspot.com Número Um, Ano 1 - 2010 Revista O BULE - Maio/Junho

Fernando Pessoa

na nuvem

Nelson de Oliveira Ana Paula Maia Moacir C. Lopes Malaguetas Colunistas Colaboradores Crônicas Contos Micronarrativas Entrevistas Resenhas Releases o bule

Colunistas: Claudio Parreira, Geraldo Lima, Homero Gomes, Mauro Siqueira, Rodrigo Novaes de Almeida e Rogers Silva

Colaboradores: Rogério Mathias Ribeiro e Sinvaldo Junior Fotografias / diagramação: Daniel Novaes / Rodrigo N. de Almeida

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Número Um, Ano 1 - 2010

Revista O BULE - Maio/Junho

Malagueta #1 Por Homero Gomes

Evangelismo literário

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omo produção cultural e artística, a literatura não pode abrir mão do marketing e de meios de divulgação e campanhas para que leitores em potencial sejam alcançados, sejam leitores para sites e blogues de literatura, sejam para futuros lançamentos impressos ou dos novos e-books. Os leitores estão espalhados, cada um em seu contexto específico, com suas próprias escolhas de leituras diárias e de rotinas de lazer estabelecidas. Dentre as escolhas de lazer à disposição está a internet, e com ela possibilidades de se espalhar a mensagem que o escritor pretende transmitir. Dentro do contexto literário, essa mensagem se constitui na verdade do escritor; da verdade dele, que é a verdade de seu discurso estético. É, portanto, obrigação do escritor promover a “evangelização” dessa verdade. Espalhá-la a um número cada vez maior de leitores, pois se – no meio do infinito mar de publicações impressas, virtuais e digitais – o leitor não tomar conhecimento da verdade do escritor, este não poderá julgá-la. Para auxiliar o escritor nessa “missão de evangelização” – seja pessoalmente ou por agente literário – existe uma nova estratégia, o Buzz Marketing. Ele age como um zumbido – ou um sussurro, por surgir sem muito barulho, na quietude da internet (por exemplo) –, cativando o público-leitor-alvo específico, mas que pode ser conhecido por outros milhares de leitores, inicialmente não planejados. Esse é o antigo e conhecido boca-a-boca, que já existe a muitos anos, mas que precisa efetivamente fazer parte das práticas de divulgação da arte literária. Tal como o boca-a-boca, o Buzz Marketing de um conto publicado recentemente, por exemplo, não esconde sua intenção de se disseminar entre diversos possíveis leitores. Ele não pretende a venda em si (por exemplo, em uma campanha em que se divulga o lançamento de um livro), mas tem a pretensão de ver espalhada a mensagem do lançamento dessa verdade específica. Com as facilidades que a internet trouxe, essa espécie de estratégia de Marketing está se tornando cada vez mais forte, rápida, pois pretende (e tem conseguido) atingir um número de pessoas cada vez maior. Essa estratégia tem tudo a ver com a figura ativa do leitor que não é passivo diante da mensagem. O leitor deve se tornar um fiel dessa verdade, mas por vontade própria deve “evangelizar” porque quer, pois com seu endosso a mensagem do escritor será mostrada, enviada, conversada e conhecida mais a fundo. A partir daí, todos os atrativos do livro, texto, “mensagem” poderão ser conhecidos e novamente repassados a outros leitores que, seguindo uma lógica interna de relacionamentos interpessoais ou por interesses temáticos, possuem gostos parecidos e estão sempre atrás das mesmas coisas. É isso o que acontece quando se divulga no Facebook a publicação de algum artigo interessante publicado em outro site, ou quando se disponibiliza o link deste no Twitter. O leitor, assim, após “acreditar na mensagem” e de aprovar o texto como verdade, repassa aos seus contatos, espalhando a boa-nova do escritor, em um boca-aboca virtual que poderá se reproduzir em progressão geométrica. Para que o conceito de “evangelismo literário” fique claro definitivamente, veja-se o que afirma Arthur Dehon Little. Para ele, o Buzz Marketing “trata-se de uma das novas estratégias de Marketing que encoraja indivíduos da sociedade a repassar uma mensagem de Marketing para outros, criando potencial para o crescimento exponencial tanto na exposição como na influência da mensagem. Como os vírus reais, tais estratégias aproveitam o fenômeno da rápida multiplicação para levar uma mensagem a milhares e até milhões de pessoas”. Não adianta analisar a importância da leitura e do papel do leitor se não houver leitores; fisgá-los, “evangelizá-los”, por meio dos anúncios do Orkut ou de um tweet divulgando o link de uma publicação, é função do escritor também (além de escrever). Portanto, se os leitores não estão lendo a culpa é dos escritores. Pois não basta escrever bem e se esquecer de disponibilizar aos leitores o texto escrito; textos aprisionados em gavetas não existem, é como se nunca tivessem sido escritos. Além disso, ao disponibilizar seus textos, divulgando-os, o escritor amplia o papel de leitor, que se transforma em um disseminador de mensagens. Todo leitor é um evangelizador da verdade do escritor.

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Fernando Pessoa e a Maçonaria

Por Rogério Mathias Ribeiro

Contra todas as fórmulas do mal, Contra tudo que torna o homem precário. Se és maçon, Sou mais que maçon – sou templário. Esqueço-te santo Deslembro teu indefinido encanto. Meu irmão, dou-te o abraço fraternal. [1]

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ma das questões mais discutidas pelos pesquisadores do papel do ocultismo na obra pessoana é se Fernando Pessoa foi, ou não, um maçom. Essa resposta poderia ajudar no entendimento de um dos principais mistérios: o ocultismo foi apenas uma fonte de inspiração para o poeta ou foi a base de seu projeto poético? Uma confirmação da participação de Fernando Pessoa na Maçonaria poderia sugerir que os estudos do poeta (que atravessaram sua vida) sobre as ordens iniciáticas e ciências ocultas eram mais do que simples matéria bruta para sua poesia. Não temos dúvidas do enorme interesse do poeta pelos assuntos ocultos. Sua vida e sua obra mostram-nos um enorme conhecimento sobre as ordens, a simbologia maçônica e as religiões antigas. Assim como a maioria dos pesquisadores do papel do ocultismo na poesia de Fernando Pessoa, acreditamos que o escritor foi um iniciado tanto como poeta quanto em sua vida pessoal. Alguns estudiosos argumentam que há razões para se duvidar da efetiva participação do poeta na Maçonaria. Uma das razões seria o fato de não haver registro da passagem de Fernando Pessoa pelo Grande Oriente Lusitano, única obediência portuguesa de sua época; seria um bom argumento se a loja não tivesse sido assaltada e vandalizada em 1929 e 1935 e em decorrência disso tivesse a maioria dos documentos sido destruída. [2]. As depredações e ataques não provam a participação de Pessoa no Grande Oriente Lusitano, mas tampouco convém acreditar que a única maneira de Fernando Pessoa passar por uma iniciação em ordem secreta ou em ritos secretos seria através da loja em questão; há também a hipótese da participação de Pessoa em outra ordem iniciática que não a Maçonaria. Antes de completar esse raciocínio, seria relevante abordar o teor do famoso artigo de Pessoa em defesa da Maçonaria, principal argumento usado por aqueles que não creem na filiação maçônica do poeta. Este trecho abaixo é do artigo que Fernando Pessoa publicou no Diário de Lisboa, no 4.388 de 4 de fevereiro de 1935, contra o projeto de lei, do deputado José Cabral, proibindo o funcionamento das associações secretas, sejam quais fossem os seus fins e sua organização: “Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou, porém, antimaçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma idéia absolutamente favorável da Ordem Maçônica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria – parte que nada tem de político ou social –, fui necessariamente levado a estudar também esse assunto – assunto bel, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar (...)”[3]

Não poderíamos esperar que Pessoa se declarasse maçom em um artigo de primeira página de jornal enquanto tramitava (foi posteriormente aprovado) um projeto que estabelecia várias e fortes sanções a todos quantos pertencessem a associações secretas; definitivamente, não seria uma atitude muito inteligente. Além disso, não é permitido a um maçom declarar a sua condição a ninguém, muito menos àqueles que não façam parte da fraternidade. No livro coordenado por Teresa Rita Lopes, Pessoa inédito, temos um escrito de Pessoa que auxilia na compreensão da questão: “Por isso eu disse, legitimamente, que não pertencia a Ordem nenhuma. Não podia legitimamente dizer que não tinha nenhuma iniciação. Antes, para quem pudesse entender, insinuei que a tinha, quando falei de uma preparação especial, cuja natureza não me proponho indicar. Esta frase escapou, e ainda mais o seu sentido possível, aos iledores antimaçonicos. Só posso pois dizer que pertenço à Ordem Templária de Portugal. Posso dizer, e digo, que sou Templário portuguez. Digo-o devidamente autorizado. E dito, fica dito. (…)”[4]

Sendo assim, Pessoa admite que foi iniciado, e não fica por aí, vai além: declara-se templário português, ou seja, mais que maçom. Ao que parece, o poeta foi iniciado, aprendeu sobre as ordens secretas e tinha conhecimentos que lhe permitiam estudos aprofundados sobre as mesmas. António Arnaut, em seu Fernando Pessoa e a Maçonaria, levanta diversas hipóteses sobre a iniciação de Fernando Pessoa, inclusive a de Fernando Pessoa ter se transmutado em um iniciado, ou ter se autoiniciado. Jorge de Matos, em O pensamento maçônico de Fernando Pessoa, também não guarda dúvidas da iniciação do poeta, mas de igual forma levanta hipóteses sobre como esta teria se dado – talvez, através do mago inglês Aleister Crowley. Na verdade, é difícil, depois de tanto tempo, saber ao certo como se deu a iniciação de Pessoa, principalmente em se tratando de ordens secretas. Temos de definitivo o profundo conhecimento do poeta sobre o assunto, o qual, segundo muitos pesquisadores e maçons, só poderia ser adquirido por meio de uma participação efetiva em uma ordem ocultista, com a presença de um mestre que lhe auxiliasse a compreender a intrincada simbologia. Pessoa, no artigo do jornal, continua a discorrer sobre a Maçonaria: “A Maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano – isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita, portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época reage, quanto à atitude social, diferentemente. Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçônico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria – como aliás qualquer instituição humana, secreta ou não – apresenta diferentes aspectos, conforme a mentalidade de Maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa. Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só idéia – a “tolerância”; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama “doutrina maçônica” são opiniões individuais de Maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos tentando converter em doutrina o

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espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos Antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçônico em geral pelas afirmações de Maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.”[5]

Nesse trecho, Pessoa faz uma síntese dos principais elementos da Maçonaria, em Portugal e no exterior, demonstra conhecimento de como funcionavam naquela época as diversas estruturas das ordens maçônicas e chega mesmo a enumerar os principais autores citados pelos antimaçons. “O segundo erro dos Antimaçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afetam a Maçonaria como afetam toda a gente. A sua ação social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência, onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias – as que provocaram a formação dessas Obediências distintas, pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue daqui que nenhum ato político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.”[6]

Em seguida, Fernando Pessoa discorre sobre as diferentes correntes de pensamento que existem dentro da Maçonaria, chamadas obediências distintas. É importante lembrar que outras ordens secretas como a Ordem da Rosa Cruz e a Ordem Templária podem estar incluídas de algum modo dentre essas obediências distintas; isso abre espaço para cogitarmos que a aproximação maior de Pessoa seria com uma obediência distinta e não exatamente com a parte mais difundida da Maçonaria, hipótese que não deve ser descartada. “Resulta de tudo isto que todas as campanhas antimaçônicas – baseadas nesta dupla confusão do particular com o geral e do ocasional com o permanente – estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério – o de avaliar uma instituição pelos seus atos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais – que haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma perfeitamente definida em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo) ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente, a Igreja inteira. Sejamos, ao menos, justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a crédito, em contrapartida, os benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito – quando expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa – pelo Maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellinton e Blucher eram ambos Maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados – a “Entente Cordiale”, obra do Maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna – o “Fausto” do Maçom Goethe. Acabei de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos Maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a Antimaçonaria àqueles Antimaçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.”[7]

O trecho que finaliza a defesa da Maçonaria também é passível de alguns comentários importantes. Fernando Pessoa critica a Igreja tradicional e enumera feitos virtuosos dos integrantes da Maçonaria, dentre eles a maior obra da literatura moderna escrita por Goethe. Ora, é também sobre Goethe, o “Maçom Goethe”, tão admirado pelo poeta, um ensaio do próprio Pessoa que trata de poesia e alquimia e que será comentado posteriormente nesse trabalho. É também digna de menção a solicitação que Pessoa faz ao deputado para que deixe a Maçonaria aos maçons e “aos que embora não o sejam, viram, ainda que em noutro Templo a mesma Luz.”. “Ver a Luz” é a expressão maçônica que significa ser iniciado, ser recebido na Ordem, ou seja, Pessoa pede que a Maçonaria seja deixada aos maçons e aos iniciados por ordens similares, por ordens iniciáticas que permitem aos seus adeptos a visão da Luz, entre esses pode estar o próprio Pessoa que se dizia “Templário portuguez”. A Maçonaria aos maçons e aos que viram a Luz; a “Antimaçonaria” aos descendentes do “pregador” de Herodes e Pilatos. Em que grupo estaria Pessoa senão no primeiro? Acreditamos, pois, que se levando em conta os sólidos conhecimentos que Fernando Pessoa tinha dos propósitos das ordens iniciáticas, da simbologia maçônica e esotérica, dos rituais das ordens secretas, da estrutura e do funcionamento dessas ordens, assim como seu profundo domínio de tantas questões relacionadas ao tema, o poeta foi um iniciado, ainda que autoiniciado, na Maçonaria ou em alguma ordem secreta similar. Yvette Kace Centeno nos diz que: “A maçonaria é, para Fernando Pessoa, “uma vida” mais do que uma sociedade ou uma ordem.”[8] Se o poeta participou ativamente dos rituais, das reuniões, e foi um membro oficializado, não há documento que possa comprovar, porém, a quantidade de livros sobre o assunto presentes na biblioteca de Pessoa e a quantidade de escritos seus a respeito das ordens iniciáticas colocam o poeta como um estudioso profundo do tema e, como o próprio poeta revela, um templário português iniciado. 1. Apud MATOS, 1997, p. 138. 2. ARNAUT, Antonio. Fernando Pessoa e a Maçonaria. Lisboa: Grêmio Lusitano, 2005, p.6. 3. Apud ARNAUT, 2005, p.21 e 22. 4. Apud LOPES, 1993, p. 334. 5. Apud ARNAUT, 2005, p. 29 e30. 6. Apud ARNAUT, 2005, p. 30. 7. Apud ARNAUT, 2005, p. 30. 8. CENTENO, Yvette Kace. O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1990, p.25. Parte integrante da dissertação de mestrado Esoterismo e ocultismo em Fernando Pessoa: Caminhos da crítica e de poética, de Rogério Mathias Ribeiro.

Rogério Mathias Ribeiro - Graduado em Letras (Português/ Literatura) pela UERJ, especialista em Literatura Portuguesa pela UERJ e Mestre em Letras (Literatura Portuguesa) pela UFF. Taurino de 37 anos, carioca, residente no Rio de Janeiro-RJ, torcedor do Botafogo e professor de Ensino Médio, estudioso da Literatura Portuguesa e do Ocultismo. Contato por e-mail: roger7332@hotmail.com

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Os colunistas d’O BULE entrevistam Nelson de Oliveira Por Editores d’O BULE

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iccionista, resenhista, agitador cultural, organizador de antologias polêmicas e de sucesso – são vários os qualificativos que poderiam ser usados para o nosso primeiro entrevistado: Nelson de Oliveira. Ele nasceu em 1966, em Guaíra, SP. Escritor e doutor em Letras pela USP, publicou mais de vinte livros, entre eles Naquela época tínhamos um gato (contos, 1998), Subsolo infinito (romance, 2000), O filho do Crucificado (contos, 2001, também lançado no México), A maldição do macho (romance, 2002, publicado também em Portugal), Algum lugar em parte alguma (contos, 2006) e A oficina do escritor (ensaios, 2008). Em 2001 organizou a antologia Geração 90: manuscritos de computador e em 2003, Geração 90: os transgressores, com os melhores prosadores brasileiros surgidos no final do século 20. Foi um dos curadores das duas primeiras edições dos Encontros de Interrogação, realizados no Instituto Itaú Cultural em 2004 e em 2007, e é um dos criadores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA. Atualmente coordena a coleção Panacéia, da editora Ofício das Palavras, e o Projeto Portal, de narrativas de ficção científica. Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas (1995), o da Fundação Cultural da Bahia (1996), duas vezes o da APCA (2001 e 2003) e o da Fundação Biblioteca Nacional (2007). Atualmente também coordena, em várias instituições, oficinas de criação literária para escritores com obra ainda em formação.

JEAN ROBERTO: Fale sobre suas influências literárias… Quais autores e livros mais lhe marcaram? NELSON: Pergunta complicada. No início de minha carreira era mais fácil falar das influências literárias. Eu era jovem, passional, deslumbrado. Kafka foi o primeiro prosador que me inquietou. O processo. Os contos. Em seguida veio Cortázar. O jogo da amarelinha. Depois Guimarães Rosa, Campos de Carvalho, os surrealistas… Mas hoje os livros desses autores estão muito misturados na minha cabeça. Faz tempo que não os releio. Pertencem a uma paisagem vigorosa e terrível, mas distante, perdida na neblina. E há também os poetas, os versos entusiasmados de Álvaro de Campos, Murilo Mendes, as Galáxias de Haroldo de Campos… Dimensões sempre surpreendentes da realidade. JEAN ROBERTO: Sua formação é em Artes Plásticas... Qual exerceu maior influência sobre sua vida: as artes plásticas ou a literatura? NELSON: Ambas. E a música. A fotografia. O teatro. O cinema. Todas as artes me influenciam. Fico sempre atento aos detalhes de uma pintura, de um longa-metragem, de uma sinfonia. A maneira como o compositor organiza os metais, o modo como o pintor harmoniza as massas de cor, essas soluções me inspiram, sugerem enredos. Já perdi a conta de quantos contos eu escrevi inspirado por uma sonata ou por uma canção, ou por um quadro, ou por um curta-metragem de animação. JEAN ROBERTO: Qual – ou quais – das suas antologias você considera provocadora(s)? (Ou que assim foi interpretada.) A polêmica na literatura desperta interesse no leitor? Ela pode ser considerada um trunfo (uma boa estratégia) ou uma apelação? NELSON: As duas antologias da Geração 90 foram as mais provocadoras. Ambas somam forças, gosto de vê-las trabalhando juntas. Mas não resta dúvida de que a segunda, Os transgressores, provocou individualmente um debate mais interessante. Pena que vários resenhistas deixaram de analisar os contos reunidos e se concentraram (apenas) na questão proposta pelo título da antologia. A sociedade industrial se quer ordenada e controlada; nela, porém, crimes e transgressões se multiplicam. Acabo de ler isso na coluna do Jorge Coli, no caderno Mais, da Folha de S.Paulo. Transgredir é não cumprir, não observar ordem, lei, regulamento etc. É infringir, violar. Está no Houaiss. Se você avança o sinal vermelho ou espanca alguém, você é um transgressor. Então com Os transgressores voltou à tona, no início do século 21, a reflexão sobre a função do escritor e da literatura na sociedade atual. A grande pergunta que a antologia lança é: o escritor deve respeitar as imperfeitas leis morais, religiosas, gramaticais e sociais de sua comunidade? Ou ele deve denunciar a imperfeição dessas leis, desrespeitando-as, não na avenida ou na praça, porque aí ele seria preso, mas em sua literatura? Escritor, na minha opinião, tem que avançar o sinal vermelho. E atropelar a sexagenária. Figuradamente, é claro. A literatura deve ser o machado que quebra o mar congelado que há dentro de nós. É o que Kafka dizia.

momento radical na sua trajetória literária, tanto na construção dos textos, caracterizados por um humor ácido, pelo insólito e pelo jogo com a linguagem, quanto pela concepção da capa. Há ainda a possibilidade de se repetir algo assim na sua produção literária? NELSON: O projeto gráfico do Treze é bastante inspirado e arrojado, e o crédito vai todo para o designer e editor Joca Reiners Terron. A foto da capa e a da quarta capa são provocativas. E cada miniconto ganhou, como ilustração, a foto de um paciente de um hospício da Inglaterra vitoriana. São imagens impressionantes, de pessoas saídas de um circo de esquisitices. E a fantasia do leitor logo acaba encontrando um sentido para essa combinação inesperada de fotos e contos. Sempre é possível que soluções desse tipo aconteçam, desde que o editor e o autor não estejam preocupados em agradar o grande público. Soube há pouco que um pós-graduando da Universidade de Feira de Santana escolheu o Treze e seu irmão gêmeo, Ódio sustenido, como tema de sua dissertação de mestrado. Notícias como essa fazem o trabalho valer a pena. GERALDO LIMA: A recusa ao realismo é uma característica marcante da sua obra ficcional, que vai do fantástico ao absurdo, e isso sinaliza uma coerência no seu trabalho literário. Houve algum momento nessa sua trajetória em que você tenha escrito contos realistas, ou já começou a escrever influenciado pelo fantástico? NELSON: Se o prosador realista é o que procura realizar o retrato fiel da realidade, então posso dizer, sem medo de errar, que sempre fui um autor realista. O delírio, o absurdo, a violência, o erotismo, a iluminação e a loucura são dados reais de nossa sociedade. Do primeiro ao último livro, procurei aprisionar apenas as várias facetas desse primata neurótico conhecido como Homo Sapiens. Para mim o cotidiano sempre pareceu algo desconcertante: um milagre, uma maldição. Antes de meu nascimento havia o vazio, depois de minha morte haverá o vazio. Sou, somos todos, em conjunto, um ponto fugaz, finito, entre duas eternidades, dois infinitos. É sobre esse espanto, esse desconcerto do mundo – real! –, que eu gosto de escrever. GERALDO LIMA: Que respostas você obteve do público e da crítica em relação aos seus três romances Subsolo infinito, A maldição do macho e O oitavo dia da semana? NELSON: Minha modéstia diria: as melhores respostas possíveis, meu esforço foi recompensado em dobro. Minha vaidade diria: poucas, muito poucas, meus romances mereciam mais e melhores respostas. Minha modéstia diria que o copo está metade cheio, minha vaidade diria que está metade vazio. Vivo oscilando entre esses extremos. Agora estou lançando o quarto romance, Poeira: demônios e maldições, pela Língua Geral. Qual será a reação do público e da crítica? Difícil prever. Quem sabe dessa vez o líquido do copo finalmente transborde… Seria ótimo.

MAURO SIQUEIRA: Você foi o organizador das antologias Geração 90: manuscritos de computador e Geração 90: os transgressores, GERALDO LIMA: Nelson, o livro de contos Treze marcou um que são consideradas marcos da literatura brasileira do início

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do século 21. Atualmente pululam antologias por todos os lados, algumas até de gosto e qualidade duvidosos, das quais os autores iniciantes pagam para participar. Hoje você se proporia a criar uma Geração 00? Aliás, ainda faz sentido o termo geração? NELSON: A terceira e última antologia, que completará a trilogia, já está sendo organizada e se chamará exatamente Geração Zero Zero. Prefiro grafar zero zero por extenso, pra evitar a ambigüidade com ó ó. Combinei com a Boitempo de lançarmos no final de 2010. Estou reunindo os vinte melhores prosadores brasileiros que estrearam depois da virada do século. É verdade, estamos vivendo a era das antologias. Os cem melhores isso, os cem melhores aquilo… Mas eu gosto de fazer a distinção entre antologia e coletânea. Pra mim, antologia ou florilégio ou seleta é a reunião de textos já publicados e consagrados pelo tempo. Coletânea é a reunião de textos inéditos, que ainda passarão pelo crivo dos leitores e dos especialistas de várias gerações. Tendo isso em mente, optei pela provocação: decidi selecionar os melhores autores, em vez de os melhores textos. Ou seja, organizei a primeira antologia de autores, de que se tem notícia, e esses autores colaboraram com textos inéditos. Então você me pergunta se ainda faz sentido o termo geração… Creio que seu uso sempre fará sentido, desde que o termo não seja consumido em exaustivas discussões escolásticas ou xiitas. Em certas ocasiões é muito útil falar na geração modernista, na Geração de 45, na geração concretista, na Geração 90, mesmo que os muitos integrantes de cada geração sejam autores bem diferentes entre si, como são, por exemplo, Mário e Oswald de Andrade. O reconhecimento de padrões, não importa se observando o céu noturno ou o oceano humano, é um de nossos processos mentais mais característicos. MAURO SIQUEIRA: No livro Breve manual de estilo e romance, o autor mineiro Autran Dourado afirma que para escrever, se você faz prosa, você deve ler poesia; se for poeta, deve ler contos e romances. Como forma de oxigenação das ideias. Como o escritor iniciante deve se armar para a sua escrita hoje? NELSON: Sem sequer conhecer essa afirmação do Autran, eu já estava convencido de sua verdade. No livro A oficina do escritor, destinado aos autores em início de carreira, eu recomendo exatamente isso e muito mais: importante para quem deseja escrever boa prosa é não deixar de ler bons poemas; importante para quem deseja escrever bons poemas é não deixar de ler boa prosa; evite os estereótipos, fuja dos clichês, corra dos chavões, não marque encontro com os lugares-comuns; afastese do tratamento edificante, repleto de boas intenções, afinal bons sentimentos não fazem boa literatura; liberte o humor e a fantasia; desconfie dos livros de sua predileção, desconfie mais ainda dos autores de sua predileção. Livros e autores, ame-os intensamente, sim, mas jamais se entregue à idolatria cega, pois os escritores talentosos são mestres na arte da sedução. MAURO SIQUEIRA: Literatura é emprego? NELSON: Primeiro é paixão. Destino. Maldição. Se você tiver talento e sorte, sua literatura poderá ajudar a pagar algumas contas. Se você tiver talento e mais sorte ainda, ela poderá proporcionar relativo conforto material. Tudo indica que Rubem Fonseca e José Saramago não estão passando fome. Literatura depende de talento, determinação e sorte, muita sorte. Apenas talento e determinação são insuficientes. Mas não pense que estou sendo supersticioso, quando falo em sorte. Estou sendo bastante racional. Os matemáticos e os físicos de hoje já sabem que o acaso — o aleatório — determina profundamente nossa vida, nossos projetos. O sucesso e o fracasso estão sujeitos às leis da probabilidade, é o que afirma O andar do bêbado, bestseller do físico Leonard Mlodinow. A fim de aumentar suas chances de sucesso, a grande maioria dos escritores é obrigada a ter um emprego, para se manter e manter seu sonho. Pode ser um emprego numa área próxima, como o jornalismo ou o magistério. Eu, por exemplo, dou aula em universidades, faço crítica literária nos jornais e também trabalho como consultor de uma editora. Tudo isso me dá a estabilidade necessária pra que eu possa seguir em frente com minha carreira literária. ROGERS SILVA: Você é o organizador do Projeto Portal, cuja proposta é, com seus seis números, “combinar, misturar e talvez interpolinizar a FC e o mainstream” (palavras de Roberto de Sousa Causo). Esse diálogo é de fato possível? A dificuldade maior está em convencer o mainstream, com seus preconceitos,

da riqueza desse diálogo? Ou, por outro lado, em encontrar na ficção científica a qualidade e a profundidade literárias exigidas pelo mainstream? Existe o Guimarães Rosa da FC? NELSON: A unanimidade nacional, em outras palavras, o Machado ou o Rosa da FC brasileira ainda não apareceu. Ainda… Na adolescência, no interior de São Paulo, eu era apaixonado pela prosa de Ray Bradbury e Isaac Asimov. A ficção científica era meu gênero literário predileto. Lia com prazer tudo o que encontrava, incluindo os divulgadores científicos mais carismáticos, como Carl Sagan e o próprio Asimov. Depois, já na capital e na faculdade, abandonei essa subliteratura e abracei a grande literatura legitimada pelos círculos acadêmicos. Grande erro. Em vez de somar as duas coisas, fui tolo e troquei uma pela outra. Levei vinte anos para perceber que os melhores livros de ficção científica nada têm que os desabone. Então, já quarentão, voltei correndo para eles, sem abrir mão dos livros canonizados pela teoria literária. O Projeto Portal é parte desse reencontro com um gênero tão rico de possibilidades narrativas. Como autor da corrente principal de nossa literatura, concordo totalmente com Luiz Bras, quando ele diz, em artigo publicado no Rascunho (Convite ao mainstream), que precisamos renovar com urgência nossa palheta temática. A época atual está às voltas com a clonagem, a nanomedicina, a realidade virtual, a inteligência artificial, as neuropróteses, o ciberespaço, e nada disso está aparecendo em nossa literatura. Que desperdício de assunto. O diálogo do mainstream com a ficção científica será proveitoso também para esta, sempre acusada de ser artisticamente superficial e ingênua. ROGERS SILVA: Sinceramente, uma das melhores novelas (romance? reunião de contos?) contemporâneas que eu li foi a sua Babel Babilônia. Outro livro, este organizado por você, de que gostei bastante foi Cenas da favela: as melhores histórias da periferia. O que explica uma novela e uma antologia tão boas terem tão pouca repercussão? Ou estou enganado? NELSON: Volto a recomendar O andar do bêbado, que dá uma explicação bastante plausível para o sucesso e o fracasso não só na atividade criativa, mas em todas as atividades humanas. A visão determinística do mercado, errada mas aceita pelo senso comum, afirma que o sucesso é governado principalmente pelas qualidades intrínsecas da pessoa e do produto. Já a visão não determinística afirma que o sucesso é governado por uma conspiração de fatores pequenos e aleatórios, isto é, o acaso, a sorte. É claro que o talento, a persistência e certo carisma social aumentam as probabilidades de sucesso de qualquer escritor, mas não são decisivos. Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua, disse meu xará, Nelson Rodrigues. ROGERS SILVA: Embora indiscreta, aí vai uma pergunta que interessa a todos do ramo: quanto você ganha aproximadamente, por mês, com a literatura? Direitos autorais, palestras, promoção de eventos, organização de antologias, consultoria e supervisão editorial, oficinas de criação literária… Ou, se preferir, quanto alguém, após tanto tempo de dedicação e com seu gabarito, conseguiria ganhar com a literatura? NELSON: Dias atrás, num café, eu conversava com uns amigos sobre isso: o tabu do salário. No Brasil, talvez em todo o Ocidente, talvez no mundo todo, ninguém revela quanto ganha. Não sem tortura. E, se revela, está mentindo, com certeza pra mais. Prefiro manter a tradição e calar sobre esse assunto. Não me obrigue a mentir (rs). Se forçada, minha modéstia diria que recebo muito bem pelo meu esforço diário. Mas minha vaidade diria que recebo bem menos do que mereço. É a constante oscilação. RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA: Com a internet, de uma década para cá, muitos escritores tiveram a oportunidade de revelar o seu trabalho, tanto por meio de blogues quanto de inúmeras revistas eletrônicas, sites, portais e redes sociais, alguns conseguindo migrar para o papel, publicando seus livros. Como você vê, de uma forma geral, o resultado disso, principalmente o tipo de literatura que vem sendo feita no país? NELSON: A internet facilitou enormemente a publicação e a divulgação de textos literários. Mas ainda não criou uma linguagem literária própria, como muitos estudiosos queriam e esperavam (eu também). Lembro que, antes mesmo da internet, quando naveguei pela primeira vez num CD-Rom, clicando nos links e saltando de um lugar para outro a meu bel-prazer, logo

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pensei no célebre O jogo da amarelinha, do Cortázar. Imaginei que em pouco tempo os escritores estariam explorando essa nova possibilidade, tirando partido do hiperlink, agregando imagens e sons a seus escritos, mas isso não aconteceu. Eu mesmo tentei escrever uma novela diretamente na rede, abusando dos links, mas, ao perceber que dava muito trabalho, em pouco tempo já estava de volta ao papel. Babel Babilônia é essa novela. O saldo é o seguinte: apesar de não ter proporcionado uma renovação da linguagem, a internet facilitou muito a publicação e a divulgação dos textos dos novos autores, inéditos em papel. O formato blogue é um dos mais atraentes e populares dos últimos tempos, na cultura humana. A razão disso eu comento mais demoradamente no posfácio da antologia Blablablogue: crônicas e confissões. RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA: Ainda dentro do contexto da pergunta anterior, de que forma você avalia o papel da “mídia” tradicional em relação a essa nova geração que se criou e se inventou através da internet? NELSON: A expressão mídia tradicional refere-se a uma instituição feita de muitas camadas: jornais e revistas de alta e baixa circulação, tevê, rádio, certos circuitos universitários, boletins das academias de letras, e até blogues e sites. Não gosto de generalizar, mas, ser for inevitável, eu diria que as camadas mais altas, oficiais, ainda estão presas como de costume à tradição literária, ligada ao papel. Se não sair em livro de papel de celulose, não vai interessar, não será resenhado. Apenas as camadas mais alternativas, de alguns blogues e sites menos convencionais, estão atentas ao aqui-agora da literatura feita diretamente na internet. Mas tudo indica que isso vai mudar, pois chegou o e-paper. Comenta-se que nos próximos anos o papel digital, esse usado no Kindle e em outros e-readers, vai provocar no mercado editorial uma crise semelhante à do mercado fonográfico, com a chegada do arquivo mp3. É claro que o livro de papel não vai desaparecer, mas vai virar artigo de colecionador, como o disco de vinil. RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA: Por que a ficção científica? NELSON: Esse gênero oferece bastante matéria-prima, e não está distante do gosto do brasileiro. Ele faz fronteira, de um lado, com o fantástico e, do outro, com o realismo mágico, muito apreciados pelo leitor culto tupiniquim. E as dezenas de ramos que saem do galho da ficção científica oferecem um leque de caminhos muito diferentes, um para cada paladar. Está tudo pronto para o casamento fecundo do mainstream com a FC. Falta apenas que a elite literária reveja seus preconceitos e perceba que qualquer possibilidade de renovação da prosa passa pelos gêneros ditos inferiores. O Projeto Portal e a coletânea Futuro presente propõem isso. É certo que vários autores da corrente principal de nossa literatura já estão flertando com a space opera, o ciberpunk, o pós-humano ou o pós-apocalipse. Esses são ramos muito apreciados da ficção científica. Porém alguns cuidados precisam ser tomados, do contrário as conseqüências podem ser desastrosas. Recomendo a leitura do artigo Cinco erros, publicado no Rascunho. Luiz Bras pediu a Roberto de Sousa Causo, Ataíde Tartari e Fábio Fernandes — três dos nossos melhores autores de ficção científica — que apontassem os cinco pecados mais comuns que os escritores do mainstream cometem ao escrever FC.

objetiva, você concorda que houve um aumento considerável no número de autores? Ou apenas houve um aprimoramento na badalação do mercado editorial, dando mais visibilidade ao número de escritores? Como você vê esse fenômeno? NELSON:As últimas pesquisas realizadas pela Câmara Brasileira do Livro e pelo Instituto Pró-Livro revelam que aumentou o número de editoras, de títulos publicados e conseqüentemente, acompanhando o aumento da população brasileira, de leitores. Também está ocorrendo a profissionalização de nosso mercado editorial, que, como qualquer mercado numa economia capitalista, necessita de novidades pra sobreviver. A badalação, as premiações, as festas e as baladas literárias, as bienais e as feiras cumprem essa função: apresentar ao público as novidades nacionais e internacionais, os novos autores, o novo livro dos veteranos, os livros e os autores premiados, legitimando-os. Enquanto isso a internet segue emulando o mundo-do-lado-decá da tela do computador. Toda essa movimentação trouxe novo glamour à atividade literária e certamente está contribuindo para o aumento do número de poetas, contistas, cronistas e romancistas. HOMERO GOMES: Roberto Causo disse que você tem se firmado como uma das lideranças mais interessantes dentro da literatura neste início de século 21. Você tem essa consciência? Todo líder é no fundo um guia. Então nos diga que caminho, que destino você tem imaginado para a literatura brasileira, para a Geração Dez, Vinte, Trinta… NELSON: Causo tem sido extremamente generoso, apoiando o Projeto Portal e outros projetos, indicando leituras interessantes e divulgando a FC brasileira no exterior. Mas eu vejo minha liderança como algo incidental, de curto alcance. O tempo das grandes lideranças e dos movimentos artísticos passou, não passou? Ou está voltando? A História é cíclica? Na verdade, todo líder é no fundo um egocêntrico. Por isso é preciso tomar muito cuidado com eles. Mesmo que quisesse liderar pra valer, eu não tenho todas as qualidades necessárias pra isso: carisma, um programa consistente, prazer em estar com as pessoas, paciência ilimitada para suportar a birra e a ciumeira dos liderados, inteligência. Tenho só a inteligência (rs). E certo prazer em reunir escritores em projetos coletivos. E algum orgulho. Que me permitem trabalhar no máximo de minhas forças e, se necessário, defender meu território literário do ataque de outros primatas neuróticos que às vezes tentam maculá-lo.

HOMERO GOMES: Uma provocação, Nelson. Você já afirmou que “a literatura não é apenas a arte do absurdo. É, antes de tudo, a arte do inútil. A ela só se dedica o rebotalho da humanidade.” Por que, então, a arte ainda existe? Por que você ainda escreve e orienta escritores estreantes em suas oficinas se “a arte é inútil”? NELSON: Ironia pura. Eu não acredito realmente que a literatura seja a arte do inútil. Mas conheço inúmeros indivíduos que acreditam. Pessoas práticas e atarefadas, boas em contabilidade e marketing, para quem tempo perdido é dinheiro perdido. Então, na crônica da qual você extraiu esse trecho, eu brinco um pouco com os valores, mimetizando diversas vozes, incluindo a de pessoas para as quais qualquer atividade que não objetive o lucro imediato é perda de tempo e dinheiro. Todos estamos carecas de saber que a arte e a literatura não são atividades instrumentais, não são um meio de alcançar outra coisa: bens materiais, prestígio, poder etc. Elas são um fim em si mesmas. HOMERO GOMES: Dizem que hoje há mais escritores do que leitores. Embora seja uma estimativa mais subjetiva do que

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Os colunistas d’O BULE entrevistam Moacir C. Lopes Por Editores d’O BULE

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om o nome de batismo Moacir Costa Lopes, nasceu em 11 de junho de 1927, em Quixadá, Ceará. É autor consagrado da literatura brasileira, com seus livros traduzidos para vários idiomas. Além de romances com a temática do mar, escreveu ensaios e literatura infanto-juvenil. Deu aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e na Faculdade Hélio Alonso, nas áreas de Comunicação Social, Jornalismo, Relações Públicas. Em 1969, fundou a Editora Cátedra, com a escritora Eduarda Zandron, editora pela qual publicam cerca de mil autores nacionais, a maioria estreantes. Moacir C. Lopes completou 50 anos de carreira literária. Em 1959, Moacir publicava o seu primeiro romance, Maria de cada porto, livro elogiado pelos maiores críticos e escritores nacionais e estrangeiros. Seu trabalho mais popular é A ostra e o vento, obra adaptada para o cinema por Walter Lima Jr. Tem participado de congressos, simpósios e conferências sobre literatura em todo o país, jurado de concursos literários, inclusive do “V Cine Ceará – Festival Nacional de Cinema e Vídeo”, em 1995. Possui escritos, para publicação oportuna, dois volumes de suas memórias, ainda sem título definitivo, e prepara seu décimo segundo romance, entre vinte e um livros já editados. Atualmente, vive no Rio de Janeiro com sua esposa, a escritora Eduarda Zandron. Site do autor: http://www.moacirclopes.com.br/ Site do agente literário do autor: http://www.andreydoamaral.com/

JEAN ROBERTO – Achei fantástico o romance Por aqui não passaram rebanhos. Li e me defrontei com assuntos como o existencialismo humano e eternidade. Esse romance poderia ser considerado de cunho filosófico? Se sim, ainda há espaço para filosofia na literatura nos dias de hoje? MOACIR C. LOPES – Toda obra literária possui cunho filosófico, a partir da idéia a ser desenvolvida. A própria trama já é sua mensagem filosófica, sem a necessidade de o autor praticar no texto ilações filosóficas, o que é desaconselhável, mas sim deixar que os personagens vivenciem a idéia que ele quer transmitir. Há, lógico, o romance de idéias, à semelhança de O admirável mundo novo, de Aldoux Huxley, ou o de acusação de um problema, como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ou romances do absurdo, como O processo, de Franz Kafka. Por aqui não passaram rebanhos é filosófico nesse sentido, porque o personagem central vivencia um problema existencial, principalmente porque ele encontra uma moça, Selene, que está imersa numa eternidade que ele precisa alcançar a fim de a ela unir-se. O problema de haver ou não espaço para filosofia na literatura nos dias de hoje, dependerá do escritor: o livro é bom ou ruim, essa é a questão central para a literatura. JEAN ROBERTO – A ressurreição de Conselheiro era esperada pelos conselheiristas, mas quando a ela se refere o senhor sugere que a realidade que levou à rebelião de Canudos continua viva em nosso país. Por quê? MOACIR C. LOPES – Sim, a ressurreição de Antônio Conselheiro era e ainda é esperada pelos conselheiristas. A realidade que os levou à rebelião continua viva em nosso país. E cada vez mais viva. Eles foram massacrados em Canudos, mas o ideal não pode ser vencido à custa de fuzis e baionetas. E aqueles elementos derrotados em Canudos, que chegaram ao Rio de Janeiro e criaram a primeira favela, são os mesmos infelizes que multiplicaram suas frustrações e hoje estão descendo dos morros para cobrarem a cidadania que nunca usufruíram. Foi essa a idéia que quis transmitir – ou a linha filosófica do livro –, e estou acompanhando essa guerra que vem de Canudos. GERALDO LIMA – O seu primeiro romance, Maria de cada porto, publicado em 1959, teve ótima recepção, merecendo elogios de escritores ilustres como Jorge Amado, Rachel de Queiroz e do grande crítico Wilson Martins. Naquele momento, como autor estreante, o senhor sentiu o peso da responsabilidade em relação às obras futuras? MOACIR C. LOPES – Realmente, foi grande a repercussão à saída do meu Maria de cada porto. Senti o peso da responsabilidade, principalmente porque eu pretendia seguir uma carreira literária, e teria que escolher da melhor maneira os temas de meus futuros romances. Para poder estrear com algum acerto, reescrevi esse romance mais de seis vezes, até que consegui um estilo próprio. Sua pergunta é bem procedente, porque há incontáveis casos de escritores que jogam tudo no seu primeiro livro e os posteriores vão carecer desse valor inicial. No meu caso, embora explorando o tema de mar na maioria de meus romances, tenho procurado variar de linguagem. Exemplo, existe grande diferença entre Maria de cada porto e A ostra e o vento, entre Belona, latitude noite e Por aqui não passaram rebanhos, sem levar em conta os dois romances de cunho histórico, que, já em si mesmos, exigem uma linguagem inteiramente diferente dos demais de pura criação. GERALDO LIMA – O senhor acompanha a produção dos novos autores ou se mantém distante do frenesi da cena literária contemporânea? MOACIR C. LOPES – Tenho acompanhado, na medida do possível, a produção de novos autores, porque são a continuação da literatura brasileira, trazem novas posturas, novas linguagens, mas não tanto quanto necessário, mesmo porque em cada estado brasileiro existe um tipo de efervescência de renovação de linguagem que, infelizmente, não tem cobertura da mídia literária nacional, e a maioria se perde como escritores regionais, o que é lamentável. CLAUDIO PARREIRA – O senhor conviveu com diversos autores importantes do século XX, como Jorge Amado, Câmara Cascudo e Campos de Carvalho. Qual ou quais autores destacaria no painel da literatura contemporânea? MOACIR C. LOPES – Sim, nestes 50 anos, convivi com a maioria dos grandes escritores brasileiros, como os que você citou, Jorge Amado, Luís da Câmara Cascudo e Campos de Carvalho, com os quais mantive vínculos de amizade. Destacaria também Dalcídio Jurandir, José J. Veiga, Octávio de Faria, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Lúcio Cardoso, Amando Fontes, Cornélio Pena, João Guimarães Rosa e, acima de todos, Graciliano Ramos, que considero o mais importante escritor brasileiro. CLAUDIO PARREIRA – Como está o seu mais novo romance, a ser lançado agora em 2010? Pode nos adiantar alguma coisa? MOACIR C. LOPES – Meu novo romance talvez nem seja editado em 2010, porque este ano será reeditado meu terceiro romance, Cais, saudade em pedra. Nem título definido tenho ainda, e já escrevi seis versões, em busca de uma linguagem a ele apropriada, porque o

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tema está exigindo esse rigor. Nele eu mergulho no tema do amor universal, eterno, trágico, insiro a parte trágica dos grandes amantes. Transcorre num barco supostamente fantasma, com um pequeno grupo de pessoas a bordo. Além desse romance, tenho ainda inéditas minhas memórias, já escritas mas sem título definitivo, que serão lançadas em dois volumes, não sei ainda em que ano. MAURO SIQUEIRA – É por hábito, por vezes didático mesmo, de compartimentalizar [demorei uns 20s para escrever essa palavra] os diversos períodos da nossa literatura. Tomando isto por base, com que outras obras a sua, ao longo da nossa historiografia, dialoga? MOACIR C. LOPES – Sou contra a compartimentalização (também me foi difícil escrever essa palavra) dos diversos períodos de nossa literatura. É ainda comum estabelecer-se a geração de 30, a geração de 45, a geração de 60, mas em relação à poesia, com exceção da geração de 30, que deu alguns dos nossos maiores romancistas, a moderna, a pós-moderna. Creio que essas fórmulas são para engessar o escritor e sua obra, quando a literatura é muito mais ampla, mais universal. Acho que minha obra não dialoga com nenhuma corrente literária. Quando muito, poderá haver alguma parecença com escritores que exploram o tema do mar, o que são muito poucos. Em termos de linguagem, não vejo semelhança. MAURO SIQUEIRA – Quem é o leitor Moacir C. Lopes? O que lê e indica? MOACIR C. LOPES – Tenho sido um bom leitor durante a vida inteira, até aqui. Tenho lido por prazer estético e por aprendizagem literária. São inúmeros os mestres da literatura brasileira e universal, cada um com sua marca registrada. Não aconselharia este ou aquele, a não ser aquelas obras de leitura indispensável, como Divina Comédia, Dom Quixote, As mil e uma noites, Shakespeare, Dostoievski, Leon Tolstoi, Balzac, Gustave Flaubert, Victor Hugo. No Brasil, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa. RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Quais foram os livros e autores que mais o influenciaram? MOACIR C. LOPES – Não posso apontar um ou mais autores que mais me influenciaram, mesmo porque o tema mais abrangente de minha obra, a literatura do mar, não recebeu influência de nenhum autor, nem mesmo de Joseph Conrad, o maior escritor desse tema. Citaria Graciliano Ramos como o autor que mais me cativou pelo seu estilo, sua visão do mundo, sua linguagem literária, sua técnica de manobrar a língua portuguesa, no uso de parágrafos e diálogos. Há outros autores que me ajudaram a formar meu estilo, dentre eles destacaria Dostoievski, Gustave Flaubert, Victor Hugo, Guy de Maupassant. E existem obras isoladas que mais me tocaram, como leitor, e que eu gostaria de ter escrito, sendo, em primeiro lugar, Dom Quixote, de Cervantes, seguido de Morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, Iracema, de José de Alencar, Sinfonia Pastoral, de André Gude, Fausto, de Goethe, O velho o mar, de Ernest Hemingway, Moby Dick, de Herman Melville, vários contos de Jorge Luís Borges e poucas outras obras. RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA – Cinco décadas de fazer literário; como o senhor vê os caminhos e os percalços de um escritor em nosso país? MOACIR C. LOPES – São os mais árduos os percalços de um escritor em nosso país. Seu ofício é quase obra missionária, porque é e sempre foi escasso o número de leitores para consumir nossa literatura. Machado de Assis, por exemplo, editava seus livros em média de 100 exemplares, porque a população brasileira era analfabeta na maioria e as elites intelectuais liam escritores franceses. Hoje, mais de cem anos passados, as tiragens de livros são ridículas em relação a outros países. Alegam ser caro o livro, o que é meia verdade, porque tem quase o valor de um cd ou dvd, que é amplamente consumido pelas camadas mais pobres. É, sim, falta de densidade cultural, falta de apoio governamental para os bens culturais mais nobres e, principalmente, a descrença dos valores mais autênticos e permanentes da nossa cultura e de seus porta-vozes. ROGERS SILVA – A literatura no Brasil vale mesmo a pena? Em algum momento já pensou em desistir de ser escritor? Que dicas o senhor dá aos escritores iniciantes a fim de se frustrarem menos com essa tão desprezada arte pela população brasileira? MOACIR C. LOPES – A literatura vale a pena. O escritor é o mais fidedigno repositório e retransmissor da cultura de seu povo, porque não está sujeito a injunções políticas e sociais, mas é o crítico de sua sociedade. Conheço todas as agruras da vida dos escritores brasileiros, mas jamais pensei em desistir dessa missão. As dicas que poderia transmitir aos novos escritores é que esqueçam as glórias imediatas, usem a literatura como a via de realizar-se como ser humano acima das mesquinharias da vida comum, sem esperar galardões ou pagamento por seu sacrifício. ROGERS SILVA – Percebo que o senhor leva muito a sério a sua “profissão” de escritor. Possui um site bonito, com bom conteúdo, e – entre outras coisas – um agente literário, o que denota certo profissionalismo. Profissionalizar-se é necessário para um escritor? Para o senhor, este é um fator determinante para o sucesso de um escritor em detrimento do outro, que encara a literatura (em seu sentido amplo) com mais amadorismo? MOACIR C. LOPES – Sim, levo muito a sério a minha profissão de escritor. Só recentemente resolvi manter um site, e mais recentemente achei por bem nomear um Agente Literário, confiando no colega escritor e professor Andrey do Amaral. A figura do agente literário é quase obrigatória em vários países, em que o mercado editorial é mais amplo que no Brasil, mas mesmo entre nós está se firmando como figura quase indispensável para o encaminhamento da carreira do escritor, mais tradicional ou mais novo, até estreante, no sentido de o defender junto a editoras e à mídia literária, livrando o autor de contatos mais diretos, para que se dedique mais ao fazer literário. OS COLUNISTAS D’O BULE – O que o senhor achou da adaptação de A Ostra e o Vento de Walter Lima Jr? Se fosse o diretor, faria algo de diferente? Qual foi a sua sensação ao assisti-lo? Em quais aspectos o escritor ganha com uma adaptação de uma obra sua? E em que ele perde? MOACIR C. LOPES – Achei muito bonito o filme. Gostei com algumas restrições da adaptação do meu romance A ostra e o vento, mesmo porque muita coisa da linguagem literária não poderia ser transformada em linguagem cinematográfica, como, por exemplo, o fluxo de consciência, monólogos e diálogos, e, principalmente, a presença de um personagem, o Saulo, que não existe fisicamente, mas convive e dialoga com a personagem feminina, Marcela. A adaptação de uma obra literária para o cinema sempre contribui de alguma forma para a maior difusão do livro. OS COLUNISTAS D’O BULE – Como foi a experiência de ser marinheiro e escritor ao mesmo tempo? Não houve discriminação por parte dos colegas? Gostaria que o senhor falasse um pouco da relação do mar com a literatura... Podemos dizer que ele é um personagem na sua obra literária? Em qual das suas obras a sua experiência de vida como marinheiro se faz mais presente? MOACIR C. LOPES – O problema é que não nasci marinheiro. Servi à Marinha do Brasil por 8 anos, durante a Segunda Guerra Mundial, quando fiquei esse tempo todo viajando, e desliguei-me, reiniciando a vida civil. Mas a tendência a me tornar escritor vem de mais longe. Realmente, houve alguma discriminação de colegas. Essas viagens me fizeram ver e sentir o mar como uma personagem real. Em meus primeiros dois romances, Maria de cada porto e Cais, saudade em pedra, joguei a maior carga de autobiografia, dividindo-me em vários personagens.

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Os colunistas d’O BULE entrevistam Ana Paula Maia Por Editores d’O BULE

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na Paula Maia, nascida no Rio de Janeiro, é autora dos romances O habitante das falhas subterrâneas (7 letras, 2003) e A guerra dos bastardos (Língua geral, 2007). Em 2006 publicou o primeiro folhetim pulp da internet brasileira, Entre Rinhas de cachorros e porcos abatidos, transformado recentemente em livro (Record, 2009). Atualmente divide-se entre a republicação do seu primeiro romance em folhetim no site http://www.cronopios.com.br/, a publicação de crônicas em http://www.vidabreve.com/ e os últimos retoques em Carvão Animal, seu romance que conclui a Saga dos Brutos, iniciada com as novelas que compõem o Rinhas. Tem contos publicados em diversos sites, revistas e antologias, entre elas 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record, 2004), organizada por Luiz Ruffato e Sex´n´Bossa (Mondadori, Itália, 2005). Bloga em http://killing-travis.blogspot.com/

Por Mauro Siqueira Naturalmente, conheci Ana Paula Maia pela sua obra. Seus livros e seu nome sempre rondavam meu ar, no entanto, somente com seu último publicado que fiquei sem fôlego – Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos foi leitura de um projeto de faculdade e que por inúmeros motivos me aproximou da própria autora, seja por e-mails tresloucados, redes sociais, palestras, saraus, bienal do livro etc. O convite para uma entrevista, via Facebook, foi respondido dois dias depois com um “Sim, quando?” muito simpático. Eram aqueles dias de calor recorde no Rio de Janeiro, o local combinado foi um espaço que reúne um café simpático, algumas salas de cinema bacanas e uma charmosa livraria (e claro, ar-condicionado). Ficamos pelo café... E o que saiu dessa conversa, você leitor d’O BULE, acompanha agora. MAURO SIQUEIRA – Por que transformar o primeiro livro, O habitante das falhas subterrâneas, em folhetim? ANA PAULA MAIA – Eu dei uma limpada, sabe? Peguei o espanador e limpei o livro! Mexi em algumas coisas. Eu tinha muita dívida com ele, uma dívida que eu decidi resolver. MS – Comprei o Falhas na Primavera dos Livros. AP – Na 7 Letras, né? É eu ia na Primavera dos Livros, mas fui assaltada indo prá lá... MS – Eu li no facebook! AP – Foi lindo! [risos]. MS – Você e a Simone Campos. Que punk... AP – Eu e a Simone Campos… mas só eu que fui, ela não. Ela tentou me ajudar ainda, mas não deu... foi um duelo travado... MS – Você encarou o cara!? AP – É..., não, porque foi de supetão, achei que fosse algum amigo. Veio por trás assim e puxou a bolsa; eu achei que tava brincando, estava descendo a escada do metrô; a reação foi puxar. Aí, depois o segurança disse “Olha, nunca reaja”, “Mas moço, não sei o que que me deu, a reação foi ‘OHH, OHH!’” .Parecia um cabo de guerra, aquela coisa. Eu e a Simone para cá, o garoto para lá. Ele não tava armado, né. Se tivesse armado ele ia chegar e “Passa a bolsa!” MS – Pivete, para trocar por drogas. AP – É, mas porque era Natal né? Aí os ladrões querem um tênis novo, um celular novo... MS – Às vezes nem é pra eles... às vezes é pra mãe... [risos] AP – [risos] É... rouba as pessoas pra confraternizar no Natal. Tava todo limpinho, arrumadinho, enfim. Eu acho engraçado, ladrão deve ter o corpo fechado, porque nessas horas eles correm e carro não atropela... MS – É o anjo da guarda estranho... AP – Eu ando olhando às vezes as bolsas das pessoas e penso “Se eu pegasse aquela bolsa e saísse correndo?” Olha, estou com essa paranoia, tenho que parar com isso. Mas aí eu avalio “Se eu pegar aquela bolsa alguma coisa vai acontecer comigo?” Eu acho que vou tropeçar, cair, me esfolar! MS – [risos] Eu tenho uma coisa, assim, parecida: tem lanchonete? Eu tenho a maior vontade de ver alguém que está vindo com um Mclanche feliz, assim... e dar um tapa por baixo e derrubar. AP – De onde será que vem essa pulsão? MS – Não sei... AP – É um tipo de pulsão ruim! Ela é ruim! Eu ando muito querendo roubar uma bolsa! [risos] Se acontece de me pegarem? MS – É “laboratório”, você grita “Sou escritora!”. AP – É engraçado que têm umas coisas que traumatizam, né? Mas eu tenho esses pensamentos... dá vontade, sabe? [risos] MS – Dá? [risos]. Essas pulsões violentas são normais, eu acho... AP – Eu tenho isso desde criança...

MS – E catalisa nos livros? AP – Cataliso nos livros! É, é um lugar pra colocar, acho que é por aí. Minhas brincadeiras sempre terminavam comigo sangrando, sabe? [risos] Era um ímpeto, eu parecia uma onça! Depois foi acalmando, acalmando, acalmando. MS – Até que encontrou os livros… AP – Aí encontrei os livros, ficou só na Literatura. MS – Assim é melhor! [chegam nossas bebidas] Eu pensei que você viesse com sua blusa do “Chuck Norris”. [risos] AP – [risos] Pois é, eu viria com ela se estivesse calor, porque era uma camiseta! Eu ganhei e é tamanho M e eu tinha pedido P, a baby look, então é grande, né? MS – É, eu vim de preto, eu cometi essa besteira. Saí apressado de casa, no ponto eu já tava suando, já. AP – É, é muito difícil, é muito difícil esse calor. Eu acho que ser escritor no Rio de Janeiro é uma vitória! [risos] MS – Então é por isso que os gaúchos escrevem mais que a gente! AP – Eu também acho. É por causa do clima, porque tá absurdo, têm dois dias que não consigo pegar no [novo] livro... eu olho pra ele, eu vou... Não vou não. [risos] Escrevi um livro que se passa no inverno, pelo menos lá tá frio. E aqui não tá! MS – Eu tenho uma rotina de escrita não tão disciplinada, mas há épocas que eu gosto de escrever... verão, decididamente, não rola. Esse livro [apontando para o meu, que ofereci a Ana] eu escrevi, basicamente, no outono. AP – Eu também escrevo nesse período, nunca escrevi no verão... não, o Habitantes eu escrevi. Foi nas férias da faculdade, eu só tinha dezembro, janeiro, comecinho de fevereiro; nesses dois meses e meio. Mas assim: “pingando” e ainda era aquele período do... [baixando voz tentando lembrar a palavra] ...racionamento. MS – [Risos] Do apagão? Do primeiro apagão? AP – Isso, do racionamento... 11 de setembro. Foi naquele momento acho, não foi? MP – Foi, foi. AP – Então, eu escrevia com as gotas, escorrendo, assim. Minha cabeça ficava molhada. Aí eu escrevi em 2 meses e meio esse livro, escrevi muito rápido. Mas suando e suada. MS – Eu não imagino escrever em dois meses e meio nada! AP – Eu também não, hoje em dia. Só foi porque eu acho que estava engasgada, já tava pronto. Mas agora tudo está indo mais devagar. MS – Mais trabalhado ou mais pensado? AP – Mais pensado, Carvão Animal escrevi em seis meses... Tem gente que ainda acha que eu escrevo devagar. MS – É mesmo? AP – Uma página e meia por dia, aí tinha dia que eu tinha que fazer pesquisa. O livro é mais pesquisa do que às vezes escrevendo, né? É muita pesquisa.

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MS – Pois é, né? No Rinhas por exemplo assim? AP – No Rinhas mais a segunda novela, O trabalho sujo dos outros, foi mais pesquisa. MS – Mas acho que não existe abatedor de porcos... AP – Abatedor? Existe abatedor de porcos! E o Brasil é o principal abatetor de bovino do mundo. Sabia? MS – Não, mas eu quero dizer sobre “abater” dessa maneira mais artesanal. AP – Olha, isso existe ainda, mais assim no interiorzão. E como o livro se passa no interior... MS – Minas Gerais? AP – Vai descobrir no próximo livro. [riso maroto] MS – Ah, legal, eu gosto de procurar essas marcas assim pra me situar. AP – No próximo livro eu vou falar onde é. MS – Não tinha, né? AP – Não tem. MS – Podia ser tanto na Baixada Fluminense quanto no Acre. AP – Como pode ser no interior da Irlanda também, porque têm abatedouros lá. MS – Acho que a única marca geográfica que não pode ser deixada de lado é o pai do Gerson que torce para dois times de Minas Gerais. AP – Uberlândia e Ipatinga. Mas são aqueles campeonatos que passam também em qualquer canal. Você pode assistir aqui. MS – Isso, é. Como na Irlanda, também. [risos] AP – É, porque o cara que vai parar para ver Ipatinga versus Uberlândia... é... nada né, nada. MS – É, deixa eu perguntar aqui com minha sombra de pauta, que eu não sou jornalista... AP – É grande, hein, é acareação! [risos] Eu vou ler a entrevista do Nelson Oliveira. MS – Foi bacana. Eu acho que a gente conseguiu um furo, cara. É, porque ele disse que está finalizando a antologia Geração 00. AP – É, eu tô nela. [muitos risos] MS – Ahhh!!! É óbvio que eu imaginei que você estaria nela. [mais risos] AP – É, eu mandei meu conto, eu sou uma moça muito disciplinada. O prazo era dia 31. Javalis no quintal. Um conto sobre caçadores de javalis. MS – É o quarto livro? AP – Carvão Animal. MS – Fala de problemas de mineradores e carvoeiros. AP – Fala de viver na escuridão... Engraçado que Carvão Animal fala também das 3 formas de carvão. Carvão animal é o principal e é combustível. No livro, como é uma trilogia, você sabe onde passam as três histórias. O Edgard Wilson aparece 10 anos antes, porque o Carvão Animal se passa dez anos antes do Entre Rinhas. O Entre rinhas e O trabalho sujo se passam na mesma época. E aí, esse se passa 10 anos antes. No momento do novo livro, o Erasmo Wagner tá preso. Eu digo que ele matou alguém na cadeia. MS – Cara, eu acho o Erasmo Wagner tão humano... AP – Eu adoro o Erasmo Wagner, eu adoro o Erasmo Wagner! MS – Eu gosto muito, também. AP – E nesse tem o Ernesto Wesley, porque eu tenho que manter a tradição do EW, né? MS – E há alguma referência como nos outros. Talvez eu até consiga puxar alguma coisa. AP – Não, Ernesto Wesley, não. É porque vai chegando a uma escassez também, né? MS – Você constrói o personagem, faz ficha, batiza... um mapinha... AP – Não, não [risos]... Ele vem. Eu chamo e ele vem. [risos] Ele Vem! MS – “Ele vem” é ótimo! “Dona Ana Paula Maia Xavier!” [risos] AP – [risos] Eu penso...Tipo: quem é esse sujeito? Bom, o Ernesto Wagner e Ronnie Von foram os dois primeiros, né? Aí eu ficava olhando se ele tinha a cara de Ernesto mesmo. É uma cara grande, esse é o maior, maior que o Edgard Wilson. MS – Nossa Senhora. Eu já imagino uma mistura de Tony Tornado com Roberto Bonfim. AP – É um cara graaande e desafiador. Assim, sabe [fazendo gestos com os braços]. É um cara grande. MS – [risos] AP – E o Edgar Wilson tem 23 anos mais ou menos, é um garoto, né? MS – No Carvão Animal ou já aqui? [aponto para o exemplar do Rinhas] AP – Aí eu explico por que que o Edgar Wilson gosta de olhar pro céu... o que que ele fazia antes de ser abatedor de porcos... MS – Legal... tô começando a curtir. Aí Edgar Wilson é por causa do Paul Auster ou por causa do Poe? AP – É por causa do Histórias Extraordinárias. Por causa do conto. Que eu adoro... MS – Também gosto muito. AP – O Edgard Wilson foi o primeiro que surgiu... mas eu tenho que parar com ele, chega. Deixar ele em paz. E o conto, naquela coletânea

Todas as guerras do Nelson [de Oliveira], não sei se você chegou a ver... MS – Eu vi, tenho, mas não li ainda. AP – É o Edgar Wilson. MS – É o Edgar Wilson! [risos] AP – Era um soldado americano, aí eu coloquei Edgar Ryan Wilson. MS – [risos] É bem nome de americano mesmo, com nome do meio abreviado... AP – Ele é um personagem muito interessante. MS – Eu senti um Edgar Wilson meio “Wolverine”, assim... passeando por várias épocas... AP – Épocas e tal... mas agora tem que parar, né? Tem que dar uma “embolsada” no Edgar Wilson... MS – Deixar ele dormir um pouco. AP – Ele até pode voltar, morrer não. MS – E o Rinhas, você lançou na internet primeiro, folhetim... uma coisa nova, porém velha, meio século XIX. Queria testar o leitor antes? Testar caminhos? AP – Nada! Sabe o que aconteceu? Eu não tinha nada pra fazer e estava com o livro. Tinha história, tinha sido publicado um trecho dele na Itália, numa antologia chamada Sex’n’Bossa... MS – Ahan, conheço. Editora Mondadori, né? AP – É. MS – Então, o primeiro Rinhas na verdade é italiano, né? AP – Primeiro o Rinhas se chamava Não se deve meter em porcos que não te pertencem. MS – Que é um dos trechos que eu mais gosto do livro... Essa coisa, você é “escritora 2.0”? Não se importa com sharing. AP – Não, 2.0 total. Já pus livro na web. MS – É, né. Não se importa com... AP – Eu ia botar o Guerra, mas o Guerra ainda tem contrato, né? Então eu não pude botar. O Guerra ia virar folhetim. MS – O Guerra ia ficar muito bacana como folhetim. AP – Ai eu decidi pelo Falhas que é só meu, que foi só um contratinho de 6 meses... Totalmente 2.0, ficar retendo obra. Né? MS – É... [risos] MS – Falam muito do caráter realista, às vezes hiperreal dos seus textos, mas eu acho bacana como o fantástico e o sublime aparecem, por exemplo, no Rinhas... AP – [séria] Na trilogia dos brutos, existe o elemento divino sublimado nas histórias... Quem carrega esse elemento ou essência que norteia os homens (personagens) são os animais. No Entre rinhas, são os porcos e um cão de rinha chamado Chacal. N’O trabalho sujo dos outros, um bode. E na conclusão da trilogia, Carvão Animal, vai ser uma cadela. MS – Ainda tem o Eclipse e aquele bode... AP – É... os bichos são divinizados e os homens bestializados. É uma inversão de valores, porém não sei se realmente uma inversão... Pois há muito de divino nas bestas e muito de besta nos homens. Os personagens, principalmente das duas primeiras histórias, carregam muito dessa bestialização, pelo fato de lidarem com certas questões violentas. Os animais, as bestas, digamos assim, lidarem com os homens de maneira humana. Olhando nos olhos, submetendo-se, expurgando de pecados, enterrando segredos, resolvendo problemas, etc... Enfim.... é por aí... AP – Acho que deu né? Eu falo pra Cacilda... MS – Como eu te falei no início em off: eu gosto de ouvir. É, acho que já deu. * O trecho transcrito aqui n‘O BULE é apenas um recorte da conversa que tive com

Ana Paula Maia. A conversa foi longuíssima, mas por razões de legibilidade não poderá ser postada na íntegra. Fiquem agora com as perguntas, enviadas por email, dos outros colunistas d’O BULE.

HOMERO GOMES – Sua trajetória como escritora, para quem acompanhou um pouco, pareceu de ascensão rápida, com publicação em uma grande editora e espaço na mídia constante. Sua percepção é que seu talento foi rapidamente valorizado? Fale um pouco do seu início. ANA PAULA MAIA – Em agosto deste ano faz sete anos que publiquei meu primeiro livro. Sendo assim, considero que tenho sete anos de carreira. O primeiro balanço importante farei quando completar uma década. Faltam três anos. Meu trabalho tem circulado e algumas pessoas gostam. Outros desconfiam. Uns, acho que não gostam. Quanto mais penso em valorização, ou digamos, reconhecimento que engloba principalmente prêmios literários, imagino sempre que preciso continuar escrevendo. É isso a questão principal da qual não devo me desviar de maneira alguma. O espaço na mídia é um aliado e sempre importante. Escrevi o primeiro livro despretensiosamente. Escrevi o meu quarto livro, Carvão Animal (ainda inédito), de forma semelhante. Só que com mais comprometimento, pois ao longo desses sete anos eu criei vínculos com personagens, criei uma cidade fictícia e estou estabelecendo um universo próprio. Falando desse modo, estou falando do meu início. Ainda estou no início.

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Imagem cedida pela autora

HOMERO GOMES – Como tem sido sua experiência no Vida Breve, site de crônicas idealizado por Rogério Pereira (editor do Rascunho)? É difícil manter um ritmo de escrita para você? Como você faz, qual a sua rotina de escrita – considerando o blog e o seu trabalho como escritora? Está recebendo bastante retorno? ANA PAULA MAIA – Escrever uma crônica por semana não é simples. Não achei que fosse, pois tenho um blog e sei como é difícil mantê-lo aceso. Porém, uma crônica não é um post do meu blog. Uma crônica é um gênero literário. Um post do meu blog não é literatura. Retirar algo de literário que esteja ao meu redor toda semana me possibilita um novo desafio que está sendo bom. Por exemplo, as crônicas geralmente escrevo à noite, deitada no sofá, com o notebook em cima da barriga e a TV ligada no volume baixo. Elas saem assim. Os romances precisam de silêncio, estar sentada diante do computador (desktop) e sem interferências. Tenho um bom retorno. E neste momento ainda tem a publicação do meu folhetim no site Cronópios. São 29 capítulos. Já tenho um ritmo de escrita estabelecido faz tempo. HOMERO GOMES – A sua beleza já lhe causou problemas? Colocam fé em você como literata que é, apesar de seus lábios carnudos? Ou eles até que te ajudam como escritora? ANA PAULA MAIA – Perguntinha canalha.... Vamos lá! Geralmente o livro vai na frente e eu chego depois (Risos). Quando estou escrevendo, sou um velho barbudo de sessenta anos. E coço o saco. Mas depois sou a moça dos lábios carnudos e dos cabelos ao vento. O meu velho barbudo gosta da moça de bocão. Sendo assim, acho que a boca até ajuda. Mas ainda assim, os outros percebem o velho barbudo e temem implicar com a moça (Risos).

RODRIGO NOVAESALMEIDA –Ana, você revelou recentemente aos jornais a sua admiração ao escritor J.D. Salinger, falecido recentemente. Fale-nos um pouco mais dele e de que forma ele teria influenciado o seu trabalho. ANA PAULA MAIA – Salinger influenciou minha maneira de ver literatura. Antes dele, quando comecei a me interessar por literatura, por volta dos meus 18 anos de idade, eu lia clássicos. Literatura do século 19, principalmente. Salinger foi a primeira leitura do século 20 que fiz. Devo dizer que eu lia por obrigação escolar, e que quando me interessei e fui buscar os livros, ele, Salinger foi a primeira descoberta da literatura do século 20. O jorro literário e o despojamento e a exposição das idéias foram as principais influências dele pra mim. Tanto que resultou no meu primeiro romance, O habitante das falhas subterrâneas. RODRIGO NOVAES ALMEIDA – O que se convencionou chamar de cultura pop e que extrapola os limites territoriais de países (talvez seja mais exato falarmos da cultura estadounidense sendo distribuída pelo mundo) tem que tipo de influência na sua literatura? O cinema e a televisão entram de que forma no seu trabalho com as palavras? ANA PAULA MAIA – Para mim entra da forma mais positiva possível. Sou a soma de tudo que pude consumir, tanto comida quanto obra de arte. Cinema é obra de arte, quando falo de Akira Kurasawa e quando eu falo da série Desejo de matar, com o Charles Bronson. Na TV, série como Além da imaginação, com os primorosos roteiros do Richard Matheson são preciosidades pra mim quanto o livro O púcaro búlgaro do Campos de Carvalho ou as idéias de mundo como mal do Shopenhauer. São essas algumas das interferências do mundo das imagens, das palavras e das idéias que me alcançam. Essas interferências são filtradas e absorvidas e regurgitadas e voilá. RODRIGO NOVAES ALMEIDA – Quais os outros escritores contemporâneos brasileiros que você lê? ANA PAULA MAIA – Campos de Carvalho é quem tenho lido no momento. É que eu leio devagar. Demoro à beça no mesmo autor. Ah, e um livro de contos reunidos do Marques Rebelo. RODRIGO NOVAES ALMEIDA – Uma última pergunta, importantíssima: Lostmaníaca assumida, como eu, que fim você imagina para a série, que termina este ano? ANA PAULA MAIA – Eu há anos disse numa matéria especial sobre Lost para o jornal o Globo – que o Desmond Hume vai explodir aquela ilha. E agora que está tão perto, acho que passei perto. Ele é fundamental para aquele lugar. Eu sempre soube disso e ele é um dos meus favoritos. A questão principal para mim agora é: o que vou assistir religiosamente quando Lost terminar? Talvez comece a tomar aulas de banjo ou coisa do tipo. Digo para preencher o vazio. Sou mesmo muito apegada. GERALDO LIMA – Ana Paula Maia, qual a relação do seu texto com o cinema, mais propriamente o cinema de diretores como Quentin Tarantino (Pulp Fiction), Win Wenders (Paris Texas) e Guy Ritchie (Snatch – porcos e diamantes)? ANA PAULA MAIA – Esqueceu dos irmãos Cohen. O meu último e inédito romance, Carvão Animal, tem um clima irmãos Cohen. É menos sórdido, mais momentos de humor negro e um clima mais interiorano. Minha relação com o cinema é muito profunda. É um ponto alto de influência para escrever. Bebo no cinema, mas encontro conforto na literatura. O cinema é meu amante, mas me casei com a literatura. Gosto de imagens. Gosto de ver e observar. No cinema, isso é o principal. Ver. Quando escrevo, descrevo até o leitor poder ver e não apenas sentir ou imaginar. Gosto que vejam e não apenas lêem. GERALDO LIMA – Uma das curiosidades acerca da sua atividade literária é de como uma jovem bonita e delicada pode escrever de forma tão primorosa sobre o universo de tipos sujos, feios e maus. Na sua crônica A garganta do ralo, publicada no site Vida Breve, você diz, a certa altura: “Quando tenho engulhos assim o dia todo por causa do churrasco dos vizinhos, eu passo a odiar os vizinhos, o porteiro, o sujeito que roubou a minha bolsa — cujo

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desejo era vê-lo atropelado enquanto atravessava a rua e suas vísceras coladas no asfalto...” Essa imagem me parece bem forte e verdadeira. Isso explicaria por que você é capaz de escrever sobre o universo desses tipos sujos, feios e maus? ANA PAULA MAIA – Eu tenho um lado B e ele é sujo, feio e mau. Porém só fica nas palavras, esse lado é impresso em papel e basta. Não é aplicado na vida real. Mas os meus piores sentimentos estão ao lado dos meus melhores sentimentos. Eu penso coisas bem piores do que escrevo. Espero que fiquem apenas quietos, como pensamentos devem ser . GERALDO LIMA – Até que ponto você acha aceitável a declaração de que você “escreve com voz masculina”? ANA PAULA MAIA – Eu escrevo com voz masculina. CLÁUDIO PARREIRA – Tem um contraste aí: como ser pulp e ao mesmo tempo tão sensível? Ninguém se enfia no inferno sem sair queimada. ANA PAULA MAIA – Dos contrastes nasce algo novo. Talvez esteja aí um estilo literário inédito. Talvez eu esteja começando algo novo. Algo que tenha a ver com um sujeito chamado Edgar Wilson. CLÁUDIO PARREIRA – Por que a escolha do folhetim como veículo? É uma tentativa de revitalização de um formato ou é apenas estratégia? ANA PAULA MAIA – Principalmente pelo formato. Folhetim é perfeito para internet, pois a internet dá suporte aos periódicos. Um blog é um periódico. Publicar ficção em fatias é uma boa maneira de publicar textos longos como romances ou novelas. CLÁUDIO PARREIRA – Bukowski. Quanto dele em você? ANA PAULA MAIA – Nada. Eu não o leio. Mas adoro o John Fante. JEAN ROBERTO – Ana Paula, por que você escreve sobre violência, de forma escancarada, sem se preocupar com o estômago do leitor? Você escreve sobre isso por que você observa a sociedade de forma aguda e detalhada? Ou quer comover o leitor? ANA PAULA MAIA – Não acho que a violência nos meus livros é assim tão escancarada. Eu diria rasgada. Pois a violência que se apresenta nos meus textos está do lado de dentro, ou seja, na alma e no entendimento dos personagens. Só rasgando a pele é que ela pode se desnudar. Escreve sobre o que vejo dentro do universo que criei e estou criando... Sendo assim, esse universo eu detalho e mostro o que é necessário para fazê-lo compreensível. JEAN ROBERTO – Por que o humor negro em seus livros? Você sempre trata de personagens com instintos psicopáticos? Como aliar o humor a isso? ANA PAULA MAIA – Eu enxergo o mundo com humor, pois sou uma pessoa bem humorada. O humor sarcástico também faz parte do meu repertório, sendo que a literatura é o lugar em que ele mais se manifesta. Sobre os personagens com instintos psicopáticos, diria que nem todos possuem essa característica. Sinceramente, eu não faço ideia de como alio essas coisas. Deve ser uma maneira particular de ver algumas coisas no mundo JEAN ROBERTO – “O calor conserva no ar o cheiro podre, espalha ardente desgraça nos últimos dias”. Palavras suas! O que tem a nos assentir sobre esta realidade? Seria uma profecia? ANA PAULA MAIA – Esta frase abre o primeiro parágrafo do meu segundo romance, A guerra dos bastardos. Faz sentido no livro e realmente faz muito sentido aqui fora, no mundo real. ROGERS SILVA – Todo aspirante a escritor quer publicar e vender, se não muito, pelo menos um número razoável de exemplares. Mas, paradoxalmente, percebo que pouquíssimos aspirantes a escritor ou escritores iniciantes valorizam os seus pares (outros aspirantes, ou iniciantes, ou escritores desconhecidos). Literatura não vende porque nem os próprios indivíduos que sonham em viver dela compram livros. Embora triste, essa é a realidade. Para você, como conscientizar, primeiramente, os próprios literatos

que literatura é mais do que a própria literatura? Acha que é possível dissuadir um indivíduo de comprar um celular de R$ 1.000,00 e instigá-lo a comprar 15 livros e um celular de apenas R$ 500,00? ANA PAULA MAIA – Acho impossível dissuadi-los. Ao menos não neste momento. Se o trabalho começar agora, pode ser que daqui a trinta anos isso comece a ser possível. Afinal, estamos falando de uma fatia grande da sociedade, certo? Eu ando por aí e vejo que a cultura torna-se cada vez mais rala. Mais baixa. Mais nada. O meu celular custou trezentos reais e funciona. O problema é o funcionamento das mentalidades, a começar dentro de casa. Eles estão realmente cagando pra literatura. ROGERS SILVA – Segundo Rodrigo Gurgel, num ensaio publicado na edição de outubro de 2009 do Jornal Rascunho, “boa parte da literatura brasileira atual sofre do mal da narratofobia”. Ou seja, no afã de criar algo novo, original, esteticamente válido, os escritores criam obras pedantes, herméticas, artificiais e de leitura difícil, o que afasta o mero leitor mortal dessa literatura. Você como escritora tem essa preocupação, de criar uma obra que não se distancie do receptor da mensagem, do leitor? Ou acha, como muitos, que os leitores no Brasil são os próprios escritores e, por isso, se sente à vontade para criar uma literatura que gira em torno de si mesma, cujo grande protagonista é a linguagem? ANA PAULA MAIA – Não teria sido o Rodrigo Lacerda* quem disse isso? Lembro-me de ter lido um texto dele sobre o assunto, se não estou terrivelmente enganada. Bem, minha linguagem é simples. Eu escrevo para ser entendida, não para parecer inteligente. Conheço algumas pessoas inteligentes que são escritores medíocres. Nomes não citarei, pois não tenho nada a ver com a mediocridade deles. Falar difícil mascara o vazio do texto, a total falta de assunto, que por hora, ronda uma parte da literatura nacional. Aminha principal preocupação como escritora é ser fiel aos personagens e aos seus mundos particulares. Talvez o problema comece não na forma de se escrever, mas sobre o que escrever, para quem e o que se pretende. Essas coisas podem definir parâmetros para o autor de modo até inconsciente. ROGERS SILVA– De acordo com vários sociólogos e historiadores, alguns traços são característicos da cultura brasileira, entre os quais a valorização do estrangeiro. Para você, isso explica porque entre os 20 livros de ficção mais vendidos de 2010** no Brasil apenas 1 é brasileiro? Ou o buraco é muito mais embaixo? ANA PAULA MAIA – Isso não acontece só com livros. Acontece também com roupas, calçados, etc. Mas por exemplo, na música, isso já não acontece, pois temos uma cultural musical popular muito forte. Mas não temos uma cultura literária – nem forte, nem fraca. Ela praticamente não existe. Eu concordo com a valorização do estrangeiro em nossa cultura e devo afirmar que depois que comecei a escrever e a me importar com o meu redor, o estrangeiro tornou-se lugar muito distante de mim. Hoje, eu sou muito mais brasileira do que há alguns anos. A literatura me ajudou a valorizar minha cultura e principalmente o povo. Afinal, eu escrevo sobre eles. As pessoas simples e suas estranhas vicissitudes.

* O nome do autor do ensaio é, de fato, Rodrigo Gurgel. ** O símbolo perdido (Dan Brown), A cabana (William Young), O ladrão de raios (Rick Riordan), Amanhecer (Stephenie Meyer), Eclipse (Stephenie Meyer), O Mar de Monstros (Rick Riordan), Lua Nova (Stephenie Meyer), A Maldição do Titã (Rick Riordan), A Senhora do Jogo (Sidney Sheldon e Tilly Bagshawe), Diários do Vampiro 1 - O Despertar (L.J. Smith), Crepúsculo (Stephenie Meyer), Diários do Vampiro 2 - O Confronto (L.J. Smith), O Apanhador no Campo de Centeio (J. D. Salinger), O Menino do Pijama Listrado (John Boyne), Caim (José Saramago), Para Sempre - Os Imortais (Alyson Noël), O Pequeno Príncipe (Antoine de Saint-Exupéry), Os Homens que Não Amavam as Mulheres (Stieg Larsson), A Hospedeira (Stephenie Meyer), Os Espiões (Luis Fernando Verissimo)

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Afecções do Ausente Por Homero Gomes

Poeira negra e veneno no ar. O mundo continua após tudo, mesmo que nada. Pilhas de corpos, seres sem metafísica, para o passeio, entre sangue e vísceras, do oculto na neblina da história. O ausente ainda olha um mundo infectado. E dele não ri. É o sorriso apagado no muro das cidades; o que foi e que se perde a cada feto que brota. Retirado à força, embalou o espírito na necrose do outro. Mas o outro não importa; somente o que se foi. Chega de vermes e de vísceras. O sangue que escorre da gengiva chora o que foi arrancado da inércia. O ausente apenas sabe, não chora o sangue ingerido, que rega de espinhos o ventre do outro. Apenas sabe. Sangrado feito lixo, ainda olha a sua ausência. Ele sabe. Em um mundo infectado, resta apenas sua marca.

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Jamé Vu - Overdoses da Parte I Por Homero Gomes

Diálogo no ônibus poderia ter sido comigo só que não tenho passagem como é que vai seu coração como assim deixou seu coração na praia ou já tinha deixado ele aqui êta Fulano cê tem cada pergunta poderia ter sido com você como anda seu coração

O estudo dignifica o homem que Sábado de merda ficar estudando no final de semana não é programa pra ninguém mesmo que esteja chovendo que história eu vou contar se não há história só se eu contar que James Langston Hughes era um poeta norte-americano que nasceu em 1902 na cidade de Joplin que introduziu o ritmo do Jazz e do Blues no seu versos que se ocupam na maioria das vezes da vida negra ele era negro dos problemas raciais da história dos negros da sua herança influência a sua mensagem era a liberdade me desculpem mas estudei poesia de língua inglesa o dia inteiro digo estudei porque este trabalho já me encheu vou assistir o filme Blade deve ser interessante acho deve ser tem sangue somos o estrume da sociedade do espetáculo

Tourada portuguesa um cavalo sem rédea guiado nos joelhos lanças nas mãos cutucando o touro depois cansado vencido levado nas unhas derrotadamente arrastado para fora da arena espetáculo estranho retrato com verdade do espírito de porco português da covardia por isso talvez quemsabedeus Saramago tenha fugido disso pruma ilha que venta sem parar mas sem velas nem mar rochas vulcânicas só

Abbu Ammar morre o terrorista que ganhou o Nobel da paz luta impossível anos e anos de ocupação culpa da ONU-EUA muitos mortos ainda virão irão terror pela paz e liberdade bombas fumaça cogumelos de sangue Arafat é Max Ernest criador do dripping inspirando muitos prósperos terroristas retratistas do inconsciente ele furava latas de tinta deixava balançando sobre a tela é o acaso permitido pela liberdade Pollock outro terrorista bombas na tela explosões de cores faz dança dança com as mãos com a tinta improvisação do jazz o próprio sangue ocupando o próprio território explodir o próprio lar para reconquistá-lo próximo Nobel da paz Bin Laden

Annés folles a histeria que senti ao ver pela tevê aquele imenso H vir ao chão me deixou chapado foi uma das maravilhas do mundo são quantas até agora nove não oito seilá uma verdadeira obra artística marco de nossa era espetacularmente incrível se estivesse vazio nada só concreto mas foram quase 3000 pro saco os órfãos vão destruir a sociedade como a conhecemos pirotecnia fantasmagórica surreal e vai ficar cada vez pior tenha fé nisso mesmo que sem fé nenhuma

O Haiti não é aqui ai ai ai te ti Haiti ai de ti que Toussant já não vive agora o número de brancos azedos com sungas camufladas está aumentando exponencialmente ai de ti Haiti já não é a primeira vez que expulsam um governante povo de sangue quente que bom acho melhor que o sangue de barata que corre em nossas veias tá chato em Pindorama aqui tudo só tédio Lula foi pra China e a soja começou a fermentar embarcou depois pensaram que Pará era Paraná problemas de uma língua monossilábica entoacional

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Número Um, Ano 1 - 2010

Micronarrativas Por Geraldo Lima

N

Delirium

ão sei se ela está gozando ou morrendo. Esses estertores me alucinam, ateiam fogo na minha carne: sem piedade, vou penetrando cada vez mais. Meus ouvidos, moucos, obliterados pelas areias do nada. O último grito ecoa num deserto banhado de sangue.

Lâmina

U

m relâmpago iluminou a faca antes que lhe mordesse a carne, ávida, cega de ódio. Um baque seco na terra úmida, seguido de um ronco, parecido com o de um porco, foi tudo o que ouvimos. A noite agonizou uma eternidade.

F

O inesperado

azia tempo que não nos víamos. Ela tentou ainda correr o ferrolho. Inútil. Com a ponta do sapato impedi que fechasse a porta. Recuou aterrada, desintegrada pelo medo. Entrei. Desliguei a luz e avancei dentro do breu.

Cardume

S

ento-me, pernas cruzadas, nesga de carne à mostra: a isca. O mínimo de reputação preservado. Se olhar para mim, fisgo-o — peixe graúdo em meio à miudeza. Deve se debater: o macho surpreendido em sua rotina de caça. Mas devo me manter firme, arrastando-o até aqui só com o arpão do olhar.

Do livro inédito Breu

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Número Um, Ano 1 - 2010

Micronarrativas Por Geraldo Lima

Por trás daquele sorriso

D

e dentro do sorriso saltaram os ferrinhos comprimindo os dentes. Tarde demais. Ferro contra ferro, língua contra língua, dente contra dente. Saliva, murmúrios. Depois, o abismo, a voz de Deus cada vez mais distante.

Sanctus

D

eus não aprovaria isso, essa carne devassa, esse sexo exposto, faminto sempre. Só a morte lhe trará a verdadeira satisfação. Eu curo os doentes, amanso os loucos, dou descanso aos desenganados. Deus anda comigo pelos caminhos mais turvos. E agora estamos aqui, junto ao seu leito enfermo, o coração repleto de amor e piedade.

Oh!

T

entou ainda dizer algo como Deus está... Cortei com um beijo seco, quase violento. Deixa Deus fora disso, Ele é só remorso, temor... Quis retrucar, mas tapei-lhe a boca de novo: um beijo ávido, sufocante. Gemeu, como se algo morresse dentro dela. Desliguei então a luz para que ela não visse, não pensasse, não buscasse a face de Deus em meio aos estertores.

Macega

A

gente avançou no meio do escuro, rumo ao lugar de onde vieram os gritos. Meu pai indo adiante, só coragem, medo nem de Deus nem do Diabo. Eu indo bem no meio, dominado pelo terror. Por que estávamos indo até lá? Para a memória carregar pra sempre o charco de sangue, a ruína do corpo? Meu pai avançava, sem fome de perguntas, senhor do nada.

Do livro inédito Breu

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Número Um, Ano 1 - 2010

A flor Por Claudio Parreira

U

m dia ele criou um sol em seu quarto. E era tão perfeito e vibrante o sol que ele se sentiu animado a criar outras coisas. Veio daí uma lua, que era igualmente perfeita e redonda. Criou também um carro novo, porque era necessário. E depois disso tudo, para alegrar um pouco o ambiente, criou uma flor, uma solitária flor dentro de um vaso. Tempos depois, cansado do confinamento, o sol criado se apagou. A lua, sentindo-se só, também se foi. O carro se convenceu que o mundo era grande demais, e resolveu rodar, rodar e rodar. Restaram só ele e a flor, criador e criatura. Mas o homem, como é natural, um dia também resolveu partir. A flor, sozinha, não teve outra alternativa: criou novamente um homem para ser por ele criada, mais uma vez.

‘Mulheres’ - Parte 13 Por Claudio Parreira IGUAIS VOCÊ DESCREVE A MULHER para o seu melhor amigo, e a sua descrição já não é mais aquela de quem apenas viu, mas outra, de quem se apaixonou: olhos dum verde oceânico, cabelos dourados de sol, corpo escultura divina. O seu amigo comenta a descrição, acrescenta e subtrai, e grava na memória não a imagem de uma mulher, mas uma metáfora da natureza. O seu poder de descrição, porém, não é suficiente para expressar nem a mulher nem a metáfora, de maneira que, ao conversar com um parente sobre o assunto, nele imprime a idéia de que o objeto do qual se fala não passa de uma caixa de linhas disformes, com fiapos de tecido flutuando ao vento e pontilhada de orifícios aqui e ali. Este parente, por fim, que por vício ou virtude costuma torcer até mesmo os conceitos mais elementares, numa noite de calor e cerveja se encontra com você, e num tom de confidência decide se exercitar: à caixa quase abstrata acrescenta contornos femininos, olhos dum verde oceânico e cabelos dourados de sol, corpo escultura divina. A tudo isso você ouve com atenção e respeito, maravilhado pelo fato de haver no mundo duas mulheres tão iguais. A GEOGRAFIA DA PAIXÃO A TORTURA DOS BEIJOS-MORDIDA. As carícias que me queimavam a pele. Os sopapos de amor. Porque ela só entendia o amor assim: quando sangrasse, quando doesse. O meu corpo era um mapa: cada cicatriz exibia em vermelho a vasta geografia da paixão. Nada de bombons ou chocolates: apenas chicotes e lâminas, instrumentos de tortura. A minha dor era o seu prazer. — Você não é capaz de me ferir — ela me desafiou um dia. — Não tem culhões pra isso. Enfiei-lhe um punhal de orquídeas no peito e encerrei o assunto.

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Número Um, Ano 1 - 2010

O chou não pode parar Por Claudio Parreira

E

le derrama lágrimas pela boca quando faz sol. Sorri estrelas às vezes, sempre dependendo da instabilidade natural do seu humor. Mesmo o seu silêncio é ruidoso: é um espetáculo, sabe-se assim, e assim se considera e se exibe. O chou não pode parar. Mas o mundo anda repleto de tédio. As mulheres-barbadas, homens-elefante e crocodilos trapezistas não lhe dão a menor atenção. Perderam completamente o respeito; perderam a capacidade de sonhar. Os mágicos extraem palavras mortas de suas cartolas roídas pela tristeza. Os coelhos brancos de fome e raiva conspiram contra a precariedade maquiada da lona velha e podre. Um dia a casa cai, torcem eles, certos de que estarão à distância e a salvo. Ele não está, não se sente a salvo. Cada dia, matar um leão, dois, que lhe brotam dos bolsos como capim. Dos bolsos também retira pedrinhas azuis e lembranças pálidas. De um tempo em que fora outro, outra coisa. Alguém. Agora é a tarde vazia que cresce nas pedras da rua, indiferença. O pulsar morno do coração que soletra ausências. Estímulo mesmo só o do conhaque, que pinga nos olhos para ver o dia em chamas. O público, distinto público, ergue apenas as paredes da dúvida, da descrença: esse aí não é, desconfio do chou. Onde é que já se viu, espetáculo é o próximo milhão a ganhar, a grandiosidade do efêmero cintilante dia após dia após. A droga a qual nós o público estamos submetidos desde sempre, como cordeiros sob o machado de Deus. Sabendo-se assim ele segue, cheio de nadas e de incertezas. Sob o sol é o homem-espetáculo, que teima em desafiar uma platéia de cegos. Um mundo trêmulo e arrogante, que por trás da máscara exibe apenas um circo perplexo de si mesmo.

Além do espelho

Rua Augusta

Da parte final da série ‘Mulheres’

Por Claudio Parreira

T

ALVEZ a noite já tivesse chegado, mas ele não tinha certeza. Estava na padaria há pelo menos oito cervejas, ou quatro conhaques, vai saber. Difícil determinar o tempo nessas condições. A única coisa que sabia de fato, que sentia como um prego nas costas, era sobre a solidão. A sua solidão. Tão sólida quanto o balcão repleto de garrafas. Não foi sempre assim. Houve tempos, pensava, em que a solidão era apenas uma imagem distante e pendurada na parede, um sonho sonhado por outro. Havia a mulher, a pequena e confortadora felicidade dos abraços e dos sorrisos. Mas agora não, a história era outra, uma história apenas retrospectiva, sem registro do presente e de futuro improvável. Uma história vazia, como as garrafas. — Se cachaça fosse remédio, Zé, vendia na farmácia! A voz vinda de lugar algum. De quem a voz? Ele não sabia. Mas estava firmemente ancorado no balcão, e era isso o que importava. A padaria, ela sim um barco bêbado, rodopiando ao sabor das ondas alcoólicas. Quando enfim deixou seu porto seguro, a Rua Augusta parecia um deserto negro, pontuado aqui e ali por postes de luz esquálida. Postes tortos, distorcidos, flutuantes às vezes. Mas concretos, ele confirmou, plantados com firmeza no chão. Estranhas árvores cinzentas. Agora sim sabia da noite. Madrugada — e tinha certeza, apesar dos fartos conhaques. O cheiro inconfundível da cidade adormecida, os sons cegos da metrópole. — Aonde meus pés me levarão? Houve um tempo de casa e endereço, cama e banho quente. Seu lar agora era o mundo. Ainda tinha casa, sim, endereço também. Mas não queria voltar. Pra quê? As lembranças são flechas que envenenam a alma, e em casa elas doem mais. A Rua Augusta, portanto, seu abrigo mais seguro. O asfalto antigo, as calçadas esburacadas. A liberdade dos pés.

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A fuga Por Rogers Silva

S

ó agora ele vê o outro ali, em sua frente, sorrindo, com as mãos paradas no ar, e compreende. Só agora. Sim, e o sorriso dele – do que está na sua frente – é um sorriso maroto, inocente, verdadeiro, espontâneo. Depois de um ano – agora – ele percebe. Sim, aquele em sua frente... Não é aquele de um ano atrás... Só agora. Até parece que viveu durante este último ano anestesiado, sem realmente viver, sem pensar, sem compreender – deixou-se levar... E só agora percebe. Meu Deus! Tudo verdade! Deus! Não! Emborca a cabeça para o lado direito, fecha os olhos lenta e profundamente – assim pode vê-lo melhor. Estranho. Vê-lo melhor? Com os olhos fechados? Senti-lo melhor... A gota d’água que cai na pia, na cozinha, deixa-o zen, ainda anestesiado, fugindo da realidade que, agora, depois de um ano, compreende aos poucos. Aceita. Aceita? Não. Não a aceita. Alguns lhe disseram que o tempo é o melhor remédio. Não absorveu nada do que lhe disseram no último ano. Apenas ouviu, não absorveu. Tempo? Que se dane o tempo. O melhor remédio é a fuga. Abre os olhos e o vê ali, tão pequeno, tão bonito, tão... Os bracinhos suspendidos, um sorriso no rosto (como sempre). Olha-o e tenta compreender – agora, tarde demais para sofrer? A realidade é esta, imposta, cruel. O outro – o dos braços pequenos – parece querer saltar-lhe e dizer: “Papai, manda a bola. Vai!”. “Não tem mais bola” – brincava o pai, escondendo-a atrás do corpo. – “A bola sumiu”. “Mentira. Tá’trás de você!”. Que menino esperto. Nunca permite ser enganado. E apenas cinco aninhos... Agora, levanta o braço esquerdo, custando, que há muito ficou abaixado, suspenso no ar, e passa a mão no rosto do garoto. Passa os dedos indicador e médio sobre suas negras e bem delineadas sobrancelhas. Como é bonito! Onde está o relevo de suas sobrancelhas? A maciez de sua pele? Por que esse sorriso estático? Por que não abaixa os braços? Nem agora percebe? Não quer perceber? Aproveitar este momento, prestes a acabar, um pouco mais? Ontem brincou com um garoto no jardim de sua casa. O filho, o mesmo de um ano atrás, sem mudanças, com uma camiseta amarela, bermudinha branca, tênis All star, pedia-lhe a bola. Vai ser um grande jogador. Jogador ou médico. Adora remédio. E nem tem medo de machucado. Acha curioso. “Tá saindo sangue!” – gritara um dia. – “E muito”. O pai correra para o filho. Que ria, curioso, moleque. “Que doido!” Já tá aprendendo gírias, o garoto. O pai também sorrira. Pegara-o, dera-lhe um beijo no rosto e lavara o machucado. Ontem brincava com o filho. Luís (o pai), a bola e o filho – o mesmo que ele vê agora, concretizado numa foto, posta num portaretratos, em cima da mesa. O homem, sentado numa cadeira, colocou a foto ali e, no momento, a olha, perdido. Apenas cinco aninhos... __ Meu bem, vem dormir, já tá tarde! – ouve a esposa lhe gritar. __ Tô vigiando o Fernandinho! Ontem brincava com o menino e, de vez em quando, olhava a esposa lá, na porta, sorrindo. “Meus dois amores...” – sussurrava, perdido. Lançava a bola ao vão, sorria ao vão, dava tchaus ao vão, para lá, na direção da porta, sorrindo. Meus dois amores... De repente – agora – levanta-se da cadeira e vai ao seu quarto. __ Sim, já tô vindo dormir – fala, voltando à sala, sentando à mesa. Mas antes pega a bola, sempre a mesma bola. -- Deve tá cansado de brincar, né? Desculpa, meu filho. Deve achar que papai é louco. Papai te ama. O maroto continua na mesma posição, sorrindo, com os braços estendidos, assim como estava quando tiraram sua foto. __ Já tô indo, porra!!! – grita, irritado. – Já tô indo! – continua, agora lhe caindo lágrimas dos olhos. – Já tô indo... Não percebe que quero brincar com meu filho? Só agora, cabisbaixo, chorando, vendo a mesa molhada, percebe que a fuga foi o que deixou intacto, sem sofrimento, anestesiado. Fingiu-se, acreditou-se, muitos acharam-no... __ Deus – chorando –, só agora percebo que tô louco! Só agora... Por que roga a Deus, Luís? Não acredita em Deus como Ser justo. Agora, percebendo que a fuga, que no início realmente era proposital, tornou-se séria demais, lembra-se de Deus? Volta ao quarto, onde esteve deitado durante muito tempo, sozinho, e o encontra completamente vazio de pessoas. Estantes, livros, guarda-roupa, cama, televisão, vídeo-cassete. Mas, e a minha esposa? Estendido na cama, agora, lembra-se de exatamente um ano atrás. Sangue. Muito sangue. Fernandinho gostava de sangue – relembra. Suzanna odiava. Deitado, confuso, percebe – o esquecimento foi o melhor dos presentes que já recebeu. Porém, agora, o esquecimento tornou-se – misturou-se à realidade. __ Faz um café pra mim, meu amor, faz... – olha para o lado esquerdo da cama e murmura. Nada havia. __ Não!!! – e o grito ecoa, desesperado. Só agora compreendia que estava louco. E era o pior que podia ter lhe acontecido: a percepção da loucura. __ E agora, meu Deus, o que faço? Será que vou sofrer tudo aquilo que eu deveria ter sofrido durante este tempo? Será que vou lembrar todos os dias da mesma cena? Eles, meus dois... eles... aqui, na sala desta casa, estendidos... E por policiais, sem motivo... Será? Agora que parece distinguir a realidade da ilusão, agora que a memória desperta e o fere, agora que pela primeira vez pronuncia o nome de Deus pedindo ajuda, agora que o esquecimento (a fuga) se foi, resta-lhe, unicamente, a fé. A fé aliada à esperança. A esperança ao consolo. A fuga pela fé (A fuga pela fuga?). A fé. Do livro Manicômio, ainda inédito http://o-bule.blogspot.com/

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O mundo desencantado de Desseres Por Rogers Silva

A

velha de olhar infantil disse que envelhecer dói, é dor que teoricamente em pouco tempo acabará, mas é dor consciente, uma vez que não se têm mais ilusões juvenis. Após dizer isso, se foi, e ninguém jamais a viu novamente. Seus sapatos foram achados a dois quilômetros de sua casa, onde morava sozinha. Estavam sujos, cheirando a papoulas. O cego que bradava luz olhou sem enxergar para a menina de semblante triste e disse, se referindo à velha de olhar infantil: Conheci-a, nunca a vi – brincou –, porém soube, através de suas palavras, que era triste. Você também – completou, abaixando a cabeça. A menina de semblante triste sorriu tristemente, olhou para o lado e viu uma criança-mulher que chorava muito. Na ocasião não estava chorando. Disse a menina de semblante triste: Sou eu, sou eu quando era criança. Depois se voltou para trás e caminhou. O cego que bradava luz, com a mão no peito, direcionando os inúteis olhos para o céu, amaldiçoando-o, esbravejou: luuuz!!! Então começou a chover. As lágrimas de Deus, achava o cego que bradava luz sob a chuva, se estão assim em diagonal é porque Ele está de cabeça baixa, chorando pelo projeto fracassado, o ser que se diz humano. A dor no peito, que em momento algum dava trégua, continuava, e por isso achou melhor ir embora para casa. Talvez daria um tiro na cabeça ou... sei lá. O rapaz que não olhava nos olhos andava calmamente quando se esbarrou no surdo e seus olhos de gato. Desculpas mútuas e simultâneas. O surdo e os seus olhos de gato ia à casa do mudo de gestos enfáticos. Lá conversariam no idioma deles e se entenderiam como seres normais, que falam e ouvem, jamais se entenderiam, visto que estes são egoístas e disputam para ver quem fala mais e menos ouve. A velha de olhar infantil, por não agüentar a dor de envelhecer, resolveu que não deixaria os anos passarem e, então, procurou caminhos que lá, no Campo em que não se envelhece, fossem. Dizem que vagou eternamente, e vaga, pois eternamente não tem fim. E nunca envelheceu. A máxima Corpo jovem é corpo que funciona surgiu do mito da velha de olhar infantil, avó da menina de semblante triste, que seria mãe da garota que perdeu a mãe. Enquanto a Terra que gira gira, conversam, no idioma deles, o surdo e seus olhos de gato e o mudo de gestos enfáticos, filho do homem que um dia foi menino. Conversam conversas. Pelas conversas resolvem, amanhã mesmo, que tentariam descobrir a cura para a surdez e a mudez. Prometiam que quando descobrissem não mais iriam conversar, talvez assim não ferissem os outros. Outro que foi ferido e por isso não olhava mais nos olhos de ninguém, pois provavelmente iria feri-lo, era o rapaz que não olhava nos olhos. Achava que se voltasse a olhar nos olhos de alguém, e esse alguém fosse mulher, ficaria como o adolescente que foi traído pela primeira namorada, adolescente suicida. Este chorou durante dois dias seguidos, sem parar, e suas lágrimas encheram duas bacias de prata. Quando as lágrimas acabaram, decidiu ir para a estrada de ferro. Calmamente, mas com muito medo, quando o trem apitava lá no horizonte, subiu nos trilhos. Anoitecia. Ventava. A garota que foi acusada injustamente, namorada do adolescente que foi traído pela primeira namorada, nunca se recuperou da tragédia. Jamais se alegrou por nada, a garota que foi acusada injustamente. Em sua casa ninguém ria, ou sorria: nem sua irmã, a garota que enlouqueceu por remorsos e raiva, nem seu pai, o cego que bradava luz, nem sua mãe, dona-de-casa tão-somente da casa. Quando estavam todos juntos, cada um ia para seu quarto, cerrava as janelas e chorava, chorava por impotência. Por raiva. Por remorso. Por nada. Um dia, quando um esboço de um sorriso se mostrava no rosto da garota que foi acusada injustamente, ela, confusa, decidiu que não, jamais iria sorrir. Fora acusada injustamente. Não tinha direito de sorrir. Nunca mais. E assim aconteceu, até a sua morte, de velhice, aos noventa e três anos. Sua mãe, a dona-de-casa tão-somente da casa,

um dia, quando as filhas tinham vinte e vinte dois anos, se perguntou o que tinha feito, o que tinha construído na vida, e resolveu ir embora, abandonar o marido cego e as filhas, cada um com seu problema, cada um com sua solidão. Deixara uma carta ao marido. Não seria vista novamente. Pois viveria na Antártida, gelo lá fora e aqui dentro, no seu coração. Morreria aos cinqüenta e seis anos por conta de uma avalanche. Seu corpo nunca seria achado. Nem apodreceria. Enquanto a menina de semblante triste caminhava, teoricamente rumo à sua casa, teoricamente pois lá não chegaria, uma vez que se perderia nos olhos do surdo e seus olhos de gato, e se apaixonaria loucamente, paixão que doía, o jovem que era fissurado em carro, no seu quarto, inventava uma nave espacial na qual iria para a lua, porque aqui se frustrava a todo o momento por ver um carro e não poder comprá-lo. Seu pai, o homem que um dia foi menino, melancólico por saber que nunca mais seria menino, e raivoso por um dos seus filhos ter nascido mudo, agora se desesperava ao ver o seu filho, o outro, dentro de uma nave dando adeus com as mãos, gestos lentos, entre espantado e feliz, indo embora, para onde, se perguntava, e se perguntaria o tempo todo, pois jamais poderia imaginar que o filho inventor iria para a lua, onde morreria. A garota que enlouqueceu por remorsos e raiva não se conformava com o fato de o homem que amava, o adolescente que foi traído pela primeira namorada, ter se apaixonado pela irmã e não por ela, por que, e assim batia três vezes ao dia a cabeça contra a parede, em forma de protesto, um protesto tímido. Seria sua sina: bater a cabeça, pelo resto da vida, vida longa, de oitenta anos, na parede, parede dura. O mudo de gestos enfáticos, além de não se dar bem com o pai, sofria por não entenderem seus gestos, e então tentava, com ênfase nas mímicas, fazer as pessoas o ouvirem, mas não conseguia, visto que entendiam apenas símbolos matemáticos, nunca entenderiam um mudo de gestos enfáticos louco por comunicação. Vinte anos tentando se comunicar, e nada, quando resolveu abrir uma cova e se enterrar, anulando assim sua ânsia, todavia estéril. O homem que um dia foi menino, seu pai, por sua vez, enquanto cantava uma ópera, com uma voz linda, percebeu subitamente que a vida não valia a pena. De raiva, aumentou o volume de sua voz, já potente, aumentava e, quando atingia a nota mais alta da escala, seu cérebro estourou. De dentro saíram dores em forma de notas musicais, a voarem, cada uma para um lado, distantes entre si, em direção ao céu, um céu rosado. O rapaz que não olhava nos olhos até então conseguiu não olhar para outros olhos a não ser para aqueles responsáveis por sua sina, cabeça abaixada, quando, fisgado por um pé feminino, instigado em saber de quem era o pé feminino, olhou, medrosamente, e olhava, medrosamente, até que perdeu o fôlego por causa do olhar direcionado ao seu e morreu, feliz, embora sua alma nunca fosse encontrada, para comprovar que realmente morrera feliz. O olhar direcionado era da mulher pela qual outrora apaixonara e em quem encontrara e encontrou um amor transcendente e mortal. A criança-mulher que chorava muito cresceu e se transformou na menina de semblante triste. Esta, por seu turno, se apaixonou, paixão genuína, pelo surdo e seus olhos de gato. No primeiro dia, metafisicamente fizeram amor sob um ipê-amarelo, flores a cair no casal se amando, e daí nasceu a garota que perdeu a mãe. A menina de semblante triste não se conformava: como podia o amor dela pelo marido, o surdo e seus olhos de gato, doer tanto? Todo amor dói? Como pode duas pessoas se amarem tanto, ao cúmulo da anulação mútua? Como pode? Desiludida com as respostas foi para a beira do mar, avistou uma gaivota lá longe, ínfimo branco sobreposto à imensidão azul, sorriu, quão belo é o mundo, quão bela é a vida, meu Deus, mas quão angustiante – e se jogou. As ondas a levaram, para onde, se perguntava a filha, a garota que perdeu a mãe, para onde, se perguntava o marido, o surdo e seus olhos de gato. Juntos, pai e filha, e sempre unidos, se abraçaram até o fim da vida, chorando, porém se compadecendo, se completando, até o fim da vida, se perguntando, para onde, quando morreram coincidentemente no mesmo instante, como prometeram. Enfim, sozinho no mundo, aos cento e trinta anos, o cego que bradava luz, pela milésima vez, o olhar ao alto esbravejou com toda a sua força: luuuz!!! A luz saiu do seu âmago. Voou. A luz era sua alma.

Do livro Manicômio, ainda inédito

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Hippies & happies, talvez yuppies Por Mauro Siqueira

Se mais nada der certo, eu...” era tudo que eu conseguia ler nas grandes letras brancas da t-shirt tye-dye multicolorida que ela estava vestindo. O balanço, o ritmo em que estávamos também dificultavam a leitura. “Espera, espera...”, fui falando e esticando a sua blusa, para que eu pudesse ler. “Que foi? Tô te machucando? “Não. Se mais nada der certo, eu viro hippie.” “Ah, caralho! Você me fez parar de fudê por causa da minha camiseta?! Puta que me pariu!” Marcela está irritada. Sem cerimônia “saiu-se” de mim de maneira que me subiu dos ovos aos rins, deixasse bem clara a besteira que fizera; não adiantou tentar segurá-la pelos quadris, seguiu muito puta, apenas com a camiseta-conflito, que não cobria nem mesmo a metade daquela bunda enorme, com a convicção de uma perfídia, corredor à fora; ela já estava entrando no banheiro, quando catou um dos meu cinzeiros e quase me acertou, ao mesmo tempo que enchia a boca de um você-é-um-filho-daputa-! tão grave e enfurecido que chegou até a me excitar... Eu só pude me proteger e esperar que errasse – o limite entre a sorte e os pontos cirúrgicos ficou em três centímetros. Bateu a porta com igual violência. O que eu podia fazer se sou curioso? Depois, as mulheres dizem que não reparamos nas roupas delas... Fiquei um tempo, com os braços cruzados sob a nuca aguardando, olhando a preguiça do meu ventilador de teto. Enquanto que entre as minhas pernas o desejo amolecia – por quanto tempo eu ainda teria de esperar? Aquilo ficava ridículo. Gritei o nome de Marcela. “Vai tomar no cu!, Márcio!”. Sempre objetiva, a minha marcela – deve ser influência da pós em contabilidade. Levantei e acendi um cigarro, segui para a varanda completamente nu... Moro, moramos, sei lá, Marcela passa bastante tempo aqui... Moro num desses sobrados velhos do Centro da cidade e que mereciam um restauro, é até perigoso antigo talvez, descascando; fumando um dos meus cigarros, ficar muito tempo na minha varanda, que não cabe mais do que os dela são sofríveis. Ainda enfurecida, soltando, literalmente, duas pessoas. Mesmo assim me debrucei sobre a balaustrada fumaça pelas ventas e sujando o piso azulejado e quadriculado de ferro carcomida de ferrugem e fiquei os minutos que cabem de cinzas. Era quase uma foto daquele francês de nome de no meu cigarro e... curtindo o gosto sofrível dos mentolados relógio, mas eu não sei se levou algum dos meus cigarros com de Marcela. Olhando o nada da madrugada, confundindo ela. Era uma cena bonita p’ra cacete, pra ser filmada por aquele suas estrelas opacas com as luzes dos pontos mais altos dos canadense estranho e Marcela era linda; uma cena sincera e morros; na minha frente e lá embaixo, alguns bêbados e vadios, rica, mas a minha velha Nikon-f ainda não tem lentes de raioo som dos sacos de lixo sendo rasgados: vasilhames, folhas de x para poder registrar tudo aquilo pela porta. “Porra, Marcela, não foi por querer!, foi curiosidade. Sai logo alumínio, cacos de vidro, vegetais e alguma proteína animal, pets e outros polipropilenos enchendo o chão antes dos garis daí, anda...” “...” passarem, pequenos traficantes&seus clientes; as putas&seus “Vem, volta... ...eu deixo você me bater...” clientes ganhando o máximo antes d’ozômi passarem – os “...!” policiais&seus clientes... Eu amo a minha cidade! O cigarro O som do trinco, a porta agora destrancada. acabava – nem mesmo quatro minutos –, e a Marcela começava “...?” a me irritar com aquela peça; meu interesse esvaído e agora “Vem...” tímido, a se desviar para algum possível filme na tevê àquela O desejo voltando como nunca tivesse ido. A camisa ainda hora, ou... sei lá, palavras cruzadas ou algum livro da garota não cobrindo nada. que escreve como homem. “Como assim hippie?” Disse ela recomeçando tudo de Bati, de leve, três vezes, na porta. Nada. encostei o meu rosto e falei seu nome baixinho: “Marcelinha...”... Nada. “Marcela...”, novo. mais uma vez (arranhei uma manchinha de tinta da porta: ela Conto que fará parte do segundo livro de descascou). Mauro Siqueira, em fase de finalização Estava irredutível. Até podia vê-la pela porta, sentada sobre a tampa do vaso; curvada para frente, mãos entre as pernas, pés meio que virados para dentro, o esmalte colorido, um rosa http://o-bule.blogspot.com/

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O que seria do azul se todos gostassem de rosa? Por Mauro Siqueira

R

iscou com cuidado um dos últimos palitos de fósforo da caixa, com a mão em concha protegeu a singela chama alaranjada dos ares ao redor e levou-a até o cigarro que desafiava a física, dependurado nos seus lábios. Machado sacudiu a mão para apagar o palito e, ao contrário do hábito, guardou o fósforo gasto novamente na caixa, dando cabo àquele prosaico ritual. (Tio, compra uma rosa?) Ela, do outro lado do bar, nem perto, nem longe, toma uma “coisa” azul – já o havia notado; “Não é todo dia que se vê um macho vestido de seda rosa”. Passou a observá-lo junto dos seus amigos, o cerimonial do cigarro só aumentou seu interesse, “não vou dormir sozinha essa noite”, decidiu. Sempre iam àquele bar, sempre escolhiam aquela mesa, sempre pediam muita bebida. A disparidade das opiniões e a quantidade de álcool na corrente sangüínea não impediam àqueles quatro ou cinco jovens que debatessem questões de alta transcendência, como futebol, mulher e rock’n’roll – ou o último jogo de videogame – com certa dignidade e eloqüência. (Tio, compra uma rosa?) Quatro ou cinco porque Machado estava amuado, “essa camisa é ridícula!” E fumava um cigarro atrás do outro e dessa forma não percebia, através do espelho, localizado mais ou menos a sua frente, o reflexo da morena (de uma pela marrom incrível!) sentada no bar que não repousava o olhar senão nele. Foi preciso a intervenção de Severino, o garçom de sempre, bem alinhado de branco e preto, como sempre, dizer, quando lhe trouxe outro maço de cigarros e uma “pinga danada da gota”, que “a garota o olha”. (Tio, compra uma rosa?) O flerte se iniciou pelo espelho prateado mesmo: sorrisos, olhares enviesados, risos de canto de boca, cruzar de pernas, mãos nos cabelos; Machado, acendendo um outro cigarro, ofereceu-lhe um, erguendo a mão esquerda; ela declinou, mas apontou para o seu copo quase vazio da pinga. Ele riu. Ela riu. (Tio, compra uma rosa?) Os outros rapazes pararam a conversação quando viram “aquilo” parar ao lado da sua mesa e sair com Machado, por um momento se acharam ridículos ao estarem discutindo se um “cima, cima, baixo, baixo, esquerda, direita, esquerda, direita, xis, xis, bola, quadrado, START”, no controle do videogame, revelaria algum segredo na tela de abertura no jogo da moda. (Tio, compra uma rosa?) Pegaram uma mesa num canto mais reservado (e perto da saída). “Acho que vou trepar essa noite”, pensou ele antes de sentar. Agora era cara a cara. Seus amigos, de fato, estavam brancos e não tiravam os olhos do casal. Na mesa, os dois conversavam... Alguma disparidade, muito álcool, pouca transcendência de ambas as partes desencantava a ambos – reviram as possibilidades carnais em suas mentes. Enfim, fez-se o silêncio... Não ocorria nada a um ou outro para se dizer, Machado fumava e olhava filosoficamente para o seu cigarro, ela alisava a toalha quadriculada verde e branca... a situação beirava o desconforto, nem mesmo os amigos pareciam mais interessados, até que ela resolveu acabar com aquilo, ele acendia outro cigarro. “Sabe o que me chamou primeiro a atenção em você?” Ela não esperou que ele respondesse, foi logo dizendo a maneira dele acender o cigarro e depois guardar o fósforo – ele ficou rosa. “E sabe o que mais?” “O quê?”, perguntou rindo. “Sua blusa rosa. É linda”. Ele tossiu e bebeu o resto da cachaça – ficou roxo. “Sabe, é muita coragem, ou melhor segurança sua usar uma cami...” “Foi uma aposta que eu perdi. Era isso ou duas caixas de cerveja.” “Ah...” Machado notou o fora que dera e nada vinha a sua cabeça bêbeda. Tinha de pôr de volta nos trilhos aquele trem moreno, caso contrário sua cama seria um lugar branco-gelo aquela noite. “Mas o que seria do rosa se todos gostassem do azul?” “O ditado não é ao contrário?” “Não sei, já estou tonto!” “Eu também!” “Ainda não sei seu nome?”, ela riu, um recomeço?, “O meu é Machado, como o do escritor”. “Não gosto muito do meu...” “E qual é? Galvência? Hermenegilda? Lucrécia? Maura!” Ela gargalhou. “Não... nada tão estranho assim...” Ajeitando os cabelos negros por detrás das orelhas e de cabeça um pouco baixa, no gesto de quem sente vergonha ou pudor diz: “É Rozangela...” “E daí..” “...Rozangela com zê. E sem ‘chapeuzinho’” “?” “Você não entenderia... mas pode me chamar de Rô”. O silêncio se interpôs mais uma vez – sorrisos amarelos, não tinham mais nada para falarem. Então um anjo... “Tio, compra uma?”, a noite toda, toda a noite, de mesa em mesa, bar em bar, a menina de uns nove anos de idade leva junto do peito um balde azul cheio de rosas; com um vestido surrado da mesma cor, e vai oferecendo suas flores. (Nos dias mais quentes, ela vende na praia...) Machado e Rô ficaram olhando aquela menina... a presença da garota pôs o casal numa situação embaraçosa, ambos ainda não se conheciam o suficiente, sequer para supor se eram românticos. Rozangela detestava rosas. Mas talvez ela quisesse uma. Machado não possuía sensibilidade romântica alguma. “Então, tio, dá uma rosa pra ela”. Machado olhou de soslaio para Rô, que não demonstrou nada. “Hoje não, outro dia, tá?” A menininha de rosa deu as costas com todas as rosas no balde. Com o ar tomado do cinza da fumaça dos cigarros dele, Rô sentia-se mal e já estava cansada: “Vamos para minha casa?” “Vamos”. Caminhavam meio tortos em direção ao ponto de ônibus, aonde tomariam um táxi. “Me dá um cigarro?”, pediu ela, “Não dá, acabaram os fósforos”. Ambos cambaleavam, Rô pior do que Machado, sentiam-se verdes e enjoados da bebida e um do outro, queriam acabar logo com aquilo, um táxi que não vinha... Bem mais à frente os dois observaram a menininha na sua tentativa de vender rosas... “Por que eu não pude comprar uma rosa para ela?”, pensou. “Ele não precisava comprar uma... bastava o gesto, um ‘quer?’...” Por descuido, a fumaça do último trago, do último cigarro, foi parar em cheio no rosto de Rô; o enjôo ferrava com ela, sentiu uma ânsia conhecida ao aspirar a fumaça... iria vomitar. Levou as mãos inconscientemente ao estômago, em seguida à boca. “O que foi?” “Nada”. “Nada?! Você está rosa... Era só o que faltava, essa garota passar mal ali...” Rô não iria vomitar no chão. Muito mal, ela procurava alguma coisa em que pudesse aparar suas... intimidades líqüidas, não viu nada... não muito longe reviu a menina. E apontou para ela. De fato, ela estava rosa, não agüentaria muito tempo, querendo ser educado e não dar mais foras naquela noite correu como pôde até a garota das flores. “Quanto é?” “Um real” “Vou querer todas e o balde também.” Os olhos da menina brilharam e se abriram num verde-esperança... Machado voltou o mais rápido que pode para o ponto de ônibus, “Está linda...” Rô estava curvada, as pernas trançadas, uma das mãos escorada no poste, a outra sobre uma das pernas. “Você está linda...” Apesar de achar inadequado o momento, amou o elogio; Rô ainda estava agachada, ergueu a cabeça, ela não queria as rosas... virou todas as rosas no chão, levantou-se rápida demais para alguém que estava passando mal... errou o balde e vomitou no peito de Machado – na sua camisa de seda rosa. Ela ficou chocada e sem cor e em seguida, uma onda de vergonha a fez enrubescer por completo; ele, após o choque inicial se abaixou e pegou a rosa menos suja que encontrou e oferecendo disse: “Mas o que seria do rosa se todos gostassem do azul?” Ainda tonta, mesmo detestando rosas, aceitou a flor e riu; ele reconhecendo no gesto a sua inabilidade romântica não perdeu mais tempo: largou o balde inútil, levantou-lhe o queixo com uma das mãos, e com a outra limpou um resto de coisa rosada que escorria pelo canto da boca, abraçou e beijou os lábios ainda sujos de vômito. E os dois não viram o táxi amarelo que passou em seguida.

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Índex

Por Rodrigo Novaes de Almeida (Publicado na coletânea Portal Fundação, org. Nelson de Oliveira, 2009)

“Não haverá romance, novela, conto ou qualquer outra forma que não seja aquela indexada como híbrida, um ininterrupto fluxo ex-cêntrico de discursos das diferenças. Índex vem do futuro. E aqui está um fragmento seu.” Josué Francisco Fernandes ABRA OS OLHOS. Dona Romana quase acertou ao alertar-nos sobre Marte. Este planeta é um mausoléu. Talvez, devaneios. Ou percepções apuradas – uma visão do mundo onírico / ou absinto (artemísia absinthum). O despertar, sete minutos para a meianoite. Às vezes o inferno e o paraíso convivem harmoniosamente num mesmo plano; é o meu plano, sou eu mesmo, nada mais nada menos. Sonhos estranhos / pensamentos insólitos / noites mornas / dias vazios / rotinas / bombas atômicas / acídia. Bestialíssimo sacerdote pagão, teu cristianismo é carne, sangue, esperma e sarcasmo. Ao pó. E no final das contas não dirimiremos vossas dúvidas, porque nós também não sabemos. Um longo inverno decai sobre nós, denso, frio e cinza. É quase a hora de enterrar os corpos. O banquete de vermes. Feierliche Zeit! Kommt! Tempo Festivo! Vinde! Não sou bom ou mau o bastante para a tragédia purificadora. Não há catarse. Os deuses vieram da constelação das Plêiades. Sírio foi uma das estrelas com que mais se preocupassem. Existe, sim, uma civilização humana, comum a todos os homens, mas eles preferem a barbárie. Eisme aqui. E muitos outros como eu estão por vir também. O que eu posso dizer em minha defesa? Contemplamos a absoluta falta que nos corrói por dentro e: mata. UMA COLCHA DE RETALHOS PARA DANDALUNDA. “Imagem da quintessência do mal, a serpente é condenada a arrastar-se”. Aquele era o Seu Reino. Desde o início do Tempo. A biblioteca, os edifícios, os jardins suspensos, os salões, a vassalagem, a lagoa gelada, o ar frio, a tecnologia do futuro e todas as histórias do passado. Desde o Princípio: plantou o humano no mundo e observava atento. Concubinas, gueixas, virgens, pratos refinados, exóticos, livros raríssimos, manuscritos e teogonias. Ar condicionado, cabos, computadores, o inferno estava cheio disso. Há uma semana trancafiado, o sono traz sonhos de uma outra vida, uma outra existência. A consciência traz o pesar amargo de uma costela quebrada. Não tenho delícias. Não tenho amores. Restam-me apenas palavras. E as palavras não me aquecem, não confortam o espírito. Noutra vida eu tinha certa paz. Mas esta se perdeu. Perderam-se vidas. Perdeu-se a paz. Somente a poesia renova a alma do mundo. Amar ainda é o sentimento do mundo. Amar com todas as forças, embora sem ser amado, é sentir-me vivo. Sou torpe, mas sou um romântico. Atravessei os séculos em cruzadas, erigi monumentos, proclamei idéias pagãs, cruzei mares, matei monstros e homens e alguns desses homens eram monstros. Cheguei aqui, futuro, e reneguei o passado; esqueci meus feitos, meu nome. Agora volto para casa. E levo comigo apenas as dores, essas cicatrizes e um velho retrato da mulher que amei um dia. Eu construí um ser que concebe toda a sua humanidade. Um ser humano! O homem verbo. O homem canto e encanto. O homem mito transformado em voz. Do homem fratura exposta ao homem exposto. Do homem costela quebrada, partido, ao homem inteiro. Sou pagão. Sou filósofo e sou poeta. Tive quantas epifanias me foram possíveis, saltos quânticos me atravessaram a mente, fluxos orgânicos intermitentes. É o que nós tentamos: transformar todos os livros da grande biblioteca num único volume, contendo o nosso nome no princípio, no meio e no fim; nós: escritores, pensadores, filósofos, poetas. E a consciência desse plano é o primeiro passo para aceitarmos o fracasso por vir. Porque fracassamos. Sempre. Mais do que o Diabo ter convencido o mundo de que ele não existe foi ele ter convencido o Outro de que o Outro é o Diabo. É o que nós desejamos, mas non est satis aestimare. E o Progenitor da Humanidade observa a sua obra, enquanto os vermes devoram a carne. Anamorfoses. Diante de um espelho, a elipse e o barroco. A musa vem para encantar o poeta. Porque fracassamos. Sempre. Cunilingus – nec vero id satis habuit. Saí do sistema solar, do cinturão de Órion, da Via-Láctea, do conjunto de galáxias próximas e de todo o conglomerado pulsante de matéria e energia que chamamos de Universo. Ilusão de tempo. Eu sou desde que

o tempo é tempo. E isto é Presença. Eu sou Presença. Eram cinco horas da manhã quando me levantei da cama nesta segundafeira. Num quam te circumspicies? O que eu deveria fazer e por quê? Estava tudo ali diante dos meus olhos. A MULHER É UM DETALHE. UM DETALHE MEU. Ele se reconhece, ele sabe, eu sei que você tem alguém, mas eu sou um amigo. Ela chupou o seu pau depois que ele o colocou para fora das calças e a mandou; eu quero que você chupe o meu pau assim fácil intumescido e acenderam velas e escutaram em vinil antigas bandas e beberam uísque e fumaram cigarros e ele ainda disse que irá fodê-la de todas as formas que sim ele vai um dia perto desses nós prometemos vai sim assim fácil. Eu disse que um dia vou fodêla como nunca ninguém ela jamais amanheceu. Nec vero id satis habuit. Nosso sangue servido aos deuses imemoriais de eras perdidas. Os tambores já não clamam às legiões de corpos empalados. ROMA CAIU. E PEDRO ESTÁ ENTRE NÓS ATÉ HOJE SENTADO EM SEU TRONO DOURADO. Era necessário que fizesse sentido. E mantenho uma rotina perturbadora. Um banquete de vermes a cada noite e mais nada. Mas foi ontem que sonhei? quando éramos todos jovens, inclusive as estrelas. Nosso sol contava poucos bilhões de anos e o nosso Universo era bastante movimentado. Existia um fluxo acentuado e sentimento. Ou anteontem? que em todo o caos havia uma certa ordem, que em toda poética poderia ter também um pouco de prosa e, finalmente, que todo o Cosmos talvez não seja uma resposta. E hoje? As tumbas estão vazias. Quero ver as mais telúricas ébrias e putas miragens, quero ver a fôrma de todas as formas, a perfeição de mim no espelho, as deusas me lambendo inteiro e minha amada vendo; quero as cortinas de fumaça; quero as ervas dos campos, a doce fruta em tua maldita boca toda lambuzada, e umas mil e gostosas trepadas (tudo ao mesmo tempo, sem tempo de acabar), não havendo tempo – eterno orgasmo nos vórtices, em troncos firmes pulsar, quero poesia e imortais seres e viagens alucinantes e quero o fervor dos amantes e alucinógenos e se tudo o que quero é isto, fogos, música e multidão, deitados na rede ela me faz um trabalho de sopro. Chupou o meu pau a noite toda. Estávamos com os pés dentro d’água. Era noite de réveillon. Fazia calor. Centenas de barcos no mar diante de nós. O pipocar dos fogos chineses terminara e a aglomeração de corpos dançava na praia. Entoei um canto a Dandalunda. A menina cedeu. Um beijo. Cai a máscara. Sua idade? Não contaria. O hímen está lá, mas a corrupção infectou a alma. Eu poderia viver na superfície das coisas até o banquete final. Mas sempre volto à torre e ao seu abismo. Escárnio. Não levaremos a sério esta mediocridade humana chamada civilização. Contemplamos a absoluta falta que nos corrói por dentro e: mata. Luxúria. Preciso urgentemente. Fortuna. Ela cedeu. Gozei na sua boca. Um refrescante banho gelado e o perfume de incenso. Sopa de missô e mel de eucalipto. Era madrugada de sábado para domingo. A festa acabara há poucas horas. Se o Cosmos conspirar a meu favor, ou demônios e arcanjos decidirem uma trégua em meu estádio, ou o próprio Diabo revelar-se em verdade, ou. Preciso urgentemente. Fortuna. Mas eu estava com pouquíssimo dinheiro. O suficiente apenas para comprar uns cinco maços de cigarro. Saímos de barco. Fazia tempo que eu não saía de barco. Fizemos churrasco de crianças à noite. E outro noutra noite. Comi crepes, ouriços e outros frutos do mar. Na última noite comemos camarões grelhados e bebemos licores e cachaças. O que eu posso dizer sobre uma noite assim? Uma alegoria da semente e da centelha. Que existia Semente, e Semente era a concentração de tudo. Tão concentrada a Semente que nem Espaço nem Tempo existiam. Existia Centelha, e Centelha era o lampejo para a formação de tudo. Centelha não estava dentro não estava fora. E era Centelha a própria Semente manifestada. Da Semente/Centelha veio a Criação, e a Criação era a própria Semente/Centelha manifestada. Da Sua Manifestação foram criados Espaço e Tempo. E Espaço

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e Tempo manifestados são a Eternidade. Aquele-que-é: a própria Semente, e a Centelha, e a Criação, Sua Própria Manifestação no Espaço no Tempo, em Si Mesmo. Aquele-que-é não vem antes nem depois, não está fora não está dentro. Aquele-que-é: Presença. Talvez apenas através da intuição seja possível para o homem vislumbrar um resquício de entendimento com o Cosmos. Filhos da aurora, coopertus miseriis. Diziam os mais velhos que o futuro do Universo duraria muito mais do que já durara o Universo no passado, mas que sumamente infeliz estava Tlaloc Divindade dos Otomis, deus e rei de Tlalocan, o inferno das almas dos afogados e também das almas daqueles que morrem de enfermidades impuras e obscenas. Tlaloc estava sumamente infeliz, Tlalocan passava por uma grave crise, Tlalocan estava superlotado. E há muito não sacrificavam-selhe crianças. Os xamãs diziam que a serpente voadora prometera voltar quando os feitos dos filhos dos homens se mostrassem. Contudo, ausentou-se Kukulkan e as ruínas dos templos dos filhos dos homens e as ruínas do Tempo dos deuses imemoriais proliferaram; o mundo seria tragado pelas trevas e nem os templos nem o Tempo resistiriam; Tlaloc estava sumamente infeliz, e Kukulkan não cumprira o prometido. O inferno estava cheio e os filhos dos homens já não eram os mesmos. O sentimento do mundo pesa sobre mim, catalisador de enganos; nem ópio nem absinto mas intenso sentimento que entorpece uma ardência na alma a desvelar cruamente a minha promiscuidade: o poeta renascerá sempre da impossibilidade de ser feliz – e isto será uma maldição. Eu não te amo e dentro de mim há centelha. E centelha faísca o oblívio. E forma Memória. E de Memória embebida em negro torpor a névoa atenua a luz natural essência primeira do ser que se descobre imortal en-quanto Presença. Nada mais a declarar senão que a amaria eternamente mas não oniscientes jamais saberíamos claramente dos acontecimentos vindouros presentes – e a resposta será não tenho pressa e não tenho pressa porque o ébrio seria uma condição e não uma diferença porque o mal é essencial e não uma rebeldia porque já não me engano de enganos mas de verdades inteiras porque a intensidade das coisas atropela minha frágil veste corrompendo o espírito FODENDO TUDO. Estou correndo contra o tempo ou a favor do entorpecimento para anestesiar todo o sentimento ou para negar qualquer sofrimento que só cicatrizaria com o próprio (mesmo) tempo e quando acabar a bebida acabará o sentimento. Daí em diante um espectro funesto preencherá de vãs alegrias o meu macabro velório de ti. Sempre a promiscuidade presente, até mesmo na verve do poeta fodendo as palavras como se elas fossem prostitutas. E eu um dândi suicida, estorvo, paradoxo, porque póstumo. Daqui só levarei alguns porres e polaróides. Se eu fosse feliz seria enfadonho. Só posso almejar o êxtase de sentir muito e de perder praticamente tudo. Para então revelar ao mundo o meu fracasso – e isto será para sempre ridículo profundo e as gerações futuras cantarão o meu nome como se eu fosse alguém muito importante, como se eu fosse um bravo herói do passado, como se eu não fosse, em verdade, futuro. E prematura decepção morreria como se estivesse nascendo de ti, mas condenado estou a viver como se estivesse morrendo de ti. LECTUS ARCHAICUS, eu quero um deus místico de uma era remota, eu quero um sentimento profundo e puro, eu quero o conhecimento antigo dos nossos ancestrais PARA SER SILENCIOSO COMO O CHOQUE DE GALÁXIAS a explodirem em palavras decantadas, fazendo uma dança sôfrega transformada também em canto de morte do gozo além de mim. E do orvalho da vida das coisas do fluxo, Satã. Que revela e desvela e se esconde num quarto escuro trancafiado. Eu vejo. Satã. Eu vejo o meu rosto encarquilhado. Ó Velho! Vens sofrendo os vícios da carne... A alma na vasa podre, o enxofre e o cheiro de vulvas incandescentes. Palavras três vezes palavras na mente como outra qualquer outra mente. É o telefone que toca. É o computador que transpira. Como a ira de um deus pagão, era para ser silencioso como o choque de galáxias no éter. Meu vozear, mas era apenas revolta. Uma pequena e bruta revolta. Eu escutava uma valsa, enquanto pintava com o sangue da menina morta a parede do quarto. Então ele tragou o bourbon num só gole e acendeu um cigarro. Olhava para o corpo ensangüentado da menina estirado sobre a cama. Pernas ligeiramente abertas. Xoxota pequenina quase sem pêlos. O punhal cravado no peito. Seios inchados, mamilos esverdeados. Na parede estava escrito em tinta-sangue: Compaixão. Silêncio e sepulcro no quarto. Terminou de fumar. Tirou o punhal do peito da menina, limpouo e o guardou. Beijou a testa daquele cadáver e saiu. Imediatamente percebi ser a mulher o modelo escarrado daquela outra, de plástico, que boiava dentro da piscina. Como eu admirei aqueles corpos!, aquela

superfície líquida!; acredito ter visto leite misturado no fundo da piscina com as demais substâncias. Tinha também mijo e merda, porque eu ficara tão excitado que não resisti: mijei e defequei na piscina. Não mergulhei. Não mergulhei. Não sorvi a essência de toda aquela grandiosa e bela cena. Apenas a pintei na tarde morna do ontem. Ou foi na delgada noite do amanhã? Não importa. Sempre haverá o hoje eterno. Fina tala superfície de mim. Tentava acordar mas não conseguia. Rezei o Pai Nosso e acho que acordei. Mas rapidamente adormeci de novo. E então acordei de vez, finalmente, com uma frase ecoando na minha mente: ...e levando para o Inferno um signo Teu. Nada de cantoria / Nada de diversão / Nada de amor perdido / Nada de confusão / Nada de anjo caído / Nada de idolatria / Nada de comoção / Nada de nada a ser dito / Nada de nada a ser são / Nada de nada maldito / Nada de nada senão: UM DEUS AUSENTE. O Fantoche não tem vida sem a Mão. Suave será a paz depois do fim. Depois do fim será a paz suave sob o denso e absoluto silêncio. O silêncio perfumado do depois. O perfume de almíscar nas vísceras. E dentro da catedral, sentado num trono, estará Esquecimento. Tédio e sexo obsessivo, é o que nos resta! E estranho é simplesmente ainda existirmos SOB A TARDE BARROCA. E esquecemo-nos de perguntar: matamos Deus? Naquele saguão imenso de um antigo edifício, onde algumas crianças brincavam sobre o piso de mármore branco, eram todas extravagantes, eram todas as filhas do Novo Homem. Eu sabia. Brancas, ruivas, negras, amarelas. Eram lindíssimas! Depois eu me lembro de escolher uma menina e fazer sexo anal com ela. Era minha filha e minha irmã. O derradeiro estratagema de purificação. Do mito, sorvem-no, ENQUANTO BUÑUEL APODRECE. Porque eu vi coisas terríveis, outras extraordinárias, todas incríveis, e voltei! Eu vi meninas corrompidas. Eu vi assassinos cruéis. Eu vi corpos mutilados, esquartejados. Eu vi o sangue no chão espalhado, mas também vi obras de arte belíssimas; vi culturas muito antigas; vi construções magníficas; vi galáxias se colidindo; vi estrelas nascendo, outras morrendo; vi o princípio e cheguei até o limiar da Criação – eu vi todas essas coisas e voltei para casa. E toda uma nova natureza emergiu, inédita. Mas não terminei a jornada, ainda. DECANTAR ALMAS E CLONES / EM EXTRATO DE ALMÍSCAR / MESMO CHOVENDO, eu verso em Ágora. Pedras errantes e mitos, somos incomensuravelmente primitivos espectros de deuses, somos como os nossos ancestrais diante desses deuses implacáveis imemoriais e suas gargalhadas que ecoam das tumbas e tomam a terra devastada e suas ruínas, onde os tambores já não clamam às legiões de corpos empalados e as virgens sacrificadas revelam a face putrefata sob o véu; forquilha e semente e o corpo e o sangue de Cristo, foi apenas ontem à noite que a minha mente foi escaneada por uma luz fria que surgiu atrás de mim, e o meu crânio ficou todo dormente, e eu não senti dor, mas uma prazerosa sensação de relaxamento transformando-se em muitos ramos até que em um deles houve um ser senciente que pôde olhar os catadores de lixo no subúrbio da nossa metrópole se alimentando de resto de comida e ouvir uma voz desencantada que dizia o leite mesmo com validade vencida e azedo fervido dá para as crianças beberem, então bebam, crianças! porque não estamos satisfeitos nunca, nunca, nunca. O fluxo verte e eu escrevo: como possesso. Eu escrevo, como o tempo perdido. Escrevo a comédia. Escrevo no útero da mulher e no último suspiro do homem – no bafo da poesia. Escrevo aquém da vida. Escrevo além da morte. Escrevo a face grotesca da consciência. Escrevo como quem não está mais aqui, ou como aquele que nunca esteve presente. Escrevo como se me ocorresse certeza. Escrevo para desafiar infinito. Escrevo como destino. Escrevo. Escrevo. Escrevo a essência do acidente. Escrevo a violência da verdade. Escrevo o real imaginário. Escrevo póstumo. Escrevo terminal da própria existência. Escrevo o estado impuro da razão. Escrevo irracional. Escrevo como possesso. A imensa e monstruosa consternação. Escrevo como angústia. Escrevo acídia. Escrevo sempre o rasgo. Raso profundo largo efêmero rasgo. Escrevo como inumano. MAS QUE VENHA O TEMPO FESTIVO DE UMA NOVA LÍNGUA. Sim, a obra cumprida, desvanecer-se. Sim, os dias e as noites no subsolo chegam ao fim. Estou na superfície em Ágora. E DA INDULGÊNCIA FINAL, sensação de déjà vu: sempre. ETERNO RETORNO. _____________________

Fragmento ÍNDEX [arcaico] nº 10914721.5 AMD. Ref. Literatura Neolatina. Aprox. 1999/2019 [calendário gregoriano] Nova Roma, Latinoamérica, Terra. Sala de Registro. Índex/Ano 31.415 [galáctico padrão]

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Realidades alternativas Uma resenha de Sinvaldo Júnior

O

espaço é curto. O livro é longo (415 páginas); os contos e autores são muitos (dezoito autores com um conto cada). Futuro presente – dezoito ficções sobre o futuro é uma coletânea de contos (alguns curtos, outros nem tanto) do que pode ser considerado ficção científica, organizada pelo famigerado Nelson de Oliveira, coordenador de outras tantas antologias e projetos célebres e desbravadores, como o Projeto Portal, também de fc e fantasia. A capa da coletânea é de muito bom gosto; as orelhas idem; preocupação e esmero em relação ao que é externo em um livro, como em qualquer livro de Nelson de Oliveira e na maioria dos livros publicados no Brasil. Atente-se, futuro autor, para este “detalhe”. A escolha dos autores privilegiou a mistura de gerações e estilos – desde autores consagrados, como Márcio de Souza (cuja obra Mad Maria se tornou mini-série da Globo), a autores desconhecidos, com uma certa predominância de autores que nasceram no estado de São Paulo (dez dos dezoito). Problemas de logística, provavelmente, porque em outros estados não representados no livro devem, sim, existir ficções sobre o futuro. Após a leitura de livros como esse, surgem as questões – Por que nós, brasileiros, lemos tantas obras estrangeiras a ponto de sempre proporcionar a elas o topo da lista dos mais vendidos da não-muito-confiável revista Veja (e de revistas congêneres)? Por que assistimos a tantos filmes vindos dos USA, inclusive àqueles futuristas com a irritante mania de tentar convencer o resto do mundo de que salvarão o mundo do apocalipse, como bons heróis que são? Os antropólogos e historiadores responderiam: dentre alguns traços característicos da cultura brasileira, um dos mais perceptíveis é a valorização do estrangeiro em detrimento do que é nacional. Os sociólogos mais radicais responderiam: o capitalismo é selvagem e privilegia os que possuem mais poder, mais condições, mais ferramentas em mãos (dentre as quais as da publicidade e propaganda), realidade que vale também para o mercado cinematográfico e editorial. Outros responderiam: por pura diversão ou por necessidade de entretenimento e fruição. Cada qual com sua opinião, todos têm razão. Inicio esta resenha com um trecho da orelha do livro escrita por Fábio Fernandes: “Temos contos passados em outros planetas, raças estrangeiras em futuros distantes, alienígenas entre nós, experiências genéticas loucas, telepatia, viajantes descendo em maelströms intergalácticos. Enfim, tudo tem”. Sim, leitor, conteúdo diverso (dentro da temática proposta) com linguagens diversas – desde as mais tradicionais, que cumprem a sua única função de contar uma história, até as mais (mas nem tanto assim) experimentais. Experimentalismos lingüísticos em ficção científica funcionam, funcionariam? Existe (surgirá?) o Guimarães Rosa da fc? Não sintetizarei os dezoito contos. Nem comentarei sobre todos. Escolhi cinco aleatoriamente (será?) e sobre eles farei meus comentários sintéticos e despretensiosos. Ausländer, de Mustafá Ali Kanso, é o famoso conto sessão da tarde, e nesse termo não há nada de pejorativo, leitor pedante. A história começa com uma reunião entre quatro colegas universitários (pelos nomes, brasileiros, embora fique aquela impressão de que o ambiente é muito mais USA do que tupiniquim) – Felipe, Melina, Túlio e Mendes, em que sobressai, pela feiúra, e por ser o protagonista e dono da casa, Felipe: “A palavra horrível cabia em sua descrição como um simples eufemismo” (p. 99). Jovem cheio de espinhas, feio, narigudo, cafona, sem amigos mas com muitos desafetos, motivo de chacota, apesar-de-tudo-nem-por-isso-inteligente (até os nerds o detestavam), Felipe era o terrorista USA em potencial (se é que o leitor me entende...). Para piorar a situação, ele se interessa por Melina, uma mulher e tanto. O autor é afeito às

descrições tanto dos personagens (física e interiormente) quanto do espaço, e essa característica de forma alguma compromete a fluidez da história, que gira em torno dum acontecimento estranho: para um trabalho da faculdade, a turma decidiu instalar várias minicâmeras no campus a fim de... Após um acontecimento estranhíssimo (um jovem estudante, diante da câmera escondida, se transforma numa criatura esquisita), o objetivo deles já não importa. A partir disso, advêm a paranóia, os mistérios, o medo, as acusações, as desconfianças (será o outro também uma criatura dessa, um ausländer?). Muitas coisas ainda acontecem (são 35 páginas de história), com direito a concretização de amor impossível e final feliz. Bom! Espécies ameaçadas, de Márcio de Souza, é um conto com linguagem simples, direta, que enfatiza o enredo. Inicia-se bem, com um assassinato de um casal de adolescentes em uma festa de são João numa cidade do norte do Brasil. Ler uma história ambientada num espaço pouco explorado pela literatura brasileira (oriunda sobretudo do sudeste, do nordeste e do sul) por si só fisgará o leitor menos familiarizado com os espaços da trama. Após esse primeiro assassinato, outros, com as mesmas características, acontecem. Aí se dá uma busca pela decifração dos crimes, em que o biólogo (narrador) se mete, contrariado. É certo que a decifração dos crimes vai ao encontro do que o biólogo sempre disse sobre o possível criminoso. Apesar da obviedade, é um bom conto até sua metade – até a entrada do personagem Grass. A partir daí, uma série de clichês: milionário = vilão; nazista = vilão; alemão = anti-semita; alemão com ideais

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Revista O BULE - Maio/Junho

Número Um, Ano 1 - 2010

de purificação/eliminação das raças; nazista com intimidade com o governo iraniano, que se identificam por serem ambos anti-semitas e negarem o holocausto etc. etc. etc – tudo o que os filmes de lá e a Globo e a Veja (e a mídia quase em geral) já cansaram de repisar. O problema nesse conto não é, de forma alguma, o seu conteúdo, mas sim a forma como esse conteúdo é tratado – daí os lugares-comuns, que poderiam ser evitados. Vladja, de Ivan Hegenberg, é uma história de amor, de sofrimento, de saudade e de morte, mas com um detalhe – passada no século XXIII e, em conseqüência, contextualizada num futuro que é diferente do presente, ou seja, com direito a maquininhas e robôs como pano de fundo. O resto (que é tudo no conto) é como todas as histórias de amor de qualquer tempo, e isso não quer dizer, leitor, que ele seja ruim. Não. Vladja, a protagonista e narradora, por meio de uma declaração de amor a Goran, relata o início, o desenvolvimento e o desfecho de sua relação. É verossímil matar por amor? Eis um trecho: “Eles são capazes de absolver crimes de vingança, quem sabe até serem compreensivos com um criminoso político (...) Mas a mim consideraram um monstro. Porque meu assassinato fere tudo aquilo que eles entendem por amor” (p. 349). Essa e outras questões são tratadas no conto. Descida no Maelström, de Roberto de Sousa Causo, trata de uma belicosa expansão territorial dos humanos e descreve, muitíssimo bem, com excesso de pormenores, uma guerra no espaço. Este conto, com sua linguagem ora inovadora e difícil (com direito a muitos neologismos), proporciona ao leitor entrar em outra realidade, tão bem criada e tão detalhada, que os euro-russos, os robôs-tadai, os quadrúpedes esbeltos do Povo de Riv, os quase humanóides folsoranos, os encarapaçados mukbukmabaksai, e Peregrino, o protagonista, passam a ser personagens criadas pelo leitor, que acompanha vidrado as cenas de ação e aventura da história. Phlegethon – planeta onde tudo acontece – passa a ser o seu quarto, caso o leitor aí esteja. De leitura não muito fácil, é certo, o conto propicia doses de entretenimento dos bons ao leitor, que não se arrependerá se persistir. Um dos requisitos básicos de uma boa obra literária é conseguir, astutamente, que o leitor entre em um novo plano, de forma que ele esqueça, naquele momento da leitura, de todos os percalços da vida e se preocupe com os percalços da ficção lida. Vários dos contos do Futuro presente conseguem essa proeza, entre eles Nostalgia, de Luiz Bras. Em Nostalgia, Vitória encontra o seu próprio corpo boiando sem vida na banheira de sua casa. Alucinação? Sonho? Realidade? Após este ponto de partida, perseguições, muita ação, a criação de uma hiper-realidade a fim de libertar o homem – libertaria? Enredo ágil, linguagem direta – o que não significa que seja um conto fácil ou facilitador. Não. Aqui, complexo é exatamente a trama, e não a linguagem. Em contrapartida à aparente complexidade do enredo, o futuro, no conto, é bem desenhado (autobolhas, monitoração – sim, essa palavra existe – de pensamentos, videofonema, carga paralisante, veículos flutuadores, neuroprótese etc.), o que facilita a entrega do leitor. Entregue-se, leitor. Não é necessário se basear nas listas dos mais vendidos de revistas não confiáveis nem de assistir a filmes saturados de clichês para buscar entretenimento, diversão e fruição. Na literatura brasileira há muitos livros que conseguem, e bem, transportar o leitor para uma nova realidade e ser um meio interessante de investigação e imaginação. Em Futuro presente há várias realidades, umas mais outras menos convincentes, umas mais outras menos cativantes. Em algumas delas é impossível sair intacto, tamanha é a capacidade dela de maravilhar o leitor. Experimente, leitor, trocar aquele livro estrangeiro sobre pipas, ou aquela superprodução estadunidense, ou aquele filme repetidíssimo da Sessão da Tarde, ou aquele vídeo-game com gráficos impressionantes pela coletânea Futuro presente. Não sairá perdendo; ao contrário, só tem a ganhar. E ganhará muito.

Sinvaldo Júnior nasceu em Uberlândia-MG. Possui graduação

em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Pósgraduando em Letras – Mestrado em Teoria Literária. Mestrando em Administração, com ênfase em organizações envolvidas em Artes & Cultura. Publicou artigos acadêmicos e jornalísticos em diversos sites, revistas e jornais, dentre os quais: “A vingança do ícone iconoclasta”, com Nelson de Oliveira (Jornal Rascunho, nov2008), “Os ensinamentos de Poe” (Jornal Rascunho, abril-2009) e “Para qualquer hora” (Jornal Rascunho, ago-2009). É pesquisador das obras de Campos de Carvalho e Drummond.

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Livros podem ser enviados para o autor Sinvaldo Júnior a fim de serem resenhados.

Tratar pelo email jjjuninhosys@yahoo.com.br

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