jornal OcicerO

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de volta Às esquinas! Edição dois NOVEMBRO 2013 R$ 2


2 - OcicerO - EDIÇÃO dois - NOVEMBRO 2013 bruno graziano

editorial

Que siga bebendo Uns dizem que foi no Egito, outros na China, mas para não entrar na objetividade das datas que no final das contas pouco importam com exatidão, tratemos do surgimento da bebida alcoólica como algo que já deve ter uns dez mil anos de distância dessa nossa vida que chamamos de contemporânea, pouco mais, muito menos, mas por aí, algo o suficiente para gente saber que remete praticamente ao antes do nada no que diz respeito ao cotidiano dos tempos atuais. Fato é que a relação do homem com a bebida está presente em qualquer que seja o acontecimento histórico que se vá pesquisar, de estratégias para guerra ou grandes navegações à forma de se conservar alimentos, como o tratamento que recebe um leite pasteurizado, por exemplo. E foi há uns 200 e

poucos anos, na era da industrialização, que a bebida virou de vez item de consumo com suas marcas e tipos e rótulos e tamanhos e detalhes e produção em larga escala capaz de fazer com que seja tão fácil encontrar uma lata de cerveja quanto água potável. Acontece que por algum erro de avaliação, que um dia espero que alguma geração vá reparar, vivemos nos tempos da vigilância, das cartilhas de bom comportamento, dos manuais de cidadãos de bem. Vivemos em cidades onde acima de tudo os prefeitos torcem para que você chegue do trabalho às sete, jante, converse com sua família não mais que o tempo da novela e durma às dez. De preferência – e eu posso imaginar uma Câmara dos Vereadores que aprovaria tal lei, já pensou? - que todos

sejam obrigados a rezar e que vão se deitar sóbrios. Na paz e dentro da moral cristã. Cerveja no estádio de futebol? Nem pensar, e não por acaso são cada vez mais insossos, frios. No metrô paulistano já vi um cara ter confiscada uma garrafa de vinho, e olha que eu conheço uma porção de gente que prefere o ônibus só para ir virando uma latinha no sobe e desce da Rebouças. Uma cachaça para abrir o apetite antes de um almoço com o chefe?, mas nunca, logo agora, que acabou de conseguir um emprego, colocar tudo a perder? E aquelas cidades onde não se compra mais uma birita depois das dez, só faltava essa, agora o Estado decide que eu não posso ir atrás de um uísque às onze e meia! É neste contexto que surge esta segunda edição do jornal OcicerO, que depois de estrear tratando do centro de São Paulo, agora fala da relação que todos têm com a bebida. Resistir ao conservadorismo

dos sóbrios e gritar pela liberdade dos bebedores, em excesso ou os cautelosos, oprimidos por uma sociedade cagadora de regra. Nas próximas páginas vamos falar que o ex-presidente Lula sempre foi bom de copo e isso não tem nada a ver com todas as críticas que qualquer um teria a fazer ao governo do cidadão; que Hunter Thompson criou uma das mais celebradas formas de jornalismo e precisou de muito uísque para tal; que gigantes da arte, seja um Van Gogh ou uma Bessie Smith, eram tortos bêbados; que num tempo em que não éramos tão chatos (ó, de novo, onde erramos?) os jogadores de futebol eram craques boêmios e ninguém os alçava a uma condição de máquinas físicas, mas sim humanos que precisam de um cotovelo no balcão; que o trago marca alguns que o recusam, outros que o amam, que é emprego, é motivo de revolta, que sobe de preço sem freio nem cautela, que dá cara a uma esquina de bairro,

que existe, e resiste, dos tímidos engravatados aos cachaceiros do escândalo, na hipocrisia dos socialmente corretos e no ato, na sublime relação, que está aí desde que a gente é gente. Termino vinculando, sim, a decadência do jornalismo com a higienização de nossas redações; a falta de criatividade dos repórteres ao fato de ficarem mais na internet que no bar; o distanciamento das notícias pela simples razão de ver jornalistas cada vez mais parte de um mundo paralelo, só deles, que antes tinha como parte, sim, garçons e botecos; a padronização dos formatos de escrita como símbolo deste comportamento estereotipado, sóbrio, sem escorregões nem um conhaque na cabeça. Não que esta edição de OcicerO tenha a pretensão de ser uma alternativa ao modelo vigente, mas é bom saber o que (não) se quer ser quando crescer. E tem um monte de gente tentando por aí também. Que te valha um brinde, ao menos.

Engov, antes e depois ou jamais? Dentre as diversas sugestões para driblar a veisalgia, soma dos efeitos fisiológicos desagradáveis que sucede uma grande ingestão de bebida alcoólica e também conhecida como ressaca, a mais popular, sem dúvida alguma, é a receitinha de um Engov antes e um Engov depois. O envelope contendo seis comprimidos do analgésico é vendido no Brasil a um valor médio equivalente a um pacote de Bis. Mas, afinal, seria uma unanimidade esta associação medicamentosa que combina a ação analgésica do ácido acetilsalicílico e a leve ação estimulante da cafeína com a atividade anti-histamínica e antiemética do maleato de mepiramina, contando ainda com a ação antiácida do hidróxido de alumínio?

antes e depois Quando saio com minha rapaziada, não tem outra, é um Engov ali no esquenta, no posto, antes de entrar pra balada, e um Engov depois, antes de mandar três daqueles Cheddar McMelt espertos ali na Henrique Schaumann, junto com a Coca-Cola de meio litro. Semana passada mesmo eu e o Pedrinho entornamos meia garrafa de vodca cada um. Foi sinistro, coisa de marginal alado mesmo. Viramos a garrafa e eu não sabia onde estava. Bagulho louco, rolê pesado. Mas a gente é fodido mesmo, bota pra fuder com a mulherada e tem que ficar bêbado que é pra aguentar o cu doce das minas. Ainda mais que eu guio a caranga indo pra casa, aí é foda. Tem que dar

aquela aliviada pra não fazer cagada, atropelar ciclista e essas paradas aí que rolam. O Engovizinho é salvador, malandro. No dia seguinte tu acorda meio grogue, mas já manda aquela breja que salva o fígado. Minha ex-mina vinha com esse papinho de beber água durante a night, ai eu já mandava ela ficar pianinha. Que água o quê, tio? Nóis é cachorro louco, bebe até cair. E tem aquela também, se você arrasta aquela chocha pra casa, vai correr o risco de gorfar? Nem fu. Tem que garantir a madruga e pra isso só o comprimidinho de Deus. Por mim, velho, o inventor do Engov ganharia o Nobel da ressaca. Reinaldinho Fonseca, viciado em vodca com energético no bairro de Pinheiros

jamais Preciso dizer: quem não aprecia uma bela de uma ressaca fundamental não sabe bulhufas da vida. Não quero nem entrar no mérito do efeito desse troço, se vale a pena, se funciona, se o banana tem que trabalhar no dia seguinte. Isso é azar ou sorte de cada um. O que me intriga é o cidadão que não sabe e nem quer curtir um dia seguinte daqueles de cão, onde o sujeito reflete o além da vida e da morte. Lembro da minha mocidade. Era uma rotina boêmia, sem interrupção e muito menos remorso. E conto um causo emblemático. Oito da noite, a conheci. Às nove, já estávamos bêbados de cerveja. Às dez, ela era a mulher da minha vida. Às onze, nos beijamos. Meia-noite, pedimos uma dose de conhaque. Uma hora, ela

sentou no meu colo. Duas, eu cantava poemas e ela dizia que me amava. Três, éramos um casal com planos e sonhos. Quatro, sozinhos no bar, pedimos a última dose. Cinco, brigamos com o garçom e saímos correndo para trepar. Seis, éramos um só em minha cama, unidos pelo gozo mais primitivo e sincero do mundo. Sete, ela dormiu. Oito, foi minha vez. Deu meio-dia. Acordei. Ela não estava mais lá. Levantei e não conseguia parar em pé. Foi um dia pra esquecer, vivendo aquela melancolia estrondosa. Mas lembrei que o cabra tem duas opções na vida: viver como querem e morrer como escolhem, ou viver como quer e morrer do jeito que dá. Optei pela segunda. Neymar, o Charmoso, barman consagrado da rua Augusta


OcicerO - EDIÇÃO DOIs - NOVEMBRO 2013 - 3

MEDO E DELÍRIO EM COPACABANA Hunter Thompson e o jornalismo bêbado no Rio dos anos 60. por paulo silva jr

heloísa fleming


4 - OcicerO - EDIÇÃO dois - NOVEMBRO 2013 arquivo pessoal robert bone

Era uma manhã tranquila e de calor como tantas outras em Copacabana ali pelo início dos anos 60 quando quem tomava um café ou então já pedia por uma birita logo cedo viu um jovem de 25 anos, caneta no bolso da camisa e bloco de papel no da calça, saltar o balcão do boteco, pegar uma panela numa mão, o braço do cozinheiro com a outra, e ensiná-lo, falando um mau português e diante de uma plateia atônita, a preparar ovos mexidos. O gringo em questão era um jornalista nascido em Louisville, nos Estados Unidos, que chegara ao Brasil depois de uma temporada descendo a América. Hunter Stockton Thompson conseguiu um emprego no Brazil Herald, uma publicação em inglês editada no Rio de Janeiro, e se manteve como correspondente do National Observer, de Washington. Àquela altura, ele já havia começado a escrever o clássico Rum: Diário de Um Jornalista Bêbado, que só foi virar livro em 1998 e narra a vida de um repórter que chega em San Juan, Porto Rico, para se livrar da vida de Nova Iorque. Mas quando a famosa obra ainda nem existia e Hunter nem tinha ideia de que ela seria difundida em todo o mundo e até retratada no cinema hollywoodiano por Johnny Depp, o repórter que ficaria conhecido como pai do gonzo jornalismo era só mais um buscando emprego no verão carioca. Bill Williamson era editor do Brazil Herald e recebeu uma carta do jovem jornalista:“estou no limite da insanidade, enfraquecido pela disenteria, atacado por moscas e vermes, sem correio, dinheiro ou sexo. Perseguido 24 horas por dia por ladrões, mendigos, cafetões, fascistas, agiotas, loucos e bestas humanas de toda a espécie”, contou a Álvaro Pereira Jr. em matéria do Fantástico após a morte de Hunter, que se suicidou em 2005. Conversei com Bill por e-mail. Ele reproduziu esse trecho da carta enviada pelo jovem Hunter e ainda anexou a cópia de uma matéria publicada no próprio BH em 23 de outubro de 1962, aquela que para ele é um dos primeiros exemplos do gonzo de Hunter, na capacidade narrativa de abandonar a tradição de relato objetivo e se misturar aos acontecimentos. “Senador Telmadge fala de auto-ajuda e mostra preocupação com América Latina”, diz o título do texto assinado por Hunter S. Thompson, que já começa direto: “O senador dos Estados Unidos Herman Talmadge falou ontem à Câmara Americana de Comércio no Rio de Janeiro que ‘nós sabemos de ler a Bíblia e as escrituras que nem os Estados

O trio em primeiro plano, da esquerda para a direita: Bob Bone, Hunter Thompson e Sandy, numa rara imagem do pai do gonzo em Copacabana

Unidos nem Deus podem ajudar as pessoas que não podem ajudar a elas próprias’”. Bill conta que o teor da matéria não agradou o mundo dos negócios local, mas que jamais demitiria Hunter por isso – ainda que não tenha mais colocado créditos nas reportagens do boêmio. Hunter viveu no Rio de Janeiro entre setembro de 1962 e abril de 1963. Morou na avenida Nossa Senhora de Copacabana e era visto no bar Vilarinos, onde, diz a história, Tom Jobim foi apresentado ao poeta Vinicius de Moraes e também local em que o termo bossa nova teria sido ouvido pela primeira vez. “Era um centro de jornalistas. Os escritórios do Brazil Herald ficavam na rua México, número 3, os jornalistas brasileiros da seção de imprensa da Embaixada Americana estavam na avenida Presidente Wilson. A Agência Nacional ficava do outro lado”. Bill indica outro jornalista da turma: Robert Bone. Também por e-mail, ele conta ao OcicerO mais detalhes sobre a vida de Hunter no Rio – é também quem revela a frustração do amigo com a qualidade dos ovos mexidos

preparados na cidade, citada na abertura deste texto. “Ele não ia muito à praia. A única vez que lembro dele em Copacabana é quando fomos eu, ele e sua companheira, Sandy, para tirar algumas fotos”, lembra, já fazendo legenda para o belíssimo retrato que estampa esta página, cedida por ele gentil e especialmente e que, me arrisco a dizer, publicada agora de forma inédita no Brasil – Bob Bone à esquerda, Hunter Thompson no centro e Sandra Conklin, a Sandy, então namorada e futura esposa de HT, à direita, em algum momento entre o final de 1962 e o começo de 63. Bob ainda destaca duas boas histórias ao lado de Hunter naquele verão: “Eu não lembro se ele tinha um bar favorito, mas me recordo de uma ou duas vezes a gente ter ido num lugar chamado Kilt Club, que ficava ali bem perto do começo da praia de Copacabana. Saímos com algumas working girls lá. Isso foi antes da Sandy [Sandra Conklin, namorada de Hunter] chegar, claro”. “E eu lembro que Hunter aprendeu somente um mínimo

de português. Ele me disse uma vez que um escritor sério não deve aprender muito de uma outra língua. Eu também lembro que ele costumava falar em espanhol no Brasil, e às vezes era compreendido. Eu tinha de traduzir algumas coisas pra ele”. Um continente Bob sugere uma conversa com Brian Kevin, que também me atende via internet. Ele rodou a América do Sul para repetir os caminhos de Hunter Thompson e publicar um livro chamado The Footloose American – Following the Hunter S. Thompson Trail Across South America, que sai no primeiro semestre de 2014 pela Broadway Books. Nas andanças e pesquisas que fez a partir das publicações de Hunter, Brian esteve na Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Paraguai e Brasil, onde relatou passagens por Rio de Janeiro e Pantanal. E enquanto o livro não sai, ele publica alguns relatos interessantes numa página da internet – cowbird.com/ brian-kevin/. Este trecho é de um texto feito depois de visitar o Brasil.

“Thompson certa vez escreveu: ‘depois de um ano circulando por aqui, a principal coisa que eu aprendi é que agora eu entendo os Estados Unidos e o porquê isso nunca será o que poderia ser ou ao menos tenta ser’. Eu lembrei disso enquanto dava uma última olhada para o horizonte de São Paulo. Então puxei a cortina de plástico e chamei a aeromoça por mais cerveja”. Depois, Brian segue levantando temas pelos quais Hunter passou 50 anos antes, como por exemplo as matérias em que o jornalista tratou de inflação, dos desafios da economia brasileira depois da construção de Brasilia e de outros assuntos relacionados à política. “Um dos piores espirais inflacionários do mundo”, escreveu o pai do gonzo num artigo em 1963. “Bob Bone me contou que Thompson e Sandy eram pessoas de sentar por aí e bater papo. Gastavam um bom tempo vagando pela praia de Copacabana, acredito que fumando, virando Brahmas Chopp e falando de notícias, livros, cultura, política. Ele entrou de forma pesada na política do Brasil co-


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brindo para o National Observer e para o Brazil Herald, então eu imagino que isso era um assunto frequente das conversas dele. Agora, você mencionou o futebol, e eu não lembro de ter visto nada sobre futebol nos escritos de Hunter. Mas a praia era gigante pra ele. A mística da praia era um dos grandes motivos que o fazia amar o Rio. E ele abraçou ainda mais isso tudo depois de detestar a maior parte das coisas que encontrou pelos Andes”, relata ao OcicerO. Cita ainda a rua Carvalho de Mendonça como um dos lugares mais frequentados por Hunter, reforça a Kilt Club como um dos pontos favoritos do jornalista e recorda o Domino, um bar de luxo que foi palco de um tiroteio em fevereiro de 1963, quando paraquedistas do Exército atacaram a boate com metralhadoras para se vingar da morte de um sargento semanas antes. No texto, intitulado Brazilshooting e publicado no National Observer, Hunter usa de sua ironia peculiar: “Um americano ficou imaginando qual seria a reação se soldados do Fort Knox, no Kentucky, varassem de tiros um bar em Louisville onde um soldado tivesse sido enganado, espancado ou mesmo

acho que esse episódio ajudou para que ele tomasse a decisão meses depois de partir do Brasil, desde que aquilo representou a realidade caótica e violenta dos anos 60 na América Latina, se intrometendo no seu pequeno pedaço de paraíso. Mas isso é uma suposição minha, enfim”, conta Brian. O jornalista lembra de outro ponto frequentado por Hunter na rua Mendonça, o Orgasmo Bar, próximo ao velho Domino. Sobre a redação do Brazil Herald, diz ter ouvido de outro ex-repórter da casa que o escritório era daqueles do tipo “cerveja na mesa”, e que Hunter escreveu certa vez que por causa do trânsito era impossível voltar para Copabanaca depois do trabalho, então não havia nada a fazer a não ser sentar e beber até o movimento ficar mais tranquilo. “Aquela turma de jornalistas frequentava botecos por ali, e eu sei de um em especial chamado Mr. Money, que agora virou parte de um shopping center. Eram grandes bebedores de cerveja, o Bone me contou. Mas tenho certeza que também tomavam caipirinha e sei que Hunter escreveu que sempre que podia, tomava uísque”. Quanto às drogas, elas ainda não tinham entrado na

morto algumas semanas antes. ‘Não consigo nem conceber isso’, afirmou, ‘mas se alguma vez acontecesse aposto que seriam todos enforcados’. Outro americano disse ‘caramba, quando eu era tenente [no Exército americano] provavelmente poderia ter requisitado dois caminhões de garagem se quisesse me vingar de alguma boate. Mas tenho certeza que nunca conseguiria dois pelotões de homens armados para me seguir’. Aí está a raiz do problema, e uma das maiores diferenças entre os Estados Unidos e não apenas o Brasil, mas todos os países latino-americanos. Onde a autoridade civil é fraca e corrupta, o Exército acaba se tornando rei. Até mesmo as palavras ‘justiça’ e ‘autoridade’ assumem significados diferentes. Depois do ataque do Domino, o Jornal do Brasil publicou uma matéria em sequência cuja manchete anunciava: ‘Exército não vê crime em sua ação’. Ou, como observou George Orwell, ‘em terra de cego, quem tem um olho é rei’”. A matéria, traduzida para Tiroteio no Brasil, está na coletânea A Grande Caçada dos Tubarões – Histórias Estranhas de Um Tempo Estranho, que reúne diversos textos do repórter. “Eu

vida de Hunter. Para Brian, ele deve ter se envolvido com alguma coisa por ali, mas na verdade ela ainda olhava com certo receio para usuários de ilícitos. Sobre as matérias, as pesquisas de Brian encontraram várias reportagens simples, relatos do noticiário político local, mas era possível ver lampejos do gonzo jornalismo que ele iria consagrar mais a frente, como por exemplo o fato de suavizar o ponto de vista dos personagens, usar descrições mais literárias e se alongar nas cenas, com diálogos longos. “Uma coisa que me surpreendeu é que o perfil anti-imperialista dele aparece mais do que eu esperava. Thompson era um homem de esquerda, mas ao mesmo tempo uma pessoa bem pragmática e realista com política, além de admirador ferrenho de Kennedy. Em momentos de frustração, ele escrevia com certo desdém dos ‘mendigos sujos’, mas também tinha uma sensibilidade à frente de seu tempo para a marginalização das comunidades indígenas ou então para criticar a mentalidade conquistadora de multinacionais e ONGs, bem como das estruturas oligárquicas de poder.” Para fechar, mais um texto do próprio Hunter, o trecho final

de Cartas Tagarelas Durante uma Viagem de Aruba ao Rio, publicado no National Observer em 31 de dezembro de 1962 e na tradução de A Grande Caçada...: “Agora já faz mais de uma semana que estou tentando enviar uma carta, mas estive atravessando a selva e o Mato Grosso, viajando por campos de petróleo e gastando meu dinheiro com antibióticos. Mas concluí que cada semana que passei nestes países é uma semana que não vou precisar passar na próxima vez que voltar. Um investimento, pode-se dizer, e agora que sobrevivi a esse tanto da história acho que eu ia querer me esganar se tivesse visto tudo isso superficialmente. Definitivamente pretendo me estabelecer por aqui – por um tempo, pelo menos. Já era hora de viver como um ser humano, pra variar”. Ah, e se resta alguma dúvida sobre a intensidade das viagens de Hunter ainda nos tempos sudamericanos de sua vida de repórter louco, Brian sentencia: “tem uma passagem sobre paranoia e a atmosfera excêntrica de La Paz que soa como um aquecimento para Medo e Delírio em Las Vegas”. Cenário apropriado, imagino.

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6 - OcicerO - EDIÇÃO dois - NOVEMBRO 2013 fotos: arquivo restaurante gijo’s

Gijo e Lula, numa das tantas visitas do ex-presidente ao tradicional restaurante do ABC

Nas mesas de São Bernardo, uma vida de goró até chegar à capital federal, Brasília

A história de Lula, segundo a birita

Como embalos de sindicato à noite regados a 51 transformaram o metalúrgico em um presidente da República que nunca escondeu o gosto pelo álcool. por hugo moura “O povo quer saber! O senhor gosta de pinga de cambuci?”, pergunta, em tom divertido, um excêntrico Sérgio Mallandro, voz esganiçada, chapéu e óculos de grau, ao candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva. O auditório do Show de Calouros, apresentado por Silvio Santos, se funde em um só riso enquanto o deputado do Partido dos Trabalhadores arqueia as sobrancelhas, ainda negras de juventude, e desvia o olhar por uma fração de segundo para o chão. Mas rapidamente retorna à câmera que grava a entrevista para as eleições de 1989 e não titubeia. “Olha, eu adoro pinga de cambuci”, declara, com voz rouca, em rede nacional. A iguaria era preparada pela sogra, Dona Regina Rocco Casa, mãe de Marisa Letícia, que botava um punhado da fruta em uma garrafa com aguardente e mantinha curtindo por pelo menos três meses. O resultado, contou Lula na ocasião, “é extraordinário”. O cambuci, além de ter dado nome ao bairro famoso de São Paulo pela abundância da árvore frutífera naquele lugar, era também encontrado na região da Serra do Mar, no ABC Paulista, berço político e familiar de Lula. “Se você quiser, tenho em casa dois garra-

fões e posso até te dar umas doses de pinga de cambuci”, arrematou Lula. “Dá pro Silvio! Dá pro Silvio, que ele precisa”, retrucou Sérgio Mallandro, arrancando gargalhadas do apresentador. Quando ainda não imaginava que um dia pudesse conhecer personalidades de TV e muito menos que seria entrevistado por elas, Luiz Inácio era um adolescente quebrado, de uma família desvalida e moradora da Vila Carioca, bairro da zona sul de São Paulo localizado na região do Ipiranga e considerado periférico na década de 60. Os Silva haviam fugido da seca e da pobreza que assolavam a cidade de Garanhuns, sertão de Pernambuco, e tinham se instalado no mesmo local em que, anos depois, moraria Jacinto Ribeiro dos Santos, mais conhecido como Lambari, um dos primeiros companheiros de adolescência de Lula na metrópole. O salário de torneiro mecânico na metalúrgica Independência – onde viria a perder o dedo mínimo da mão esquerda – não permitia grandes aventuras com o amigo. Mas em dias mais custosos, e quando algumas moedas resistiam no bolso furado, era com este par que o jovem Lula dividia de maços de cigarro a doses de cachaça. “Ele chega-

va a catar bituca jogada no chão para fumar. E costumava acender quando passava uma garota que considerasse interessante para fazer um charme”, conta a biógrafa de Lula, a jornalista e escritora Denise Paraná. A pinguinha se fazia presente quando o dinheiro era minguado, mas, vez ou outra, uma cervejinha no botequim também tinha sua hora. “E eles combinavam de beber bem devagarinho, para que as meninas os vissem com bebida na mão por mais tempo, ainda que a cerveja ficasse quente”, completa. Foi nesta época e através do mesmo Lambari que o jovem metalúrgico conheceu a mulher que se tornaria sua primeira esposa. Um bailinho em um sábado à noite na casa do amigo – em muitos dos quais usava um blazer emprestado – foi o palco em que Lula abriu os olhos para Lourdes, cuidadosamente trajada com sua roupa de domingo. Não que tenha sido fácil tomar atitude justamente com a irmã mais nova do colega. Acanhado, o adolescente teve de afrontar três doses de conhaque seguidas para se sentir confortável e convidá-la a dar uns passos. “Quer dançar?”, ele pediu. Lourdes morreria em 1971. Desde jovem, Lula nunca es-

condeu seu apreço pela vida boêmia. De torneiro mecânico a ex-presidente da República, não faltaram aventuras – a maioria apontada pela imprensa como desventuras – envolvendo a birita. Nas peripécias de adolescência, a bebida era comumente usada como atalho para uma autoconfiança que ele conquistaria tempos depois. Quando sindicalista, as cachaças apareciam no escritório dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo para socializar os companheiros. Quando político, seus flertes com a bebida eram filmados com alarme, sempre para repercutir o lado negativo da história. E mesmo após sua despedida da presidência, vira e mexe, alguém, como esta edição especial sobre álcool de OcicerO, brinda uma volta ao assunto. Amigos de sindicato – e de copo Em 1968, enquanto funcionário do Grupo Villares e aos 22 anos, Lula foi convidado por seu irmão, conhecido como Frei Chico, a visitar o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Ainda não era um homem de política. Nelson Campanholo, então empregado de outra empresa de metalurgia, a Karmann Ghia, co-

nheceu o ex-torneiro mecânico nesta época. Da convivência na associação, surgiu a amizade de dois jovens solteiros que, apesar das dificuldades que os trabalhos lhes impunham, não deixavam de lado uma noite de sexta-feira sequer. “Saíamos do sindicato pra ir ao Porteira dos Pampas [na época, uma churrascaria, mas que funciona hoje em São Bernardo como casa de shows, a maioria com bandas de forró], mas não era para jantar. No máximo, um pedacinho de costela. É que eles tinham umas pinguinhas boas. Tomávamos duas ou três cada um e íamos embora felizes”, recorda. Mas nenhum ponto é tão lembrado entre os ex-peões de fábrica que lutaram ao lado de Lula do que o Bar da Rosa. A 300 metros do Sindicato dos Metalúrgicos, o estabelecimento assistiu gerações de trabalhadores atravessarem os arredores para arregaçar as mangas no balcão. Desde a década de 70, o boteco é comandado por Rosa Kido, olhos puxados e amarrada por um avental. Já não gosta de comentar sobre a época de glória do bar porque diz que aquilo era política pura e ela se envolveu demais. Não há menção ao ex-presidente da República ou ao sindicato em can-


OcicerO - EDIÇÃO dois - novembrO 2013 - 7 hugo moura

to algum do lugar, mas um frequentador assíduo do bar, desde os áureos tempos até hoje, conta que já viu Lula perambular por lá ao menos uma porção de vezes na companhia de outros sindicalistas. Campanholo, nostálgico, conta que quando fechava a lojinha da associação, o papo sobre as injustiças trabalhistas acabava em alguma mesa dali. “A coisa que tenho mais saudade é peão de fábrica. Além de um pessoal maravilhoso, brigava e apanhava com você. E dizer que não tomávamos uma? Trocávamos ideia sobre emprego e salário no sindicato e depois ainda saía com o Baiano [a maioria dos ex-metalúrgicos se refere a Lula assim] pro Bar da Rosa. Era sempre uma 51 ou uma cervejinha”. A impressão é de que Campanholo recapitula as noites como um universitário se lembra da faculdade 30 anos depois de formado. Antenor Biolcatti, outro amigo sindicalista e que frequentava o mesmo bar junto de Lula, revela que, “como qualquer outro trabalhador”, eles bebiam mesmo era o clássico rabo de galo – mistura de cachaça com vermute, que traz alterações na combinação de acordo com a região do Brasil em que se pede a birita. Geralmente servido em copo pequeno, o coquetel custa barato e, justamente por isso, é bastante popular nos botecos mais modestos. “Era a bebida da época. Ficava até tarde nisso e depois tomava bronca da mulher quando chegava em casa”, relata, aos risos. Das caninhas no balcão e das conversas acaloradas sobre futebol e principalmente política, partiam para o baralho na mesa. “Mas o Lula não era muito bom de truco. Bom era eu, que roubava e falava pelos cotovelos”. Este expansivo jogador de cartas foi, aliás, uma das testemunhas oculares, no próprio sindicato, do encontro entre Lula e uma jovem loira, olhos verdes, de nome Marisa. Ela precisava de um carimbo em um documento para receber a pensão do falecido marido. Os dois viúvos, Lula e ela, se casaram em 1974. E Campanholo, um dos padrinhos do matrimônio, foi quem cuidou do lar enquanto o casal festejava a lua de mel em Campos do Jordão. “Sempre almoçávamos juntos e tomávamos uns aperitivos em minha casa. Depois eu os levava porque Lula não dirigia”. Da sogra do então metalúrgico, a dona da singular pinga de cambuci, Biolcatti lembra de fins de semana de pescaria na Represa Billings, quando “a Noninha [como chamavam a mãe de Marisa, descendente de italiana] fisgava um peixe e tomava uma cachacinha para comemorar com Lula. Eles se davam bem”. Fora do horário de lazer, o escritório do sindicato nunca es-

Revoltado com a polêmica do caríssimo vinho que Lula tomara no Rio, Gijo ressalta o Marcon até hoje – o repórter ainda ganhou uma garrafa

tava vazio. Eram trabalhadores que buscavam por justiça nos empregos, mas que, perdidos, enxergavam em Lula a solução dos problemas que enfrentavam no cotidiano das fábricas. O já presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema declarou, em entrevista à biógrafa Denise Paraná, como foi cativando os que procuravam por ajuda na associação. Lula sentava, conversava e, às vezes, oferecia um gole de cachaça. Era algo como oferecer um café. Mas a caninha tinha uma vantagem: não precisava ser feita na hora, muito menos estar quente. “No meu próprio armário, tinha uma cachaça. Mas não tomávamos na frente de qualquer pessoa que chegasse. Sabíamos o que estávamos fazendo e, além de tudo, na luta sindical também tinha oposição”, aponta, cauteloso, Antenor Biolcatti. A velhinha de Birigui Em 1982, o parceiro Nelson Campanholo, ainda presente na vida de Lula, o acompanhava de Norte a Sul enquanto o ainda sindicalista se lançava candidato a governador de São Paulo pelo recém-fundado Partido dos Trabalhadores, o PT. Era a primeira eleição de Luiz Inácio. Prestes às votações nas urnas, um comício levou os amigos a Birigui, no interior do Estado. O relógio marcava sete horas da noite e uma multidão aguardava pelas declarações de Lula em um palanque montado na principal praça da cidade. Uma família, em especial, chamou a atenção do “assessor” do candidato logo após o comício. Eram cerca de 30 pessoas, que contaram sobre uma

senhora, de 96 anos, matrona da família, que necessitava conhecer Lula de qualquer modo. O grupo encurralou Campanholo e o então candidato a governador de tal modo que não houve maneira de resistir. E foram. A idosa residia em uma chácara e ostentava um casarão antigo considerado de elite para a época. Logo que entraram na casa, a dupla foi apresentada à bisavó, sentada à cabeceira de uma mesa – “uma ‘mesona’ de uns 20 metros”, jura Campanholo. Os familiares dela haviam preparado frango ao molho com polenta caipira, justamente um dos pratos favoritos de Lula. “E o ‘garrafãozão’ de pinga ao lado dela”, conta, minuciosamente. Passaram-se ao menos duas horas e a família da idosa não os liberava da chácara. E dá-lhe cachaça. “A ‘véinha’ ficou ‘bebinha’. Ele ficou meio ‘redondinho’, mas não muito. No fim da noite, a senhora o abraçou e falou: ‘agora eu posso morrer’”. Depois desse dia, Campanholo dirigiu para São Paulo pensativo. Enquanto Lula dormia no banco do passageiro, o amigo teve a certeza de que ganhariam aquela eleição – o que não aconteceu. Marcon X Romanée-Conti “Por favor, tem pimenta do reino?”, pergunta um cliente do Restaurante do Gijo, em São Bernardo. E faz cara de choque quando a garçonete balança a cabeça que “não, acabou”. Por volta do meio dia, funcionários de centros comerciais próximos ao bairro Assunção almoçam e tiram proveito de um momento de descanso da manhã de trabalho. E grande parte deles, entre

um prato e outro, desvia do vai e vem de bandejas para chegar a Juno Rodrigues Silva e dar-lhe um abraço. Quando pouco, levantam a mão, o cumprimentando de longe. Não é exagero. Gijo, como é conhecido o também ex-metalúrgico, inaugurou o restaurante que leva seu apelido no nome em 1984. Antigo bar “de décima categoria”, ele conta, comprou o ponto depois de vender a própria casa. Começou o negócio servindo pratos simples. Até que um cliente, caminhoneiro, sugeriu que o restaurante preparasse uma chuleta. Hoje, o bife de contrafilé bovino com osso de 850 gramas é servido em tábua de carne com acompanhamentos de arroz, feijão, fritas e salada – o carro-chefe da casa. Com o cuidado de não revelar o modo de preparo que transformou a chuleta em uma das comidas que o amigo Lula faz questão de degustar, Gijo confessa apenas que é preciso de uma engenhoca para assar a carne como se deve. As paredes do restaurante, preenchidas aos vários cantos com fotos emolduradas, contam com a presença de um Luiz Inácio mais barbudo que o convencional. As fotografias, todas em preto e branco, mostram o então sindicalista em momentos de distração, alguns dos quais com a mesa forrada de garrafas e circundada por companheiros. No início das atividades, Gijo lembra que o amigo o incentivou no negócio. “Ele vinha e eu preparava uma chuleta com tudo o que tinha direito. E dois ovos”, detalha. “Além do Marcon pra acompanhar”. Quase duas décadas depois,

tudo mudou. Em 2002, Lula já havia sido derrotado três vezes na tentativa de dirigir o país. Mas em outubro daquele ano, em sua quarta candidatura à Presidência da República, ele disputava com mais visibilidade. No dia 4 daquele mesmo mês, uma sexta-feira, um belo triunfo. O último debate antes do primeiro turno dos presidenciáveis, o do Jornal Nacional, da TV Globo, havia sido um sucesso – motivo pelo qual o petista e equipe decidiram comemorar. No restaurante italiano Osteria Dell’Angolo, bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro, conta-se que o candidato era acompanhado por cerca de 20 pessoas, entre as quais o publicitário Duda Mendonça, reconhecido por comandar campanhas eleitorais vitoriosas. Em uma área privada aos demais clientes, no andar de cima do estabelecimento, o homem da propaganda política presenteou Lula com um Romanée-Conti 1997, vinho francês de alta classificação – a garrafa da safra em questão custava, na época, R$ 6 mil; hoje, a mesma garrafa, naturalmente mais valiosa com o passar do tempo, é comercializada por cerca de R$ 20 mil. Produzido em vinhedo na região da Borgonha, na França, o Romanée-Conti é considerado o vinho mais caro do mundo. No fim da festa, durante a madrugada, o Romanée-Conti 1997, vazio, foi exposto em um vidro. No rótulo da garrafa, a inscrição “Lula lá 05/10”. O mimo de Duda Mendonça, porém, caiu como luva para os repórteres que, do lado de fora do restaurante, trataram logo de avisar os jornais. Colunistas de


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política trataram de dizer que o ex-metalúrgico, que falava sobre combate a pobreza em um estúdio da Globo, havia bebido, horas depois, ainda no Rio de Janeiro, um vinho com status de obra de arte. No dia seguinte, véspera do primeiro turno, Lula estava de volta para casa, em São Bernardo. Antes do horário de almoço, Gijo preparou uma chuleta e, cuidadosamente, ajeitou a refeição em uma sacola. Depois, tratou de pegar um vinho Marcon e saiu, disparado, para o prédio do político. Na portaria, uma avalanche de jornalistas, de plantão em frente ao condomínio de Lula, logo o abordou. “O que você está trazendo para Lula?”, perguntaram. “Uma chuleta do meu restaurante e o vinho que ele gosta de tomar, o Marcon”, defendeu, em resposta às críticas por conta do Romanée-Conti. O vinho Marcon é produzido na cidade de Andradas, em Minas Gerais. Fermentado de uva folha de figo, o tinto seco não é facilmente encontrado fora do Estado onde é fabricado. Gijo se diz o único vendedor da bebida no ABC Paulista porque é amigo dos vinicultores, que moram na mesma cidade que seus familiares mineiros. A garrafa custa em média R$ 10. “Quando entrei no apartamento de Lula, falei ‘ô, Baiano, toma essa porcaria, que é disso que você gosta’. E ele ‘kákákáká’”, diverte-se, con-

fidenciando que tomaram a garrafa toda enquanto devoravam a chuleta. “Lembrando agora, aquilo foi até emocionante”. Três semanas depois, Lula vencia o segundo turno e derrotava José Serra, candidato do Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB. Logo depois do resultado, Paulo Marcon, dono do vinho já famoso, enviou dez caixas da bebida para o prédio do presidente eleito, em São Bernardo. Como o porteiro não tinha ordem para receber caixas de um desconhecido do petista, Gijo conta que foi ele quem entregou o presente. “Olha aí o que você fez”, disse a Lula, com dezenas de garrafas para levar ao apartamento do presidente. Ressaca Um chefe de Estado não carece de uma tragédia para declarar algo que se torne notícia. Falar sobre qualquer assunto o estampa em destaque nas capas dos principais jornais do país pelo simples ofício a que se presta aquele que chefia uma nação. Mas há vezes em que o íntimo de uma figura importante, e cativante como é a de Lula, se torna mais interessante para a imprensa do que as labutas missionárias para se consertar uma pátria. O consumo de álcool do ex-metalúrgico brasileiro já tinha sido criticado em algumas publicações, mas nada que tenha repercutido tanto como em 2004. O fígado do

então presidente reagiu em 9 de maio, um domingo clássico de ressaca, quando o jornal mais conhecido do mundo, o New York Times, dedicou a ele uma porção de suas influentes páginas. A reportagem de Larry Rohter, correspondente do diário norte-americano no Brasil entre 1999 e 2007, debutava assim: “Luiz Inácio Lula da Silva has never hidden his fondness for a glass of beer, a shot of whiskey or, even better, a slug of cachaça, Brazil’s potent sugar-cane liquor”. No livro Deu no New York Times, o jornalista conta que conversou com cerca de 20 fontes, mas que apenas uma delas, Leonel Brizola – na época, um crítico do governo – teve coragem de autorizar que seu nome fosse usado na matéria. Ao jornal nova-iorquino, declarou: “se eu bebesse como ele, estaria frito”. Na obra, Rohter revela que a assessoria do presidente argumentou que vida privada era vida privada e que, portanto, isso deveria ficar fora dos limites de investigação da imprensa. No fim, a matéria provocou uma reação tão indigesta do governo que o jornalista só não foi expulso (!) de terras tupiniquins porque um acordo judicial permitiu que ele continuasse trabalhando no Brasil. “Admito que se coubesse a mim decidir, eu preferia nunca ter de falar de novo sobre esse incidente. [...] E reconheço que, quer eu queira, quer não, ‘o caso

Larry Rohter’ já faz parte da história do Brasil”, conclui no livro, cheio de si. Outros jornais e revistas também publicaram matérias semelhantes à do New York Times. Algumas insistiam em se aproveitar da memória de Aristides Inácio da Silva, alcoólatra que maltratava os filhos, incluindo Lula. Dreher Dizer que nunca antes na história deste país – parafraseando o próprio Lula – houve um presidente que tivesse orgulho de dizer que gosta da birita é uma injustiça com Jânio Quadros e a célebre frase atribuída a ele “bebo porque é líquido; se fosse sólido, comê-lo-ía”. Mas fato é que Luiz Inácio nunca negou fogo em se tratando de bebida ou jogou para debaixo do tapete o hábito da boemia. Em 1979, quando sindicalista, durante uma entrevista à Playboy – uma das primeiras publicadas pela grande imprensa – lhe ofereceram uísque. Ele achou muito chique aquilo. Afinal, um operário podia se dar ao luxo de beber algo tão caro quando se tinha cachaça? “Quando eu o conheci, ele tomava conhaque Dreher”, conta a escritora Denise Paraná sobre a bebida cuja garrafa custa em torno de R$ 10. “Depois, passou para o Domecq, que achava muito bom”, completa. Com o tempo, Lula sofisticou-se e, junto dele, trouxe

oportunidades para que a categoria dos trabalhadores, que tanto defendeu, também pudesse ascender. E se no pacote de recursos conquistados também estava o álcool, é natural que surgisse o gosto por novos paladares. “Hoje, sei que ele gosta de uma dose de um bom uísque e de uma cerveja, também. Mas não acho que perdeu o gosto pelo conhaque, nem pela cachaça”, reflete Paraná. Nelson Campanholo e Antenor Biolcatti, os amigos militantes que Lula não vê mais por conta da agenda lotada de compromissos, não bebem mais. Campanholo, apesar disso, atendeu OcicerO em uma adega de São Bernardo da qual seu filho é proprietário. “Pra mim, a coisa mais bonita do Lula é que ele nunca negou que toma umas pinguinhas 51. Mas eu dizer que, na nossa época, ele ultrapassava os limites? Estaria sendo covarde”. Biolcatti compartilha da mesma ideia. A polêmica garrafa do tinto Romanée-Conti ficou exposta no restaurante de Ipanema até 2009, quando um ladrão invadiu o estabelecimento durante uma madrugada e a furtou. O Gijo, dono da famosa chuleta, presenteou este que vos conta com um bom vinho Marcon. Despediu-se dizendo que não gosta de incomodar o amigo famoso, mas “quando dá na telha, levo eu mesmo um almoço pra ele e Marisa”.


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O FUNDO DO POÇO Enviada a Paris falou com artistas sobre a polêmica da fada verde. Não poderia ter escolhido melhor horário para fazer a entrevista: a hora verde. Já faz algum tempo que os parisienses apelidaram de “hora verde” aquilo que os americanos chamam de “happy hour”. Ou seja, aquele horário depois do expediente entre 17h e 20h. O assunto prometia causar debate fervoroso ao redor da mesa, afinal, meu editor tinha definido a dedo os entrevistados: artistas amantes do absinto. Eu lutava contra o frio na barriga e, para o bem da verdade, talvez fosse até necessário virar uma dose da bebida verde para me acalmar. Mas, não tive tempo. Ao entrar no bar todos já me esperavam. Depois do recente falatório sobre a proibição do absinto, os consumidores da eletrizante fada verde estão assustados. “É realmente um susto, mas acho pouco provável que esta proibição chegue até a França”, me contou um compenetrado Claude Monet, 50 anos, enquanto queimava, com os dedos delicados de pintor, o açúcar em cima da verde bebida na taça de cristal. Monet pode estar certo. Cerca de 100 milhões de litros da bebida são produzidos anualmente só na capital da França. Então por que raios esta caça às fadas verdes? O também pintor Edgar Degas, de 56 anos, virou a bebida num gole só e com os olhos lacrimejantes arrematou: “Tudo começou com o Van Gogh arrancando a própria orelha”. A afirmação deu o que falar. Todos queriam expressar a sua opinião ao mesmo tempo e quando eu percebi que os habitués das mesas ao lado prestavam atenção mais na nossa turma do que em seus copos, tive de pedir silêncio. Paul Gauguin, 42 anos, aproveitou a oportunidade para enfatizar o que o colega de profissão havia trazido à tona. Pigarreou e disse: “Eu não gosto de tomar partido em relação a ele, mas costumo lembrar que antes de cortar a orelha Van Gogh me atacou com uma faca”. Todos balançaram a cabeça concordando entre si. “Isso sem citar o fato que ele mandou a orelha decepada pelo correio para Virginie”, completou Degas. E em seguida lamentaram em uníssono “pobre Virginie, está traumatizada”. Já fazia mais de um ano que o pintor Van Gogh tinha protagonizado uma cena digna do escritor Edgar Allan Poe. Mas até hoje o verdadeiro motivo por trás do escândalo é um mistério.

heloísa fleming

por denise godinho

Uns dizem que o ruivo holandês surtou após fracassar no seu plano de criar uma nova escola artística, outros falam que o problema foi a prostituta Virginie ter escolhido Gauguin ao invés dele. Há quem diga também que o uso de absinto piorou os seus ataques de esquizofrenia. Pude observar quando um homem encurvado com pernas curtas fez esforço para se levantar apoiado na bengala. A luz baixa que entrava pela fresta da janela me fez perceber que se tratava do jovem pintor Henri de Toulouse-Lautrec, de apenas 25 anos. “Eu acredito que Van Gogh está sendo muito injustiçado. Tive contato com ele durante quase um ano e ele não era pior do que nenhum de nós. Era um homem deprimido e atormentado”, disse se afastando da mesa. A frase pareceu causar reflexão em todos eles. O silêncio durou alguns minutos. “Como a bebida ajuda ou prejudica a arte de vocês?”, perguntei. “Você deveria ir até Saint-Rémy e perguntar ao próprio Van Gogh”, respondeu Gauguin segurando um risinho irônico entre os lábios. “Eu perguntei a vocês”, disse finalmente. A verdade é que eu de fato havia tentado entrar no hospício de Saint-Rémy, onde Van Gogh havia se internado voluntariamente depois do trágico incidente, mas alegaram que não permitiriam a entrada da imprensa, pois ele havia tido melhora significativa e o pior que poderia acontecer era forçá-lo a falar novamente sobre o assunto. Respeitei. Monet largou a colher com o açúcar derretido do lado da taça e ao remexer o líquido verde disse: “Van Gogh é pauta porque é um caso recente, fresco e ninguém ainda se esqueceu disso. Mas vocês não se lembram de Paul Verlaine?”. Tive que forçar a memória. E depois de pesquisar nos jornais realmente recordei da polêmica envolvendo o poeta francês. Numa crise de desespero, após o alto consumo de absinto, Verlaine deu dois tiros no poeta Rimbaud, por quem era apaixonado. A repercussão foi muito grande, causando a prisão de Verlaine. Felizmente Rimbaud não se machucou gravemente, mas usou de seus poemas para atacar o antigo parceiro. Este caso esquentava ainda mais o debate sobre a proibição da bebida. Fazia alguns meses que estudiosos diziam que o absinto estava diretamente liga-


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do a uma série de assassinatos e crises de depressão em diversos países do mundo. Aparentemente, as alucinações causadas pela fada verde podiam ocasionar surtos psicóticos ou render ótimos trabalhos, como foi o caso do quadro Figures at Café, de Edgar Degas, que mostra a atriz Ellen Andrée e o pintor Marcelino Desboutin apreciando a bebida no bar Café de la Nouvelle Athènes, coincidentemente o lugar que eu escolhi para fazer esta reportagem. Quando citei a obra, Degas se sentiu orgulhoso. “Fiz o quadro porque quis representar a noite parisiense e como esta noite pode ser solitária. O absinto acompanhou muitos solitários”, pronunciou. Gauguin pigarreou (ele parecia precisar tirar catarro da garganta todas as vezes que falava) e disse: “Mas, não foi bem recebido”. Degas bateu o punho na mesa: “Porque não souberam apreciar o significado da pintura”. Era verdade. Quando a obra foi exposta pela primeira vez, chegou a ser chamada de degradante. Não havia motivos para isso. Degas havia conseguido com maestria levar para a tela um momento de melancolia, daque-

les que tudo o que você precisa é sentar numa mesa de bar, pedir a sua bebida favorita, suspirar e pensar sobre a vida. Toulouse voltou à mesa com uma taça de vinho. Esticou o braço em minha direção. “Quer provar?”. Eu percebi que todos ao redor da mesa se entreolharam com olhos desconfiados. “Ora, você está fazendo uma matéria sobre o absinto e não quer beber com a gente?”, ele insistiu. Eu estranhei. A bebida no copo de Toulouse era marrom. Ele notou a minha desconfiança e continuou. “Esta é uma das melhores invenções de todos os tempos e, é claro, atribuída a mim” – levantou a taça em um gesto caricato –, “terremoto, pode anotar aí. Este é o nome da bebida. Metade absinto, metade conhaque”, e esticou novamente a taça na minha direção. Ao sentir a bebida entrar na minha boca, meus lábios começaram a queimar. O drink desceu rasgando pela garganta e acompanhei o estrago que ele fez quando atingiu o estômago. A barriga fervia como um ataque de azia. Eles riram. “Você é muito delicada para este drink” – e gritou para o garçom – “Traz um

gin com limão para a moça?”. E sentando-se novamente na cadeira ao fundo da mesa disse: “O absinto me inspira e até agora não prejudicou nem um pouco a minha arte. Acho que tem muito falatório. Acho que é uma bebida como qualquer outra. Ela pode trazer o melhor e o pior de si. E por enquanto só me trouxe o melhor”, e como se bebesse água, virou o terremoto de uma vez só para dentro. A risada alta surgiu como efeito colateral. “O absinto pode ter influenciado a paranoia de Van Gogh, mas o amarelo, ah, o amarelo”, refletiu Monet como se falasse consigo mesmo. Fazia algum tempo que alguns boatos tentavam colocar a culpa da explosão de amarelo nas obras de Van Gogh ao absinto. Ninguém sabia explicar direito, mas alguns usuários assíduos do entorpecente vinham reclamando de amarelamento das vistas. “Então, o absinto ou as bebidas alcóolicas no geral podem influenciar a arte para o bom e para o ruim?”, indaguei. “Menina, pode anotar aí: o problema não é a bebida. É a depressão. O combo depressão e bebida é que pode causar es-

trago. Quando estamos no fundo do poço, achamos que o melhor lugar do mundo é o fundo da garrafa. Quem vive de arte é, por excelência, atormentado. Temos que ser!”, me disse Renoir ajeitando os curativos nos dedos. A esta altura todos já sabiam que a artrite reumatoide do pintor fazia com que ele amarrasse os pincéis nos dedos entortados para que continuasse a fazer os seus quadros. O bar começava a se encher dos mais variados tipos, beberrões, prostitutas, homens da alta classe. Aquela noite de sexta-feira prometia. Toulouse-Lautrec até sugeriu continuarmos a entrevista no Moulin Rouge, mas declinei alegando cansaço. A ideia parecia ter sido boa para os outros que se animaram e pediram mais uma, a última, dose de absinto. Para concluir fiz a última pergunta: “Como vocês agem quando a depressão bate? Bebem ou criam?”. Todos ficaram a se olhar durante um instante. Pareciam refletir sobre a resposta antes de falarem qualquer coisa que pudessem prejudicá-los. Mas, não tiveram a oportunidade de responder, pois neste momen-

to um aflito e esganiçado Paul Cézanne entrou no bar em direção a nossa mesa. Os cabelos arrepiados, o bigode despenteado e a pele pálida davam a impressão que ele tinha acabado de ver um fantasma. O pintor era considerado tutor de parte daqueles que estavam reunidos comigo e com uma voz muito sábia, como se escolhesse as palavras antes de dar uma notícia trágica, disse: “Melhor pedirem outra dose”. Os copos ainda estavam cheios na mesa. “Diga, homem, o que aconteceu?”, insistiu Toulouse. Cézanne sentou-se, arqueou uma sobrancelha ao reparar a minha presença, a única mulher, e continuou: “Acabei de receber este telegrama” e esticou o papel em direção aos amigos. Achei graça quando todos se espremeram para tentar ler ao mesmo tempo. Os rostos sérios. Monet pegou o papel e o arrastou em minha direção: “Acho que isso responde a sua última pergunta”. Em letras garrafais e redondas, eu li: “Van Gogh se matou com um tiro no peito”. Quando levantei o rosto de volta para a mesa, todos brindavam ao amigo com as taças de fada verde se debatendo no alto.

QUANDO VINHO VIRA TINTA VERMELHA E UÍSQUE SE TRANSFORMA EM TINTA AMARELA O pintor inglês Carne Griffiths vem ganhando destaque no mundo das artes com pinturas inusitadas. Isso porque ele escolheu uma forma diferente de fazer suas telas: ele pinta com álcool. Numa noite como qualquer outra, ele trabalhava em uma tela com duas cores de tintas e água e atormentado pela falta de criatividade acabou jogando o copo de uísque que bebia em cima da tela. “Eu esperava que a bebida se comportasse como água, mas teve o efeito de dispersar as tintas de forma diferente através do papel e introduziu uma nova gama muito sutil de cor”, narra o pintor.

Em entrevista para OcicerO ele fala um pouco sobre a sua arte. OcicerO - Como você teve a ideia de pintar com bebidas? Carne Griffiths - Eu trabalhava em uma peça chamada Início da Colheita. Esse foi o catalisador para a utilização de líquidos incomuns no meu trabalho. Eu estava trabalhando com duas cores de caligrafia de tinta e água pura no momento, mas eu tinha um copo de brandy perto e o joguei sobre o trabalho esperando que ele se comportasse como água, mas teve o efeito de dispersar as tintas de forma diferente através do papel e introduziu uma nova

gama muito sutil de cor. Depois disso, eu comecei a experimentar com diferentes tipos de chá e agora estou trabalhando novamente com uísque, gin, vodca e conhaque na maioria dos meus novos trabalhos. OcicerO - Como você avalia o uso do álcool como uma influência em seu trabalho? Você costuma beber durante o processo de criação? Griffiths - Existe um elemento de consumo sim durante a produção do meu trabalho. O álcool me impede de ficar supervalorizando o trabalho, pois é preciso ter um desapego (embora a

maioria das minhas peças de sucesso passa por uma fase em que elas quase foram descartadas). O meu trabalho baseia-se em estar em sintonia com o meu subconsciente, entrando em um estado de espírito que permite marcas espontâneas para crescer dentro da página em branco. A decisão de destruir desenhos prontos e bons com um pouco de álcool é espontâneo e tem ambos os resultados: positivos e negativos. OcicerO - Você faz uso do álcool como ferramenta de trabalho, mas também o usa para inspiração? Griffiths - É uma pergunta

interessante. Acho que a linha entre sucesso e fracasso, gênio e louco, criatividade e destruição é muito, muito tênue. Estou constantemente examinando o meu processo de trabalho e o analisando para tentar compreender como essa magia da criação funciona. Às vezes, o trabalho é espontâneo e fluído e eu gostaria de poder bloquear alguns momentos, mas eles são esporádicos e eu não tenho certeza se sua aparência é influenciada pelo uso de álcool. No entanto, eles vêm e eu acho que é melhor fazer bom uso deles ao invés de tentar entender os motivos que me levaram a este momento de criação. (DG) breno ferreira


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TRANSGRESSÕES NA CORTE DA MÚSICA divulgação

Grandes vozes e copos em bares do sul dos EUA ou botecos da Lapa carioca. por lucas borges Enquanto as precursoras da música popular brasileira feminina iniciavam uma carreira que seria marcada por roupas rasgadas por fãs histéricas nas ruas do centro do Rio de Janeiro e bajulação sem igual na história do país, Bessie Smith já perambulava de bar em bar pelo sul dos Estados Unidos em busca de quem a pagasse um copo de bourbon em troca de algumas canções interpretadas por sua voz cansada. Canções que falavam de temas pouco cristãos, pornografia explícita que não interessava mais ao público que fez dela a maior artista de blues de todos os tempos. Bessie Smith foi a grande diva norte-americana da década de 20. Nas palavras de Eric Hobsbawm em História Social do Jazz, “era uma mulher grande, bela, rouca, bêbada e infinitamente triste. Não houve ninguém como ela”. Nasceu e ganhou fama cercada por pobreza e racismo. Morreu aos 43 anos, decadente, em um acidente com um caminhão em uma estrada do Mississippi. Os médicos do hospital para brancos para o qual foi levada teriam se negado a lhe oferecer tratamento, versão que nunca foi confirmada. Foi um caminhão quem a matou, mas poderia ter sido outra de tantas formas trágicas que tiraram cedo a vida de artistas de sua época afogados no álcool e nas drogas. Antes de cair no ostracismo com a decadência dos grupos de blues tradicionais nos anos 30, Bessie já cantava as agruras

da mulher negra. Traições, abandono, vingança, violência. “Como a maioria das formas de música popular, as letras de blues afro-americano falam de amor. O que é distintivo sobre o blues, no entanto, particularmente em relação a outras formas de música popular americana nos anos 20 e 30, é sua independência intelectual e sua liberdade”, diz Angela Y. Davis em Blues Legacy and Black Feminism. Bessie Smith despontou para a música em um período de afirmação da mulher nos Estados Unidos e era um reflexo das transformações de sua época. Enquanto milhares de soldados deixavam o país para lutar na Europa durante a I Guerra Mundial, as mulheres assumiam o papel do homem na casa. Em 26 de agosto de 1920, a 19ª emenda da constituição tornava legal o voto feminino no país. Segundo Angela Y. Davis, em 252 canções gravadas por Bessie e por sua parceira Ma Rainey, apenas quatro tratam do tema casamento em um contexto relativamente neutro. Ma Rainey, a “Mãe do Blues”, passava longe de motes convencionais e em pleno início de século XX fazia questão de manifestar suas preferências sexuais, como na letra de Prove It On Me. I went out last night with a crowd of my friends, It must’ve been women, ‘cause I don’t like no men. Wear my clothes just like a fan Talk to the gals just like any old man

A poderosa Ma Rainay pegava pesado ainda no início do século XX

A família real brasileira Anos mais tarde o Brasil também empossaria suas rainhas da música, as “Rainhas do Rádio”. A corte local era bem mais comportada que a dos vizinhos do norte. Emilinha Borba endoidecia multidões cantando “Chiquita Bacana lá da Martinica / se veste com uma casca de banana nanica.” A grande polêmica envolvendo a cantora foi a perda da coroa para Marlene. O resultado do concurso promovido pela Associação Brasileira de Rádio em 1949 revoltou as tietes de Emilinha e inúmeras foram as trocas de sopapos entre as integrantes do fã de clube de Marlene em frente à sede da Rádio Nacional.

“Fui e sou feliz e realizada como cantora. Cantar é minha vida e alegria. Ter meu público cativo é minha glória. Ao chegar para qualquer apresentação era um tumulto só. Na hora da apresentação, ao entrar no palco, era ovacionada por longos minutos, sendo preciso a intervenção do apresentador para silenciar os gritos e as palmas… “, conta Emilinha Borba em depoimento ao Almanaque da Rádio Nacional, de Ronaldo Conde Aguiar. Biografia mais dramática é a dos primeiros reis da música nacional. Assim como Bessie Smith, Orlando Silva, o “Cantor das Multidões” e Francisco Alves, o

“Rei da Voz”, tiveram suas carreiras interrompidas de forma brusca. Orlando Silva viveu bastante, até os 62, mas para a música morreu muito antes, graças à dependência por morfina. Profissional ao extremo, Francisco Alves não era afeito a vícios e faleceu antes que Orlando, aos 52, carbonizado após um acidente de trânsito na Via Dutra. E houve Nelson Gonçalves. Desde os primeiros passos no bairro paulistano do Brás, ele flertou com o perigo. Gago, começou a cantar na rua ao lado de seu pai, que se fingia de cego e tocava violão pelas feiras de São Paulo pedindo dinheiro. Foi boxeador profissional antes de migrar para o Rio de Janeiro e conhecer a boemia carioca, tão presente em sua obra. Na Lapa, a “Lapa vadia”, se misturou com a malandragem, dividiu mesas de botecos e se envolveu em brigas de rua ao lado de personagens folclóricos como Madame Satã. Aprendeu que para ser adorado por uma mulher, convém amá-la pouco, prometer muito e fingir sempre. No Rio, conheceu também a cocaína e chegou ao fundo do poço. Foi preso acusado de tráfico de drogas. Nelson Gonçalves teve tudo para repetir o roteiro de Orlando Silva com a morfina, mas o boêmio voltou novamente. Teria tomado 11 tiros, acertado mais de 50 e criado mais de dez filhos antes de se apresentar no Radio City Hall, em Nova York, receber elogios de Frank Sinatra, cantar com as novas vozes da música brasileira - de Chico Buarque a Lobão -, ajudar a criar um hospital para toxicômanos e alcoólatras e morrer em 1998, aos 78 anos, tendo mais de 200 discos gravados. breno ferreira


12 - OcicerO - EDIÇÃO dois - NOVEMBRO 2013 fotos: bruno graziano

O Flamenguista adora Fórmula 1 e jura que vai voltar para o Ceará, mas enquanto isso segue sorrindo a cada vez que alguém pede um bom conhaque com gelo e limão no balcão...

O CONHAQUE É O NOVO UÍSQUE De Napoleão a Miranda, um ode ao conhaque em ciranda. por bruno graziano Peço a atenção do leitor que aqui aterrissou, meu querido alcoólatra, que idolatra, e se hidrata, de qualquer bebida que ao

próprio fígado não seja ingrata. Há uns tantos que conhecem, e até outros que estremecem, diante do destilado de uva que agora me ponho a idolatrar. “O conhaque é o novo uísque!”, dirá o poeta, que se inquieta, diante de tanto preconceito, e tem peito, ofegante pelo trago para a dose virar. Trago então a sua história, que para muitos é de glória, e na essência encontrar, com todo o empenho, o tom ferrenho para me embriagar.

Antes é de obrigação, e de mínimo bom tom, antecipar o lugar onde o conhaque me conquistou, e ostentou, para jornalistas e cineastas, seu incólume frescor. Na rua Augusta tão safada, e estafada de mil bares sem namoradas, que foi num beco claro e sujo, de um amigo oriundo, lá do nordeste do Brasil. Miranda é seu nome, Mirandolino o codinome, que come, quieto, nas beiras da boemia sincera, que sempre nos espera, numa sexta-feira a noite de meu deus. Foi com sua benção que o limão se juntou ao gelo e a graça que colocou o dedo, na oferta endiabrada do balcão.

Mas essa história é muito antiga, e vem lá da França inimiga de todos aqueles que sóbrios permanecem. No longínquo século dezenove, lá numa terra onde chove, o valorizado brandy lá nas pampas de Cognac. A cidadezinha vive, e até hoje convive, com a fama de terra natal. E nem precisa fazer propaganda, no natal ou na quitanda, que vendem uvas tantas, verdes, vermelhas e envelhecidas. El sol embotellado, como é assim chamado, lá no calor espanhol, não se intimida com a vida, e muito menos com a a concorrência, de qualquer outra bebida. No frio é que se degusta, e abunda-se com sua labuta, do aroma aconselhado, pelo mestre engarrafado. Toma seu conhaque de leve, na friaca ou até na neve, sem ter medo de ser feliz. É como dizem os franceses, felicidade é a soma dos prazeres, que podemos vivenciar. O que me intriga é que aqui,

em nosso Brasil úmido e árido, ao mesmo tempo, não damos o valor e o tento, que a dose caramelada faz valer. Dirá o bebum refinado que um uísque é o goró mais caro, um tal The Dalmore deveras raro, batendo centenas de milhares de libras por uma dúzia de tragos. Mas que besteira gigante, que mentira ululante, pois existe uma garrafa infante, de um conhaque elegante, chamada Henry IV Dugomon. Se por acaso o leitor duvidar, sugiro por ai procurar, as cifras deste diamante. Criado em mil novecentos e setenta e seis, com mais de cem anos de parto, dos herdeiros de Henrique IV, nascia a bebida de mais de um milhão de libras. A mais cara do mundo, que desmundo. Dirão os amigos tratar-se de um disparate aristocrata, um desrespeito ao monarca que só quer seu Dreher virar. Aqui na terra da cachaça, não há quem defenda, e estenda, que um Presidente possa de um dia para o outro


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...ainda que quando o pedido vem da calçada, mais precisamente da cobiçada mesa da esquina do Charm, quem traz a birita é o Neymar, que só fecha a cara quando o Santos leva fumo

um lorde se posicionar. Agora pergunto ao desconhecido, que não segura por nada a libido, na hora de um flerte angariar. Se no balcão do boteco, ou na pista da balada e inquieto, o garanhão ou a musa, trocam um gin ou uma vodca, por um humilde Domecq solitário. Não vejo por aí e nem farejo, qualquer rastro de ensejo, que me prove o contrário. Já ouvi tacharem de ordinário, de vagabundo e falsário, o copo dourado da transformação. Se for corajoso ao extremo, e não tiver medo do novo, saia do marqueteiro ovo, que os colocam a todo momento. Chame a gata de lado, explique que tem um achado, lá escondido ao alcance do garçom. Faça a pose de sabido, use uma voz grave para qualquer ouvido, e diga as palavras mágicas: “Um conhaque com limão!” Meu irmão, não há erro nenhum em tal decisão, de um limão cortado no meio, um es-

premido e outro no seio, da química que lhe trará o mais doce dos sentidos. A moca pode até estranhar, e de sua índole duvidar, mas não caia nessa de se envergonhar, e comente algo como: “Para sentir o sabor é preciso ter paladar!” Não precisamos ir muito longe, é só relembrar de onde, pois na memória a imagem não se esconde. Uma fotografia imagética, de um belo canalha sem ética, ao lado de seu fiel escudeiro. Um cachorro pomposo, com fuça e porte de maldoso, e um copo vistoso, na mesa unindo os dois. Estão mal intencionados, sem pudor ou ao menos dizimados, por sequer um tiquinho de insegurança. Mas esta é a dança, cheia de esperança, que corre na noite paulistana. Quem bebe conhaque é muito macho, e tacho, agora, a bebida do verdadeiro escracho. Afinal por que se levar tão a sério, urrando finesse como se fosse um histérico, que só sente cheiro de madeira e ci-

tratos em tudo que bebe. E se duvidam do que estou a refletir, pensem no grande homem que se pôs a intervir, num novo mundo que estaria por vir. Napoleão Bonaparte e sua revolução, carregada de nuances e discussões sobre a nobreza, liderando o que seria o domínio da raça francesa. O velho Napoléon, que de careta não tinha nem a ceroula, fazia carinha de singela crioula, mas não dormia sem a dose da boa. Disse o velho Bonaparte uma vez, ciente de sua sensatez, a frase eterna: “Imprescindível nas vitórias e necessário nas derrotas”. Entornava como se fosse água, litros e litros, o destilado de vinho mais precioso da história da humanidade. É verdade, porém, que devemos tudo ao vinho, o nobre e leal fermentado, que num acidente atestado, lá no paraíso já citado de Cognac, avisou os pobres homens de que havia ali um parecer. Com seus quarenta ou sessenta por cento, de um

Graus Gay-Lussac por volume, no tapume do conhecimento, foi gerada a primazia. O álcool então surgido, que só serviria para fortificar um vinho branco barato, opaco, e que para muitos era lixo, dormiu alegre em barris de carvalho, como um paspalho, só esperando o caramelo encantado. E assim provaram seu ardor, que até hoje alivia a dor, de todos aqueles que sofrem por amor. “Deu duro, toma um Dreher”, sussurra o leitor. Se querem saber onde há, uma certa cultura a vingar, em que respeitam o conhaque como ele é. Devem conhecer a esquina, que hoje tem fama de diva, algo entre a Augusta e a Antônio Carlos. Lá é que o Charm tão digno, de notáveis e vãos fidedignos, se juntam para a noite esquentar. E é lá que o roteiro é escrito, que o jornal é lido, e que o rock é discutido. E passe por lá uma segunda, uma quarta ou um domingo, que virá seu umbigo transbordado em espelho. E dou

um conselho, se me permitem. Há os velhos que assistem, os novos que transmitem, todo um caos intelectual e marginal. E se reparar nas mãos, se vislumbrar a paixão, daquela ferveção unissex, só há uma unanimidade, uma união e irmandade, que é o ilustre conhaque. Um dia haverá uma chuva de brandy, onde o Casa Valduga e o Jean Martell cairão na gente, e nossas línguas queimarão em chamas. Se não amas, ó rapaz, então comece agora, não espere a aurora lhe mostrar onde está. Enquanto isso, seu grande babaca, não se prenda aos sonhos do luxo. Vá lá na porra do bar mais próximo e peça a porra de um conhaque barato com limão. Presidente ou Dreher, tanto faz. Faça isso e viva com a sina de que nunca mais uma vodca, uma pinga, um rum, um saquê, um uísque ou um gin irão lhe satisfazer por completo. O conhaque é bebida mais quente desse verão. Literalmente.


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“Drinking is an emotional thing. It joggles you out of the standardism of everyday life, out of everything being the same. It yanks you out of your body and your mind and throws you against the wall. I have the feeling that drinking is a form of suicide where you’re allowed to return to life and begin all over the next day. It’s like killing yourself, and then you’re reborn. I guess I’ve lived about ten or fifteen thousand lives now.” (Charles Bukowski)


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O PRIMEIRO PORRE DE DEMOCRACIA

A revolta que desafiou o sistema colonial e tornou a cachaça um símbolo de resistência contra o domínio português. por ricardo casarin


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“Molhem a minha goela com cachaça da terra”. As derradeiras palavras de Tiradentes não representavam apenas o último desejo de um condenado. A aguardente era um dos símbolos da resistência dos movimentos nativistas brasileiros contra o domínio português. Simbolismo esse que surgiu muito em razão da Revolta da Cachaça, uma rebelião que ocorreu no Rio de Janeiro 119 anos antes da Inconfidência Mineira ser quebrada com o pescoço de Tiradentes. No livro Rebeliões no Brasil Colônia, Luciano Figueiredo explica que a revolta decorreu em razão das pesadas taxações que os moradores da cidade eram obrigados a pagar para manutenção das tropas de defesa. Pior que isso, esses recursos eram com frequencia destinados a outros fins. Liderados pelos produtores de cana-de-açúcar, a população tomou o controle da cidade e impôs uma série de mudanças. A mais marcante delas foi a liberação da produção e comércio da cachaça, algo proibido pela Coroa Portuguesa. As raízes da revolta Em janeiro de 1660, Salvador Correa de Sá e Benavides assumiu o governo fluminense em meio a uma crise econômica. Alguns anos antes, em 1654, os holandeses haviam sido expulsos de Pernambuco e começaram a produzir açúcar nas Antilhas. Isso foi desastroso para a economia do Rio de Janeiro, que dependia da cana-de-açúcar. A concorrência com o produto holandês, de qualidade superior, foi arrasadora para a cidade. O declínio no mercado de açúcar teve como consequência o aumento da produção ilegal de cachaça. Por decreto da Coroa Portuguesa, a produção e comércio da bebida eram proibidos na colônia. Essa medida visava proteger a exportação da bagaceira, aguardente portuguesa feita a partir do bagaço da uva, e forçar uma dependência econômica do Brasil em relação à metrópole. No livro A Verdadeira História da Cachaça, Messias Cavalcanti conta que a bebida surgiu no Brasil no século XVI, durante o ciclo da cana-de-açúcar. Ela se popularizou entre os colonos e se tornou um produto rentável para o comércio e também uma moeda de troca. A riqueza gerada pela bebida representava uma ameaça ao sistema colonial e em 1635 a Coroa ordenou sua proibição. O que não significa que ela foi obedecida, pois a fiscalização era quase nula. Porém, a criação da Com-

panhia Geral do Comércio, empresa que detinha o monopólio de todas as atividades comerciais da Colônia, e o fim do ciclo de açúcar provocaram uma reação repressora de Portugal. Em 1659, um decreto reforçou a proibição. Alambiques foram destruídos e houve ameaças aos infratores de multa e deportação. Nesse cenário conturbado, a nomeação do governador Benavides causou ainda mais insatisfação. Membro da influente família Sá, ele já havia sido governador duas vezes antes. Figura extremamente impopular entre diversos setores da sociedade, sua indicação provocou protesto da Câmara da cidade diante da Coroa. Em A Revolta da Muy Leal Cidade do Rio de Janeiro contra Salvador Correia de Sá e Benavides, o historiador Júlio Cesar Mendonça Gralha enumera algum dos motivos para essa rejeição: durante a construção do galeão Padre Eterno, uma embarcação feita para o transporte de matéria-prima brasileira, Benavides teria forçado nobres e comerciantes a fornecer material e escravos. O governador também detinha o monopólio da criação de gado da região, obrigando os açougueiros a comprar carne somente dele. Possuía uma mesa de jogo em sua casa onde lesava nobres e cidadãos. Controlava uma rede de favorecimentos composta por nobres e jesuítas, um grupo igualmente detestado entre os locais. Salvador de Sá e Benavides apoiava a proibição da escravidão indígena, uma das bandeiras dos Jesuítas. Mas não por motivos humanistas. O interesse estava diretamente ligado a sua atuação no tráfico de escravos da África. Tão logo assumiu o comando da cidade, Benavides se deparou com a falta de fundos disponíveis para administração da cidade. A guarnição estava com soldos atrasados e não havia recursos para manutenção do presídio e para obras de fornecimento de água do rio Carioca. Para lidar com a situação, o governador criou uma série de impostos, o que provocou um descontentamento geral da população. Na Câmara, nobres da terra, o clero e representantes do povo protestaram formalmente contra os novos tributos. Estes diversos grupos sociais formaram um conselho, que elaborou como alternativa aos impostos soluções para lidar com a falta de recursos. Entre as resoluções, a mais ousada era a liberação da produção e comércio de aguardente. Era

uma tentativa de privilegiar os produtos produzidos na colônia em detrimento daqueles trazidos pela Companhia Geral do Comércio, o que contrariava completamente as ordens régias. A Câmara apresentou estas resoluções a Benavides, que as ignorou e manteve a ordem de pagamento dos impostos. O poder do governador era absoluto e a breve experiência democrática parecia condenada. Mas uma conspiração para tomar o poder estava se formando. Abaixo o governador (mas viva o rei) O líder da conspiração era Jerônimo Barbalho, membro da nobreza e proprietário de terras onde hoje se localiza a região de São Gonçalo e Niterói. Ele teceu alianças com militares, nobres, homens do setor mercantil, religiosos e pessoas do povo em seus planos contra Benavides. A revolta estava pronta para explodir. Às cinco da manhã do dia 8 de novembro de 1660, uma multidão armada entrou na cidade e seguiu em direção à Câmara. Liderados por Barbalho, os revoltosos tinham a conivência dos militares e não sofreram nenhum tipo de resistência. Uma vez na Câmara, os rebeldes pediram a deposição do governador, convocaram novas eleições e exigiram a presença do governador interino, Tomé Correia de Alvarenga, com quem Barbalho e outros líderes queriam negociar. Eles faziam questão de saudar o rei Dom Affonso VI e deixar claro que era uma revolta contra a tirania de Benavides e não contra a Coroa. Foram apresentadas as exigências a Tomé Correia Alvarenga, que se recusou a aceitar a deposição de Salvador Sá. Com isso, Tomé foi deposto e preso. Então foi eleito um novo governador: Agostinho Barbalho Bezerra, irmão de Jerônimo. Agostinho tinha respaldo político e respeito da Coroa. Supostamente, recusou o cargo de governador e foi obrigado pela multidão a assumir sob ameaça de morte. Júlio Cesar Mendonça Gralha aponta que é difícil crer que Jerônimo permitiria a execução do próprio irmão e o mais provável é que essa “resistência” de Agostinho foi uma manobra para evitar futuras punições de Portugal. Após empossar o novo governador, os rebeldes realizaram eleições na Câmara, onde todos os apoiadores de Salvador Sá foram afastados. Simpatizantes da revolta foram eleitos oficiais e vereadores. Na nova Câmara foi

apresentada uma constituição em forma de capítulos que eliminava tributos e liberava a produção e comercialização da aguardente. O historiador Charles R. Boxer assinala no livro Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola - 1602 – 1686, o caráter popular da revolta, apontando que entre os oficiais e procurados da Câmara era possível encontrar representantes até dos setores menos favorecidos. A cidade estava sob o domínio dos revoltosos. O governo rebelde tentou sem sucesso buscar o apoio dos paulistas, que permaneceram leais a Benavides. Em São Paulo, o governador deposto se mantinha informado dos passos da revolta por seus aliados Jesuítas. Havia boatos que estes organizavam uma tropa de índios para recuperar o controle da cidade. Em 8 de fevereiro de 1661, Agostinho de Barbalho foi deposto pela Câmara. A resistência em sancionar algumas resoluções causou irritação entre os rebeldes, embora esta decisão não tenha sido unânime entre os seguidores de Jerônimo Barbalho. A partir deste momento, a cidade estava sob o governo da Câmara. À distância, o Governo-Geral da Colônia e a Coroa observavam tudo com cautela. Em Salvador, o vice-rei Francisco Barreto era mantido informado sobre a revolta pela própria Câmara do Povo do Rio de Janeiro. Era mais uma forma de reforçar o caráter de rebelião contra o governador e não contra o domínio português. Francisco Barreto tinha uma posição dúbia. Entendia que havia justiça na rebelião, mas apoiá-la seria incentivar outras iniciativas de insubordinação, o que não era interessante para a metrópole. Finalmente, o Governo-Geral decidiu por enviar tropas para auxiliar Benavides a retomar o poder. Revolta esmagada, revolta vitoriosa Em abril de 1661, contando com apoio dos paulistas e de indígenas, Benavides invadiu o Rio de Janeiro. Não houve resistência dos rebeldes. As tropas enviadas por Francisco Barreto tinham ordens de manter a neutralidade e impedir que o conflito terminasse de forma violenta. A revolta parecia derrotada De volta ao poder, Benavides destitui a Câmara do Povo, aprisionou os líderes da revolta e condenou a morte Jerônimo Barbalho. Após ser enforcado, ele foi decapitado e sua cabeça ficou exposta em praça pública. Porém, a situ-

ação iria passar por uma dramática reviravolta. Após analisar os motivos da rebelião, a Coroa Portuguesa concluiu que ela tinha sido justa. O castigo dado a Jerônimo Barbalho foi considerado excessivo e os demais líderes foram soltos. Alguns membros da revolta chegaram a ser condecorados por sua lealdade à Coroa. Benavides foi destituído do poder. Nunca mais um membro da família Sá voltaria a controlar o Rio de Janeiro. O governo foi entregue a Pedro de Mello. As medidas tomadas pela Câmara do Povo durante a revolta foram mantidas e em 1661 a regente Luísa de Gusmão liberou a produção da cachaça no Brasil. Além disso, a Companhia Geral do Comércio ficou enfraquecida. A principal adversária da fazenda do Rio de Janeiro entrava em colapso e rumava a extinção. As consequências da revolta permitiram que a produção da cachaça se espalhasse pela colônia, popularizando-se e tornando-se parte de uma identidade nacional e em pouco mais de um século, símbolo da luta por independência. Os inconfidentes a bebiam em seus encontros secretos e durante a Revolução Pernambucana, em 1817, produtos portugueses foram boicotados e a aguardente foi escolhida como bebida antilusitana. Não se pode ignorar que a Revolta da Cachaça foi um conflito do poder, travado entre grupos dominantes, e nem que ela não tinha qualquer aspiração de se voltar contra o domínio português. Porém, é inegável a participação popular e autonomia conquistada pelo governo do Rio de Janeiro. “A revolta do Rio de Janeiro, entre novembro de 1660 e abril de 1661, foi um acontecimento de grande importância na História do Brasil Colonial, embora sua verdadeira significação tenha sido muitas vezes esquecida pelos historiadores modernos” ressalta o historiador britânico C. R. Boxer. Luciano Figueiredo dá dimensão da situação absurda criada pela Revolta da Cachaça. “Os funcionários nomeados pelo rei foram substituídos por representantes dos moradores, que administraram ao longo de cinco meses a cidade, que na metade do século XVII, representava um dos principais polos econômicos de todo o Império Colonial Português”. Uma pequena república existindo no meio de uma colônia de exploração, um delírio que só foi possível graças a cachaça, patrona da liberdade e da democracia brasileira.


18 - OcicerO - EDIÇÃO dois - NOVEMBRO 2013 fotos: rodrigo erib


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Maurício Maia engole ao menos quatro doses de cachaça por dia. Numa conta rápida, isso renderia 120 doses ao mês, o que, por sua vez, equivale a quatro garrafas. Resumindo: são quatro litros em 30 dias e talvez isso nem seja algo tão grandioso assim. Gaúcho, morador de rua e da rua Professor João Arruda, em Perdizes, consome certamente mais que isso, ainda que eu não tenha como quantificar as pauladas que o fígado dele recebe diuturnamente. Maia ganha a vida como degustador. Gaúcho é alcoólatra. Um bebe cachaça. O outro, pinga. Há ainda um terceiro e importante elemento nessa história de bebedeira profissional. Maíra Kimura, 33, é publicitária por formação. Acontece que ela não encontrou sinal de felicidade na operadora TIM e decidiu viver de uma paixão adquirida em Paris, ainda que nada houvesse de Cidade Luz na escolha: a cerveja. Foi a bebida quem serviu de consolo quando ela se mudou com o marido para o país de Zidane, Platini, Mélanie Laurent, Marion Cotillard, dos Bourdeaux e dos sommeliers. De 2008 para cá, ela estudou na Brewlab, ganhou seu título de mestre cervejeira e foi trabalhar no Darwin. Tudo isso em Sunderland, Inglaterra. De volta ao Brasil, tatuou um ramo de lúpulo que se estende entre a batata da perna e a cane-

Saber beber é uma merda Como viver do álcool é uma das piores profissões possíveis. por rafael nardini

la esquerda e investiu em provar rótulos americanos, belgas, holandeses e de onde mais puder vir uma cerveja artesanal decente. Os últimos carregamentos importantes vieram da Southern Tier e da De Molen. Sua mágica foi passar quatro dias na Brasil Brau – feira de entendidos para não-entendidos - sem pausa alguma para se alimentar corretamente. “A cerveja é rica em carboidratos e proteínas”. Maia, que não tatuou planta alguma pelo corpo, explica que mesmo tendo a rotina marcada pelo destilado de cana, evitá-la em momentos de folga é impossível. Sentar numa mesa faz a cabeça e o paladar pedirem mais. Só é preciso se policiar para não entrar numa rotina de trabalho. Aí já era: fica tudo travado, ganha tom professoral e título de bêbado mais sóbrio da mesa de amigos. Um chato, afinal. Num dia desses foi ao restaurante, parou e pensou. Escolheu com

a paciência e a competência daqueles, como ele, que já meteram para dentro quase 500 tipos da bebida. Decepção: lá veio o garçom com a cachaça já metida no copo. “Numa coisa gritante é difícil ficar quieto”. Puxou conversa com o rapaz e orientou. Sugeriu que na próxima chegasse à mesa acompanhado pela garrafa. É que o cliente, advoga, tem todo o direito de conhecer o rótulo, analisá-lo, segurar o vasilhame ou recusar a bebida sem motivo aparente, se assim desejar. O que vale para um bourbon e para um xerez deve ser regra para o que vem de Paraty (RJ) ou de Garanhuns (PE), terra natal do ex-presidente Lula. “Não pode haver discriminação com o produto nativo”. Nas palavras de Maíra, sua rotina é “menos emocionante do que as pessoas pensam”. Você há de concordar. Atualmente, sua vida está mais focada em organizar as vendas para su-

permercados e bares fluminenses dos produtos da 2Cabeças, microcervejaria criada com o auxílio de amigos de copo. São dois rótulos próprios, sendo o Maracujipa um deles. São 7,5% de álcool e maracujá incorporado à receita. Adicione agora o trabalho de fiscalizar - de longe - a produção das bebidas que são elaboradas em Ribeirão Preto, no interior paulista. Difícil mesmo é domesticar velhas regras do botequismo nacional, livrar as pessoas das “cervejas de massa”. “O negócio é beber menos e melhor”. Mas o alívio ainda sorri para a carioca com ascendência japonesa e sotaque tão carregado que chega a criar chiados na ligação telefônica. O cotidiano acaba menos burocrático com o surgimento de workshops em restaurantes e aulas abertas ao público em geral. Em todos eles, o negócio principal é beber. Para não acabar ébrio e evitar transtornos públi-

cos, o Maurício assume intercalar suas quatro doses diárias do destilado com pedaços de pão e o maior espaço de tempo possível. Como você, eu, a Maíra e o Gaúcho - sobretudo, o Gaúcho – sabemos: a base de tudo está em não misturar as coisas. Portanto, o degustador evita ao máximo tombar rótulos envelhecidos e seguí-los por cachaças brancas. O incontornável é se obrigar a beber quando indisposto fisicamente. “Por vezes, você está resfriado e perde os aromas, mistura um pouco mais os sabores”. Aí só abstraindo para cumprir com a missão. Diferentemente da Maíra e do Maia, o Gaúcho não fala ao telefone celular e anda sumido por esses dias. Nem o senhor que vende água de lavadeira nem os garçons do Habbib’s souberam me informar seu paradeiro. Pode ser que tenha sido vítima de um covarde enquanto dormia ou alguém cansado de suas risadas no meio da madrugada decidiu por acabar com a sua graça. Não dá para saber. A merda maior mesmo seria se o corpo dele tivesse se cansado de tanto excesso repetitivo. O cara é novo. Não passou os 30, ainda que a rua tenha curtido seu lombo ao ponto de garantir uma aparência de até uma década a mais. Já pensou se a pinga leva ele? Triste. Ainda que desse jeito o Gaúcho partiria completo, feliz. Pode apostar. leonardo soares


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MEMÓRIAS DE MINHAS BRAHMAS TRISTES

bruno graziano

Em tempos de cervejas cada vez mais caras, encarar uma série de geladeiras enfileiradas é o terror dos indecisos – e duros – de todas as noites em bares que se vê por aí

Um relato sobre a inflação que assola os botecos da capital e adjacências. por luciano costa Em 2009, quando a rua Augusta começava a ser descoberta por este jovem jornalista, então no último ano de faculdade, encostar a barriga em um balcão de boteco e tomar 600 mililitros de uma cerveja comum em uma noite de sexta-feira custava meros R$3,50. Quatro anos depois, o preço mais que duplicou, para R$8,80, no famoso boteco Ibotirama, que era e continua referência por ali. A aparência do lugar mostra a mudança: de um barzinho comum, até sujo, com gente se esparramando pelas calçadas e pela rua, passou a lugar refinado, com rótulos importados e garçons vestindo ridículos chapéus-coco. Os intermináveis reajustes no menu alcoólico acompanharam a chegada de uma nova rua, em que os “pés-sujos” começam a dar lugar a novos e

requintados estabelecimentos. A ironia é que os poucos botecões que restam não se distinguem muito no quesito bolso: em poucos você irá encontrar uma Brahma a menos de R$8. Nesse período, a inflação anual no Brasil variou entre um mínimo de 4,3% e um máximo de 6,5%, atingido em 2011. Se levados em conta tais índices, que captam a média de elevação dos preços na economia, uma garrafa sairia por meros R$4,30 em nosso querido Ibotirama. Hoje, além de pagar mais que o dobro disso, o visitante do bar ainda é enxotado por volta da uma hora da matina, o que contrasta com 2009, quando se varava madrugadas na disputada calçada augustiana. A disparada do preço da cevada não ficou restrita à badalada rua. Nos bares centrais do

Grande ABC – região formada por Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul - uma Brahma sai por R$8, enquanto aqueles que preferem a charmosa garrafa verde da Heineken precisam desembolsar uma arara: R$10 pelos 600 ml. Há pouca diferença de preços entre um bar e outro, quando há; mesmo entre as marcas, eventuais precificações divergentes não são muito relevantes. Com tantos percalços, o cervejeiro tem visto minguar lentamente seu poder de compra. O preço da garrafa hoje sai 104% acima do que seria cobrado se os reajustes tivessem seguido a inflação. Com isso, o cidadão que bebe uma cervejinha gasta 2,75% do valor atual de uma cesta básica. Em 2009, seriam 1,65%, segundo dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). O peso dos reais começa, inclusive, a desacelerar as vendas. Segundo dados da empresa de pesquisas Nielsen, 2012 regis-

trou a comercialização de 8,69 bilhões de litros de cerveja no Brasil. O número representa queda de 0,5% frente a 2011, quando também foi registrada baixa, de 1,5%, frente a 2010. Uma matéria da revista Época Negócios vê a alta do preço como “vilã” e cita a alta do dólar e dos impostos como fatores responsáveis pelo movimento. Ainda assim, a Augusta dos botecos caros e dos bares chiques ainda não parece definhar. Embora não tenha a efervescência de outros dias, a região se mantém atrativa. Talvez como reflexo da melhoria da situação financeira geral. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a renda dos brasileiros cresceu 48,5% por pessoa entre 2002 e maio de 2013. Enquanto isso, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) aponta que o Índice de Medo do Desemprego (IMD) caiu 6,1% frente a 2012. Nem todos lamentam os preços... Em 1999, a Brahma (dona

também da marca Skol) liderava o mercado de cervejas, com participação de 49% nas vendas, contra 21% da Kaiser, 18% da Antarctica e 9% da Schin. Dez anos antes, o quadro era outro: Brahma e Antarctica praticamente dividiam igualmente a cevada distribuída pelo país, uma com 50,3% e a outra com 40,8%. A segunda cervejaria, porém, passou por dificuldades financeiras e começou a decair, sem forças para enfrentar os crescentes investimentos em propaganda das concorrentes. Afinal, quem não se lembra do baixinho da Kaiser? Em meio a esse cenário, a empresa negociou uma fusão com a Brahma, criando a Ambev. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão do governo responsável por proteger a concorrência e atuar contra monopólios, aprovou a transação, que deixou a nova marca com 70% do mercado. A Ambev tem entre seus controladores o trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos


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Alberto Sicupira. Os três senhores aparecem com destaque na lista de bilionários da revista Forbes. Lemann como o homem mais rico do Brasil, com patrimônio de R$38,2 bilhões. Ele é seguido por Telles, quarto colocado (R$19,5 bilhões), e Sicupira, que está em oitavo (R$16,78 bilhões). Como acionistas, eles receberam mais um punhado de dinheiro no final de 2012, quando a Ambev distribuiu R$8,5 bilhões entre dividendos e juros sobre capital próprio para quem detinha seus papéis. As marcas brasileiras Skol e Brahma apareciam, em 2011, como a quinta e a nona dentre as cervejas mais valiosas no ranking BrandZ Top 100, liderado pela americana Budweiser (que agora também pertence à Ambev, que a distribui no Brasil). Por aqui, a Ambev detém atualmente cerca de 68% do mercado, contra 11% da segunda colocada, a Schincariol. No início de 2009, uma ação preferencial da Ambev custava R$17,36 na bolsa de valores de São Paulo, a BM&FBovespa. Atualmente, o valor do papel está na casa dos R$82, o que significa uma valorização de 372%, bastante acima até mesmo da inflação cervejeira. O lucro líquido do conglomerado saltou de R$5,9 bilhões em 2009 para R$10,5 bilhões em 2012, alta de 78%.

Fonte: Elaboração própria com dados de ZANIOL (2011), UFRGs

Fonte: Consumo per capita LAFIs Consultoria

Apesar do monopólio da Ambev, a cerveja continua um ramo bastante atrativo para as concorrentes. Embora tal disputa não tenha trazido uma gelada mais barata para nossos botecos, o mercado está agitado. No final

de 2011, o grupo japonês Kirin comprou a Schincariol por R$6,2 bilhões. Os orientais, que possuem 41 mil funcionários e faturamento de R$52,7 bilhões anuais, abriram os olhos para o Brasil, onde a Schin possuía 13

unidades fabris e uma receita anual de R$6,1 bilhões. Outras gigantes em campo são a Coca-Cola, dona da distribuidora de bebidas Femsa, responsável pelas marcas Heineken e Kaiser no Brasil. Segundo um reporte de resultados da matriz holandesa da cerveja verdinha, o lucro operacional em mercados emergentes, como o Brasil, cresceu 7%. Em meio à desaceleração da economia européia, o resultado vindo dos países emergentes respondeu por metade dos ganhos do grupo. Por fora corre ainda o Grupo Petrópolis, um jovem nascido em 1994 e que, recém-chegado à maioridade, já assusta os grandes nomes do setor cervejeiro. Dona das marcas Itaipava e Cristal, a empresa possuía, em 2011, 10,6% do mercado – à frente da Femsa e encostada na Schin. As tetas cervejeiras também agradam o governo Os lucros fabulosos das cervejeiras chamaram a atenção também do governo, que aproveitou o setor para aumentar a arrecadação, em um movimento que ajudou a aumentar o preço de nossos porres ocasionais. Reportagem do Globo mostra que o peso de tributos sobre a indústria de cerveja passou de R$2,3 bilhões em 2003 para R$4 bilhões em 2012, com elevação de 82%.

Nos últimos três anos, enquanto a produção, em litros, teve avanço de apenas 6,79%, o recolhimento de impostos teve expansão de 47,5%. O sindicato das empresas de cerveja - Sindicerv - afirma que “a participação da cerveja na arrecadação dos tributos indiretos é a maior entre todos os setores da economia que se dedicam a bens de consumo, superando até mesmo a carga incidente sobre tabaco e automóveis”. A indústria defende, em seu site, a redução do custo de nossa querida cevada, mas se isenta totalmente da alta. “A redução das alíquotas dos tributos incidentes sobre o setor provocaria uma queda imediata no preço da cerveja. E, como preços mais baixos significam aumento de consumo, o Sindicerv defende a tese de que a diminuição da carga tributária resultaria em aumento da arrecadação aos cofres públicos e do número de empregos ofertado pelas indústrias do setor”. No final das contas, seja pela pouca concorrência observada entre as marcas que disputam o mercado de cerveja - um oligopólio -, seja pela sede arrecadatória do governo, há poucas esperanças. As chances de voltar a sair para uma volta pela Augusta sem deixar parte considerável do salário pelos botecos não parecem muito grandes.


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A ARTE DO CAMBAL Histórias de quem saiu para mijar e foi embora sem nunca mais pagar a conta. por bruno sobrante “Na noite da última sexta-feira, um cliente aproveitou a distração do pessoal que trabalha comigo no bar e saiu sem pagar a conta. Gostaria de saber o que fazer, pois realmente não tenho idéia de como agir para tentar receber pelo serviço prestado e, talvez, punir o cidadão. Tenho algumas informações que podem ajudar. Devo ir à polícia? Acionar o Juizado de Pequenas Causas? Por favor, se alguém souber como devo proceder, me informe aqui neste espaço. Um abraço. J. R. de A., 56, São Paulo/SP.” Esta mensagem foi postada em 2011 no fórum de um site especializado em notícias do meio jurídico e, até hoje, nenhum usuário postou uma resposta. Imaginem a agonia deste senhor, olhinho tremendo atrás do óculo, acessando diariamente a página virtual na tentativa de obter algumas linhas que lhe pudessem aliviar a dor lancinante do calote. Quantas não foram as crises de pânico que acometeram este pobre mercador a ponto de, mãozinha fria acariciando o trezoitão por baixo do balcão, lhe obrigarem a contrair a curiosa mania de seguir clientes até o banheiro, sobretudo os que se sentavam sozinhos, após o ocorrido? Durante o leva-e-traz de mercadorias até a dispensa, o coração miúdo e congelado ao ter a impressão de ver completamente vazia a mesa onde estava o único bêbado da tarde. No pijaminha de algodão, o suor de um corpo insone que se retorce na cama imaginando o conluio entre pilantras e garçons. “Saudades de quando ele apenas peidava”, confessa a esposa a uma amiga. Acontece que este cenário é a realidade de diversos comerciantes na cidade de São Paulo e o ato de sair sem pagar é encarado como uma arte por aqueles que praticam esta forma de estelionato, talvez sua mais antiga e romântica vertente. Arte que demanda estratégias, inspirada às vezes por motivos de cunho social e que teve como protagonistas ao longo dos anos milhares de anônimos, alguns deles ouvidos por este OcicerO nos últimos dois meses. Na tentativa de levantar dados oficiais sobre o tema, o fracasso foi inevitável, já que não existem

heloísa fleming

números que possam dimensionar prejuízos ou mapas que apontam os locais onde o calote é mais recorrente. Entretanto, mais uma vez aqui precisão nas informações é algo secundário, de forma que será a voz de vigaristas e vítimas que irão imprimir a toada dos fatos, acreditem neles ou não. Modus Operandi A maior dificuldade encontrada pelos incautos no combate ao cambal é identificar os seus adeptos. Tal como um fantasma, o mito do profissio-

nal do calote é desfigurado. A saída para as vitimas é traçar perfis aproximados baseados em ataques sofridos em seus estabelecimentos. “O caloteiro é um cara absurdamente normal. Nunca mal educado, nunca faz movimentos bruscos, apresenta nervosismo. Apenas chega, senta, bebe e some. Engana até os garçons mais antigos”, detalha o gerente de um bar localizado próximo ao Hotel Jaraguá, na rua Martins Fontes. “Geralmente acontece quando o bar está cheio às sextas, por exemplo, para se aproveitar do

pessoal sobrecarregado e sair sem pagar”, completa. Apresentando-se como uma modalidade de estelionato, o cambal é considerado crime segundo o artigo 176 do Código Penal, inserido no capítulo 4, que cuida do estelionato e outras fraudes. De acordo com o texto do artigo, “tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem ter para tanto como pagar por tais serviços está passível a cumprimento de pena de detenção de quinze dias a dois meses, ou multa.”

O calote no bar, contudo, se enquadra da mesma forma que o cambal em restaurantes. Dentre as práticas mais comuns estão pedir a conta para ganhar a confiança do garçom e então fugir sem alarde por entre os demais clientes; pedir a conta, ir ao banheiro e, na volta, escapar com um carro dirigido por um comparsa e, a mais famosa, o famoso golpe do cartão de débito ou crédito que apresenta problemas na hora de pagar. “Conseguimos identificar estes comportamentos depois que instalamos câmeras no local. Por ser um local de muito movimento durante toda a semana, fica difícil controlar a ação destes clientes mal-intencionados”, conta um garçom do bar e pizzaria Vitrine, que fica na rua Augusta. O profissional não quis se identificar. “Pelas imagens, a gente vê que o cara pede a conta e fica ali esperando a distração do pessoal, sai pra fumar um cigarro e não volta mais. Pior, tem cara que volta e faz a mesma coisa outra vez”, diz. Timóteo Conte, encarregado dos garçons do bar Casa do Pastel, famosa rede espalhada pela região do Tatuapé, na zona leste da capital, conta que a maioria dos ataques ao estabelecimento acontecem em fugas por carros. “O pessoal acaba aproveitando que a gente fica aqui perto da Radial [leste] e sai sem pagar quando o amigo encosta o carro. Quando a gente se dá conta da movimentação já é tarde, não dá nem pra pegar a placa”, diz. “Tem aqueles que ficam passando cartão sem saldo. Dizem que vão avisar o amigo na mesa que o cartão dele não passou e aproveita para fugir. Esse é comum também”, conta o funcionário. Crime M. L. M., 29, contabiliza cerca de doze calotes em sua ficha. Ao longo de sua carreira como profissional do cambal, como gosta de se referir a si mesmo, ele atuou em bares da rua Augusta, postos de gasolina e quiosques à beira-mar no litoral de São Paulo. “É uma espécie de vício. No começo você entra nessa quando não tem grana. Depois, a coisa vai ficando mais séria e você passa a fazer mesmo tendo dinheiro para pagar a comanda. É ali na oportunidade que pinta a


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ideia”, diz M. “O prazer está em explorar a segurança do bar que, mesmo com todo o controle, acaba vacilando em vários pontos. Lembro que o Vitrine colocou portas de vidro na entrada, além de um segurança, depois que muita gente passou a sem pagar. O Ibotirama, na frente, começou a dar aquelas comandas de plástico na entrada”, completa. Outro gatuno da noite paulistana, R. N. G., 30, diz que já foi quase apanhado por um grupo de garçons depois de uma tentativa de calote em um bar da Vila Madalena. “O preço da cerveja lá é sempre mais alto que em outros lugares e isso sempre me irritou. Os bares cobram o serviço e se você não paga fazem cara feia, te expulsam da mesa. Na Vila [Madalena] é onde eu saio sem pagar com vontade mesmo. Mas lá tem mais controle, né? Me viram pelas câmeras saindo de um pico por ali e foram

atrás de mim. Só parei de correr quando cheguei na marginal Pinheiros”, lembra R. “Tem que encarar como uma arte mesmo, saca? Tem que ter um plano pra dar certo e outro se der tudo uma merda. Teve um lugar que eu fiquei indo toda semana, biritando pouco, ganhando a confiança dos garçons, até um dia que cheguei lá com uns amigos e conseguimos sair sem pagar. Era tipo uma conta de 200 paus”, diz. Em 2011, Paul David Hewson, 53, aproveitou a aglomeração no pub irlandês O’Malley’s, localizado no bairro dos Jardins, e saiu sem pagar sua birita. Hewson, que também atende pelo apelido de Bono Vox e atua como vocalista da banda britânica U2, deu um cambal antes do show que encerraria a turnê do grupo no Brasil, naquele ano. Tanto ele quanto a equipe que assessora a banda deixaram o local depois de passarem três horas tomando um

trago. Relatos dão conta de que produtores da banda foram procurados por um dos donos do estabelecimento, Ali Viscerman. “Passou batido porque ele é uma estrela, mas pelo jeito ele usou a tática de falar na saída que o amigo da mesa tal iria pagar. É um efeito cascata. O amigo sai e diz que não estava sabendo de nada, e vai lá e paga a sua comanda, obviamente com pouca coisa marcada. Ele já enganava fazendo o mesmo tipo de som a quase três décadas, quem diria que também fosse um profissional do cambal”, diz M. L. M. Tanto ele quanto R. N. G. não aceitaram o pedido feito pela reportagem de participarem de um calote - para efeito de registro jornalístico - a um bar localizado no último andar de um famoso hotel de São Paulo. Contactado por este veículo, Bono não respondeu aos e-mails enviados até o fechamento desta edição.

à venda em www.oacreexiste.com a partir de 20/11

QUANDO LEVAMOS UM CAMBAL DO BAR AMADO por marcelo montoza É preciso ter amado um bar na vida. Um bebedor que se preze deve ter chorado em balcões alheios a ausência do bar preferido. E se pelos sujos balcões da cidade, lá pelas tantas, alguém bradar que nunca amou um bar na vida, desconfie: é a dor rancorosa da saudade. Pois o amor de bar é como todos os outros - com a cegueira típica dos amantes, a entrega incondicional que vê nos defeitos qualidades singulares. E o bar do seu Guilherme, ali na Penha velha de guerra, era repleto de singularidades. Para os que passavam pela rua Antonio Lobo, a caminho ou voltando do shopping, o bar do Guila, como era afetuosamente conhecido, parecia o antro da perdição: um balcão fatal sob um altar de garrafas, um velho fliperama e duas ou três mesinhas de lata. No alto do balcão, o rádio antigo que à noitinha seu Guilherme sintonizava numa rádio rock para agradar a rapaziada. E como esquecer sua mesa bamba de bilhar, onde as bolas rolavam obedecendo a mistérios só conhecidos pelos fiéis frequentadores? A mesa providencial que no inesquecível grande enquadro da Rota encaçapou flagrantes nunca consumados? Sair da rua para o piso vermelho e lascado era como se despir das misérias humanas. O Bar do Guila tinha a alegria nervosa

dos botecos, aquela porra-louquice democrática, a apoteose de assimilação entre classes e raças que só os antros de perdição costumam proporcionar. Ali conviviam pedreiros, flanelinhas, traficantes, velhos aposentados, jovens rockeiros... Sempre numa celebração bancada de cerveja Krill e a famosa bomba, versão turbo do bombeirinho num copão com gelo, groselha, limão e cachaça. Com dez reais se abastecia uma tarde inteira, e a vida breve se tornava mais do que suportável. Como não amar aquele lugar? Mesmo com seu banheiro apocalíptico, a caminho do qual se atravessava um corredor a céu aberto (onde, diziam, moravam os pecados do mundo), era o bar que fazia penduras épicas, que burlava a lei seca nas eleições, que abria todos os dias, santos ou profanos, e que só encontrei fechado uma vez, quando a cidade tremeu nas bases para o PCC em maio de 2006. Muita gente só percebeu que a coisa era séria depois de cruzar as ruas desertas do bairro e comprovar que o Guila estava fechado. Foi o nosso termômetro social. O velho seu Guilherme talvez não tivesse noção da importância de sua obra. Senhor pacato, tímido, gostava de histórias de empreendedores que partiram do zero e se tornaram ricaços. Não me esqueço da tarde que estiquei ali secando garrafas e ouvindo o Guila contar a his-

tória do Abilio Diniz. Havia uma nódoa em seu olhar que, se espraiada, possivelmente revelaria certa decepção em ser proprietário de uma espelunca sem glamour. O velho não suspeitava que em outra planilha da vida, naquela em que valem mais as coisas líricas, ele, seu Guilherme, é que era o cara, criador de um templo à libertação e à libertinagem. O final foi súbito. Seu Guilherme dolorosamente julgou encerrada sua missão de quase três décadas aliviando a vida rançosa de quem caía pelas tabelas da cidade. Resolveu se afastar no auge, como os craques que eternizam uma camisa. Eu não estava lá na fatídica noite, quando o Guila pôs cervejas no balcão e anunciou, por conta da casa, a última rodada da história, quando rasgou as contas eternas dos bebuns assíduos... Noite lendária em que as portas metálicas desceram para nunca mais, e o bairro sofreu uma espécie de câimbra, tornando-se mais sério e mais empertigado. O Bar do Guila foi o bar que amei. O bar que procurei e não estava lá, cuja perda me fez tropeçar ante a imprecisão do próximo passo. O bar que me deu um cambal e me plantou a incógnita da tristeza bruta, como que a dizer: para onde agora? Pois quando se perde a pessoa amada, corre-se para o bar. Mas e quando perdemos o bar amado, fugimos para onde?

CINEMA DA BOCA DO LIXO DE SÃO PAULO violaosardinhaepao. blogspot.com.br


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CHUTEIRA E BRANQUINHA Um gole de Heleno aos moralistas. Entrei no quarto trançando as pernas, cambaleando. Olhei para a minha máquina de escrever moderna, vulgo computador. Vi duas. Quando cheguei mais perto pude constatar que ela não havia dado cria. Fui até a cozinha e me servi uma dose de cachaça. O cara que me vendeu garantiu que a “marvada” era mineira. Pode até ser. Na sequência, roubei da geladeira uma cerveja que não era minha e comecei, com dores na cabeça, a beber e escrever o meu primeiro artigo para OcicerO. Isso porque me foi dada a missão de escrever sobre os gênios vagabundos do futebol, boêmios que do alto de suas ressacas encantaram com fintas, carrinhos e sobretudo criatividade e fanfarronice. Mas gostaria antes de me ater a uma coisa sobriamente insuportável: a moderna caretice que reina no futebol brasileiro. Para acompanhar uma transmissão de futebol pós-novela, é preciso estar de porre. A co-

bertura do esporte mais popular do planeta – apelidado pelo mestre uruguaio da palavra, Eduardo Galeano, de dança dos deuses – está muito burocrática e cada vez mais fazendo o papel ridículo de fiscal de fígado de jogador. O que menos importa hoje é o futebol. Também pudera, o nível está tão baixo que o Juninho é titular da lateral do Palmeiras. O que sobra é a vida de celebridade de alguns jogadores. Alexandre Pato é um exemplo clichê disso. E seguindo o fluxo dessa exploração do glamour e da ostentação dessa nova classe de celebridades, nada como flagrar a boleiragem na balada. Qual modelo o zagueiro do Flamengo levou para casa? Quem não repercutiu os vídeos do Fred bêbado ou as fotos do Adriano entornando garrafas de uísque no gargalo que atire a primeira pedra! O fato de transformar a bebedeira dos jogadores em pauta já é de uma pobreza filosófica e jornalística

por raphael sanz

natural, ainda mais levando em consideração o teor do direcionamento ideológico e do uso dessas situações numa espécie de cruzada moralizadora do futebol que associa baixo nível técnico com a vida fora das quatro linhas. Isso não tem nada a ver com futebol, minha gente! As ressacas do mago Valdivia foram mais noticiadas do que a falta que o seu futebol fazia ao moribundo time do Palmeiras que caiu para a segunda. É bem verdade que Valdivia, Fred, Adriano, Douglas e tantos outros poderiam ser geniais, mas de fato não são. E de acordo com o senso comum, graças ao álcool. Mas se analisarmos a fartura de craques que nossa geração de boleiros criou, vemos que a falta de brilho que esses bêbados adquiriram pouco tem a ver com a cachaça, assim como pouquíssimos são os nossos verdadeiros craques hoje. Não estou me lembrando de nenhum em atividade no momento, mas sou um cara

exigente, talvez o leitor tenha alguns na lista. Acontece que nem sempre foi assim. O futebol ao longo da história nos brindou com pares geniais de pernas que, de ressaca ou não, coloriram o imaginário dos seus torcedores. Para além de Garrincha e Sócrates Heleno de Freitas, mineiro de São João Nepomuceno, além de atacante de Botafogo, Vasco, América, Santos, Junior Barranquilla e Boca Juniors, entre os anos 40 e 50 ainda era advogado, boêmio, galã e catimbeiro. Ele é considerado por muitos como o primeiro craque-problema, uma espécie de tataravô do Edmundo. E assim como o Animal, dizem que seu temperamento era tão explosivo quanto sua habilidade com a bola. Participante de uma trupe boêmia da velha Lapa chamada Clube dos Cafajestes, dentro de campo Heleno era frequentemente expulso por armar altas confusões. Heleno era um playboy. Seu pai era dono de um cafezal, ele se formou em Direito, perdão, Ciências Jurídicas, na UFRJ. Durante a faculdade se relacionou com o lança-perfume e o éter, por causa disso, chegou a tentar se auto-eletrocutar em um treino do Botafogo. Sua boa aparência, nível social, status de craque e estilo de vida o tornaram um perfeito galã ca-

fajeste digno das crônicas do Nelson Rodrigues. Dizem até que quando jogava no Boca, em 1948-49, teve um caso com Evita Perón. Porém, naquela época, jogador de futebol não era tratado como celebridade e nenhum jornalista se preocupou em apurar. Aposto que nunca conseguiu viver tranquilo sem saber a verdade. Indo ao futebol, que é o que realmente interessa, Heleno chegou ao time principal do Botafogo em 1937 com uma tarefa pesada: substituir o então ídolo alvinegro Carvalho Leite, goleador do tetracampeonato estadual (1932-35). Tomou uma branquinha para relaxar, pero no mucho, e jogou muita bola, mucha pelota. Marcou 204 gols em 234 jogos e chegou à seleção brasileira onde disputou 18 partidas e balançou 14 capins. Foi artilheiro do Campeonato Carioca de 1942 e da Copa America pela seleção em 1945. Por uma ingratidão do destino, acabou não sendo campeão pelo Botafogo. Pela sua entrega em campo, foi lembrado pela história como símbolo de um time sofrido que nunca se entregava, que lutava até o fim e que mesmo perdendo, perdia com honra. Assim, ultrapassou seu antecessor, tornando-se, então, o maior ídolo do clube. Obviamente, depois acabou ultrapassado por Garrincha e pelo tempo, mas essa já é outra história.


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O BOEMIO DA CAFETEIRA

O diretor de fotografia Giorgio Attili ficou conhecido na cena do cinema paulistano dos anos 60 e 70 pelo profissionalismo e por vícios inusitados. por matheus trunk acervo pessoal de virgílio roveda

O italiano prepara a câmera no set de filmagem: 29 longas na conta

Um jovem diretor de cinema que fazia seus trabalhos praticamente sem dinheiro. Impaciente e estressado, o realizador trabalhava com atores amadores para conseguir baratear seus longas-metragens. Nessa época, ele estava dirigindo seu primeiro filme sobre um personagem que criou depois de uma noite de sonhos mal dormida: o coveiro Zé do Caixão. Com apenas 27 anos, José Mojica Marins ainda era um cineasta desconhecido na São Paulo de 1963. Seu fiel escudeiro nessa empreitada era um técnico experiente: o italiano Giorgio Attili (1924-1987). “A colaboração dele foi da maior importância na parte da direção de fotografia. Os outros fotógrafos que vinham trabalhar comigo achavam esquisito as coisas que eu propunha. Attili era do tipo de profissional que sabia te auxiliar. Então, acabou dando certo a gente trabalhar junto”, relembra o próprio Mojica cinquenta anos depois do início da parceria. Italiano de nascimento, Giorgio Attili veio para o Brasil em meados dos anos 50 junto com seu irmão, o também diretor de fotografia Alberto Attili (1918-1989). Ambos tinham conhecimento do meio cinematográfico aquirido no país natal. Os primeiros trabalhos de Giorgio no Brasil foram como assistente de câmera do longa-metragem Uma Certa Lucrécia (1957) de Fernando de Barros. Seu primeiro filme como diretor de fotografia foi Lá No Meu Sertão (1963) de Eduardo Llorente, filme protagonizada pela dupla caipira Tonico e Tinoco. No mesmo período, o técnico italiano começou a colaborar com Mojica. O primeiro trabalho dos dois juntos

foi no clássico à Meia Noite Levarei a Sua Alma (1964), também primeiro longa-metragem protagonizado pelo personagem Zé do Caixão. “Nós fizemos esse filme em onze dias, quando a maioria dos diretores da época demoravam meses pra terminar uma fita. Eu chamei a atenção de todos pela rapidez”, recorda Mojica, rindo. Os dois trabalhariam juntos em doze longas-metragens. Dentro do set de filmagem, Attili era um profissional dedicado e rigoroso com seus assistentes. Quando alguma coisa não dava certo, o técnico italiano ficava irritado e disparava resmungos em italiano aos colaboradores. “Ele era meio sistemático. Então, os assistentes tinham que ser muito obedientes a ele”, reconhece Mojica. “A primeira coisa que o Attili te ensinava era ter zelo pelo seu equipamento, principalmente a câmera. Isso era algo fundamental para quem estava começando a carreira”, afirma Virgílio Roveda, o Gaúcho, que trabalhou em seis longas-metragens ao lado do diretor de fotografia. Diversos técnicos iniciaram suas carreiras na sétima arte com Attili. Além de Gaúcho, o diretor de fotografia Luizinho Oliveira e o assistente de câmera Geraldo Damasceno (Geraldão) também foram formados pelo veterano. Bastante brincalhão com os colaboradores, o diretor de fotografia mantinha dois hábitos que o tornaram famoso entre seus contemporâneos: o vício por tomar café e por fumar cigarros Continental sem filtro compulsivamente. “Muitas filmagens daquela época duravam madrugada a dentro. Então, era comum você não ter refeições muito equilibradas. Esse ato do

Attili levar garrafas térmicas de café era tanto pra ficar acordado e também porque ele gostava muito”, diz Gaúcho rindo. Geraldão destaca a parceria estabelecida entre Mojica e o diretor de fotografia. “Era uma confiança muito grande, uma coisa impressionante. Eles pareciam pai e filho”, relembra. “Seu Attili não dava moleza pra gente. Mas era uma pessoa honesta, digna”. Luizinho Oliveira reconhece a importância de Attili como formador de diversos profissionais que estavam iniciando suas carreiras. “Ele foi meu professor e de toda uma geração”. Uma passagem curiosa envolvendo o boêmio do café é recordada por Gaúcho. Os dois estavam trabalhando no longa-metragem Geração em Fuga (1972) do cineasta Maurício Nabuco. O trabalho estava sendo filmado em Santos e São Vicente, cidades do litoral Sul de São Paulo. Para a realização desse filme, diversos profissionais da equipe técnica se hospedaram no mesmo local. “O Attili quando ia tomar banho era muito engraçado. Ele demorava pra caramba no banheiro e ainda ficava um tempão cantando umas músicas italianas antigas”. Além dos trabalhos na área cinematográfica, o diretor de fotografia também atuava em outras áreas. Durante muitos anos, Attili foi responsável pela fotografia de documentários e filmes publicitários de empresas como a Lauper Filmes, produtora dos realizadores Glauco Mirko Laurelli e Luiz Sérgio Person. Também operou câmera em cinejornais do documentarista Primo Carbonari. Com a chegada dos filmes de sexo explícito nos anos 1980, Attili se afastou da área cinematográfica. Durante alguns anos, o boêmio do café administrou um estabelecimento comercial da sua família no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Giorgio Attili morreu na capital paulista em 30 de setembro de 1987. Entre 1963 e até o ano da morte, o técnico italiano dirigiu a fotografia de 29 longas-metragens e participou da equipe técnica de outros sete. Nunca recebeu nenhum reconhecimento pelo trabalho que realizou dentro do cinema brasileiro.

sededepedra.blogspot.com - Sarau dá Corda - toda última quinta do mês, às 20h, no Lapeju (Rua Frei Caneca, 892, São Paulo)


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doses fotos: bruno graziano

BODAS DE UÍSQUE Toninho era alcoólatra. Não escondia de ninguém. Entretanto, aos setenta e quatro anos, cuidando de uma cirrose avançada e sofrendo com a pressão da família para encerrar de uma vez por todas a carreira, Toninho sucumbiu. Recusava convites de amigos de balcão e doses maquiavélicas. Estava infeliz como um rouxinol solitário. A morte lhe dava sopros diários e todos em volta só torciam para que Toninho aguentasse até as Bodas de Ouro. Faltavam dez dias para que ele e Sofia comemorassem cinquenta anos de casados. Entre brigas e mais brigas, não era segredo que se amavam. Ah, como se amavam. Os arranca-rabos da dupla de velhos ranzinzas não enganavam nem o mais cético dos vizinhos. Era amor, ali e para todo o sempre. Mas enquanto Sofia, uma patusca senhora daquelas de desenho animado, animava-se a cada detalhe da cerimônia, Toninho andava cabisbaixo e não ligava para nada, absolutamente nada. Na véspera, a filha puxou de canto: “Pai, vamos conversar!” E no sofá, lhe deu um puxão de orelha. “A mãe vai ficar triste, carambola, vê se levanta essa cabeça e colabora.” Toninho dava de ombros. Os comentários das irmãs eram solenes: “Toninho precisa de uma dose, só uma dose!” E os filhos, irredutíveis: “Nem brincando. Vai que ele morre na hora da cerimônia?!” Sofia ouvia de canto: “Virem essa boca pra lá!” Deu-se que estavam vivinhos da silva e chegou o grande dia. A igreja estava transbordando pela porta e até os anjos, pintados nas paredes, arregalavam seus olhos celes-

tes. O padre Celso, velho amigo de Toninho, tinha conhecimento de toda a situação. Católico ferrenho, estava acima de qualquer pecado, de qualquer desconfiança. Silêncio ensurdecedor e muita comoção. Contava-se nos dedos quem não chorava. De fato, Bodas de Ouro são Bodas de Ouro, cada vez mais raras. Sofia colocara sua melhor roupa, um vestido longo verde comprado em Milão, e não abrira mão do echarpe vermelho presenteado pelo marido nos tempos áureos do casamento. Toninho só faltava desmaiar de sono, tamanho tédio. Seu queixo estava colado no peito com Super Bonder, até o momento que quase caiu. Foi segurado de relance por padre Celso, que, comovido, interrompeu o discurso. Todos suspiraram e pensaram: “Vai morrer!” Mas o sacerdote pediu uns minutos, agarrou Toninho pelo tronco e o levou para sua sala. Sem pensar, encheu um copo do melhor uísque que tinha guardado e despejou guela a baixo do velho. Olhando para a porta, encheu meio copo e também virou o seu. Voltaram serelepes, estonteantes. Toninho abriu os braços e saudou a todos. Seus filhos viraram estátuas de espanto. Após meia dúzia de palavras soltas, ajoelhou e puxou a mão direita de Sofia com um âmago juvenil. Sussurrou, para só ela ouvir: “Minha gatinha, quer casar comigo?”

O ÚLTIMO CACHACEIRO DO BRASIL Ciro toma um rigoroso cuidado ao despejar um tantinho de leite integral em sua garrafa de álcool Zulu. Vê-se um certo nervosismo e um tanto de ansiedade no ato.

Não há mais leite na dispensa e o Zulu fora comprado a um preço que daria para “comprar uma galinha gorda”, segundo o próprio bebaço. Conseguira um garrafa de 98% dos traficantes muambeiros que burlam o Exército brasileiro em plena fronteira com o Peru, já dentro do Parque Nacional da Serra do Divisor, unidade de conservação e proteção integral da natureza localizada no estado do Acre. Ciro é oficialmente o último morador dos limites ocidentais do território brasileiro e, consequentemente, o último civil nacional a encarar um birinight nas noites de sábado. O consumo de bebidas alcoólicas é proibido nas comunidades ribeirinhas que cercam os rios da fronteira do extremo oeste do Brasil. Quem se locomove de barco por ali, vira e mexe é interceptado pelos postos do Exército. Se um indivíduo estiver portando uma reles latinha de cerveja, esta será confiscada. E se a quantidade de birita for considerada tráfico, as grades acolherão o espertinho. Nesta indigesta realidade, quem não tem 51, caça com Zulu. Peguei uma canoa com Ciro a caminho do baile. “É perto, umas três horas”, comentou. Chegando lá, cerca de cinquenta moradores da região ouviam um delicioso forró e agiam como se deve agir numa festinha de amigos – muito flerte, muita animação, muita dança e tudo, menos problemas. Ciro nem desceu direito da canoa e já bebericou um gole do drink que é sucesso na noite, o “Chiquito”, como é conhecida a mistura de álcool puro com leite. “Aqui ninguém reclama que não tem vodca, essas coisas, todo mundo bebe mesmo é essa coisa!” Indaguei que um pedido deste num barzinho da Vila Madalena, em São Paulo, seria recebido com um careta de indignação pelo garçom. E Ciro foi direto: “Madalena? Essa ai é a que mais gosta do Chiquito!” Questionei quem seria Madalena e Ciro foi me puxando: “Te apresento. Ela é a esposa da rapaziada.” A lua estava cheia e o relógio marcava meia-noite. O baile acontecia na casa de Rubenário, anfitrião que fazia questão de servir o Chiquito para todos os presentes. Madalena dançava com um, depois com outro e com outro. Bei-

java vários, sempre achando tempo para virar doses da bebida. Olhando ao redor, via-se que todos, sem exceção, seguravam sua garrafinha. Ninguém, porém, vomitava. Darwin ficaria orgulhoso. O dia começava a raiar e Ciro vinha de mãos dadas com Madalena. Abriu o sorriso, deu mais um gole do Chiquito, ofereceu para mulher (que obviamente não negou) e me chamou para o retorno. Embasbacado com a resistência alcoólica do homem, me fiz de preocupado: “Vais dirigir o barco? Aqui não tem lei seca?” Torto, mas convicto, Ciro segurou meu ombro e urrou: “Lei seca é coisa de filho da puta!” Secou o assento de Madalena e me apressou: “Corre que quem vai remar é você, macho!”

DÉRBI ALCOÓLICO Era a final da Libertadores e Lorenzo, palmeirense de vida e de alma, estava quieto em seu kitnet na Antônio Carlos, lá entre a Bela Cintra e a Haddock Lobo, vestindo sua camisa surrada do Palmeiras de 93 quando um bando de corintianos eufóricos começou a berrar no elevador, saindo justamente no seu quinto andar. “Vai Curintia!” E Lorenzo perdia a linha, batendo na porta. “Grita pra mãe, filhos da puta!” Começaram a espernear a porta. Ele abriu. “Filhos da puta!” E recebeu um abraço coletivo de pelo menos cinco alvinegros. “Vai, porco, vem assistir com a gente o jogo. Tem cerveja? Tem cerveja, conhaque, pinga...Vou zicar.” Lorenzo se juntou a mais de vinte camisas pretas, brancas, listradas, ornando um preto e branco nauseante para seu sangue alviverde. Seu vizinho era um amigo de longa data,

Jorge, que ansioso pelo título inédito, fizera uma tatuagem de henna do escudo do Sport Club na própria nádega. O apertamento, com seus trinta metros quadrados, transbordou. Tinha torcedor debruçando-se na sacada. Todos, ali, humilhavam Lorenzo. Era um câncer verde em meio a esperança maloqueira da nação alvinegra. Começou o jogo. Todos beberam muito, enchendo a cara com a força de gladiadores da birita. Terminou o jogo. O todo poderoso Timão era pela primeira vez em sua história campeão do maior título de clubes do planeta Terra. Acabara, ali, a piada, a pressão, a vergonha, o silêncio. Estava presente, nas quatro linhas, o maior time do Brasil, da América e futuramente do mundo. Lorenzo não acreditava naquilo que via e engoliu, ali, umas sete vezes a própria saliva. Vamos para a Paulista, gritou alguém. Jorge ainda ofereceu a cama para Lorenzo dormir e se embriagar da própria melancolia. Pensou por minutos. Quando já estavam todos descendo para a balbúrdia, teve aqueles estalos que nem Freud ou Jung explicam, tirou sua camisa do Palmeiras, pegou uma tamanho P do Corinthians que estava no sofá, vestiu, e se juntou ao grupo. Na Paulista, viu o que seria a maior comemoração futebolística de sua vida. Eram milhares e talvez milhões de homens, mulheres e crianças em festa plena. Lorenzo ainda lembrou de seu pai, de seu avô, de seus tios e de toda sua família de origem italiana e tradicional até no queijo ralado do macarrão. E quando viu, estava em cima do caminhão-pipa invadido, tomando spray de pimenta da polícia e gritando, para toda a Sicília ouvir: “Aqui tem um bando de louco, louco por ti, Corinthians!” No final da madrugada, abraçado a um grupo de pelo menos quinhentos corintianos, fez a confissão. “Sou palmeirense, sou palmeirense!” E ao pensar que seria linchado, se viu numa situação ao mesmo tempo patética e sublime. A esquina da Augusta com a Paulista silenciou e Lorenzo viu e ouviu aquela meia milha de campeões todos com latinhas e copos na mão, cantando com a cadência épica da ópera: “Quando surge o alviverde imponente, no gramado em que a luta o aguarda!” Ajoelhou no chão, chorando, e teve a certeza de que o ódio é amor. E vice-e-versa.


OcicerO - EDIÇÃO dois - novembrO 2013 - 27 resenha

A VODCA QUE NÃO DESCEU por chico zé Procurei Mário Magalhães, premiado jornalista carioca com passagens pelos grandes diários do país e hoje blogueiro, para falar da biografia Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo. O baiano, que morreu em 1969 aos 57 anos, não bebia. Ainda que tenha sido colocado como vagabundo e cachaceiro como outros líderes populares que desafiaram as estruturas tradicionais, como Chico Mendes, na Amazônia, ou os sindicalistas do ABC Paulista. “O Marighella é o antipersonagem da edição [de OcicerO]: não bebia nem fumava. Fontes? Dezenas, muitas delas nomeadas nas notas do livro. O bebum do imaginário apareceu numa capa da Veja de novembro de 1968, dedicada ao Mariga. A chamada diz que ele entornava batidas de limão. Abstêmio, e baiano, é mesmo difícil acreditar!” Mais que isso, Mário lembra uma passagem curiosa da obra lançada em 2012 e que tem sido reconhecido no país como uma das mais completas biografias já feitas por aqui. “O livro tem uma história gozada, dele fingindo que bebia vodca numa festa em Moscou. Jogava pra dentro da camisa! E além de não gostar, era fraco para o álcool”. Mas, e o escritor? Mário levou praticamente uma década pesqui-

sando e escrevendo esta obra definitiva sobre um riquíssimo personagem que rendeu uma edição de mais de 700 páginas. Sendo mais preciso, foram nove anos de trabalho insano e mais da metade disso dedicados exclusivamente à obra, segundo o próprio autor explicou no recente Caixa-preta de um biógrafo falido, texto publicado por ele em meio ao debate sobre o gênero biográfico no país. Lista ainda 256 entrevistas, dezenas de milhares de páginas consultadas em 32 arquivos públicos e privados de Brasil, Paraguai, Estados Unidos, República Tcheca e Rússia, mais uma bibliografia de 500 títulos e 2580 notas sobre fontes. Trabalho grande o bastante para render quatro reimpressões, e mais de 30 mil exemplares em números atualizados até o meio de outubro. E eu confesso que não consigo imaginar alguém escrevendo noites e mais noites seguidas por anos sem nenhum gole que seja. Sim, amigo escritor, amigo boêmio, Mariguella é um petardo de capa dura e espessura quase bíblica batido no suor sóbrio da solidão daquele que trabalha com as palavras. O homem e a máquina. Mário e Mariga. “À vera, só bebo vinho. Mas escrevo quase sempre sem álcool no sangue. Em suma, outro personagem fraco...”, finaliza o escritor, um resistente sóbrio das biografias como deveriam ser.

divulgação

Prisão, tortura, espionagem, assaltos, trocentas reuniões estratégicas; e nada, nada de uma cachaça pra esquentar

colaboraram nesta edição breno ferreira, 28, mandou duas tirinhas e disse que fez uma delas bêbado, só não se lembra exatamente qual.

hugo moura, 26, foi beber com os amigos do ex-presidente, porém nega os boatos de que será candidato ano que vem.

matheus trunk, 25, tratou de cinema paulistano, uma de suas paixões, e café, que prefere trocar por cerveja.

bruno graziano, 25, redigiu um tratado sobre o conhaque e jura que nunca teve ressaca de Dreher com limão.

jorge maia, 30, deixou de ir pro bar só pra produzir a foto central da edição (não que não tenha virado aquela garrafa).

paulo silva jr, 25, escreveu sobre o pai do gonzo, mas vai esquecer de mandar um jornal pro amigo do H. Thompson.

bruno sobrante, 28, disse que um dia vai ser o primeiro a pagar a conta; até lá, narra os calotes que já viu.

juliana meirelles, 26, atuou na cena da foto central, ainda que todos apostam que ela é baseada em fatos reais.

rafael nardini, 27, traçou um perfil de quem trabalha bebendo umas (e não confirmou ter deixado um currículo).

denise godinho, 26, viajou à Paris pra provar do absinto ou então mentiu muito bem sobre o porre francês.

leonardo soares, 28, pegou uma cadeira, sentou, puxou um guardanapo e tirou a ilustração da página 19.

raphael sanz, 26, chegou bêbado na peneira do Palmeiras e hoje dispara seu veneno contra o futebol lei seca.

guilherme horta, 31, apareceu de ressaca na diagramação, mas manteve o projeto gráfico firme e forte.

lucas borges, 26, falou de jazz enquanto segue usando o gosto pela música como desculpa pra encher a lata.

rodrigo erib, 32, viajou pela Europa fotografando cervejas; e a gente finge que acredita que isso é trabalho.

gustavo gialuca, 35, colocou em charges o que a gente sempre quis ver no cardápio de gorós combinados.

luciano costa, 25, usou a memória pra fazer contas e porcentagens na matéria de economia – mas, que memória?

ricardo casarin, 26, foi aos livros dar uma pitada histórica à edição, mas não troca o bar pela biblioteca.

heloísa flemming, 22, fez as ilustrações num gole só – a loucura da capa, mais uma vez, é traço todo dela.

marcelo montoza, 29, pediu uma saidera e se despediu do boteco favorito com uma bela homenagem póstuma.

rita barros, 29, enviou essa poesia da última página sem avisar se aquilo era métrica ou coisa de bêbada.

ocicero.com

jornalocicero@gmail.com facebook.com/ocicero edição dois – novembro de 2013 tiragem: mil cópias preço: dois mengos gráfica: metromídia capa: heloísa fleming produção executiva: paulo silva jr. (11) 9.9494.8478 bruno graziano (11) 9.7465.1308 Redação: Avenida Ipiranga, 1071, sala 408 República, São Paulo-SP CEP: 01039-000


a boca de madeira* (Rita Barros) “Então eu mergulhei nas águas do Poema do Mar, sarcófago de estrelas, latescente, Devorando os azuis, onde às vezes – dilema Lívido – um afogado afunda lentamente; Onde, tingindo azulidades com quebrantos E ritmos lentos sob o rutilante albor, Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos, fermentam de amargura as rubéolas do amor!”

Rimbaud**

no moinho [vermelho ao pé do monte [marta ali suzanne - a ébria e sua boca de madeira céu e deserto degustam a cova dos co[r]pos secos ...água-corpo mareado... ...copo-mar revolto... a água volátil daqueles copos no mar agitado daqueles corpos e seus

lapsos são memórias fora de si

– O que esqueci... Já não me habita. Onde pousou minha lembrança? [a boca de madeira de suzanne é uma pintura impressionante ou depois ou ainda] – Qual, melancólica Pulguinha? – O labirinto, Henri... Em qual me perdi? [ali uma lembrança paira ...e silencia] sentadas suzanne e sua espinha diagonal [a cabeça pendular estaiada pela mão esquerda] contemplam randômicas o cabaré sua mesa seu co[r]po ...vazios [a ressaca habita os olhos] contudo ao tremor destes co[ ]pos moinhos terremotos - deleite das fadas verdes não haveria mais copioso acompanhamento:

[qual aos patos e aos gansos]

sua boca de madeira seu fois gras * Poema embebido no quadro A Ressaca (Gueule de Bois, La Buveuse), retrato de Suzanne Valadon por Henri de Toulouse-Lautrec. ** Frangmento de O Barco Bêbado (tradução de Augusto de Campos).


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