Szymborska contra as tetas dos poetas

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1. Szymborska: afeto, inteligência, humor/ Colóquio Mulher&Poesia (UNIRIO/UFF) Olga Kempinska: participação pela ausência

Szymborska: afeto, inteligência, humor Colóquio Mulher&Poesia (UNIRIO/UFF) Olga Kempinska

“Os poetas levam a pior. Seu trabalho é irremediavelmente não fotogénico”

1. Definir poesia Uma vez que duas coletâneas de Szymborska foram publicadas no Brasil nos últimos anos, ambas contendo primorosas traduções de Ragina Przybycien, os leitores brasileiros já devem conhecer a instigante definição negativa da poesia no poema “Alguns gostam de poesia”, de 1993:

(...) mas o que é isso, poesia. Muita resposta vaga já foi dada a essa pergunta. Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso como a uma tábua de salvação. (SZYMBORSKA, 2011, p. 91)

Em minha comunicação gostaria de desdobrar a renúncia à definição da poesia, debruçando-me sobre o trabalho crítico de Szymborska, que constituiu para a poeta um


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verdadeiro laboratório da reflexão sobre poesia. Com efeito, o Correio literário reúne breves cartas publicadas na “Vida Literária” (Życie Literackie) entre 1953 e 1966 (Cf. KOWALCZYK, 2012), nas quais a poeta motiva a rejeição de diversos textos literários encaminhados à revista. Como tentarei mostrar, muitas dessas considerações – críticas, espirituosas, por vezes até mesmo parciais, como ela mesma admite –, tangem à compreensão do que é a poesia, e, inclusive, encontrarão seu eco em 1996, no discurso do Nobel.

Definição da poesia em uma frase – ora. Conhecemos pelo menos quinhentas alheias, e nenhuma nos parece sucinta e abrangente o bastante. Cada uma expressa o gosto da época. Nosso ceticismo inato opõe-se a mais uma tentativa de determinar. Mas lembramo-nos de um lindo aforismo de Carl Sandburg: “A poesia é um diário escrito por um animal marinho que vive na terra e queria voar”. Serve por enquanto? (SZYMBORSKA, 2000, p. 39)

A citação mostra que a renúncia de Szymborska diz respeito não à procura pela definição da poesia, e sim às características conclusivas e totalizantes da expressão discursiva do saber. Há muitas definições: todas são parciais, todas, marcadas pelo contexto no qual surgiram. Ao suspeitar das definições pesquisadas e das definições em geral, a poeta assinala, no entanto, que o teor do discurso acerca da poesia deveria ser marcado pela densidade, como a própria poesia. Há finalmente o movimento de se esquivar, de não falar diretamente, de citar palavras alheias. A proposta do aforismo não deixa de ser mais um desvio, que dá, contudo, algumas pistas preciosas: a subjetividade, a animalidade, o desejo, a desconfiança quanto aos limites da realidade. A isso se acrescenta ainda a recusa da estrutura binária. De fato, o dilema do animal poético, deslocado e desejante, articulase não como uma oposição entre ser e querer, mas como uma inadequação, humoristicamente monstruosa, entre ser, estar e querer. Em uma outra carta Szymborska compõe uma quase receita dos ingredientes da constituição de um poeta:

A juventude é deveras um período muito difícil na vida humana. E se às penas da juventude se junta ainda a ambição de escrever, é preciso ter uma constituição resistente para dar conta de tudo isso. Esta constituição tem como seus ingredientes: perseverança, gosto pelo trabalho, erudição, espírito de observação, distância com relação a si mesmo, sensibilidade com relação aos outros, senso crítico, senso de humor e uma convicção inabalável de que


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o mundo merece continuar existindo, em maior felicidade do que até agora. (SZYMBORSKA, 2000, p. 51)

Essa resposta tem um quê de uma carta a um jovem poeta: mais econômica, é verdade, uma vez que lança mão de uma lista. Além disso, a relação entre juventude e poesia, um dos mitos românticos da poesia, é colocada sob o sinal de leve ironia. Szymborska chegou a se queixar do “pesadelo Rimbaud” (SZYMBORSKA, 2000, p. 10) que fazia pensar aos jovens que bastava ter dezesseis anos para escrever bons poemas. O gosto pelo trabalho, por sua vez, dificilmente se adequa à figura do poeta maldito. Trata-se de um ofício. No discurso do Nobel a poeta contesta sua excepcionalidade, também no que diz respeito à inspiração, que de jeito nenhum é privilégio exclusivo dos poetas, sendo apanágio de “todos aqueles que escolhem conscientemente seu trabalho e o fazem com amor e imaginação” (SZYMBORSKA, 2016, p. 324). E o que chama atenção na lista das qualidades que compõem a constituição do poeta é a insistência nas características morais. A proposta de Szymborska é muito divergente do discurso ocidental acerca da poesia que, marcado pela psicanálise, retorna ao mito romântico do poeta: ele se torna o lugar onde a linguagem (ou “isso”) fala.

2. Humor Em suas considerações sobre o humor, presentes no conjunto de sua obra que contém poemas, mas também cartas, crítica e resenhas dos mais diversos livros, Szymborska assinala tanto sua importância quanto seus limites: “o sorriso é uma microvitória (passageira, é verdade) sobre a circunstância” (SZYMBORSKA, 1981, p. 190). O humor é segundo Szymborska ao mesmo tempo imprescindível e insuficiente: imprescindível na medida em que possibilita a distância, insuficiente em seu caráter conclusivo que ameaça a permanência da dúvida e o movimento do pensamento.

Aconselhamos – pelo menos durante alguns meses – a ler exclusivamente os grandes humoristas. Este tempo não será perdido, pois, como é sabido, o prazer é enorme, sem falar do repouso da imaginação enfadada de seu próprio lirismo, e ainda também da boa escola do ridículo de tudo aquilo que é por demais sério. Depois dessa terapia, o Senhor lerá seus poemas com outros olhos. (SZYMBORSKA, 2000, p. 111)


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A “leveza”, qualidade da poesia de Szymborska que tanto cativa os leitores, pouco tem a ver com o humor explosivo do poema-piada. A poeta não pratica as formas breves solidárias da poética do chiste, tampouco enfatiza os efeitos sonoros atrelados a jogos de palavras. Longe de serem faíscas, caprichos ou relaxos, os poemas em versos brancos dispõem-se com calma, tomando seu tempo e seu espaço, não raramente em duas ou três páginas. O tom é o de uma conversa, “normal”, nem lento nem rápido. Mesmo quando lança mão de algum deslocamento paradoxal, o poema não se satisfaz com a encenação do paradoxo, preferindo, antes, continuar a exploração de seus desdobramentos. Assim, em “Opinião sobre a pornografia” (1987), o quase-aforismo do primeiro verso não se esgota no lampejo do chiste inicial: o paradoxo da aproximação dos dois domínios, historicamente ensaiado pela filosofia dos libertinos, será cuidadosamente desenvolvido em trinta e cinco versos seguintes:

Não há devassidão maior que o pensamento. Essa diabrura prolifera como erva daninha num canteiro demarcado para margaridas. Para aqueles que pensam, nada é sagrado. O topete de chamar as coisas pelos nomes, a dissolução da análise, a impudicícia da síntese, a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus, o tatear indecente de temas delicados, a desova das ideias – é disso que eles gostam. (...) (SZYMBORSKA, 2011, p. 85)

Ao levar a uma descarga psíquica prazerosa (FREUD, 1977), o humor conclusivo decorrente do efeito do chiste constitui-se em uma solução da tensão e, com isso, em gesto de fechamento do movimento da emoção e da reflexão. É justamente à finalização do questionamento, a sua solução catártica por meio do riso que se opõe a poética de Szymborska, voltada antes de mais nada para o prosseguimento da investigação. Segundo a poeta, cada poema é apenas uma tentativa de resposta, logo ciente de suas limitações e, assim, transformada em dúvida e produtora de novas perguntas, uma vez que “todo conhecimento que não gera em si novas perguntas logo se torna morto” (SZYMBORSKA, 2016, p. 325). A procura inerente à pergunta “por que? ” e a abertura


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contida na expressão “não sei” definem seu gesto poético em termos de um incansável e interminável questionamento: “A expressão ‘por que’ é a mais importante da língua terrestre, provavelmente das línguas de outras galáxias, também. O escritor precisa conhecê-la e usá-la com perícia”. (SZYMBORSKA, 2000, p. 77); “A inspiração, seja ela o que for, nasce de um incessante ‘não sei’” (SZYMBORSKA, 2000, p. 324). A “leveza” da poesia de Szymborska talvez possa ser apreendida à luz das discussões travadas no século XVIII em torno à relação entre o afeto e a compreensão. Trata-se, de fato, da questão da satisfação estética e de sua importância para o conhecimento. Assim, por exemplo, ao comentar o diálogo entre a estética britânica e kantiana, Márcio Suzuki chama a atenção para uma passagem da Antropologia de Parow, na qual Kant afirma que “uma demonstração geométrica, se é curta e fácil, tem uma beleza para nós, pois o contentamento se funda aqui na facilidade (Leichtigkeit)” (SUZUKI, 2014, p. 305). O prazer advém do contentamento da mente quando esta, ao contemplar uma unidade na variedade, “se depara com leis que facilitam as suas operações” (SUZUKI, 2014, p. 306). O efeito desse prazer é, no entanto, estimulador para o pensamento. E tal é, de fato, o efeito do humor praticado pela poeta:

Como se tornar escritor? O Senhor coloca uma pergunta difícil. Igual aquele menino que perguntava à mãe como se faz os filhos, e quando esta respondeu que ia explicar mais tarde porque estava muito ocupada no momento, ele insistiu: “Explique pelo menos a cabeça”. Bem, vamos então tentar explicar a cabeça: ora, é preciso ter um pouco de talento. (SZYMBORSKA, 2000, p. 26)

Apesar dos lampejos do humor por vezes cáustico, Szymborska valoriza sobretudo o gesto da recolocação da pergunta. É também nesse sentido que pode ser interpretada a “feminilidade” da sua escrita, bastante avessa à emotividade visceral e à encenação do corpo. O sujeito lírico, frequentemente na forma feminina, repetidas vezes afirma não saber e a poeta confirma: “Valorizo tanto estas duas palavras: ‘não sei’” (SZYMBORSKA, 2016, p. 325). Qual é, de fato, o “valor” das palavras “não sei”, qual sua relação com o que (não) sabem a poeta e o poema? Esta é também a incerteza – o não saber – que surge no leitor dos poemas de Szymborska. Seu efeito é, de fato, o de uma desconfiança crescente: após uma primeira leitura, leve, vem a segunda, menos leve, enquanto a terceira já faz com que se coloque a “leveza” entre aspas. A antiga palavra


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polonesa “niewiasta” (mulher) remete a “nie wiedzieć”, que significa “não saber”. Assim, o feminino remete não a “fé menos”, mas à relação com o não saber; segundo o dicionário etimológico polonês àquela “a respeito da qual não se sabe” (BRÜCKNER, 1929, p. 362). Nos poemas de Szymborska o feminino pode ser então apreendido enquanto um questionamento da relação com o não saber, uma vez que seus textos encenam não a aquisição acumulativa do saber, mas a exploração incansável daquilo que não se sabe. O não saber abrange tanto o mundo físico, os conceitos, a história, quanto o sentido das palavras e a existência de si. Assim, por exemplo, nem a existência física do corpo é evidente, tornando-se um escândalo:

Nada de presente, tudo emprestado. Ando cheia de dívidas. Terei de pagar comigo mesma por mi mesma, dar a vida pela vida. As coisas já são desse jeito, que o coração é a ser devolvido e o fígado é a ser devolvido, e todos dos dedos, um por um. (...) (SZYMBORSKA, 1997, p. 214)

É de se perguntar então se o não saber em Szymborska não lança também mão do jogo da ironia socrática, no qual se finge ignorar por meio da autodepreciação. Essa hipótese torna-se ainda mais provável quando se considera que a poeta diz em um de seus poemas mais conhecidos: “não há perguntas mais urgentes / do que as perguntas ingênuas” (SZYMBORSKA, 2011, p. 76). Simulação e dissimulação, o diálogo socrático é um diálogo apenas aparente, no qual o saber precede, de fato, o início da conversa. Dessa forma, a ironia interrogativa faz pensar na arte do ator que “finge que não finge, ou antes, não finge que não finge” (RAPAK, 1994, p. 14).

3. Observação A própria contenção da dicção poética de Szymborska, que mesmo quando diz “eu” – e ela diz “eu” frequentemente – é avessa à efusão emocional, típica, segundo alguns, do discurso feminino. No lugar do desejo de ser visto, mais um dos lugares “típicos” do


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feminino, surge na construção do sujeito lírico de Szymborska o desejo de observar. Trata-se de observar sem apreender plenamente, sem captar, gesto que corresponderia à expressão afirmativa “sei”. O uso da primeira pessoa relaciona-se não à expressão de algo (observemos que para expressar algo, é preciso “tê-lo”), mas, antes à procura do saber e à necessidade da observação. Dessa forma, o sujeito lírico fala de si indiretamente, falando do mundo. Como lemos em uma das cartas:

Entre o belo e o feio a Senhora traça uma fronteira radical. Seu posicionamento é estereotipado: belas são as borboletas e as andorinhas, nojentos, os morcegos e as lagartas. Um leitor sensível à natureza experimentará uma justa irritação. A Senhora pode, é claro, louvar o encanto da rosa, mas por que logo às custas da urtiga, que de jeito algum é desprovida de um charme peculiar? E os símios? Talvez pareçam, de fato, mal-apessoados quando comparados às pessoas de quem muito se gosta. Já em comparação com os demais, esses seres ganham muito, não é verdade? Em nossa percepção, por exemplo, os olhos da fêmea de babuíno possuem tanta beleza nostálgica quanto os olhos de Michèle Morgan. A Senhora quer ser poeta, mas não observa. (SZYMBORSKA, 2000, p. 69)

A necessidade da observação coloca a poesia de Szymborska no âmbito de uma poética de desconfiança, tanto no que tange à qualidade da observação da realidade, quanto no que diz respeito à escolha dos objetos e fenômenos observados. A realidade surge então como mal observada: ora de forma incorreta ora de forma parcial. E é justamente a paixão pela observação que faz com que se aproxime por vezes a poeta polonesa de Elizabeth Bishop (Cf. GABRYŚ, 2008).

No mundo dos vivos tudo é possível, mas, e no mundo dos mortos? Este segundo domínio, querido Waldek, demanda do poeta precisão e conhecimento pedantes. Você escreve: “Os sombrios espectros avançam pelos campos, nos sulcos áridos machucam os pés...” Será? Um espectro não é capaz de se machucar os pés! Trata-se de um detalhe tão universalmente conhecido que até mesmo as enciclopédias o passam sob o silêncio. (SZYMBORSKA, 2000, p. 94)

Se toda poesia é paixão, a paixão de Szymborska é a de uma interminável investigação. De fato, ela é mais próxima do desejo da ciência do que da abertura do coração. Assim, tudo se torna objeto de curiosidade e não existem temas banais:

Até sobre o tédio é preciso escrever de uma forma apaixonante. Esta é a regra de aço da literatura, impossível de ser derrubada por nenhum –ismo. O Senhor deveria começar a escrever um diário – aproveitamos para recomendá-lo a todos os candidatos a escritores. O


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Senhor verá então quanto acontece em um dia no qual aparentemente nada acontece. (SZYMBORSKA, 2000, p. 79)

Referências: BRÜCKNER, Aleksander. Słownik etymologiczny języka polskiego, Cracóvia: Krakowska Spółka Wydawnicza, 1929. FREUD, Sigmund. Os Chistes e sua relação com o inconsciente. Obras Completas, Vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1977. GABRYŚ, Gosia. “Niepisana historia w wierszach Elizabeth Bishop i Wisławy Szymborskiej”. In. ALEKSANDROWICZ-PĘDZICH, Lucyna e KAMIONOWSKI, Jerzy (org.). O wiele więcej okien. O amerykańskiej poezji kobiecej. Białystok: Wydawnictwo Uniwersytetu w Białymstoku, 2008, pp. 72-82. KOWALCZYK, Janusz. Wisława Szymborska. In. RAPAK, Wacław. “La littérarité de l’ironie socratique”. In. DRZEWICKA, Anna (org.). Les jeux de l’ironie littéraire. Zeszyty Naukowe Uniwersytetu Jagiellonskiego 87, Cracóvia : Uniwersytet Jagiellonski, 1994, pp. 9-15. SUZUKI, Márcio. A forma e o sentimento do mundo. Jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII. São Paulo: Editora 34, 2014. SZYMBORSKA, Wisława. Lektury nadobowiązkowe. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 1981. SZYMBORSKA, Wisława. O śmierci bez przesady. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 1997. SZYMBORSKA, Wisława. Poczta literacka czyli jak zostać (lub nie zostać) pisarzem. Cracóvia: Wydawnictwo Literackie, 2000. SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Trad. R. Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. SZYMBORSKA, Wisława. Um amor feliz. Trad. R. Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.


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