Hatoum

Page 1

Curso on-line Caminhos da Escrita

Não há literatura sem memória __________________________ Luiz Henrique Amaral Gurgel O amazonense Milton Hatoum é um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Seu mais recente livro, a novela Órfãos do eldorado, foi lançado em março pela Companhia das Letras. A fala tranquila e pausada transformou a entrevista numa agradável conversa, em que, além da literatura, tratou-se de memórias pessoais e de como despertar em nossos jovens o prazer pela leitura. Arquiteto de formação, Hatoum preferiu a literatura para construir histórias em que ficção se mistura a memórias da infância e da juventude passadas por ruas, bairros e igarapés de Manaus.

Quando surgiu essa vontade de escrever, narrar histórias? Milton Hatoum – Quem mais estimulou a minha imaginação não foi um livro nem uma biblioteca. Foi a voz do meu avô. O primeiro livro que li, foi um livro escutado. Foi uma narrativa oral. Tanto que em Órfãos do eldorado eu conto no posfácio que essa é uma história que ouvi quando tinha 12 ou 13 anos. Não havia TV em Manaus naquela época. Meu avô reunia as crianças do clã e contava histórias. Ele era um homem que tinha viajado muito, do Líbano para a Amazônia e de Manaus para o interior. Era um contador de histórias nato. Eu acho que ele inventava muito também e não percebíamos. Para uma criança, a história que você conta é verdadeira. Então se alguém voa, ela pensa que voou mesmo. Acredita na magia do contador de histórias. Meu avô foi uma espécie de mago da palavra que estimulou meu imaginário. A outra parte dessa história foi a biblioteca Machado de Assis que minha mãe comprou de um livreiro viajante, em uma rua de Manaus, naquele sol abrasador. Ela comprou as obras completas, que tenho até hoje. Por acaso, comecei a ler os contos de Machado. Maravilhosos! Talvez se eu tivesse começado por Dom Casmurro, teria largado porque eu tinha apenas 12 anos e o romance do Machado é complexo, dá muitos saltos temporais, é filosofante em alguns momentos. Não é querer facilitar, mas adequar a capacidade de leitura, de absorção de imagens, até mesmo da linguagem. Então, a semente me foi plantada pela oralidade, pela voz do meu avô e depois cresceu e terminou na escola pública com a leitura de bons livros. Você disse que é um filho da escola pública. Como foi sua experiência? Milton Hatoum – A escola pública foi fundamental. Nela eu conheci toda a pirâmide social de Manaus. Eu estudava com caboclos, índios, negros, filhos de desembargadores, comerciantes, lavadeiras, porteiros, operários. Isso permitiu que eu conhecesse a casa das pessoas, que eu saísse do útero protetor de classe média alta,


Curso on-line Caminhos da Escrita porque eu era filho da elite de Manaus. Quer dizer, me deu uma abertura para o mundo. Eu devo muito aos bons professores de português do Colégio Pedro II, colégio estadual do Amazonas, e do Colégio de Aplicação de Brasília, da UnB, fundado pelo Darci Ribeiro e pelo Anísio Teixeira, dois saudosos educadores. Assim que sai de Manaus, conheci um pouco do sertão. Lendo o livro Vidas secas entendi que o Brasil não terminava no Amazonas, naquele mundo de água, excessivo, hiperbólico. E o avesso daquilo era a seca, era o mundo do Graciliano Ramos; a seca em todos os sentidos, até na linguagem. Esse contraste me pegou, sensibilizou. Eu lia e contava com bons professores, que faziam comentários. Apaixonei-me por Graciliano. Li Capitães da areia, de Jorge Amado, O Continente, de Érico Veríssimo. Assim conheci o Brasil, através da literatura. É claro que não percebi isso naquele momento. Mais tarde descobri o que os professores queriam – que um jovem do Amazonas conhecesse o país através de uma leitura prazerosa. Era um conhecimento crítico do país, não uma exaltação pura e simples da pátria.

Como incentivar crianças e jovens a ler, a descobrir o prazer proporcionado pela leitura? Milton Hatoum – A primeira preocupação é não assustar, nem afugentar os leitores. Se você trabalhar, por exemplo, com Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marques, o jovem certamente vai gostar dessa novela porque desde o início há uma pergunta cuja resposta ele vai encontrar no fim. Então, acredito que há bons livros, para uma leitura atraente, não uma leitura fácil. O prazer não é sinônimo de facilidade. É a leitura que te instiga que te envolve como leitor. Uma coisa que eu aprendi é que você não pode forçar, porque é difícil formar um bom leitor. Saber se ele vai para os magos ou para a auto-ajuda. E se ele for para a auto-ajuda, tem salvação? É uma pergunta que você tem que fazer.

Você sempre teve um bom vínculo com a leitura? Milton Hatoum – Nem sempre. Uma vez, um professor nos castigou com a leitura e o fichamento de Os sertões, de Euclides da Cunha. Guardo até hoje o fichamento que fiz em 1967. Isso, para mim foi um martírio, uma loucura porque é uma linguagem rebuscada, retorcida, um vocabulário muito precioso, recherche, como dizem os franceses. Eu não estava preparado para aquilo. Se tivesse sido o meu primeiro livro, eu teria abominado a literatura para sempre, ou pelo menos, por um bom tempo. Entendi aquilo como um castigo. Isso me perseguiu durante muito tempo. Eu quis tirar a teima. Anos depois, acabei escrevendo um ensaio enorme sobre Os sertões.

Se um professor apresenta um texto com entusiasmo, o aluno se aproximará da


Curso on-line Caminhos da Escrita leitura de outro jeito? Milton Hatoum – Eu acho que sim. O fundamental é o jovem não recusar a leitura a priori. Ele deve começar a ler com interesse, com prazer. Eu insisto nisso. O prazer não é sinônimo de facilidade. Agora, o que eu tenho visto é uma espécie de ditadura curricular, disciplinar... Os clássicos que são obrigatórios. Os clássicos obrigatórios são uma lástima para quem quer ler. Você vê professores muito rígidos, aferrados à idéia da grade disciplinar que tem que cumprir. Eu acho que isso pode ser maleável. Eu não sei se o romance do José de Alencar deve ser obrigatório para um jovem de 14, 15 anos. Tenho dúvidas. Por que não ler um conto de Machado como A Causa secreta, ou O espelho, ou Uns braços, que é a história de um adultério, de um menino que se apaixona por uma mulher mais velha. Eu lembro que quando eu li esse conto, sonhava com aquela mulher. Eu acho que o jovem precisa ser estimulado. A literatura não pode ser um exercício de penitência. Você não vai passar o resto da vida obrigado a ler toda a obra do José de Alencar. Não dá. É importante ler? É. Mas em que momento ele é importante?

Na sua literatura Manaus é a referência. Como funciona essa relação da cidade, de sua origem e a sua obra? Milton Hatoum – O lugar da minha ficção é o Amazonas. Muitas vezes as pessoas não entendem isso. A minha Amazonas é uma Amazonas metropolitana, urbana. Eu não sou filho da floresta, a floresta não é o meu habitat. A minha literatura é urbana, mas com muitos vínculos com a floresta, o rio. Eu acho que o lugar da literatura é o lugar da infância. Aonde eu vou, levo Manaus comigo. Mas não uma Manaus qualquer. É a Manaus do começo dos anos 1960, fim dos anos 1950. Um lugar que eu aprendi a inventar coisas. As pessoas, os jovens de Manaus não reconhecem mais essa cidade dos meus livros. É curioso... Parece que eles têm uma nostalgia não vivida. Eles têm nostalgia de uma coisa que eles não viveram, que eles não vivenciaram porque eles não conheceram essa cidade de desenho europeu, essa cidade, como dizia Euclides da Cunha, caipira e cosmopolita ao mesmo tempo. Essa Manaus belle époque, cheia de estilos neoclássicos. Eles não conheceram essa cidade perfeitamente anfíbia, que os igarapés, os rios entram na cidade, participam da vida e do lazer dos seus habitantes. Os jovens não conheceram o que há de mais importante numa cidade do Amazonas, que é a água. Eles não podem tomar banho nos igarapés porque todos foram comidos a partir dos anos 1980. A Manaus que eu conheci é ainda uma cidade encantada. A Manaus deles é a pós Zona Franca, é uma metrópole violenta, destruída, perversa. Havia perversões naquela época que eu guardei na minha literatura, mas elas não eram perversões públicas, eram perversões privadas. Que é o que interessa para a literatura.

E, viver nessa cidade portuária favorece histórias, novidades?


Curso on-line Caminhos da Escrita

Milton Hatoum – A vivência é muito importante. Se um jovem hoje, que conhece muito pouco de sua cidade, passa infância e juventude no shopping center, qual é a experiência que ele vai ter para ser um narrador? Há uma crise da experiência por causa disso. Será que um jovem paulistano de 12 anos já foi com a mãe ao Mercado Municipal, ao Brás, à Barra Funda? Será que já caminhou pela Praça da Sé? Eu estava em Manaus e perguntei a um jovem amazonense: “Que árvore é aquela?”, ele olhou e disse: “Não sei”. Era uma seringueira! Uma baita de uma seringueira de 25 metros de altura! Ao lado tinha uma castanheira com ouriços enormes, só faltava cair na cabeça dele e ele também desconhecia. As pessoas já não conhecem nem as árvores do lugar onde vivem. Isso é um problema para o narrador porque a experiência que você passa como narrador é a experiência de vida, de leitura também.

Você já declarou que a memória é o chão da sua literatura. O que isso significa? Milton Hatoum – Não há literatura sem memória. A pátria de todo escritor é a infância. Eu acho que o momento da infância e da juventude é privilegiado para quem quer escrever. É onde a memória sedimenta coisas importantes: as grandes felicidades, os traumas, as alegrias e também as decepções. Certamente não estou falando da lembrança pontual e nítida. O que me interessa é a memória desfocada, a memória não lembrada. Isso é bom para a literatura porque aí é que se instala o espaço da invenção. Alguma coisa que você lembra, mas sem nitidez porque é isso que traz o espaço fluido, nebuloso e incerto daquilo que se vai narrar. Quer dizer, eu não sei exatamente o que aconteceu, mas sei que alguma coisa aconteceu no passado e é sobre isso que quero escrever. É como se uma frase dessa lembrança meio esfumada pudesse produzir mais 300 frases. Uma coisa puxa a outra. Então, você não faz esforço para se lembrar. Como dizia Clarice Lispector: “É você se lembrar de coisas que nunca aconteceram”. Esse é o movimento que te leva à escrita: lembrar de coisas que poderiam ter acontecido.

Fale sobre seu processo de produção da escrita. Você reescreve muito? Milton Hatoum – A primeira versão que eu faço é muito selvagem, eu mesmo não entendo o que está acontecendo. É bem ilegível. Eu faço a mão, nem entendo a minha letra às vezes para reescrever e passar para o computador. Na primeira versão eu já vou tentando situar algumas coisas. E vou reescrevendo várias vezes, imprimo, releio. Tudo isso demora, dá trabalho. É difícil escrever uma história porque tem personagens, tem espaço, tempo, tem muita coisa. Eu faço alguns esboços de personagens, não sei escrever no escuro. Alguma linha eu procuro seguir. Há escritores que falam que não fazem nenhum esboço. Quando fui escrever Órfãos, tive que cortar a metade porque era uma novela e eu tinha limite de 25 mil palavras. Eu tive que transformar aquela árvore


Curso on-line Caminhos da Escrita frondosa numa palmeira nua, fina e elegante, um açaizeiro. É o trabalho de cortar, adensar, enfatizando e aprofundando os conflitos. Eu acho que você descobre a linguagem com aquilo que está querendo narrar. Você tem que encontrar o tom adequado. Milton Hatoum (Manaus – AM, 1952). Romancista, contista e professor. Autor dos romances Relato de um certo oriente (1990), Dois irmãos (2001), Cinzas do norte (2006) – os três vencedores do Prêmio Jabuti – e a novela Órfãos do eldorado (2008). Fonte: Revista Na ponta do lápis (ano IV, número 9, junho de 2008, p.2)


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.