AVANTE EDUCAÇÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL
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Encontro de capacitação de agentes públicos e conselheiros municipais Textos Básicos PROJETO POSSO FALAR? Prevenção e combate ao Trabalho Infantojuvenil envolvendo estratégias e metodologia de escuta de crianças e participação infantil.
Bahia 2015
REALIZAÇÃO SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SDH/PR Ministro Pepe Vargas Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente Marcelo N. Nascimento Verbena Carvalho Braga CONSELHO NACIONAL DE DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – CONANDA Presidente Maria Angélica Goulart ELABORAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA PUBLICAÇÃO AVANTE – EDUCAÇÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL Grupo Gestor Gestão Institucional Maria Thereza Marcílio Gestão Estratégica Ana Oliva Gestão Administrativa Rita Margarete Santos Gestão Financeira José Humberto Silva Linha de Formação de Educadores e Tecnologias Educacionais Rita Margarete Santos Linha de Formação para Mobilização e Controle Social José Humberto Silva Linha de Formação para o Trabalho Carolina Duarte Coordenação do Projeto Ana Luiza Buratto Equipe Técnica do Projeto Ana Oliva Gláucia Borja Ivanna Castro José Humberto Silva Judite Dultra Sonia Bandeira Elaboração dos textos e organização da publicação Ana LuizaOliva Buratto Judite Dultra Sonia Bandeira Ivanna Castro Glaucia Borja Projeto Gráfico e Editoração KDA Design Ilustrações Luis Augusto Gouveia
EM AO G A S E MEN IPANT C I T R A P
Apresentamos, nesta publicação, uma coletânea de textos relacionados com a participação infantil na busca da garantia dos direitos das crianças. Trata-se de uma estratégia inovadora e potente, que vem sendo utilizada e valorizada em vários países do mundo e mais recentemente aqui no Brasil. É importante registrar que o Posso Falar? apresenta-se como projeto pioneiro na utilização da escuta de crianças, com o objetivo de investigar o que pensam sobre o trabalho infantil e sobre impacto que causa nas suas vidas e na de outras crianças que conhecem ou convivem. Por essa razão, a utilização dessa estratégia na prevenção e combate ao TI mostra-se ainda mais desafiante e mobilizadora. Para esse nosso 2º Encontro de capacitação foram escolhidos textos que trazem reflexões e experiências comprovadamente bem sucedidas, que deverão ser analisadas e discutidas dentro do grupo de formação. Esperando que a escuta de crianças possa vir a se integrar sua rotina como uma importante etapa do seu valoroso trabalho, assinamos
Equipe técnica do Posso Falar
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S DA DADO ADE NID COMU
Território
Meu município
População
Principais serviços e equipamentos públicos existentes
Como vejo meu município
SUMÁRIO
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Militantes todo o tempo
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A criança no mundo contemporâneo um novo olhar sobre a infância e seus direitos.
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Participação Infantil – o que é e por que é importante na formulação de políticas públicas
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É preciso escutar as crianças – entrevista com Vital Didonet
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Participação Infantil no Plano Nacional pela Primeira Infância (1) - As vozes das crianças brasileiras
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Participação Infantil no Plano Nacional pela Primeira Infância (2) - O que a criança não pode ficar sem
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Como escutar crianças – indicação de atitudes, metodologia e dicas sobre como organizar oficinas com crianças
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MILITANTES TODO O TEMPO
Bonnie Neugebauer Editor Child Care Exchange
Militamos sempre, diariamente, com cada palavra e cada ação. Falamos pelas crianças, sobre crianças e, em dias bons, com as crianças, sobre como passamos nosso tempo, usamos nossos recursos, nossa energia, nossos talentos. Militamos por nosso modo de vida; as crianças nos observam e tomam decisões sobre como lidar com nossas mensagens. Em outros tempos, pensávamos em militância como restrita a comunidade; hoje, porém, o mundo é a nossa comunidade. Como militamos e o que defendemos impacta as crianças que conhecemos diretamente, mas o efeito cria marolas em todo o mundo. Nossas crianças se tornaram todas as crianças – ou todas as crianças se tornaram nossas crianças. Ambas as formas estão corretas. Um ponto importante para considerar é que podemos falar pelas crianças, ou podemos falar com as crianças. Crianças têm vozes e algo importante para compartilhar conosco. Mas nem sempre as ouvimos. Frequentemente desconsideramos suas ideias porque são crianças e suas vozes são jovens. São novos em nosso planeta, então fazemos suposições sobre o valor de suas contribuições e avaliamos mal o que sabem. Subestimamos as crianças todo dia, em todo o mundo – e este é o nosso grande erro. Crianças podem nos mostrar como ser bons, como criar a paz, como cuidar da Terra. Podem nos compelir a darmos o melhor de nós mesmos. Podem ser nossos professores. Geralmente pensamos que seja o contrário, mas, novamente, erramos. Quando crianças, muitos entre nós foram ensinados a ser vistos e não ouvidos. Devemos virar isso ao contrário e nos esforçarmos para que as crianças sejam vistas e ouvidas. Nossa missão mais importante como militantes é ajudar a tornar as crianças visíveis, a direcionar ouvidos para as suas palavras e ideias, a direcionar olhos para a realidade de sua situação, a direcionar cérebros para pensar e corpos para agir. Esse deve ser nosso foco como militantes. Tê-lo envolve ajudar as crianças a entenderem seus direitos e capacitá-las a utilizá-los e protegê-los; são direitos natos. A militância é fundamentada em um profundo respeito pela criança. As crianças chegam ao nosso mundo, nossas comunidades, com direitos. Elas têm direitos para protegerem suas necessidades básicas, seu contínuo bem–estar, seu potencial como seres humanos, sua capacidade para contribuir. Devemos colaborar com as crianças na proteção desses direitos natos. A militância é fundamentada em um compromisso com os direitos das crianças.
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As crianças têm o direito de se envolverem em programas sobre seu bem-estar; elas sabem o que querem. Têm o direito de serem ouvidas em questões sobre sustentabilidade - depois de nós, elas terão que lidar com as
AS CRIANÇAS TEM QUE PENSAR DIFERENTE; SE NÃO, QUANDO CRESCEREM FICAM ESQUISITAS E NÃO FAZEM COISAS LEGAIS.
escolhas feitas hoje. As decisões serão mais
(De Viaje com los Derechos de lãs Niñas y los Niños, pg 49)
firmes e sua capacidade de lidar com elas mais natural, se participarem e controlarem os processos pelos quais avançamos para o futuro. A militância é mais forte compartilhada. Muito se sabe sobre o que é qualidade em cuidados e educação da primeira infância. Entende-se que estas “melhores práticas” devam ser adaptadas ao contexto da comunidade. Mas, frequentemente, nos sentimos incapazes de partilhar o que sabemos. Damos desculpas. Dizemos que não temos dinheiro, tempo, nenhum outro recurso. Na realidade, em muitas situações os desafios parecem insuperáveis. Podem existir razoes porque não atingimos nossos objetivos, mas não temos desculpa para não nos esforçarmos para atingi-los. Pela militância, conclamamos outros para verem as crianças como as vemos, para que nossos desafios e trabalho sejam compartilhados. Sabemos o que é qualidade em cuidados e educação. Sabemos o que uma bela infância representa. A hora de se desculpar já passou, há muito tempo. Agora é a nossa única oportunidade de viabilizar o futuro para as crianças. Devemos agir juntos, com maior urgência e eficácia, para garantir as possibilidades de todas as crianças. O que mais importa? “somos culpados de muitos erros e muitas falhas, porém nosso pior crime é abandonar as crianças, desprezando a fonte de vida. Muitas das coisas que necessitamos podem esperar. A criança não. Agora é quando seus ossos estão sendo formados, seu sangue está sendo feito e seus sentidos estão sendo desenvolvidos. Para elas não podemos responder ”Amanhã”. Seu nome é ”Hoje”. Gabriela Mistral, poeta chilena.
Texto da publicação “Primeira Infância em Primeiro Lugar: experiências e estratégias em advocacy, organizado por Maria Thereza Oliva Marcilio e Gustavo Amora. Salvador, 2011, p.9.
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A CRIANÇA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO UM NOVO OLHAR SOBRE A INFÂNCIA E SEUS DIREITOS
Nas últimas décadas, avanços nos estudos sobre a infância vêm propiciando um novo olhar sobre a criança e o seu lugar na sociedade. Assumindo novos pressupostos, as pesquisas mais recentes, especialmente no campo da Sociologia, consideram a infância como uma construção social, período em que a criança, como sujeito do presente, produz saberes e conhecimentos, vivencia experiências, interpreta a realidade, podendo assim ocupar um lugar próprio e papel significativo na sociedade contemporânea. Essa nova concepção emergiu nos últimos trinta anos, principalmente, em função dos resultados obtidos nas pesquisas no campo da Sociologia da Infância, movimento surgido na Europa a partir da década de 1980, que passou a questionar as concepções clássicas e a defender novos pressupostos teóricos e metodológicos para as pesquisas voltadas para a criança, defendendo ideias mais recentes sobre sua formação, educação e participação nas transformações da sociedade. Esse movimento, apesar de recente, tem provocado grande impacto por trazer uma nova leitura sobre o processo de socialização da criança, rompendo com as definições funcionalistas que entendem a infância como uma fase onde ocorre a imposição à criança das normas e valores adultos, aceitos por elas passivamente. Prevalecendo a ideia da infância como algo que varia de indivíduo para individuo, de lugar para lugar, a Sociologia da Infância contesta a sua compreensão como estágio padronizado de preparação para a vida adulta. Com uma nova interpretação sobre o desenvolvimento humano, a infância é vista como um período influenciado tanto por fatores internos como também por fatores do contexto sociocultural. Entre os estudiosos do assunto no âmbito internacional, ganham destaque as concepções de William A. Corsaro, (2011) citado por Cordeiro e Penitente (2014), que afirma: “as crianças são agentes sociais, ativos e criativos, que produzem suas próprias e exclusivas culturas infantis, enquanto, simultaneamente, contribuem para a produção das sociedades adultas.”O autor propõe que na socialização, “as crianças não apenas internalizam e reproduzem normas, mas interpretam, criam e recriam em contato com outras crianças e dentro de diversos grupos sociais.” (2011 p.15)
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No Brasil, alguns estudiosos abraçaram essas ideias e passaram a defender novas práticas nas pesquisas com crianças, destacando as possibilidades de escuta e de participação no processo de investigação. Reconhecendo a criança como ator
AS CRIANÇAS TEM DIREITO DE TER SEUS PENSAMENTOS, PORQUE SÃO ELAS QUE TÊM QUE PENSAR O QUE QUEREM FAZER. (De Viaje com los Derechos de lãs Niñas y losNiños, p.48)
social, a pesquisa científica se propõe a dar a ela vez e voz, procurando conhecer e registrar suas percepções sobre o contexto em que está inserida e suas propostas de transformação da realidade. Ressalta, ainda, que é preciso identificar, registrar e analisar o entendimento da criança sobre seu entorno. Pesquisadores como Anete Abramowicz, professora da Universidade Federal de São Carlos, apoiam-se nos trabalhos de autores estrangeiros, como Régine Sirota, nome de destaque da Sociologia da Infância Francesa que considera a infância uma das idades da vida que necessitam de exploração específica, como a juventude ou a velhice. A autora francesa, vendo a infância como uma construção social, afirma que é preciso analisar de que maneira ela é vista pela sociedade em questão. Destaca, ainda, que “as crianças devem ser consideradas como atores em sentido pleno e não simplesmente como seres em devir.” (Apud Abromowicz e Oliveira ,2010). As autoras Abromowicz e Oliveira (2010) recusam uma concepção uniforme de infância e lembram que, conforme explica a Sociologia da Infância, a criança não deve ser entendida como criança essencial, universal e fora da história. Para as pesquisadoras, “mesmo considerando os fatores de homogeneidade entre crianças como um grupo com características etárias semelhantes, os fatores de heterogeneidade também devem ser considerados (classe social, gênero, etnia, raça, religião etc), tendo em vista que os diferentes espaços estruturais diferenciam as crianças.” Com isso, para estudar a infância e fazer pesquisas com crianças, precisamos desconstruir preconceitos e atentar para o que Kramer (2001) chama de visão “adultocêntrica” de mundo. “A criança tem muito a contribuir, a dizer e a nos informar. Cabe ao pesquisador ouvir e escutar. Com PÉ O NO ECHE. C IN R R “EU B A E NA C LÁ D CAR SCA DA E EGAL BRIN ORQUE L S. É A, P SCAD US AMIGO E A N E S M O RRINH NTRO ENCO UE OS CA ERIA SÓ Q M. EU QU E PARA D CAE GRAN ISTA”. R A G P U UM L R MINHA E 6) Z A F pg 1 Falar, a (Deix
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essa escuta, esperamos compreender, de um ponto de vista da criança, o que elas fazem, sentem e pensam sobre suas experiências, sobre sua vida, considerando que produzem e reproduzem a cultura adulta, buscando significações acerca de sua própria existência.” (Cordeiro e Penitente, p.69) Neste sentido, é necessário que o pesquisador se coloque no lugar da criança, pense com o seu sentimento e deixe de lado as ideias preconcebidas. Segundo Silva, Barbosa e Kramer (2008), além de aprender a ver o mundo com olhos de criança, o pesquisador precisa aprender a ouvir, para que possa
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compreender gestos, discursos e ações; esse aprender de novo a ver e ouvir, a ficar afastado, participar, anotar, a interagir enquanto observa “se alicerça na sensibilidade e na teoria e é produzido na investigação, mas é também um exercício que se enraíza na trajetória vivida no cotidiano.” É preciso também considerar a participação infantil como um direito, que deve ser por todos observado e defendido. A criança tem o direito de ser ouvida e de opinar sobre as questões que lhe afetam, defendendo seus interesses e expressando suas reivindicações. Como sujeito ativo, interpreta a realidade e lhe atribui significados. Sendo assim, o protagonismo infantil deve ser estimulado por todos. Entretanto, esta é uma conquista ainda em construção, uma vez que, no Brasil, a participação da criança ainda se dá de forma tímida. Segundo Soares (2006), as dificuldades decorrem, em muito, do fato de a sociedade adulta associar a participação infantil à perda de poder e tutela dos adultos sobre as crianças. Por tudo isso, vale lembrar que as novas práticas de investigação exigem cuidados que estão para além da escolha dos instrumentos e procedimentos metodológicos de pesquisa. Cabe ao pesquisador não apenas abandonar ideias preconcebidas, mas assumir uma postura de respeito e de cuidado com a participação infantil, adotando procedimentos adequados à idade, à etnia, ao gênero e ao contexto, para que o processo de escuta seja bem sucedido. Essas mudanças, entretanto, devem ser buscadas por todos que trabalham com crianças, principalmente aqueles que atuam em instituições do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) e na formulação das políticas públicas, uma vez que a participação infantil, no Brasil, ainda é um caminho a ser trilhado. Soares (2006), citando Milne (1996:41), considera a participação das crianças um passo importante na construção de uma sociedade inclusiva para os cidadãos mais novos e para um espaço de cidadania da infância. Cabe a todos – especialmente aos educadores e militantes na área de defesa dos direitos da infância - experimentar e persistir.
REFERÊNCIAS CORDEIRO, Ana Paula; PENITENTE, Luciana Aparecida de Araújo. Questões Teóricas e Metodológicas das Pesquisas com Crianças: algumas reflexões. Revista Diálogo educacionais, Curitiba, v.14, n.41,p.61-79, jan/abr. 2014. http//www2.pucpr.br/reol/index.php/dialogo?dd99=pdf&dd1=12614
Disponível em
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CORSARO, W.A. Sociologia da Infância. São Paulo: Artmed, 2011. In: CORDEIRO, Ana Paula; PENITENTE, Luciana Aparecida de Araújo. Questões Teóricas e Metodológicas das Pesquisas com Crianças: algumas reflexões. Revista Diálogo educacionais, Curitiba, v.14, n.41,p.61-79, jan/abr.2014.Disponível em http//www2.pucpr.br/reol/index.php/ dialogo?dd99=pdf&dd1=12614 COLL DELGADO, A.C; MULLER, F. Em busca de metodologias investigativas com as crianças e suas culturas. Cadernos de Pesquisa, v.35, n.125,p.161-179,maio/ago.2005 In: CORDEIRO, Ana Paula; PENITENTE, Luciana Aparecida de Araújo. Questões Teóricas e Metodológicas das Pesquisas com Crianças: algumas reflexões. Revista Diálogo educacionais, Curitiba, v.14, n.41, p.61-79, jan/abr.2014. Disponível em http//www2. pucpr.br/reol/index.php/ dialogo?dd99=pdf&dd1=12614 KRAMER, S. A política do pré-escolar no Brasil: arte do disfarce. São Paulo: Cortez, 2001. In: CORDEIRO, Ana Paula; PENITENTE, Luciana Aparecida de Araújo. Questões Teóricas e Metodológicas das Pesquisas com Crianças: algumas reflexões. Revista Diálogo educacionais, Curitiba, v.14, n.41,p.61-79, jan/abr.2014.Disponível em http//www2. pucpr.br/reol/index.php/dialogo?dd99=pdf&dd1=12614 SOARES, Natália Fernandes Soares. A Investigação Participativa no Grupo Social da Infância. Currículo sem Fronteiras, v. 6, n.1, pp.25-40, Jan/Jun 2006. Disponível em ISSN 1645-1384 (online) WWW.curriculosemfronteira.org
A... ... OLH TANTE. OLHA POR ITO IM U M É E NÃO ISSO GENT A O D R, QUAN COME ANHA QUER ESTR A IS A CO A ALGUM NTECEU, N UA. ACO NA R U O LA ESCO . 10) lar, p a eu
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AS CR TÊM IANÇA AT S DIR ER E I T A O NÃO M CRE IGOS S ENÃ SCE O MF (De V ELIZ , las iaje c E Niñ om S as los y lo
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VIVER EM PAZ QUER DIZER ESTAR BEM, VIVER JUNTOS, VIVER COISAS INTERESSANTES, TER AMIGOS, SONHAR (De Viaje com los Derechos de lãs Niñas y los Niños, p. 44)
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PARTICIPAÇÃO INFANTIL – O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE NA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Entender participação infantil e sua importância na formulação de politicas públicas significa partir de um pressuposto fundamental - a concepção de que as crianças são cidadãs, com direitos e espaços próprios onde possam viver sua infância com liberdade para expressar suas ideias, para serem ouvidas e poder participar da vida pública. As crianças – que percebem tudo o que se passa ao seu redor - são, portanto, um grupo social específico, usuárias de bens e serviços, capazes de opinar, propor e ajudar a decidir sobre temas de seu interesse. Nessa perspectiva, a escola e a cidade têm sido apontadas, conforme Trevisan (2012), como espaços centrais para a construção de ideias sobre o que veem e vivenciam. Assim, a participação infantil pode ser definida como o direito da criança expressar suas ideias e opiniões e intervir nas decisões a respeito dos serviços e ações que têm algum impacto sobre elas, oportunizando sua atuação cidadã nos diversos espaços que vivenciam. A participação infantil é entendida como ação colaborativa, ampliando proposições que não só beneficiem as crianças, mas as coloquem em diálogo e interação qualificada com os adultos. A educação autoritária ainda presente no nosso cotidiano abafa a expressão livre das crianças e dos jovens, submetendo-os à vontade soberana dos adultos, como se eles não tivessem capacidade para pensar, tomar decisões e emitir opiniões sobre coisas que lhes estão próximas e que lhe dizem respeito - o senso comum nos indica que as crianças são vistas como cidadãs do futuro. No entanto, é preciso mudar essa mentalidade, entender que as crianças são o presente, com direitos que precisam ser respeitados agora.
EU NÃO SEI LER AS LETRAS, MAS SEI FAZER PILHAS DE LIVROS, TIRAR E COLOCAR NA ESTANTE VÁRIAS VEZES; SEI SENTAR NOS LIVROS E CONSIGO CARREGAR NA BOLSA. (Deixa eu falar, pg 17)
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Nem sempre, contudo, esses direitos são reconhecidos e oferecidos de forma igualitária. A saúde e a educação precisam ser garantidas de imediato a todas as crianças, independentemente da condição social e etnia, bem como o direito ao esporte, ao lazer e a ter espaços na cidade que lhes garantam o brincar e a convivência social. Todavia, as cidades estão sendo construídas como espaços de trabalho e produção onde predominam pressa, agitação, barulho, automóveis e incentivo ao consumo intenso, sem áreas livres para brincar e conviver com a natureza. Com isso, as crianças são as mais prejudicadas, fechadas em muros tanto em suas casas quanto nas escolas, que, muitas vezes, não possuem um parquinho nem espaços para o livre brincar. No Brasil, ainda há poucas iniciativas de participação efetiva das crianças no planejamento urbano, bem como em outras questões sociais. Mas essa concepção vem se fortalecendo, seja nos meios acadêmicos/ educacionais, seja nos sociais e políticos destaca-se a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), que reúne organizações do terceiro setor, do governo e do setor privado e vem articulando, nos últimos anos, a formulação de Planos para a Primeira Infância em alguns Estados e municípios. Esses planos são elaborados com metodologias variadas. Em alguns casos, contam com a efetiva participação de crianças, como o Projeto Criança Pequena em Foco (CECIP, 2014), no qual crianças opinam e discutem sobre a construção da cidade - a Rede Nacional pela Primeira Infância promoveu a escuta de crianças de 3 a 6 anos, cujas respostas e ideias surpreenderam os adultos. Suas falas foram reunidas no livro Deixa eu Falar (2010), disponível em www.primeirainfancia.org.br Exemplos dessas práticas são o Movimento dos Sem Terrinha (Brasil), o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR – Brasil), além de importantes eventos que envolvem a participação infantil como o Fórum da Infância (Nova Iorque, 2002), o Foro d'Niños – O Primeiro Fórum Social de Mallorca (FSM - Espanha, 2003) e o Forunzinho Social Mundial, que desde 2002 se realiza como evento paralelo ao FSM. (SARMENTO, FERNANDES E TOMÁS, 2007, p. 192). Escutar as crianças nos seus anseios, desejos e relatos de situações vividas, enriquecem projetos, programas, atividades e espaços planejados em que elas são o objeto central, dando a essas iniciativas novos significados e trazendo para o centro da discussão seu principal usuário. Além disso, as crianças escutadas são duplamente beneficiadas: sentem-se valorizadas pelo papel desempenhado e contribuem para o processo de sua educação e construção de sua cidadania. As crianças como produtoras de conhecimento - capazes de pensar, discutir e se expressar sobre assuntos que lhes afetam direta ou indiretamente - precisam ser consideradas pelos adultos que, dispostos a escutá-las, criam estratégias e instrumentos
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metodológicos que possam alterar paradigmas que as veem como objetos de ações e não como sujeitos aptos a participar da vida cotidiana. Este processo deve ser feito de forma articulada, respeitando os espaços, as funções e papéis de cada um, bem como as singularidades que concernem às crianças e aos adultos. Os adultos devem ficar atentos às falas das crianças, valorizando e respeitando suas formas de expressão. Hart (1992, 1993 e 1997), um dos autores pioneiros na discussão da escuta e participação infantil, aponta “diversos benefícios da participação infantil, como contribuir para o progresso comum e favorecer que as crianças construam confiança em si mesmas, posicionadas como sujeitos sociais capazes de expressar suas opiniões e decisões”, acrescentando que “com um adequado acompanhamento dos adultos, as crianças são capazes de planejar e realizar transformações importantes em sua realidade.” Este estudioso criou uma estratégia pioneira para avaliar o nível de participação infantil e a maneira como os adultos envolvem as crianças nos processos realizados. É a chamada “Escala de Hart”, cuja principal preocupação é saber se de fato as vozes das crianças são levadas em conta, ou se existe manipulação. Outra preocupação do autor diz respeito ao envolvimento das crianças nos processos decisórios, usando uma escala graduada em oito níveis: 1) manipulação, 2) decoração, 3) participação simbólica ou aparente, 4) crianças apenas informadas do que vai acontecer, 5) crianças além de informadas, consultadas, 6) decisões iniciais tomadas pelos adultos e só depois compartilhadas com as crianças, 7) decisões e direcionamentos feitos pelas crianças, 8) decisões das crianças compartilhadas com os adultos. Segundo Hart, apenas a partir da quarta etapa o processo começa a ser participativo. Os aspectos a seguir tratam do papel a ser conferido às crianças – e aos adultos - nos projetos participativos: Estar informado(a) - As crianças precisam ser informadas sobre as etapas e ações dos projetos de participação em uma linguagem que lhes seja adequada e clara. Ser escutado(a) - As crianças precisam perceber que vale a pena expressar suas opiniões e desejos, e que isso tem resultados concretos. Os adultos também precisam desenvolver sua capacidade de escuta e diálogo com as crianças. Ser consultado(a) - A opinião das crianças sobre os temas que as afetam deve ser solicitada de maneira ativa, regular, responsável e aberta.
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Discutir decisões - Crianças e adultos devem analisar e discutir, conjuntamente, diferentes opiniões, pensando o porquê de algumas posições serem assumidas e outras não, valorizando o processo e não apenas o seu resultado final. Negociar e conseguir consenso nas decisões - Crianças e adultos devem dialogar, buscando consenso nas discussões, de modo a relativizar suas expectativas em relação às decisões a serem tomadas. Compartilhar decisões - Crianças e adultos devem estar cientes de suas responsabilidades, não podendo uma só pessoa assumi-las sozinha. Aceitar e respeitar as decisões das crianças - Os adultos devem aceitar que as crianças sejam aptas a assumir determinadas responsabilidades nas etapas dos projetos.
Sendo assim, a participação das crianças - mesmo que ainda realizada de forma simbólica – deve ser assumida como algo fundamental para melhorar suas condições de vida, de suas famílias e de suas comunidades; para discutir outras formas de relações entre adultos e crianças; para contribuir com novas formas de conhecimento sobre a infância; para construção de espaços de participação; e para promover a discussão da possibilidade e necessidade de articulação entre democracia representativa e democracia participativa. As metodologias participativas com crianças devem inclui-las nos processos e ações, sem desconsiderar que adultos e crianças exercem funções e papéis distintos na trama social. A participação infantil deve, portanto, ser marcada por ações e interações colaborativas entre esses dois atores. Realizar metodologias participativas com crianças implica incluir reflexões éticas sobre a pesquisa e as ações junto a elas, de modo que os adultos, ao escutar suas vozes, não as desdobrem somente na “tradução” ou “interpretação” de suas demandas e opiniões. Todo e qualquer processo de participação das crianças envolve etapas de negociação, discussão, reflexão e proposições que possam ser partilhadas entre elas e os adultos. A colaboração entre as diferentes gerações qualifica os processos de participação, uma vez que, nesses casos, participar significa manter diálogos, escutas, trocas e parcerias que contemplam tanto as vozes das crianças quanto as dos adultos. Por fim, o que se almeja é que as crianças possam ser percebidas como cidadãs capazes de agirem no seu tempo presente, com seus direitos garantidos, contribuindo para a
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construção de um contexto social mais sensível à sua presença, às suas demandas, às suas opiniões. A participação infantil poderia deixar de ser apenas uma aposta, para ser incorporada efetivamente na política e nas ações cotidianas, como via de mão dupla, favorecendo diálogos inter-relacionais colaborativos.
REFERÊNCIAS CECIP.Disponível em: http://www.premioparticipacaoinfantil.org.br/Home/consideracoes. - Acesso: 19 de Janeiro de 2015. CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, UNICEF. Disponível em: http://www. unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf. Acesso: 19 de Janeiro de 2015. PRÊMIO PARTICIPAÇÃO INFANTIL. Disponível em http://www.premioparticipacaoinfantil. org.br/ Home/consideracoes - Acesso: 21 de janeiro de 2015 BORBA, A. A participação social das crianças nos grupos de brincadeira: elementos para a compreensão das culturas da infância. In: Revista Educação em Foco. Juiz de Fora. v. 13, n. 2, p. 139-156, set 2008/fev 2009. HART, R. Children's participation: from tokenism to citizenship. Florencia: UNICEF, 1992. SARMENTO, M. J., FERNANDES, N., TOMAS, C. Políticas Públicas e Participação Infantil. Educação, Sociedade & Culturas, nº 25, p.183 - 206, Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho (Braga/Portugal), 2007.
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É PRECISO ESCUTAR AS CRIANÇAS ENTREVISTA COM VITAL DIDONET
Mestre em educação e especialista em educação infantil, Vital Didonet tem seu nome diretamente ligado à construção de políticas públicas para a infância e à defesa dos direitos das crianças. Ao longo de sua carreira, tem sido consultor de diversas organizações internacionais e membro de entidades da área de educação pré-escolar, como a Rede Nacional Primeira Infância, da qual atualmente é assessor para assuntos legislativos. Pensar a organização do espaço e das cidades de maneira a incentivar o protagonismo e a cidadania das crianças é uma de suas bandeiras como educador. “Elas têm direito ao espaço coletivo e a espaços próprios em que possam viver a infância com liberdade e expressividade”, defende. Nesta entrevista, realizada por e-mail, Vital Didonet fala sobre a necessidade de ouvir o que as crianças têm a dizer e apresenta propostas para que possamos construir cidades mais acolhedoras, que respeitem as crianças como cidadãs participantes nas escolhas e decisões.
Por que as cidades, em sua maioria, não podem ser consideradas atualmente um espaço amigável para as crianças? O desenvolvimento econômico e a predominância do trabalho e da produção colocaram os adultos, primordialmente os homens na idade produtiva, no centro dos interesses da cidade. Ela foi perdendo a característica de encontro, de ambiente de interações entre as pessoas, para dar lugar à pressa, à agitação, ao barulho, aos automóveis, à produção, à compra e venda e ao consumo. Por isso, os espaços da infância, do brincar, da liberdade, do movimento com segurança foram sendo tirados das crianças. Muitas instituições estão procurando reverter essa situação por meio de programas que buscam devolver essas características com foco nas crianças e na cidade como espaço de educação, movimento do qual o senhor faz parte. Como o senhor definiria uma cidade educadora? É uma cidade que se entende como espaço de interações em que todos os seus moradores e as pessoas que por ela passam estão em constante aprendizagem. Todos ensinam e todos aprendem pelas formas de ser, de trabalhar, de se divertir, de se relacionar, de conviver. O fazer cotidiano é uma escola de vida. O artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) é primoroso ao dizer que a educação
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abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino (escola) e pesquisa, nos movimentos sociais, nas organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. A cidade é a circunscrição que contém todas essas fontes de educação. O que é preciso para que uma cidade mereça o conceito de educadora? Três elementos são fundamentais: fazer o planejamento urbano de tal forma que atenda os direitos de todos os cidadãos, com justiça e equidade, realizar ações para o bem-estar de todos e estimular atitudes individuais com vistas ao bem comum. O propósito da concepção de uma cidade educadora é de conscientizar seus habitantes de que a gente se forma na convivência, quer dizer, aprende valores, cria atitudes e adquire comportamentos nas relações interpessoais e no modo como a vida urbana está disposta. Por isso, é preciso planejar ações públicas para otimizar esse lugar como instância educativa. Na Itália, as crianças participam há mais de 10 anos de um projeto denominado A Cidade das Crianças. A experiência da cidade de Fano expandiu-se a outras cidades italianas e estrangeiras. Como o senhor vê a possibilidade de tal expansão chegar ao Brasil? Com a maior expectativa e um grande desejo, porque nossas cidades serão mais humanas, as pessoas, mais seguras, alegres e livres e as crianças se sentirão cidadãs participantes da organização e da vida da cidade. De certo modo, a experiência já chegou aqui. Há várias iniciativas que jogam luz sobre a possibilidade de repensar a cidade sob a ótica das crianças. E não só a cidade como espaço de convivência intergeracional, mas também as políticas públicas voltadas à infância. Poderia citar algumas dessas experiências? No campo das políticas, ao elaborar o Plano Nacional pela Primeira Infância, a Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) promoveu a escuta de crianças de 3 a 6 anos. Elas disseram coisas que os adultos jamais imaginavam que passassem por suas cabeças e tivessem morada em seus sentimentos. Exemplos de suas falas estão em duas publicações da RNPI: O que a criança não pode ficar sem... por ela mesma (2009) e Deixa eu Falar (2010), disponíveis em www.primeirainfancia.org.br. O mesmo processo de escuta se deu na elaboração do Plano Distrital pela Primeira Infância, em Brasília, e em Planos Municipais, como o de Nova Iguaçu, do Rio de Janeiro e de Fortaleza. Que outras iniciativas o senhor considera positivas? No planejamento urbano, menciono três exemplos que são férteis para avançar na melhoria da cidade pela participação das crianças: Olhares das crianças sobre a cidade de Porto Alegre, uma pesquisa de Ana Maria Meira, que apresenta reflexões sobre o
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olhar das crianças sobre a cidade, articulando concepções de psicanálise, educação, arte, cultura, história e urbanismo; Criança fala na comunidade, projeto da empresa CriaCidade, em parceria com a Prefeitura de São Paulo, no qual crianças de 4 a 8 anos, que vivem em péssimas condições de moradia em cortiços, estão sendo convidadas a dizer como gostariam que fossem reformados o prédio, os ambientes externos, as praças e os parques na vizinhança, e O olhar e a voz das crianças nos projetos de arquitetura: estudantes de arquitetura do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo ouvem as crianças sobre o que elas pensam do espaço urbano e o que sugerem para fazê-lo bonito e seguro. As crianças são capazes, desde muito pequenas, de participar da gestão de uma cidade? Sim. Já o demonstraram quando tiveram oportunidade. É preciso saber ouvi-las e compreender as mensagens que nos são transmitidas por diferentes linguagens. Os gestores e profissionais experientes da Cidade das Crianças de Fano dizem que as crianças, desde pequenas, são capazes de interpretar e exprimir as próprias necessidades e de contribuir para a mudança de sua cidade. Suas necessidades coincidem com as de grande parte dos cidadãos, especialmente dos mais fracos. Vale a pena, portanto, dar-lhes a palavra, chamá-las a participar, porque em nome das crianças e pelo seu bem-estar é possível que os adultos aceitem mudanças que dificilmente estariam dispostos a aceitar por outras motivações. Crianças ouvidas sobre essas mudanças sugeriram, por exemplo, a diminuição da diferença entre o centro e a periferia da cidade na qualidade dos serviços públicos de coleta de lixo, saneamento, iluminação pública, transporte, lazer e na qualidade da escola; o respeito a todos as pessoas, principalmente crianças e idosos e pessoas com deficiência. São medidas de caráter político, econômico e social; em última análise, cultural. Que políticas públicas são necessárias para que haja cidades que escutem e respeitem as crianças? As políticas públicas que escutam as crianças sem dúvida serão orientadas a oferecer os serviços essenciais de saúde, educação, alimentação, água, higiene e limpeza, moradia adequada, meio ambiente saudável, espaços de brincar, de aventura, de passeio e lazer seguros, lugares para encontros intergeracionais, cinema e teatro para crianças. Quais? Escutemo-las para saber! O que é preciso para que essas políticas sejam adequadas e realmente funcionem? Primeiro, a concepção de que as crianças são cidadãs. Elas têm direito ao espaço coletivo e a espaços próprios em que possam viver a infância com liberdade e expressividade. Segundo, o reconhecimento de que as crianças, desde a mais tenra
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idade, são capazes. Elas percebem o que se passa ao seu redor. E constroem ideias sobre tudo ou quase tudo o que tem a ver com a vida delas e das pessoas com as quais convivem. Elas as manifestam de diversas formas, desde a expressão facial e dos olhos, a posição do corpo, o choro e o sorriso, a birra e a agressividade, a reclusão em si mesmas e a viva interação, o adoecimento e a saúde, a iniciativa e a curiosidade, até a fala explícita do que querem ou não querem. Terceiro, a disposição de ouvir as crianças. E, finalmente, a competência dos gestores públicos e dos profissionais para promover processos de escuta em que as crianças expressem com liberdade, espontaneidade e verdade o que sentem e pensam. Na experiência de Fano, há um Conselho das Crianças. O que essa prática pode trazer como aprendizagens importantes para a vida, tanto para as crianças quanto para os adultos? Um Conselho de Crianças, como existe em muitas cidades italianas além de Fano, é um instrumento de participação que motiva crianças e adolescentes a observar, analisar e propor medidas de melhoria na vida urbana, mas inadequados para bebês e crianças de poucos anos de idade. Estas têm outras formas de participar. Que serviços seriam essenciais na esfera pública para possibilitar essa experiência? Primeiro, avançarmos na consciência de que as crianças têm direitos à cidade, não apenas como usuárias e consumidoras de bens e serviços, mas também como grupo social que opina, propõe, ajuda a decidir. Segundo, é preciso que a legislação sobre os direitos da criança explicite o direito à participação desde a mais tenra idade. O Estatuto da Criança e do Adolescente quase silencia esse direito. Parcimoniosamente fala da escuta da criança quando trata da adoção e da colocação em família substituta. Está na hora de acrescentar que o Poder Público deve incluir as crianças como participantes na definição das políticas públicas e das ações que a elas se destinam. Terceiro, formar pessoas, em diversos campos profissionais, para promover adequados processos de escuta. A educação infantil tem uma longa e diversificada habilidade de fazer isso desde a creche. Equipes de educadores, sociólogos, psicólogos e artistas podem desenhar estratégias de formação para a escuta competente das crianças. Uma experiência malsucedida para as crianças — por exemplo, não serem ouvidas em suas reivindicações — poderia causar uma decepção maior do que a de não participarem das decisões? Não necessariamente. Se algumas se decepcionam, outras saberão exigir que, na próxima vez, os adultos respeitem suas ideias ou lhes digam por que não atenderam as sugestões. Assim, elas passam a ser “educadoras” dos adultos que as ouvem. Pior do que não ser atendido é não ser ouvido, sequer ter sido lembrado. Reconheçamos, no
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entanto, que ouvir as crianças já é uma atitude de abertura, que demonstra sensibilidade para com elas como sujeitos sociais. O senhor tem conhecimento de alguma comunidade no Brasil que tenha essa preocupação? O Brasil criou a Rede Brasileira de Cidades Educadoras e faz parte da Associação Internacional de Cidades Educadoras (AICE), que tem sede em Barcelona, Espanha. Cerca de 480 cidades, nos cinco continentes, possuem esse título. No Brasil, são 17 cidades. Elas planejam espaços, criam projetos e realizam atividades que promovem o bem comum e o respeito a todas as pessoas. Que lições os adultos deveriam aprender com a escuta das crianças? Primeira lição: as crianças têm percepções sensíveis da realidade e de como ela pode mudar para melhor. Segunda: devemos valorizar suas sugestões pelo respeito que elas merecem como sujeitos sociais. Além disso, quem se dispõe a ouvi-las deve ser honesto consigo mesmo: a escuta não é feita para “colocar no relatório”, dar a impressão de viver uma democracia que abrange inclusive as crianças. Também devemos aprender que participar não é apenas opinar, mas ser coconstrutor de uma ação. As crianças devem ser informadas sobre as ideias e sugestões que foram acolhidas e incorporadas na decisão, no projeto ou na ação objeto da escuta. É preciso sempre lhes dar o retorno do processo de escuta, explicar-lhes como suas sugestões entraram no formato final do trabalho e por que algumas não foram contempladas. Finalmente, a interlocução deve ser sensível às formas de comunicação das crianças nas diferentes idades.
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Crédito da Foto: Gláucio Bastos Dettmar Consulta a Revista Pátio número 40 – A infância e a cidade – julho de 2014 – Disponível em http://www.grupoa.com.br/revista-patio/Default.aspx. Acesso em 08.05.2015
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PARTICIPAÇÃO INFANTIL NO PLANO NACIONAL PELA PRIMEIRA INFÂNCIA (1) AS VOZES DAS CRIANÇAS BRASILEIRAS
No final de 2008, as organizações que fazem parte da Rede Nacional Primeira Infância se deram conta de que poderiam enriquecer o Plano Nacional pela Primeira Infância, em cuja concepção estavam imersas há mais de dois anos, se considerassem os pontos de vista de suas principais interessadas: as crianças pequenas. Surgiu então a proposta de uma pesquisa nacional, com crianças de todo o Brasil. É o Projeto Crianças na Rede (...). Pela primeira vez, em nosso país, um plano que diz respeito às crianças considera o ponto de vista delas. O Plano Nacional pela Primeira Infância contribui para a concepção das políticas públicas relativas aos cuidados e à educação das crianças pequenas. Envolve não apenas a educação infantil, mas tudo aquilo de que elas precisam para crescer saudáveis, seguras e capazes de aprender: saúde, nutrição, vida em família e em comunidade. Esses temas foram trabalhados com crianças de diversas partes do Brasil, para saber o que para elas é importante, do que precisam, o que não podem ficar sem. Considerando a tenra idade de todas as participantes, técnicas de avaliação psicopedagógicas substituíram as discussões usuais. Temas e pontos de vista se revelaram em meio a jogos, desenhos, conversas e brincadeiras, durante os quais foram observados gestos, movimentação corporal, reações aos estímulos, jeito de se relacionarem com os demais e a descrição dos próprios desenhos. O mais surpreendente foi perceber a clareza com que as crianças elegeram suas prioridades. Bons pais, antes de tudo, “os protetores da criança”, nas palavras delas. Depois, casa e comida, que “sem casa vai morar embaixo da ponte”, e sem comida “fica doente e acaba no hospital”. Além disso, uma boa escola, em que brincar e aprender aconteçam simultaneamente, e um hospital alegre, pois “brincando a gente sara mais depressa”. Essa visão sistêmica faz parte da criança, que enxerga o mundo como uma porção de partes interligadas que fazem o todo funcionar. Como os adultos se esqueceram disso?! Como escolhemos as crianças O que pensam as crianças brasileiras? Meninos e meninas que vivem em pequenas cidades do Nordeste pensam como a criança paulistana? No Brasil existem mais de 23 milhões de crianças com até 6 anos de idade, com diversidade de repertórios, costumes e condições de vida que se poderia falar em muitos Brasis. Neste estudo não conseguiríamos abranger todos eles. Foram pesquisadas 95 crianças, de 5 e 6 anos, das cinco regiões do Brasil: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que, no conjunto, representam um pouco da diversidade brasileira. As crianças foram selecionadas por
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empresa especializada em recrutamento e pesquisa, equilibrando crianças usuárias de serviços de saúde e educação da rede pública e privada, nas classes AB e CD. Ao todo, formaram-se 16 grupos, com média de seis participantes, em nove capitais: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília, Recife, Porto Alegre, Florianópolis, João Pessoa e Manaus. As crianças foram agrupadas segundo norma de classifi-
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cação conhecida como 'teoria do pequeno grupo social'. Desta forma, 12 grupos foram compostos por crianças de mesmo nível socioeconômico, moradoras da mesma região. Os quatro restantes foram mistos, a fim de investigar como se dá a dinâmica quando existe diversidade, o que acontece quando crianças de diferentes níveis socioeconômicos se juntam. Diferentes no ter, iguais no ser A pesquisa se valeu do recorte das classes sociais como parâmetro, para falar em diferenças e semelhanças. Em primeiro lugar, porém, está a criança. Por mais que tenham vidas diferentes e frequentem meios, escolas e hospitais distintos são muito semelhantes em seus valores e nas percepções das necessidades humanas. O trabalho com todas as crianças foi igualmente lúdico, divertido e criativo. As diferenças aparecem, de fato, nas coisas materiais: qualidade das roupas, variedade de brinquedos e repertórios, e possibilidades de diversão. Interessante observar que, muitas vezes, as crianças de classe mais baixa se mostram mais criativas do que as demais, pois foram ensinadas pela vida a inventar coisas do nada. Mais do que a classe social, o que parece fazer a diferença é a família de mente mais ou menos aberta, a escola que dá mais ou menos liberdade para brincar, mais ou menos recursos para aprender. As crianças de classes mais favorecidas apresentam muitos recursos, agendas e compromissos, enquanto as demais têm mais liberdade, mais brincadeiras. Em geral, as crianças percebem a realidade umas das outras: quem tem muito consegue enxergar aqueles que têm pouco ou nada; quem tem pouco, sabe que não está sendo atendido em suas necessidades básicas, mas também sabe que tem criança vivendo pior. No ter, existem mesmo muitas diferenças, mas no ser as crianças são profundamente iguais. Em que língua conversamos As crianças pequenas se expressam não apenas com palavras, mas também por gestos, sons, risos e movimentos do corpo. Sua linguagem preferida é o brincar, e a pesquisa foi, na verdade, uma grande brincadeira. As discussões, usuais nos grupos de
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adultos, foram substituídas por técnicas de avaliação psicopedagógicas, a partir do que a pesquisadora chamou de laboratório criativo, baseada na observação do brincar, respostas aos estímulos oferecidos e nas falas, que pintam um quadro das percepções das crianças. A pesquisa partiu de pressupostos de Piaget e outros precursores da visão construtivista, partidários da ideia de que o ser humano constrói o conhecimento. Foram usadas também outras técnicas de autores respeitados nos meios acadêmicos, capazes de contribuir para desvendar o universo da criança. O trabalho foi conduzido por pesquisadora experiente, apoiada por uma psicopedagoga, que participou ativamente de todos os grupos: fotografando, conversando com as crianças, registrando, observando.
Recursos utilizados para apoiar a pesquisa e estimular as crianças Conversas e jogos verbais sobre as prioridades: em grupo e individuais; Brinquedos trazidos de casa, contando sobre interesses, estímulos e afetos; Papel, lápis e canetinhas coloridas, para desenhar a casa, a família e coisas que gostam de fazer juntas; Fantoches usados para representar situações na escola e no hospital; Panos coloridos que viram travesseiro e lençol na hora de descansar e servem de apoio para as representações; Trabalho livre com sucata (caixas, embalagens vazias, sobras, retalhos; tesoura e fita crepe), para um brincar livre, revelando processos criativos, expressão e plasticidade na interação com diferentes materiais.
Trechos selecionados da publicação “O que a criança não pode ficar sem, por ela mesma – Participação Infantil no Plano Nacional pela Primeira Infância”, uma iniciativa da Rede Nacional de Primeira Infância, realização Ato Cidadão e Instituto C&A , São Paulo, junho de 2010, apresentação e p. 21 a 25.
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PARTICIPAÇÃO INFANTIL NO PLANO NACIONAL PELA PRIMEIRA INFÂNCIA (2) O QUE A CRIANÇA NÃO PODE FICAR SEM
As crianças surpreendem pela clareza com que distinguem as necessidades básicas das demais necessidades. De um lado, relacionam o que é alicerce, o dentro, aquilo que não dá para ficar sem de jeito nenhum: comida, família e casa, o tripé básico. Do outro, o fora: hospital e escola. E o brincar, permeando tudo. “Sem brincar, a criança fica triste, fica muda”. Também deixam claro que não dá para separar uma coisa da outra, pois está tudo conectado. Em sua visão intuitiva do todo, é difícil excluir e hierarquizar. Não dá para dizer, por exemplo, o que é mais importante, se casa ou família: “Sem família não tem quem cuide e sem casa vai para debaixo da ponte”. Casa e escola estão igualmente interligadas, assim como comida e escola: “Se não tiver casa fica na rua, não dá pra estudar. Sem escola fica burro”, e “se não comer fica doente, e se estiver doente não dá para ir à escola”. E há ainda um terceiro tema, que se insere nessa teia de necessidades: dinheiro e trabalho. O que precisam custa dinheiro, por isso não dá para ficar sem: “Se não tiver, falta coisa em casa”. As crianças apresentam uma verdadeira cesta básica de necessidades humanas, em que a mídia e as tecnologias aparecem somente como instrumentos, embora tenham impacto forte sobre suas vidas. “Criança precisa de tevê?”. “Não. Mas é gostoso ver tevê”. “Dá para ficar sem?”. “Dá, até dá!”. “Se ficar sem comer a barriga fica roncando, pode até ficar doente e morrer, mas se ficar sem televisão não acontece nada”. O pano de fundo de tudo isso é a natureza, o meio ambiente, o meio onde estão inseridas: tanto pode ser o natural como o construído - o bairro, a cidade. Gostam das plantas, dos animais, ouvem tiros lá fora, sabem que tem bandido. Não dissociam nada, tudo faz parte. “Hora de comer é sagrada” “Criança não pode ficar sem comida”. Foi a primeira resposta, em quase todos os grupos, independentemente da classe social e da história de vida, à pergunta: “Do que a criança precisa? O que não pode ficar sem?”. Curioso é que o alimento não fazia parte dos temas priorizados pela Rede. As crianças, no entanto, ressaltaram comida e bebida como primeira necessidade básica. Criança precisa comer muito e direito: “Se não comer fica branco, amarelo, roxo”. “Se não beber, fica desidratado”, e “saco vazio não fica de pé”. Mas tem que ser alimento bom, que promova a saúde, não pode ser qualquer coisa. Algumas falam de brócolis, beterraba e peixe, ou de macaxeira, bergamota e outras particularidades regionais, mas todas falam de arroz com feijão, verduras, legumes, frutas, carne e leite. E sabem muito bem diferenciar o que é bom, faz crescer e traz saúde, do que é “besteira, porcaria”. Adoram doces, mas sabem que “açúcar engorda, estraga os dentes”. Até preferem o suco de caixinha, mas não
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duvidam que o suco natural, espremido da fruta, é o melhor. Isso não quer dizer que saber o que é bom implique escolher o que é bom. Mas o que importa nisso tudo é a percepção do valor dos alimentos. Muda a classe social, muda a região do país, muda o repertório culinário, mas o valor é o mesmo. E do valor dos alimentos as crianças seguem muito rapidamente para o valor de ter o que comer. E começam a falar dos mendigos, das pessoas que não têm casa e nem comida. “tem criança pobre que não tem comida. É muito ruim”, “lá perto da minha casa tem um monte de criança sem comida; uma só tinha uma bolacha”, “é muito triste não ter comida, comer coisa do chão”. E falam disso com dor e compaixão, pois na sua visão de mundo ainda reconhecem no outro um igual. “Criança precisa de casa e espaço” Desenhar a própria casa é sempre um bom recurso para usar com as crianças pequenas quando queremos saber sobre sua vida, sua família, elas mesmas. Mais do que contar sobre o lugar onde mora, a casa desenhada por uma criança revela a casa interior e também os seus sonhos. Uma casa linda, colorida, com arco-íris no céu, pode representar o desejo de uma criança que vive de forma precária, ou mostrar o quanto uma criança está bem, ainda que em cenário de faltas. Assim como uma casa escura, sem porta e janelas, pode ser o reflexo de família desestruturada. A primeira ideia foi essa. Usar a casa como recurso de pesquisa. Mas as crianças decidiram que seria muito mais do que isso. A casa foi mostrada por elas como coisa essencial, que não dá para ficar sem. Desenhar foi atividade silenciosa e concentrada. Além da casa, deveriam desenhar a família e uma atividade que a criança gostasse de fazer junto com a família. Quem terminasse conversaria com a pesquisadora falando do seu desenho. Falas e traços, palavras e cores contaram muitas histórias e revelaram mais semelhanças do que diferenças entre as classes sociais. Assim como crianças que moram em boas casas não conseguiram passá-las para o papel, crianças que vivem em casas precárias conseguiram projetar o seu sonho, em gesto saudável e promissor. Desses gestos nasceu a casa nas rochas, de frente para o mar, “que eu vou construir para minha mãe”. A casa que não tem quintal, “mas eu desenhei um quintalzinho para poder brincar”. O menino com traços indígenas mostrou a casa sem televisão, “porque à noite meu pai leva a gente para ver a lua e depois a gente vai dormir”, em clara referência à felicidade revelada pelo valor das relações. Uma menina, muito fechada em si mesma, desenhou uma casa sem janelas. Outra criança, mal sabia
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desenhar e está a caminho da alfabetização. Como ela aprenderá a escrever se não consegue fechar o círculo? Entre outras coisas, o desenho mostra o estágio de desenvolvimento da criança, apontando para o melhor rumo a seguir. “Familia é ficar junto” Para as crianças, a família é tudo. “Sem família, a criança se perde na floresta e chora”, como no conto de João e Maria. Os pais são os “protetores das crianças”. Compram comida e as coisas de que precisam; dão carinho, afeto e “beijo de boa noite”. É também quem educa: “Quando eu faço alguma coisa errada meu pai diz: Arthur, Arthur, Arthur!”. Para boa parte das crianças, “família é grande e bom”, e enfileiram tios, primos, o avô que já morreu e até o brinquedo preferido. De verdade, de verdade, “família é estar junto”. É interessante notar quantas composições diferentes cabem debaixo desse conceito: em famílias de pais separados, há criança que mora com o pai, com a mãe e o novo marido, com irmãos de outros casamentos, somente com a mãe ou somente com o pai. Tudo bem para elas, quando não existem conflitos. Ruim é quando “falta paz e alegria em casa, todo dia sai briga”, quando “minha mãe e a nova mulher do meu pai brigam”, ou quando “a casa não é alegre, minha mãe tem namorado, mas não pode falar”. Olhando para os desenhos, as crianças abrem a porta de sua casa e começam a contar o que acontece lá dentro. Há mais famílias estruturadas e felizes na classe AB, mas dificuldades e tristezas não são privilégios das menos favorecidas. Na classe CD, mais da metade das famílias tem graves problemas materiais e emocionais. A coisa se complica quando os dois se juntam: não ter nada na geladeira para comer e ainda pai e mãe brigando. A violência apareceu nas relações familiares, brinquedos e brincadeiras. Às vezes, vem camuflada, como na representação com fantoches, em que as crianças lutam, se estapeiam e dizem que estão brincando. A violência mostra a cara quando o pai chega tarde e dá briga “até no dia do meu aniversário”; quando o pai bate nas filhas e a mãe só chora; quando “o padrasto me xinga porque eu brinco de Barbie”; quando o menino fica sozinho porque os pais vão trabalhar; quando faltam dinheiro e comida em casa. Pior mesmo é “a família que não faz nada junto, fica triste”. Escola é onde o aprender e o brincar deveriam andar juntos Aos seis anos de idade, boa parte das crianças já concluiu que “a escola é chata”, embora elas saibam muito bem que sem escola “fica burra” e “vai vender banana na feira”, ou talvez nem isso.
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A escola costuma frustrar as expectativas das crianças, pois pouco se parece com o espaço de brincar e conviver que esperavam encontrar. Por que a escola divide o estudar calado, dentro da sala de aula, e o brincar falante, lá fora, no pátio? Criança nenhuma entende essa lógica: “A gente aprende com brinquedos, com amigos, com jogos, com a vida”. Além disso, seria muito mais divertido aprender brincando, porque “criança adora brincar”, “brincar deixa a criança feliz”. As crianças que frequentam escola particular mostram a escola mais legal: rica, interessante, com profusão de estímulos e atividades. Elas “amam a escola”, e esse amor aparece no teatro de fantoches, que um grupo nomeou de “O menino que sempre quis ir à escola”. A escola chata é pintada como desorganizada, precária, bagunçada, e com viés de violência, relatado principalmente pelas crianças da rede pública. Nas representações, os fantoches se estapeiam. “Dei um soco no menino e quebrei o dente dele”, “eu preferia não ter que ir mais”. A violência mostra o rosto de muitos outros jeitos: na tinta descascada das paredes da escola, nas goteiras do telhado e na desigualdade que começa a se prenunciar nos primeiros anos escolares. Será que a origem da violência futura não está na infelicidade e expectativas frustradas que aparecem aqui? Até porque o desejo de ir à escola é muito grande: para lá que querem ir. Mas, cedo demais, muitas descobrem que não é bom. Aos cinco, seis anos de idade, as crianças são praticamente iguais, em sua vitalidade e vontade de apreender o mundo. Umas são mais espertas pela experiência de vida mais livre e exercício da criatividade, inventando brinquedos a partir do nada. Outras são mais sabidas na escrita, em um acesso mais amplo que têm às coisas e às informações. Mas isso não significa grande coisa, até o momento em que as crianças começam a frequentar escolas desiguais, que geram aprendizados desiguais e oportunidades desiguais vida afora. Isso não deveria acontecer. Criança adora falar e ser ouvida. E sabe ouvir também. Aprender e brincar andam juntos, e todas as coisas se conectam. A gente “precisa de comida para estudar, ficar grande, trabalhar e arranjar namorada”. Precisa estudar para ter dinheiro e comprar “uma casa nas rochas para a minha mãe”.
Trechos selecionados da publicação “O que a criança não pode ficar sem, por ela mesma – Participação Infantil no Plano Nacional pela Primeira Infância”, uma iniciativa da Rede Nacional de Primeira Infância, realização Ato Cidadão e Instituto C&A, São Paulo, junho de 2010, p.27 a 34.
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COMO ESCUTAR CRIANÇAS – INDICAÇÃO DE ATITUDES, METODOLOGIA E DICAS SOBRE COMO ORGANIZAR OFICINAS COM CRIANÇAS
É bem recente a mudança do pensamento tradicional sobre o poder exclusivo do adulto de se expressar e definir o que acredita ser o melhor para as crianças. Só a partir da década de 1990, reconheceu-se que as crianças têm o direito de expressar livremente sua opinião sobre qualquer tema que as interesse e cujas decisões as afetem diretamente. Diante disso, torna-se necessário que os adultos aprendam a escutar e respeitar as vozes das crianças, no sentido de garantir o direito à participação infantil na construção do entorno em que vivem, e na construção de políticas públicas. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que as crianças utilizam diversas formas de comunicação, que vão muito além das palavras - gestos, olhares, sons, silêncios, risos, movimentos do corpo, expressões plásticas, música, brincadeiras e tantas outras -, para nos mostrar o que sentem, o que precisam e o que não podem ficar sem. Se soubermos entender o que nos dizem, não apenas com nossos ouvidos, mas com todos os sentidos, poderemos atuar melhor junto a elas, ajudando-as a crescer de forma harmoniosa e saudável, e, também, aprender muito com elas. A Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), em sua publicação "O que a criança não pode ficar sem, por ela mesma" (2010), traz a reflexão de que as crianças têm a autonomia para viver sua própria história, fazer suas escolhas com base em regras, princípios e valores que levam em conta o que é melhor para si e também para o outro com quem convive. São também sujeitos de direitos, sensíveis ao meio e às pessoas, perceptivas, intuitivas e profundamente éticas em sua essência, devido à sua forte sensibilidade diante das necessidades humanas. Para a Rede Nacional, a promoção da livre expressão das crianças está diretamente relacionada à construção de uma sociedade demo-crática e com a formação para a cidadania. O projeto Posso Falar?, ao fomentar espaços de participação infantil para fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos, compartilha desses mesmos pressupostos e compreende as crianças como protagonistas das relações sociais, conhecedoras de suas próprias vidas, e, acima de tudo, conectadas aos adultos e a outras crianças (MALAGUZZI, apud MOSS; PETRIE, 2002)1. Abramowicz (2011) confirma que a fala da criança é uma inversão nos processos de subalternização; um movimento político de inversão de uma lógica posta há muitos anos. Entende que trabalhar com crianças, a partir de sua própria voz, se inscreve em uma micropolítica, em uma espécie de movimento político, pois, ainda hoje, a escola está orientada para a conformação política da criança e é incapaz de escutá-la adequadamente.
1 MOSS, Peter. Beyond early childhood education and care.In: Starting Strong: early childhood educational Care International Conference, Stockholm,2001. Disponível em: www.oecd.org
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Entende, ainda, que a escuta de crianças deve ser uma escuta qualificada, observando critérios técnicos e pedagógicos na qual a aceitação do outro seja incondicional e reconhecendo o sujeito que fala em “seu ser” - dentro da qualidade de pessoa complexa dotada de liberdade e de imaginação criadora. Para tanto, é preciso estar atento a algumas atitudes e práticas cotidianas do mundo adulto que criam barreiras e nos impedem de escutar qualificadamente as crianças. Tais barreiras quase sempre têm a ver com o receio de perder o poder e o controle sobre as crianças. Temos o costume de acreditar que sempre é necessário ensinar algo - visão utilitária e produtiva do tempo, que desvaloriza o brincar e nos priva de oportunidades para desfrutar o tempo com elas. Além disso, demonstramos muitas vezes falta de interesse e de credibilidade nas suas capacidades, pontos de vista e opiniões. Atualmente, muitas pesquisas e estudos feitos em vários países visam a aprimorar os processos de escuta e de participação infantil. Não são as crianças que precisam se adaptar às nossas formas de comunicação, somos nós, adultos, que precisamos aprender a perceber melhor as diversas maneiras de expressão de uma criança. No projeto "ESCUCHAR A LOS NIÑOS - La inclusión de diversas voces en un proyecto de participación de la primera infancia", orientado por María Morfín Stoopen e realizado no México em 2009, foi elaborado um guia para famílias e professores, do qual destacamos algumas ideias centrais: Estar presente para escutar - Presença de quem escuta significa completa disposição de atender aquele que se expressa. Isso pode incluir contato visual e, às vezes, físico com quem fala. É preciso também eliminar as distrações e ter paciência. Respeitar o silêncio - Uma das práticas mais difíceis para os adultos é respeitar o silêncio e permitir que a criança se expresse no seu ritmo. É preciso não temer os silêncios; é preciso não interromper o interlocutor com perguntas, conselhos e discursos. Respeitar as opiniões das crianças - O respeito é fundamental para a boa escuta e se dá quando somos capazes de aceitar a opinião da criança com todas suas dúvidas, erros de linguagem e crenças. Em geral, trata-se de dar às crianças o mesmo respeito com que nos relacionamos com as demais pessoas. Conversar com as crianças e não para as crianças - Conversar com as crianças implica uma conversa bilateral; falar para as crianças, uma conversa unilateral. Em um diálogo, ambas as partes têm a possibilidade de dar sua opinião.
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Escutar ativamente - Escuta ativa significa que quem escuta dá sinais de atendimento e entendimento a quem se expressa. Tais sinais podem ser dados por meio de frases que repetem a ideia do emissor, ou perguntas para confirmar que a mensagem foi compreendida. É importante apreciar o esforço do interlocutor e estar atento à sua disposição para seguir ou não com a conversação. Expressar nossa opinião - Ao expressar a nossa opinião, é recomendável evitar a crítica direta. O melhor é falar sobre nossos sentimentos em relação às suas atitudes ou ações. A franqueza é fundamental, até quando implica admitir não sabermos algo. Reforçar as mensagens positivas - Em geral, mensagens que utilizam a palavra "não" são mais difíceis de compreender, em relação às que são dadas de maneira positiva.
Dicas de Como Organizar e Realizar Oficinas: As oficinas são formas de trabalho em grupo que visam promover um espaço de falas, trocas de saberes e ações entre participantes e facilitadores, onde os participantes podem dar suas opiniões e criar coletivamente soluções para problemas que os afetam. Vale ressaltar que o facilitador deve entrar no “mundo das crianças”, partindo do princípio de que não sabe nada, criando e recriando a cada momento, a cada nova ideia, a cada novo estímulo. Deve também investigar o diálogo a partir das pistas fornecidas pelas crianças, utilizando a mesma linguagem que esteja fluindo naquele momento, pois é preciso aproveitar as falas das crianças e trabalhar com elas os temas que vão aparecendo ao longo do processo. O roteiro, portanto, deve ser orgânico para ir “seguindo” as crianças. Caso os temas não apareçam naturalmente, podem ser estimulados com perguntas. Outro ponto essencial é o ritmo. Devem-se intercalar jogos, conversas, brincadeiras e desenhos. É importante lembrar que as crianças demandam relacionamento, querem e gostam de ter alguém que olhe para elas e as escute.
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Aspectos relevantes para realizar oficinas participativas com crianças: Facilitadores - Para uma melhor organização da oficina e para que todas as crianças sejam ouvidas ao longo do trabalho, é preferível que o grupo seja conduzido por uma dupla de facilitadores. Um facilitador fica responsável por propor as atividades durante a oficina e por conduzi-la; o outro fica atento aos materiais necessários, ajuda a chamar as crianças para as atividades e a fazer o registro do encontro. Tamanho do grupo - Para que as falas das crianças sejam ouvidas e debatidas pelo grupo, é melhor que o número de participantes varie de 4 a 12 pessoas - a oficina requer a pluralidade de opiniões resultante de uma discussão coletiva. Caso o grupo seja muito pequeno, a presença de dois facilitadores pode fazer com que as crianças se sintam inibidas. Registro e reflexão – É comum que os facilitadores tenham expectativas sobre como as crianças deveriam se comportar e quais falas deveriam surgir nas oficinas. Isso acaba fazendo com que o facilitador não escute o que elas estão dizendo e perca a riqueza do que foi produzido durante o encontro. Somente depois, ao refletir sobre o que foi registrado o facilitador compreende o que acontecera, podendo se surpreender com o conteúdo e a forma como as crianças deram suas opiniões. Cabe, portanto, ao facilitador anotar, sem interpretações ou hipóteses, as falas das crianças durante as atividades, para, posteriormente, a partir de uma reflexão sobre seus registros, fazer um relatório mais detalhado. Idades – Preferencialmente deve-se trabalhar com crianças de idades entre 4 e 12 anos, considerando-se, porém, que uma oficina com crianças de 5 anos é bem diferente de uma oficina com crianças de 10. É preciso sempre adequar a proposta de trabalho à faixa etária do grupo, de tal forma que a atividade seja compreendida e aproveitada pelos participantes. Imprevistos – Os facilitadores precisam planejar as atividades, sabendo com clareza os objetivos da oficina e organizando com antecedência o material a ser utilizado. Os facilitadores têm de ter jogo de cintura e inventar soluções criativas para os problemas e descompassos que possam surgir. Sabendo o objetivo do trabalho, fica mais fácil adotar novas estratégias, caso a originalmente planejada não funcione com aquele grupo. Duração – As oficinas devem respeitar o tempo do grupo. Quando as crianças começarem a ficar dispersas ou a demonstrar desinteresse, pode ser o momento de mudar de atividade ou de encerrá-la. Em geral, uma oficina dura cerca de uma hora, podendo se estender até no máximo por duas horas.
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Assuntos de interesse – É fundamental que a proposta de trabalho esteja inserida num conjunto de temas que faça parte do cotidiano das crianças. Os facilitadores devem recorrer a assuntos próximos à vida delas. Muitas vezes, precisam ser persistentes ao explicar as atividades e ao fazer indagações; o mesmo assunto pode ser perguntado de diferentes maneiras para que o grupo possa compreender o que está sendo proposto. Início, meio, fim – É importante criar um percurso para a oficina, isto é, ter um início, um meio e um encerramento da atividade. O trabalho deve sempre começar com a explicação sobre o que será feito e o seu objetivo. Após a realização das atividades programadas, os facilitadores devem propor ao grupo uma reflexão final para encerrar a oficina. Nesse momento, as crianças podem falar sobre o que acharam do trabalho, os pontos positivos e negativos do processo. Caso a oficina seja composta por dois ou mais encontros, é importante que os facilitadores ajudem as crianças a relembrar o que acontecera no encontro anterior, retomando algumas falas para, então, dar início à atividade daquele dia. Autorizações – Os responsáveis pelas crianças devem estar cientes da oficina e autorizar a participação delas. Uma reunião com responsáveis ou o envio de uma circular são formas de apresentar a proposta da oficina e esclarecer as possíveis dúvidas sobre o processo. Caso o encontro seja registrado em vídeo ou fotografia, é indispensável pedir a autorização de uso da imagem das crianças, explicando como se pensa utilizá-la. Com base nos referidos pressupostos teórico-metodológicos, o projeto Posso Falar? busca construir espaços de participação de crianças em contexto de Trabalho Infantil, no estado da Bahia, com vistas ao fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos (SGD), mediante a disseminação de estratégias, ações e metodologias de escuta qualificada de crianças junto aos gestores, legisladores e agentes públicos das áreas de educação.
REFERENCIAS Primeira Infância em Primeiro Lugar: experiências e estratégias de advocacy / Organizado por Maria Thereza Oliva Marcílio e Gustavo Amora. - Salvador 2011. O que a criança não pode ficar sem, por ela mesma - Participação infantil no Plano Nacional pela Primeira Infância / Rede Nacional Primeira Infância. - São Paulo 2010. Vamos Ouvir as Crianças? Caderno de Metodologias Participativas do Projeto Criança Pequena em Foco - CECIP. - Rio de Janeiro 2013. Entrevista com Anete Abramowicz: Discussões sobre a criança, a infância e a Educação Infantil. Disponível em http://www.fecilcam.br/revista/index.php/nupem/article/ viewFile/ 49/36 - Acesso: 02 de maio de 2015