Edição 73, agosto / 1997

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Revista trimestral de debates da FASE • Ano 26 •Junho/Agosto de 1997 • Nº 73 • Preço: R$ 6,00

IRGÍNIA FONTES Reflexão Histórica o Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil CÉSAR A. MIQUEL O Índice de Desenvolvimento Humano: uma proposta conceituai MARCELO PAIXÃO E ÂNIA SANT' ANNA Desenvolvimento umano e População fro-Descendente no Brasil: uma uestão de raça

esende de Carvalho • Cunca Bocayuva lANA LÚCIA SABOIA lAlgumas

~onsiderações

Sobre o Trabalho ~ as Crianças ~ e 5 a 9 Anos a ~artir dos Dados Cta PNAD

ODESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL 12iFASE


CO SEL HO DELIBERATIVO PRESIDENTE Ana Clara Torres Ribeiro VICE-PRESIDENTE Raimundo J. B. Tei xe ira Mendes I " SECRETÁR I A Leilah Landirn Ass umpçào 2" SECRETÁ RI A Márc ia Pereira Leite 3" SECRETÁR IO Revdo. Paulo Pena Sehutz

SUPLENTES Décio Lima de Castro Fernanda Carí sio Luis Carlos Delorne Prado Maria Lucia Kara n Paulo Tott i CONSELHO FI SCA L Jorge Vicente Muiioz Ca rl os Bernardo Va iner Tito Lívio Lucio de O. Ramos Neto SUPLENTES Ricarto de Gouvêa Corrêa José Moreira Ba rtholo ASSOC I ADOS EFET I VOS José Sérg io Lopes • Sil vio Cacc ia Bava • Brau li o Rodrigues da Si lva • Sérgio Goes de Paula • Ros iska Darcy de Oli ve ira • Cândido Grzy bowsk i • Herbert de Souza • Otávio Guilherme Ca rdoso Alves Ve lho • Lysâneas Mac iel • Otí lia Si lva Leite • Luís Ed uardo Soares • Ênio Candott i • Uri Gomes Mac hado • Alexandre Sgrezia • Lizt Vie ira • Antonio Abreu • Carlos Ne lson Coutinho · Luiz Go nzaga Ulhoa Tenório • Renato Sé rgio Maluf • Ricardo Peret • Pe. Adclar Pedro de David • Lícia Va ladares • Wanda Enge l Aduan • Peter Co ll ins Cona DIRETOR EXECUTIVO Jorge Ed uardo Saavedra Durão DIRETOR DA ÁREA TR A BALHO E RENDA Pedro Claud io Cunca Bocayuva Cunha DIRETORA DA ÁREA MEIO AMB IENTE E DESENVOLVIMENTO Maria Emili a Lisboa Pacheco DIRETOR DA ÁREA POLÍTICAS PÚBLICAS E CIDADAN I A

Orlando Alves dos San tos Junior

FASE • educando para a cidadania e o desenvolvimento Fundada em 196 1, a FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Eucacional - teve seu ponto de partida no trabalho de organização e desenvolvimen to local, comunitário e cooperativo. Durante o período militar-autoritário, a FASE dedicou-se ao opoo o atividade de organização de base e aos processos de construção da democracia e da cidadania. A partir da décoda de 80, a FASE concentrou suas ações na busca de alternativas poro a crise do atual modelo de desenvovimento que em contribuindo para um a maior conce ntra ção de renda, tem levado grrandes prcelas da população à exclusão social e aumentado a escalada do violência. A FASE é uma organização não-governamental de educação e de desenvolvimento, em fins lucrativos, que atu a em 8 estados da Federação . A FASE no Bra sil é associada à ABONG (Associação Brasileira de ONGs) e internacionalmente à ALOP e ao E/ Ta/ler. Com 35 anos de atuação, a FASE é re conhecida como uma instituição de marcante presença no traietória da s luta s da sociedade brasileira, enraizada nos principais movimen tos sociais e políticos das últimas três décadas. Presença es ta que se conso lida aindapela e fi các ia e efic iênc ia de se us pro;e to s demonstrativos de resu ltados duradouros para grupos específicos, além da produção de e lementos atuantes para a cons trução de uma alternativa de de senvolvimento. No esfera in ternacional, a FASE mantém um diálogo com agência s internacionais no sen tido da construção de plataformas e ações comun s. Participa de redes e campa nhas internacionais pela democra tização da s políticos do s organismos multilaterais. No esfera nacional, a FASE realiza convênios com órgãos públicos para avaliação, elaboração, monito ramento e fiscolizaçõo de pro;etos. Desenvolve parcerias com universidades, institutos, e outras entidades, buscando estimular e socializar a produção de conhecimento através de estudos e pesquisas, e da pulicaçõo de cartilhas, livros e da Revista PROPOSTA, e da promoção de ações coletivas, ta is como campanhas, seminários, palestras e debate s. A FASE é inteiramente independente de governos e partidos políticos . Seu orçamento provém de contribuições individuais e de agências internacionais de solidariedade aos povos do Terceiro Mundo.

MISSÃO • Contribuir paro a construção de umo alternativa de des envolvimento fundada na democracia, na iustiça social, em um desenvolvimento sustentável e na ampliação da es fera pública. • Apoiar, com vis ão e atuação próprias, a constituição, o fortalecim e nto e a articulaçã o de suieitos coletivos do desenvolvimento através de ações educativas e de proietos demon strativos. Objetivos no próximo trienal:

Estratégia

• Promover o cidadan ia lutondopor melhores condi çõ es de portici po çõ o dos cidadãos no vida social, po lítico e econô mica. • Promove r melhores políti cos públicos mediante intervenção junto à oponiõo públicas mediante intervenção junto à opinião público e aos ó rgãos governamentai s. • Con tribuir paro impedir a deterioração dos cond ições de trabalh o e rendo dos assa lariados e o aumento do exc lusão social. Trabalhar com associativismo e cooperativi smo. • Promover o debate público sobre temo s relacionados com o poder locol , através de projetos demonstrativos, urbanos e rura is, e do organização do populaçã o.

Poro o triêni o 96 / 98, a FASE terá como estratégia poro a suo atu a ção no s c inco regiões brasile iros, três temos com a preocupação pe rmanente de enfocar a questão dos jovens e dos relações homem-mulher :

Meio Ambiente e Desenvolvimento Compatibiliza ção do pre-servoçõo do meio ambiente com o desenvolvimento. Trabalho e Renda Melhoria dos condições de trabalho, geração de rendo e errodicoçõo do vio lência nos cidades e no campo.

Cidadania, políticas públicas e questão urbana Participação popular no defini ção dos político s públicas .


O DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL Editorial

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A Reflexão Histórica e o Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil Virgínia Fontes

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O Índice de Desenvolvimento Humano: uma proposta conceituai Cesar A. Miquel Desenvolvimento Humano e População Afro-Descendente no Brasil: uma questão de raça Wânia Sant'anna Marcelo Paixão A Perspectiva de Desenvolvimento, o Ciclo Social de Conferências das Nações Unidas e a Iniciativa do Observatório da Cidadania Sônia Corrêa Entrevistas Maria Alice Resende de Carvalho Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

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42 48

Erradicação da Pobreza: possível agenda comum para o PNUD e as organizações sociais Marcos Arruda

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O Timing e o Déficit das Políticas Sociais: como reduzí-los? Jean-Pierre Leroy

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Algumas Considerações Sobre Trabalho das Crianças de 5 a 9 Anos a Partir dos Dados da PNAD Ana Lucia Saboia Reforma Agrária e Terras Devolutas no Brasil Márcia Maria Menendes Motta

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80


FASE NACIONAL Ruo dos Palmeiras, 90 - Botofogo 22270-070 - Rio de Janeiro - RJ lei. : (021) 2 86 - 1441 Fax: (021) 286-1209 Telex: 2134201 foo s BR E- mail :fose@ o x. opc .org FASE-ABAETETUBA Trov. Pedro Pinheiro Poe s, 330 Caixa Postal 25 68440 -000 - Aboetetubo - PA l ei/ Fa x: (091 ) 751-1181 FASE- BELÉM Ruo Bemol do Couto , 1329 - Umorizol 66055-080 - Belém - PA lei. : (091) 242-0318 Fox: (091) 241-531 O

FASE - MACEIÓ Ruo do Comércio, 41 / Sala l 05 Edifício Santa Terezinho - Centro 57020-000 - Maceió - AL lei. : (082) 221-0667 FASE - MARABÁ Folha 27 - Quadra 07 , Lote 07 - Novo Marabó 68509-160 - Marabó - PA Co ixa Posto 1 7 3 CEP 68508-970 lei. : (091) 322-1591 Fax: (091) 322-1558 FASE - RECIFE Rua Viscondessa do Livrame nto , 168 Derbi 52010-060 - Recife - PE Te l. / Fox: (08 l) 423 -3826

FASE - CÁCERES Rua 06 Quadra 03 , Caso 18 Monte Verde 78200-000 - Cóceres - MT Caixa Postal l O lei. : (082) 223-4615

FASE - RIO DE JANEIRO Av. Pres . Wil son , 113/ 1302 - Centro 20030-020 - Rio de Janeiro - RJ l ei. : (021 ) 220 -7 198 Fax: (021 ) 262 -2 565

FASE - CAPANEMA Av. Preside nte Médici , 1992 68700 -050 - Capanema - PA Tel./ Fax: (091 ) 821 - 171 6

FASE - SÃO PAULO Rua Loefgren , 1651 - Casa 6 - Vila Cleme ntina 04040-032 - São Paulo - SP l ei. : (011 ) 549-3888 Fax: (011) 549-1307

FASE - ITABUNA Rio Barão do Rio Bron co, 93 Califórnia 45 600-000 - ltabuna - BA Tel. / Fo x: (073 ) 211 -4498

FASE - VITÓRIA Ruo Graciano Neve s, 377 / 2° pv. 290 15-53 0 - Vitória - ES l ei/Fax: (027) 223-7436

liFASE Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional Rua das Palm eiras, 90- Bota fogo 22270-070 - Rio de Janeiro - RJ

PROPOSTA Nº 73 - junho/agosto de 1997 Uma publicação trimestral da FASE Conselho Editorial Alberto Lopez Mejía Ana Clara Torres Ribeiro Angela de Carvalho Borba C larice Melamed Grazia de Grazia Haroldo Baptista de Abreu Jean-Pierre Leroy João Ri cardo Dornelles Jorge Eduardo Saavedra Durão Leandro Valarelli Luí s Césa r de Queiroz Ri beiro Marcelo Paix ão Márcia Leite Maria Emíl ia Lisboa Pacheco Orlando dos Sa ntos Júni or Paulo Gonzaga Pedro Cláudio Cunca Bocayu va Ricardo Salles Ricardo Tavares Rosemary Gomes Sandra Mayrin k Veiga Virgínia Fontes Assessora de Comunicação Sandra Mayrink Veiga Editor Responsável Lui s Antonio Correa de Carvalho Subeditor Ricardo Salles Organização nº 73 Ricardo Salles Sand ra Mayrink Veiga Assistente de Publicações Sílvia Helena Matos Brandão Foto de Capa Estúdio e produção genti lmente cedidos por Vagner Sant' anna Capa Amauri Queiroz/Romano Projeto Gráfico e Diagramação Amauri Queiroz Editoração E letrônica Know Sense Comunicação Informações e Vendas Redação Rua das Palmeiras. 90 - Botafogo 222270-070 - Rio de Janeiro - RJ Telefone: (02 l ) 286- 144 1 Fax: (02 1) 286- 1209 Todas as op iniões emitidas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.


A

discussão sobre a finalidade do desenvolvimento, sobre seu sentido ético e moral, toma-se cada vez mais presente. Receitas e milagres econômicos, períodos de taxas de crescimento elevadíssimas, e mesmo revoluções, ao longo do século XX, não permitem otimismos ou diagnósticos fáceis. O mundo, hoje, se não é mais pobre que nunca, é mais desigual e injusto. De acordo com o último relatório do PNUD sobre o desenvolvimento humano (dados de 1994), enquanto a parcela dos 20% mais ricos detem 86% da renda mundial, os 20% mais pobres ficam apenas com 1, 1%. Os níveis de pobreza estão presentes em todos os países, evidentemente em muito maior grau nos países da periferia do sistema, e afetam hoje l/4 da humanidade (o índice da pobreza humana considera a expectativa de vida menor que 40 anos, o analfabetismo adulto, crianças de até 5 anos de idade com insuficiência de peso e acesso a serviços de saúde e água potável). Esta parcela da humanidade tem sua renda per capita menor que nunca. Na África, o número relativo e absoluto de pessoas em situação de pobreza aumentou na década de 90. Mas mesmo no Primeiro Mundo, 100 milhões de pessoas vivem nestas condições. A globalização e as políticas neoliberais parecem não só não ser a solução, mas agravaram o problema: dos 175 países estudados, 100 apresentaram estagnação entre 1980 e 1995; na antiga União Soviética e no Leste Europeu, de um modo geral a situação piorou. Estes dados são relativos ao Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano publicado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas de 1997 (PNUD). Em 1996, pela primeira vez, o PNUD, em parceria com o IPEA, publicou o relatório específico do Brasil. Aguardamos para breve a publicação do relatório deste ano. Mas não é preciso muita perspicácia para perceber que nossa situação não é animadora. Em que pese as constantes declarações do atual governo no sentido de que a estabilização econômica trouxe melhorias para as população - e talvez até por isso mesmo-, podemos perguntar qual a ação significativa realizada no sentido de combate e erradicação da pobreza humana no Brasil? Com efeito, não só nada é feito que expresse uma qualidade nova, como a estabilização econômica, isto é, a normalidade da moeda, é apresentada como o grande trunfo em relação à nossa carência de desenvolvimento. Parece que nossa miséria é fruto da inflação das últimas décadas e não de nossa escravidão e exclusão seculares. Parece que nossa miséria é mais um efeito indesejado da instabilidade da moeda do que um modelo histórico de desenvolvimento e organização social. É pouco para um governo socialdemocrata. Pouco para o balanço de uma década de experiência democrática. Democracia e estabilidade econômica são importantes conquistas dos brasileiros, mas não anteparos ou desculpas postergatórias para que não enfrentemos a questão da miséria com um senso absoluto de indignação moral, urgência total e vontade política. É com este espírito que decidimos aceitar ativamente o convite que o PNUD faz no sentido de que a produção, a veiculação e a utilização do relatório e de seus dados conte com a participação da sociedade civil. A entrevista de Cunca Bocayuva, Diretor da Área de Trabalho e Renda da FASE, mostra como movimentos sociais, ONGs, sindicatos, a sociedade civil de uma maneira geral, podem e devem participar ativamente deste processo no sentido de potencializar políticas públicas visando a erradicação da pobreza, a distribuição de renda, a maior participação cidadã e ampliação dos direitos sociais. Foi exatamente neste sentido que um grupo de entidades não-governamentais e acadêmicas (FASE; Laboratório Dimensões da História/UFF; Laboratório de Estudos de Cidadania e Desenvolvimento/IUPERJ; Oficina de Ensino e Pesquisa/UERJ; Observatório da Cidadania, IBASE; Núcleo de Poder Local, Políticas Urbanas e Serviço Social/UFRJ; Cidadania, Estudos, Pesquisa, Informação e Ação/CEPIA) formou um Grupo de Reflexão sobre o Desenvolvimento Humano e Direitos Sociais e promoveu, com o apoio da ONG francesa Terre des Hommes, o Seminário Direitos Sociais e Desenvolvimento Humano no Brasil, um primeiro passo para ampliar o debate sobre como a sociedade civil pode participar na elaboração dos índices de desenvolvimento humano e como pode deles se utilizar no sentido de potencializar sua ação. No segundo semestre, outras iniciativas de âmbito regional estarão sendo desenvolvidas e esperamos desdobrar este conjunto de atividades para uma proposta de ação mais permanente para os próximos anos. Proposta T'J se insere nesta iniciativa e, neste sentido, conta também com a entrevista de Maria Alice Resende da Carvalho, uma das articuladoras do Seminário. Reproduzimos também as colocações de Sônia Correa sobre o ciclo das Conferências das Nações Unidas, as considerações de Virgínia Fontes sobre a problemática do desenvolvimento Humano e o Relatório produzido pelo PNUD e IPEA para 1996. Cesar Miquel, do PNUD, apresenta urna perspectiva panorâmica do conceito de Desenvolvimento Humano e sua utilização por este órgão das Nações Unidas. Marcos Arruda e Jean Pierre Leroy debatem o conceito de desenvolvimento de um ponto de vista global e de sua sustentabilidade. A situação do trabalho infantil é tratada por Ana Lúcia Saboya - IBGE. E a questão fundiária é enfocada por Mareia Motta. Marcelo Paixão e Wânia Sant'anna, da FASE, em trabalho inédito, aplicam os indicadores do IDH para a população brasileira afro-descendente e constatam sua situação de exclusão encoberta por nosso racismo "cordial''. Este número de Proposta, ainda que somente em escala editorial, espera ser uma demonstração das potencialidades e dos usos possíveis do conceito de Desenvolvimento Humano. E é um convite à sua divulgação e utilização a partir de uma reflexão crítica e voltada para as iniciativas políticas e sociais em âmbito nacional, regional e local que busquem resultados rápidos na melhoria significativa das condições de vida de nossa população em seu aspecto amplo de acesso à riqueza, à participação política, à cultura e a uma vida digna.

Ricardo Salles


A Reflexão Histórica e o Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil Virgínia Fontes*

* Professora do Departamento de Hi stória da UFF; Coordenadora do Laboratório Dimensões da Hi stóriaLDH 6

1frJ.I'11tt1 N73 JUNHO/AGOSTO DE 1997 2


Eu gostaria, muito rapidamente, de apresentar a articulação entre o Laboratório Dimensões da História-LDH, cuja linha de trabalho em andamento é Democracia, Nação, Poder, com a questão geral dos indicadores sociais e humanos e, particularmente, com o Relatório do Desenvolvimento Humano pro-duzido pelo IPEAJPNUD em 1996. Uma das principais preocupações do LDH é recuperar o papel social do historiador, tanto na busca de explicações mais amplas e mais abrangentes para os fenômenos sociais, quanto na recuperação da dimensão de pro-cesso - totalidade, conflito e transformação -que esses fenômenos contêm e do qual provêm. A reflexão histórica pode auxiliar exatamente a articular temas de abrangência universal com a emergência de formas de concepção particulares, indo desde as vivências e experiências de cunho subjetivo, ligadas a pequenos grupos, até processos de mais longa duração e que tendem a se cristalizar na vida social.

'd•l•t.f'ftj Nº 73 JUNHO/AGOSTO DE 1997

Num primeiro momento, é exatamente essa dimensão generalizante da história que buscamos recuperar. Não adianta mais nos limitarmos apenas a uma única dimensão dos processos sociais. Hoje há uma imbricação crescente entre os aspectos micro (locais ou regionais); os que tradicionalmente chamávamos de macro (que implicam desde os Estados-Nação até os aglomerados regionais); e, finalmente, apesar de não constitui~ 2!'.

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rem propriamente uma novidade no processo histórico, impõemse mais que nunca os aspectos "hiper-macro", expressando as relações inter/multi ou transnacionais de configuração global. O presente Relatório expressa exatamente essa multiplicidade ao aprofundar ,nacionalmente, desdobrando o Indice de Desenvolvimento Humano pelos Estados da Federação, uma proposta de avaliação cujo fulcro é uma agência das Nações Unidas. Trata-se da construção de um novo patamar de comparabilidade entre países, partindo de • uma concepção mais vasta que as precedentes, calcada num pressuposto de cunho universalizante, o de desenvolvimento humano. Em que pese a sabida constatação de que os níveis espaciais e históricos hoje se superpõem, o Relatório propõe uma leitura regionalizada, evidenciada pela própria escolha do desenho a figurar na capa, que sugere uma 'tríade', composta por três "Brasis" , um rico, um mediano e um pobre (Bélgica, Bulgária e Índia), apresentados como universos estanques 7


fragmentados. Ora, que processos históricos - econômicos, políticos, sociais e culturais-teriam conduzido a essa diferenciação? De que forma tal diferenciação se reconstitui enquanto forma específica do processo nacional? Mais ainda, como convivem, no interior desses espaços, essas tripartições que, menos que compartimentadas e separadas, se infiltram por todos os espaços deste país? Numa segunda dimensão, tanto os Índices de Desenvolvimento Humano quanto, em especial, o Relatório, apresentam séries "históricas". Se a idéia de comparação no tempo é a própria justificativa para a construção de séries que, certamente, nos ajudam a compreender e a perceber o movimento da sociedade, há mais do que isso no Relatório. Que concepção da história do Brasil ele expressa? O que permite pensá-la? O que a lastreia, o que fundamenta seus traços pesados de continuidade e o que, ao contrário, aponta os indícios das transformações possíveis? A rigor, menos do que uma leitura histórica, o Relatório do Desenvolvimento Humano apresenta-se como um projeto de futuro. Não é uma leitura "neutra" da sociedade, mas incorpora e embute tanto uma interpretação dos dados levantados, quanto a formulação de estratégias para alcançar alguns objetivos. Visualizar o futuro, porém, supõe sempre uma certa leitura do que ocorreu no passado, de forma a corrigí-lo ou perpetuá-lo, a transformá-lo ou conservá-lo, a alterar alguns de seus elementos ou glorificá-lo como modelo e como mito. O projeto de futuro contido no Relatório baseia-se numa proposta clara de inserção competitiva na ordem 8

internacional, o que estaria assegurado pela adoção de três princípios básicos: liberalização, flexibilização e competitividade. Para implementar tais princípios, ele busca na história o que lhe possa servir de suporte e apoio, apresentando,porexemplo,uma visão simplista do papel do Estado no Brasil, esquecendo-se das lutas sociais pela implantação de uma série de conquistas a serem asseguradas pelas instâncias reguladoras da sociedade. Ao apresentar o percurso histórico como fruto de um per-

manente déficit dos três princípios, desqualifica conquistas fundamentais como a proteção do trabalho e do trabalhador, vistos agora como "empecilhos" históricos. Liberalização, flexibilização e competitividade, assim, tomam-se uma varinha mágica para solucionar todas as dificuldades, evidenciadas pelos próprios índices como decorrentes de uma seríssima desigualdade social. Uma terceira gama de preocupações baseia-se na reflexão sobre a democracia e seus desafios. Pensar a democracia exi-

ge reconstruir nossas análises à luz de processos conflitivos que constituem, a rigor, a própria possibilidade da história e, portanto, das transformações. Tais conflitos expressam-se tanto no patamar econômico, na própria dinâmica do capitalismo, como no universo político - não se limitando entretanto unicamente à esfera das representações, pois o Estado remete à regulação econômica e a múltiplas formas de regulação diretamente social - como, ainda, no território das vivências culturais. Olhando por esse prisma para o Relatório, alguns aspectos merecem ser ressaltados. Em primeiro lugar, a proposta de constituição de um padrão comparativo para o Desenvolvimento Humano espelha uma longa série de conflitos ao longo da década de 1990, onde um foro internacional - o das Conferências Sociais da ONU constituiu-se em local de encontro e de exposição de proposições divergentes, envolvendo representações formais de Estados nacionais e variadas formas de organização social. Ele remete, assim, a reivindicações edisputas e seu resultado reflete os limites e os possíveis alcançados nesses foruns. Flutua, entretanto, no Relatório, a referência a um sujeito onipresente mas ausente, destituído de lugar e expressão própria, constituído pelas chamadas "imposições do mercado internacional" ou da "globalização". Essa referência aponta para uma das mais graves dificuldades contemporâneas, que é o esvaziamento dos foros clássicos de poder nas democracias e sua submissão à dimensões extranacionais sobre as quais não há sequer controle, quanto mais participação popular. Em segundo lugar, a própria

º M.I.UO

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elaboração do Relatório produzido pelo IPEA/PNUD expressa visões diferenciadas, manifestadas em especial nos diversos "boxes" impressos em cor verde, onde séries variadas de cruzamentos são realizadas, principalmente a partir de três eixos: gênero, etnia e a questão ecológica. Esse é um dos aspectos mais interessantes do texto, pois demonstra a variedade de posições daqueles que o elaboraram. A visão geral que conduz o texto do relatório, entretanto, (claramente explicitada nas "opções estratégicas") faz desaparecer a dimensão conflitiva e, através da recorrência aos princípios de liberalização, flexibilização e competitividade, aponta para uma

percepção linear do processo histórico, voltado para atingir um ponto pré-determinado e inescapável, para o qual faltaria apenas "suprir lacunas". Esse tipo de reflexão e estes princípios constituem exatamente o que foi chamado na França do "pensamento único", que obnubilava toda forma de dissenso através da imposição de um modelo incontornável e pela desqualificação de qualquer divergência. Esta problemática, aliás, nos conduz diretamente a outro tema crucial para a questão democrática: as formas de imposição que ocorrem através de urna mídia poderosamente transnacionalizada e monopolizada.

Se a questão da cultura ocupa um espaço privilegiado em nossas reflexões, pois é nela que buscamos elementos de resistência e de criação de novos espaços, ela deve ser objeto de uma leitura crítica, de forma a não confundíla nem com uma infindável série de 'singularidades', como a mídia busca representar as manifestações culturais (eliminando os traços comuns de uma humanidade histórica) nem com a caricatura de um homo universalis, descolado do tecido social, cuja essência seria apenas a ânsia do ga-nho. Se a democracia permite pensar a diferença, esta somente pode gerar sociedades justas quando relacionada aos princípios fundamentais de igualdade e de liberdade.

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O Indice de Desenvolvimento Humano: uma proposta conceituai César A. Miquel* André Villaronllmagens da Terra

* Coordenador do Sistema das Nações Unidas e Representante Residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil. 10

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INTRODUÇÃO

mento Humano (IDH) elaboEste trabalho está orientado rado pelo PNUD constitui até a: (i) procurar uma explicação Os dois fenômenos sociais agora o melhor indicador para dos motivos que levaram à crimais transcendentais da pre- comparar em conjunto o pro- ação do IDH; (ü) descrever as sente década em muitos países gresso econômico e social nos variáveis que o compõem e do mundo são o agravamento diferentes países. O uso pro- analisar as vantagens e limidas disparidades sócio-eco- gressivo deste indicador gerou tações que possuem e; (iii) expectativas examinar a influência que ... a eficácia dos governos depende de crescentes e, ao está exercendo em âmbito um clima jurídico, político e mesmo tempo, global para propor políticas econômico favorável, mas também de identificou-se a sócio-econômicas que conuma sociedade equitativa e otimista necessidade de tribuam a enfrentar os desafimelhorá-lo e com- os dos governos a fim de meem relação a seu futuro. plementá-lo com lhorar a qualidade de vida das outras estatísticas para medir populações. nômicas e o fortalecimento da O dilema com que se condemocracia. Os países da Amé- mudanças conjunturais que perrica Latina e Caribe, da mesma mitam o desenho de políticas fronta consiste em determinar forma que outros países do apropriadas que assegurem a a validade e alcance deste inmundo, alcançaram um alto governabilidade democrática. dicador para medir o progresAssim mesmo, está so dos povos na realização de grau de estabilidade política e demonstrado que as decisões suas aspirações no marco imeconômica. Existem, no entanto, dúvidas quanto ao caráter no âmbito empresarial, os in- posto pela viabilidade ecosustentável dessa estabilidade vestimentos (nacionais e inter- nômica, social e política. Traem um ambiente de desigual- nacionais), os níveis de pro- ta-se de conhecer melhor a dades econômicas, desemprego, dutividade e a eficácia dos realidade e de melhorar a técgovernos depende de um cli- nica de governar para responpobreza e exclusão social. Nesse contexto, o paradig- ma jurídico, político e eco- der com maior eficácia às aspima de Desenvolvimento Hu- nômico favorável, mas também rações legítimas da sociedade. Trata-se, também, de poder mano vem cobrando uma de uma sociedade equitativa e vigência global a partir dos in- otimista em relação a seu futuro. adaptar-se à velocidade das Mais que um indicador es- mudanças e de manejar o alto formes preparados anualmente pelo Programa das Nações tatístico, o IDH ( ... )o IDH aponta para a Unidas para o Desenvolvimen- aponta para a sinto (PNUD) desde 1990. De- tetização de uma sintetização de uma visão conceitua! pois de muitos anos medindo visão conceitua! do processo de desenvolvimento dos o progresso do desenvolvi- do processo de países ao colocar o ser humano mento mediante a utilização de desenvolvimentanto no centro do debate sobre o indicadores macroeconômi- to dos países ao desenvolvimento como das políticas cos, particularmente o Produ- colocar o ser husócio-econômicas destinadas a to Nacional Bruto (PNB), a mano tanto no melhorar as condições de vida da comunidade internacional está centro do debate população. centrando sua atenção na bussobre o desenca de novos parâmetros que contribuam na avaliação da volvimentocomo nível de incertezas que hoje a qualidade de vida da popu- das políticas sócio-econômicas humanidade enfrenta. Trata-se, destinadas a melhorar as con- enfim, de contestar os desafios lação com maior precisão. O Índice de Desenvolvi- dições de vida da população. de uma profunda transfor-

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mação tecnológica, que afetará radicalmente o estilo de vida e que, necessariamente, deverá levar em conta o uso adequado dos recursos naturais para evitar o endividamento das gerações futuras.

IMPACTO DAS TRANSFORMAÇÕES GLOBAIS A década de 1970 Os trabalhos de proeminentes intelectuais que contribuíram para conformar a estratégia do "Segundo Decênio das Nações Unidas para o Desenvolvimento", iniciado em 1970, assinalavam que o fator humano é o principal elemento de progresso e que é o "desenvolvimento humano" o ponto focal do conceito geral de desenvolvimento. Mais ainda, sublinhavam que a estratégia do desenvolvimento exige um programa de mudanças sócio-econômicas qualitativas e estruturais que apontem para a redução das disparidades existentes. Os países em desenvolvimento iniciam a década dos anos 70 com o otimismo resultante da bonança econômica que caracterizou o mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Durante os vinte anos anteriores, a análise do processo de desenvolvimento global mostrou que era possível manter nos países do Terceiro Mundo altas taxas de crescimento econômico. Durante os anos 60 alcançaram as metas do Decênio das Nações Uni12

das, estabelecidas em uma média de cinco por cento para os países em via de desenvolvimento. O crescimento de vários desses países havia sido equivalente ao da Alemanha de pós-guerra e, por isso, não foi difícil fixar um objetivo otimista de seis por cento para o segundo decênio. Essas altas taxas de crescimento da renda nacional foram atribuídas à expansão do comércio mundial durante esse período. De fato , a correlação entre ambas as variáveis (renda nacional e exportações) foi estimada em O, 7. Previa-se, todavia, já naquele momento, que era indispensável diversificar as exportações e fomentar o intercâmbio comercial entre os países em via de de-

tor de seu crescimento mediante uma maior flexibilidade e capacidade de adaptação econômica, incrementar a poupança interna e formar seus próprios empresários. Entre 1970 e 1980, a América Latina e o Caribe apresentaram um crescimento econômico real por habitante equivalente a 3,7 %. Entretanto, foi justamente nessa década que começa o período de adversidades da região. Os dois choques do petróleo dos anos 70 foram o sintoma mais visível de que o mundo estava se transformando radicalmente. A aceleração das mudanças passou inadvertida para a região, dificultando a capacidade de adaptar-se a um novo ambiente nacional e global. Nem as ins-

senvolvimento, uma vez que a demanda dos produtos de exportação tradicionais aumenta com demasiada lentidão. Também se assinalava que era imprescindível internalizar o mo-

tituições nem as pessoas captaram a urgente necessidade de modernização e de resolução dos problemas estruturais que se recomendou para poder absorver as transformações tão

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radicais do paradigma tecnoeconômico que se instalaria definitivamente na década de 80. A visão estratégica da região foi obstaculizada pelas condições de liqüidez internacional

camente prevaleceu, sem se no- tros países do mundo, entraram tar que a velocidade das mudan- nos anos de 1980, conhecidos ças invalidava as previsões. Não como a "década perdida", com se questionou, nessa época, o notável desvantagem. A dívida papel do Estado e tampouco se externa esmagou as economias, adaptou a gestão das empresas o investimento se estancou e os públicas aos de- desequihbrios macroeconômiOs dois choques do petróleo dos safios de um mun- cos conduziram a um processo anos 70 foram o sintoma mais do que entrava na inflacionário que angustiou assovisível de que o mundo estava se Terceira Revolu- ciedades latino-americanas. Para transformando radicalmente. A ção Industrial e corrigir a inflação, foram forque requeria trans- muladas políticas de ajuste aceleração das mudanças passou formações estru- estrutural e, posteriormente, inadvertida para a região, turais profundas de estabilização que eram indificultando a capacidade de na sociedade, na dispensáveis, mas que geraadaptar-se a um novo ambiente produção e na ram períodos de recessão e crises sucessivas que impedos mercados financeiros que econorrua. Os países do Sudeste Asiáti- diram a manutenção do ritmo alimentaram tanto o gasto publico (e, em alguns casos, o co, por outro lado, perceberam de crescimento econômico investimento) quanto o priva- a transcendência do momento e necessário para diminuir o do, o que assegurou a alta taxa optaram por políticas de médio desemprego e adaptar-se às de crescimento econômico da e longo prazo que consolidaram mudanças dos tempos. década. A reciclagem dos pe- o desenvolvimento iniciado no Nos últimos quinze anos trodólares amparou políticas período anterior. Foi assim que (1980-1995), o crescimento defasadas. Poucos perceberam investiram no capital humano, econômico estagnou em cem que a política de substituição de estimularam a poupança interna importações imperante na e aproveitaram a fluidez do capi- países do mundo. A renda por habitante em âmbito mundial América Latina, e que, durante tal externo; usaram o mercado o período 1950-1970 havia interno para ampliar sua base foi afetada. Em 1995, 1,6 bicontribuído para quase dobrar tecnológica, incrementar a lhões de pessoas, ou seja, um o produto interno per capita e produtividade e aumentar sua quarto da população mundial para construir uma base indusA dívida externa esmagou trial, havia caducado. Tampou- infra-estruturafísica.Em síntese, utilizaram a déco, se percebeu que o sistema as economias, o investimento de pensões baseado na pou- cada dos anos 70 para se se estancou e os desequilíbrios pança intergeracional exigia adaptarem às mudanças mudanças substantivas ou que que só se consolidaram macroeconômicos conduziram a um processo inflacionário a regulamentação do trabalho e foram evidentes nos devia mudar ante o esgotamen- anos subseqüentes. que angustiou as sociedades to progressivo do modelo forlatino-americanas. diano de produção. No nível AS governamental, igualmente, passou a ter uma renda per CONSEQÜÊNCIAS não se iniciou um processo de capita menor que nunca. DesDA 11DÉCADA reformas que permitisse maneses países, trinta e cinco tivePERDIDA 11 DE 1980 jar um crescente grau de inram, na primeira metade dos certezas. Os sistemas de planianos 90, uma renda menor que ficação seguiram atados ao A América Latina e o Ca- durante a década de 1980. Na modelo determinista que histori- ribe, similarmente a muitos ou- América Latina e Caribe, só

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Barbados, Brasil, República Dominicana, Equador, Panamá e Paraguai alcançaram níveis superiores aos da década de 1980, enquanto outros 35 tiveram uma renda por habitante maior que na década dos anos 70. Entre estes países da região estão Argentina, El Salvador, Guatemala e Honduras. Houve, porém, sessenta e quatro países no mundo que tiveram nesta década uma renda maior que nunca em sua história. São os países industrializados, os do Sudeste Asiático, China, Índia e, na América Latina e Caribe, Chile, Colômbia, Costa Rica, Uruguai e cinco Estados caribenhos. Todos eles têm um denominador comum: investiram em capital humano, inseriram o ser humano no centro dos processos de desenvolvimento. Se bem tenha havido um retrocesso econômico - como conseqüência das crises de endividamento na qual os países da região perderam 7% do PIB durante os anos de 1980, o consumo diminuiu 6%, o investimento se reduziu em 4%, a dívida externa superou três vezes as exportações latinoamericanas e a inflação, em 1990, alcançou 1.500% -, expressivos progressos na área social e notáveis avanços políticos que conduziram a democratização puderam ser constatados. A expectativa de vida passou de 63 para 67 anos; o número de analfabetos foi reduzido em 6% (passou de 86% a 80%); e a mortalidade 14

infantil decresceu de 60 por mil para 45. Os avanços políticos da região não foram menos espetaculares. Dezoito países fizeram a transição para a democracia, 125 eleições parlamentares foram realizadas e iniciou-se em 1987 o processo de paz na América Central. Essas vitórias foram alcançadas apesar dos atrasos econômicos.

Foi necessário atravessar to-

ciaram dramaticamente nos anos de 1980, centraram a atenção dos economistas no modelo liberal que enfatizava, com certa razão, o crescimento econômico como o instrumento mais importante para progredir no processo de desenvolvimento. Esquecia-se, todavia, que o crescimento econômico não era fruto de uma maior ou menor eficiência dos balanços macroeconômicos, senão da capacidade do capital humano para atenuar as adversidades que se enfrentava. Eram as pessoas que podiam modificar a situação de adversidade , eram as instituições que respal-

das as dificuldades econômicas dos anos 80 para descobrir o óbvio: as pessoas são o fim e o meio do crescimento econômico. Inconscientemente, voltou-se aos princípios expressos já no fim dos anos 60 quando se advertia acerca do curso da história sócioeconômica global. As perturbações econômicas originadas nos anos 70, e que se eviden-

davam as mudanças, era o conhecimento que permitiria recobrar os níveis de bem-estar da população. O desenvolvimento sócio-econômico não dependia mais unicamente do capital, mas, das habilidades dos povos para forjar seu próprio destino. Por isso, o PNUD insere no debate internacional o tema do "desenvolvimento humano" e inicia a publicação

O ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO

Descobrindo o óbvio

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condições de vida das nações, por outro, resultava óbvio que não se podia incluir um grande número de variáveis que diluiriam o foco de atenção e que resultasse difícil de interpretar. Em conseqüência, fez-se necesAs carências humanas cobrem sário firmar um

de um informe anual que já não mede o desenvolvimento em função exclusivamente da renda per capita, mas em termos mais sofisticados ao criar o índice de desenvolvimento humano.

muitas facetas da vida dos indivíduos. A tarefa de construir um índice de progresso humano que capturasse todas estas complexidades parecia uma missão impossível. O IDH - UM NOVO INDICADOR Em 1990, o PNUD apresentou, pela primeira vez em sua história, um novo Informe. Não se trata de um informe tradicional como aquele apresentado pelos organismos financeiros internacionais; é uma concepção renovada dos princípios que sempre regeram as Nações Unidas. Trata-se de reintroduzir no debate internacional as políticas que nortearam as Nações Unidas desde sua criação mas, desta vez, baseando-se na experiência sobre o desenvolvimento adquirida pela Instituição em seus 35 anos de conhecimento acumulado. As carências humanas cobrem muitas facetas da vida dos indivíduos. A tarefa de construir um índice de progresso humano que capturasse todas estas complexidades parecia uma missão impossível. Se, por um lado, desejava-se contar com um indicador que sintetizasse as

lo de vida desejado mediante o desenvolvimento do conhecimento e o uso da informação. Este indicador está composto por dois subindicadores: a taxa de analfabetismo adulto e os anos de escolaridade. O terceiro indicador é menos compreendido e menos conhecido que os ou-tros dois. O Produto Nacional Bruto, que até 1990 foi o indicador por excelência nas comparações internacionais, não reflete apropriadamente as diferenças entre nações na sua capacidade de compra e tampouco os efeitos das taxas oficiais de câmbio dos países. Num projeto conjunto de vários organismos internacionais, desenvolveu-se um indicador que tornava possível medir a utilidade ou o bem-estar derivado da renda, o que permitiu superar estas dificuldades. O impacto que a criação do IDH teve no nível global permitiu aprender importantes

compromisso para balancear as virtudes de cobrir um amplo espectro da vida humana, mas retendo a sensibilidade para aspectos críticos das privações humanas. Com esses princípios em mente, três variáveis foram eleitas. A primeira diz respeito à expectativa de vida ao nascer. Este indicador permite medir indiretamente a qualidade da atenção à saúde, a mortalidade infantil e a incidência de algumas enfermidades que afetam uma grande porcentagem da população. Em última instância, o estar vivo é condição necessária para poder reavaliar a qualidade de vida. ( ... )fez-se necessário firmar um O segundo indicador refere-se ao compromisso para balancear as grau de escolarivirtudes de cobrir um amplo dade. Esta variável espectro da vida humana, mas permite deduzir a retendo a sensibilidade para amplitude das oporaspectos críticos das privações tunidades das peshumanas. soas para participarem na vida política dos lições sobre o processo do depaíses, para identificarem e senvolvimento. Retomou-se a obterem um emprego produticoncepção de que o imporvo que lhes permitam ter acesso com vantagem ao mercado tante do bem-estar humano é de trabalho e terem maiores a oportunidade de ampliar sua opções para escolherem o esti- capacidade, de eleger e de usar 15


esta capacidade nas diversas atividades humanas, sejam políticas, sejam culturais ou de lazer.O IDH permitiu que fossem colocados no centro do debate internacional aspectos tais como a pobreza, as disparidades sociais e econômicas, estreitando-se a relação entre crescimento econômico e bem-estar. Facilitou, enfim, a análise das políticas governamentais e as conseqüências daquelas na vida dos cidadãos. Os informes de desenvolvimento humano do PNUD, publicados anualmente, converteramse num instrumento de máxima transcendência para aqueles que têm a enorme responsabilidade de tomar decisões que afetam a vida das pessoas. Com base nos trabalhos realizados, modificaram-se leis, revisou-se a fixação de recursos públicos e conseguiu-se progredir sensivelmente na incorporação da sociedade civil à vida nacional.O IDH tem também suas limitações. É uma ferramenta excelente para avaliar aspectos estruturais, mas lhe falta sensibilidade para medir as mudanças conjunturais. Ele dificulta a possibilidade de avaliar com exatidão o progresso em períodos anuais de maneira tal a corrigir as medidas adotadas na execução de políticas. Nesse sentido, é importante continuar trabalhando em seu aperfeiçoamento e complementá-lo inteligentemente com outras estatísticas. A criação do IDH contribuíu também para chamar a atenção sobre 16

as deficiências na coleta e processamento de dados na área social. A expansão da tecnologia da informação nos últimos anos assegura a possibilidade de realizar um progresso notável nesta direção.

AS LIÇÕES SUGERIDAS As pessoas no centro do desenvolvimento A transcendência de estar repensando a teoria do desenvolvimento e de adaptá-la aos desafios do mundo contemporâneo tem extraordinárias implicações para o futuro da sociedade. Trata-se de estabelecer, ou de recuperar, uma escala de valores centrada no ser humano, no respeito pelo indivíduo e na solidariedade da comunidade nacional e internacional para restabelecer pautas que diminuam o gap entre ricos e pobres. Talvez a lição mais importante derivada do conceito de desenvolvimento humano seja o convencimento de que o crescimento econômico é condição necessária, mas não suficiente, para atender às expectativas da sociedade em termos de justiça social. Mais ainda, uma estratégia de crescimento econômico deve-se focalizar nas pessoas, e em seu potencial para aumentar a produtividade como uma forma de aumentar o emprego e as oportunidades de terem uma vida prolongada e decente para atender suas necessidades. Aprendeu-se que o crescimento econômico é o meio para

alcançar o fim - o desenvolvimento humano. E demonstrouse que a correlação entre o desenvolvimento humano e o crescimento econômico não é linear. Em contrapartida, existem evidências recentes que provam uma correlação positiva entre eqüidade e crescimento econômico, questionando-se assim as teorias de Simon Kuznets e de Nicholas Kaldor. O primeiro sustentava que as desigualdades se acirrariam assim que os trabalhadores rurais migrassem para o setor industrial para logo diminuírem com a expansão da atividade industrial. Nicholas Kaldor ressaltava a importância da poupança para financiar o crescimento. Considerando-se que os ricos têm uma maior propensão a poupança,era necessário canalizar os benefícios iniciais aos capitalistas para que estes pudessem investir no desenvolvimento. Os casos do Japão, Sudeste Asiático, China, Malásia e Maurício provam que em sua relação crescimento econômico e eqüidade se reforçam mutuamente. Estudos recentes do Banco Mundial incluindo 192 países indicam que somente 16% do crescimento econômico se explicam pelo capital físico (maquinaria e infra-estrutura física); 20% pelos recursos naturais e 64% são atribuídos ao capital humano e social. Por isso, o investimento ano tomase primordial para melhorar a situação econômica, aumentar a coesão social e melhorar as condições de vida de grandes grupos populacionais, indicando a possibilidade de erradicação da pobreza extrema.


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AS REFORMAS DO ESTADO As precariedades econômicas dos anos 80 que a região da América Latina e Caribe atravessou não só impediram a modernização do Estado para se adaptar às mudanças globais, mas contribuíram para o agravamento de suas deficiências estruturais. Este fenômeno global deu origem na presente década à proposta de inumeráveis reformas com o objetivo de lograr governos mais eficazes capazes de administrar o Estado, de intervir eficientemente no social e econômico, e de reduzir o déficit fiscal. Nesse contexto, estão sendo ensaiadas diversas propostas. As medidas mais comuns foram a desregulação, a privatização das empresas estatais, a redução do número de funcionários públicos e a descentralização. Avaliar os efeitos destas medidas e, sobretudo, seus resultados práticos segue sendo uma tarefa pendente que deverá acompanhar o aprofundamento das reformas. Cabe perguntar, por exemplo, quais serão as vantagens do downsizing do setor público nos momentos em que a economia não gera o número suficiente de empregos. Será que não existem fórmulas mais apropriadas para converter o setor público em um ator mais eficiente do desenvolvimento ampliando sua área de ação? Parece, muitas vezes, que não se tem consciência acer18

ca da urgência de se modificar os processos, de simplificar os controles e de se mudar - mediante um processo de reeducação eficaz para aumentar o potencial humano - as práticas das pessoas que atuam nos serviços públicos para transformar muitas delas em agentes e promotores do desenvolvimento a fim de melhorar os serviços proporcionados à sociedade. As formas de subcontratação, terceirização e outras que se podem criar seguramente contribuiriam para abordar o problema do déficit fiscal com idéias mais inovadoras, imaginativas e, ainda assim, realistas. Tudo isso contribuiria para a realização de transformações menos traumáticas que facilitariam a transição para um Estado moderno e também eficiente. Como propósito central, sugere-se a construção de novas capacidades estatais para incentivar os mercados, garantir a coesão social e legitimar o processo democrático. A

descentralização das atividades próprias do Estado é possivelmente o passo mais importante que está sendo dado para aproximá-lo do cidadão e para aumentar sua participação na tomada daquelas decisões econômicas, sociais, culturais e políticas que afetam sua vida. Nesse sentido, a participação popular é um elemento central do desenvolvimento humano, e o processo de descentralização desempenha o papel principal. A agenda de reformas do Estado tende a firmar-se hoje em termos de governabilidade que depende, por sua vez, da estrutura institucional e também dos atores do governo. Por isso , o aprofundamento das mudanças não deveria centrar-se somente no Poder Executivo, mas também nos Poderes Legislativo e Judiciário. Vários países da região já iniciaram reformas , mais ou menos profundas segundo o

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caso, com a finalidade de alcançar uma modernização equilibrada do Estado.

OS NOVOS DESAFIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO:

globalização e competitividade No próximo milênio, estabelecer-se-á definitivamente o novo paradigma da Terceira Revolução Industrial. As atividades econômicas serão cada vez mais intensivas em conhecimento do que em capital, tal como aconteceu no presente século. A mudança tecnológica é a condição que possibilita a globalização. Os avanços em áreas tais como a programação da produção, seu monitoramento e a difusão da informação mediante sistemas eficientes de comunicação são suas características mais importantes. O progresso tecnológico cria enormes mercados que justificam os investimentos necessários para a pesquisa e o desenvolvimento de novos produtos, o que permite financiar os custos fixos das empresas. O processo de globalização gera igualmente grandes oportunidades para empresas pequenas graças a sistemas de produção descentralizados. Essas extemalidades positivas no nível individual se potencializam no nível agregado devido a uma maior eficiência sistêmica possibilitando, assim, as ocasiões de aumento da capacidade das forças produtivas. Deve-se assinalar, todavia, que as forças produtivas não

atuam no vazio; ocupam espaços econômicos dos quais dependem o tamanho do mercado, sua estrutura e sua taxa de crescimento. Seu desempenho depende da infra-estrutura produtiva instalada e dos vínculos e capacidades dos agentes econômicos relacionados com essas forças produtivas. A grande contradição é que, da mesma forma que o modelo global proporciona às empresas circunstâncias econômicas singulares sem precedentes na história econômica mundial, na área social aumenta perigosamente a marginalização, intensifica a concentração da renda e gera exclusão. Nesse contexto, é possível esperar um aumento da criminalidade (tráfico de drogas, corrupção, prostituição, choques culturais, terrorismo, etc) estabelecendo enormes e novos desafios mundiais ao desenvolvimento humano. Comoresposta, só cabe aumentar a coesão social, construindo-se sobre os sucessos de estabilidade política e econômica, repensando-se as estratégias de desenvolvimento, as pautas de cooperação internacional e modificando-se o rumo das políticas social e econômica da região. O Índice de Desenvolvimento Humano teve a virtude de abrir este debate ao analisar os fenômenos sociais, novos e antigos, e examinar as alternativas com criatividade. Em cada novo ciclo histórico, enfrenta-se uma gama distinta de incertezas que diferenciam radicalmente o passado do futuro, dificultando assim a adaptação da sociedade às mudanças. O Desenvolvimento Humano deixou agora de ser

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uma preocupação restrita ao âmbito nacional para converterse numa grande responsabilidade global.

BIBLIOGRAFIA CATALA, Joan Prats, Reforma dei Estado en America Latina - La Agenda de los 90 (Paper produzido no âmbito do projeto PNUD Nova Geração de Políticas de Desenvolvimento no Cone Sul), New York, 1996. Cornision Econômica para Arnerica Latina y el Caribe (CEPAL), La Brecha de la Equidad, América Latina, El Caribe y la Cumbre Social, Naciones Unidas, BRASIL, 1997 .Domenach, JeanMarie, Nuestra Participacion Moral en el Desarrollo, Naciones UNIDAS , Nueva York, 1970. Lewis, W. Arthur, E! Proceso de Desarrollo, Naciones Unidas, Nueva York, 1970. OMINAMI, Carlos (ed), La Tercera Revolucion Industrial - Impactos internacionales dei actual viraje tecnológico, Coleccion Anuarios dei RIAL, Buenos Aires, 1986. PAJESTKA, Josef, Dimensiones Sociales dei Desarrollo, Naciones Unidas, Nueva York, 1970. United Nations Development Programme (UNDP), Human Development Report (series), published by Oxford University Press, Inc., New York, 1990-1996. VAITSOS, Constantine, Industrial policies and real economy performance requirements (Paper produzido no âmbito do projeto PNUD Nova Geração de Políticas de Desenvolvimento no Cone Sul), New York, 1996.

ASSINE PROPOSTA (021) 262-6853 19


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Desenvolvimento Humano e População Afro-Descendente no Brasil: uma questão de raça Arquivo/KS

Wânia Sant'anna* Marcelo Paixão**

* Wânia Sant'anna é historiadora **Marcelo Paixão é economista. Ambos os autores são negros e assessores da FASE Nacional

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I· OS INDltADORES DE DESENVOl.VIMENTO

vo lugar em termos de padrão No relatório do PNUD, tamde desenvolvimento humano, bém verificamos diversos textrigésimo sexto em termos de tos e boxes dedicados aos mais DA POPUIAÇÃO consumo diário de calorias por variados temas: saúde, gêneNEGRA: um debole habitante e em termos de ín- ro, educação e .. . a questão radice de analfabetismo e qua- cial. Neste último âmbito, enque se obre dragésimo sexto em termos de tretanto, verificamos que os esperança de vida ao nascer.(2) dados apresentados, ainda que Desde 1990, o Programa Apesar de relevantes, as in- relevantes, mostravam-se absodas Nações Unidas para o formações levantadas pelo lutamente insuficientes. Apenas Desenvolvimento (PNUD) vem levantando dados sobre os PNUD no plano mundial con- dois breves boxes foram dediIndicadores de Desenvolvi- stituíam, somente, um momen- cados à questão de cor, um to do debate so- referindo-se à correlação entre nosso país, pujante décima-primeira bre o IDH. Este a cor e o nível do rendimento e economia mundial, quando analisado mesmo órgão fo- o outro apontando os aspectos mentou que os di- educacionais da população sob a luz do IDH, cai para o versos países ela- "preta" e "parda" do Brasil. modesto sexagésimo terceiro lugar boras sem relaAcreditamos que a iniciatiem termos de padrão de tórios nacionais va de produção dos indicaobjetivando um dores de desenvolvimento hudesenvolvimento humano, trigésimo aprofundamen- mano por parte deste órgão sexto em termos de consumo diário to , a nível de vinculado às Nações Unidas de calorias por habitante cada nação, des- foi louvável. O relatório do ta metodologia e PNUD traz inúmeros dados sobre a realidade social bramento Humano (IDH) de 174 de seus resultados. Seguindo as recomendasileira que, sem sombra de países do mundo. Por um lado, esta metodologia, que pondera ções do PNUD, o Brasil, no dúvida, são de fundamental imo Produto Interno Bruto de ano de 1996, proNo relatório do PNUD, também cada país com suas médias de duziu um extenso rendimento per capita, nível de documento sobre o verificamos diversos textos e desenvolvimento escolaridade e esperança de boxes dedicados aos mais variavida, é uma preciosa fonte de humano de sua podos temas: saúde, gênero, eduinformações sobre a qualidade pulação. Ao longo cação e ... a questão racial. de vida dos povos das dife- das 185 páginas do Relatório sobre o rentes nações. Por outra via, tal recorte permite colocarmos Desenvolvimento Humano no (2) A respeito ver Relatório Sobre Desenvolvimento Humano PNUD, o debate sobre o desenvolvi- Brasil(3) , verificamos que, sob 1996. Esta era acolocação do Brasil mento em um outro patamar, a luz da metodologia do em 1993. Recentemente foi editado ampliando seu tradicional en- PNUD, a realidade do bem-es- novo Relatório Sobre o Desenvolvifoque econômico-empresarial tar da população brasileira é di- mento Humano pelo PNUD que direcionando-o para aspectos vidida em três grandes blocos: apontou que o Brasil ocupa a 68ª que dizem respeito à própria a região Sul-Sudeste é marca- posição no ranking do IDH. As três últimas informações foram retirafinalidade do progresso que é, da por um elevado padrão de das, a partir desta mesma fonte, de ou deveria ser, o bem-estar das vida, a Região Centro-Oeste e Pinheiro, Paulo Sérgio- Democracia populações. À guisa de infor- parte da Região Norte são Derechos Humanos e DesarolJo Ecomação, nosso país, pujante caracte-rizadas por um padrão nomico y Social: Obstaculos y Redécima-primeira economia de vida mediano, e, por fim, na sistencias . El Caso Brasil. 1991 (mimeo). mundial, quando analisado sob Região Nordeste e no Estado (3) Relatório Sobre o Desenvolvia luz do IDH, cai para o do Pará existe um baixo índice mento Humano no Brasil. Rio de modesto qüinqüagésimo oita- de desenvolvimento humano. Janeiro: IPEA, DF: PNUD, 1996.

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portância, seja pelo quadro que com dados específicos sobre a revelam, seja pelas virtuais ori- realidade inter-étnica do Brasil entações de políticas sociais e para que os negros brasileique trazem em seu bojo. Con- ros pudessem ter o direito à tudo, não podemos deixar de obtenção de informações soapontar o desapontamento com bre sua situação de conjunto. a constatação de que os dados No ano de 1996, pela primeira referentes às condições de vida vez, uma loja foi punida judida população afro-brasileira, cialmente pela prática do raapesar de constituírem, oficial- cismo contra um freguês! mente, 42% da população braNaturalmente, sabemos que sileira, continuam - tal como na os problemas sociais brasileiNovela das Oito, onde via de ros são muito diversos, cada regra são coadjuvantes - sendo qual com especificidades e videixada para os pés-de-páginas cissitudes próprias. Entretanto, também constatamos que dos livros oficiais. Neste sentido, o relatório do em diversos destes problemas PNUD, devido ao "esqueci- (questão de gênero, menores, mento" de uma análise mais pobreza, analfabetismo, deaprofundada à temática das re- semprego ou sub-emprego, lações raciais no Brasil, con- etc) igualmente existe um nítitribuiu muito pouco para a do conteúdo racial. A questão produção de políticas específi- inter-étnica no Brasil não pode cas para este amplo contingente continuar a receber o tratada população que vive em uma mento que lhe tem sido tradisituação de ampla vulnerabili- cionalmente conferido. Afinal dade econômica e social. de contas, um século após a A reiterada negação da abolição, a situação dos afroquestão racial do Brasil é uma descendentes no Brasil, na sua realidade tão marcante quanto maioria, oscila entre a margio racismo e o preconceito em nalidade e a vulnerabilidade sonosso país. É sabido, por exem- cial, cultural e econômica. plo, que em 1970, os militares Nada justifica, portanto, que se proibiram o IBGE de levantar deixe esta questão para um dados sobre a cor da popu- plano secundário. A realidade do racismo em lação durante o Censo. Somente, em 1995, ou seja, 30 nosso país pôde ser medida por anos após a sua fundação, a uma pesquisa feita pelo DataRede Globo de Televisão se folha, ligado ao jornal Folha de dignou a pôr um núcleo fami- São Paulo. Este levantamento liar negro em sua telinha<4l. Ape- verificou que 89% da população nas no ano passado, 107 anos acha que existe preconceito conapós o fim da escravidão no tra os negros, mas apenas 10% Brasil, foi lançada uma Revis- dos não-negros admitem que ta dedicada abertamente às são racistas<5l. Tal postura não questões de beleza e auto-es- se limita, naturalmente, à sotima dos afro-descendentes ciedade, mas permeia os meibrasileiros. Foram necessários os de comunicação, o poder ju100 anos após a abolição para diciário e o Estado em seu conque fosse realizada uma PNAD junto. Isto pode ser medido, por

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exemplo, no inexpressivo número de aparições de negros na rrúdia, na grande quantidade de afro-descendentes nos presídios e nas insuficientes políticas existentes, atingindo inclusive a produção estatística oficial, para enfrentar o problema do preconceito e da marginalização social. Em sendo assim, o fantasma do racismo continua atormentando o cérebro dos vivos no Brasil. Mas, posto sob o eterno véu intransparente da hipocrisia, nunca é enfrentado de fato pelo Estado e pelo conjunto da sociedade. Acreditamos, portanto, que a superação do racismo no Brasil não pode ficar relegada à eterna resignação do mero (4) Isto se deu na novela "A Próxima Vítim a'', na qual havia uma farru1ia de classe média negra cujos integrantes eram modelos, profissionais liberais e estudantes universitários, deixando-se de lado o estereótipo do negro enquanto trabalhador braçal e/ou serviçal. Contudo, duas ressalvas devem ser feitas nesta questão. Primeira, que esta novela sucedeu uma outra "Pátria Minha" que em um de seus capítulos mostrou uma cena de racismo explícito gerando amplos protestos da comunidade negra no Brasil. Em segundo, cabe apontar que, após a "Próxima Vítima", as coisas voltaram ao normal na TV Globo, ou seja, os negros voltaram a ser representados em funções subalternas, funções estas muito nobres, diga-se de passagem, mas que não são nem por natureza ou por realidade o único ou exclusivo campo profissional dos afro-descendentes brasileiros. (5) A este respeito ver a pesquisa publicada no Caderno 'Mais' (Racismo Cordial) do Jornal Folha de São Paulo, 25/6/95. Apenas à guisa de comentário, cabe apontar que este racismo pode ser muito cordial para quem o pratica, já para quem é vítima dele as coisas podem soar um pouquinho diferente ...


reconhecimento de sua existência. É necessária a constituição de urna estratégia pública voltada para a promoção das condições de vida deste amplo contingente da população bra-

dologia do IDH e inspirando- publicação dos resultados datarnos na sua aplicação feita no dia Pesquisa Nacional por âmbito regional brasileiro, Amostra de Domicílios (PNAD) fazemos na próxima seção des- de 1987. No ano de 1990, com te artigo uma projeção pre- três anos de atraso, mas em ação liminar dos indicadores de inédita na história das estatístidesenvolvimen- cas oficiais, o Instituto Brasilei( ... ) o Instituto Brasileiro de Geografia to humano da po- ro de Geografia e Estatística pulação afro-des- (IBGE) publicou cinco volumes e Estatística (IBGE) publicou cinco cendende no Bra- inteiros dedicados a desvendar volumes inteiros dedicados a sil. Pretendemos a situação sócio-econômica de desvendar a situação sócio-econômica desta forma, dar "brancos", "pretos", "pardos" e de "brancos", "pretos", "pardos" e modestos passos "amarelos" nos níveis nacional para o preenchi- e das grandes regiões metropo"amarelos" nos níveis nacional e das mento daquela litanas - reunindo, então, o mais grandes regiões metropolitanas ( ... ) lacuna verificada amplo conjunto de indicadores no Relatório de sociais sobre essa população sileira. Como, por exemplo, as Desenvolvimento Humano no elaborado pelo Estado.<6l Vale políticas de ação afirmativa, de Brasil. Na terceira parte de nos- salientar que, depois disso, nenmelhoria dos patamares edu- so trabalho, discutimos a hum outro levantamento naciocacionais da população afro- abrangência dos indicadores lis- nal uniu aos seus objetivos a aplidescendende e pobre em ge- tados pelo PNUD e apresenta- cação de um plano tabular com ral, e de preservação e garan- mos outras possíveis variáveis tal especificação: cor.<7l Aliás, antes de avançarmos tia das áreas de remanescentes explicativas das condições de de Quilombos. Para que isto vida desfavoráveis da maioria neste ponto, é preciso que seocorra, é preciso que haja um dos negros no Brasil. Por fim, jam ditas algumas palavras em sincero reconhecimento do Es- no último bloco, tado e da sociedade da grave debatemos a ne- ( ... ) debatemos a necessidade da situação vivida atualmente pe- cessidade da pro- produção de informações sobre a los negros e mestiços no Bra- dução de infor- temática racial no Brasil e a virtual sil e da realidade do preconcei- mações sobre a adoção do IDH como potencializato e do racismo como um pro- temática racial no Brasil e a virtual dor das políticas sociais voltadas blema tipicamente brasileiro. Neste sentido, se de um adoção do IDH para a população afro-descendente. lado somos bastante críticos como instrumento em relação à ausência de ·apro- potencializador das políticas so- (6) Na PNAD - 1987, os "pretos" aparecem como sendo 5,5%, os "parfundamento das questões ra- ciais voltadas para a população dos" 37,2%, "amarelos" 0,6% e os ciais no Relatório de Desen- afro-descendente no Brasil. ''brancos" 56,4%. Está excluída a povolvimento Humano no Brasil pulação rural da Região Norte. (7) Na justificativa apresentada pelo (1996), por outro, considera- 2- ASPECTOS DA IBGE diz-se o seguinte: a concepção mos que o próprio debate soREALIDADE AFRO- do sistema PNAD, na década de 80, bre a ética e a finalidade do previa a aplicação, juntamente com a desenvolvimento traz impor- DESCENDENTE NO pesquisa básica PNAF - Mão de Obra, tantes oportunidades de deba- BRASIL: do de um suplemento contemplando temas específicos a cada ano. Entretantermos e levantarmos os dados senzala 110 sulo~o to, em 1987, não foi aplicado esse sunecessários sobre esta antiga plemento, com a introdução da caramazela nacional que é o racisO quadro geral de vulnera- cterística cor no questionário básico. mo e a marginalização social da bilidade vivida pela população Deste modo, gerou-se um plano tabupopulação afro-descendente. afro-descendente brasileira lar específico, constituído inteiramente Assim, utilizando a meto- pode ser verificado através da por cruzamentos com esta informação.

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relação à questão da produção das estatísticas oficiais sobre a população afro-descendente brasileira. A insuficiente produção estatística no Brasil sobre esta comunidade não é for-

seria muito pouco provável PNAD 38,8% dos "pretos" e que, passado mais de um sécu- 35, 1% dos "pardos" ocupados lo da abolição da escravidão, a ganhavam até 1 salário mínipopulação afro-descendente es- mo, contra 18,6% dos brancos tivesse concentrada nos níveis de com igual rendimento. Somenmaior vulnerabilidade e margi- te 1,2% dos "pretos" e 2,5% nalidade social, dos "pardos" ocupados posA insuficiente produção estatística econômica e suíam renda superior a 1Osalários mínimos contra 9,3% no Brasil sobre esta comunidade não política. Voltando ao dos brancos com renda nesse é fortuita. Ela está articulada com um nossoassuntoprin- patamar. Neste mesmo ano veconjunto de fatores que pretendem cipal, apesar do rificou-se que 11,3% dos "prefazer da "inexistência" do racismo e constrangimento tos" e 10,5% dos "pardos" do preconceito uma causa e não uma de apresentar da- ocupados, trabalhando entre .. ,.. . dos desagregados 40 e 48 horas, ganhavam até consequenc1a. segundo a classifi- V2 salário mínimo, enquanto os cação "pardos" e brancos nessa mesma situação tuita. Ela está articulada com "pretos", é fato, analisando e constituíam 4,1 %. Outra Pesum conjunto de fatores que confrontando dados socio- quisa feita em São Paulo, utilipretendem fazer da "inexistên- econômicos desagregados por zando os mesmos dados da cia" do racismo e do precon- cor, que ambos grupos estão PNAD, também revelam outros ceito uma causa e não uma inscritos no mesmo quadro de aspectos muito curiosos. O diconseqüência. Conseqüência vulnerabilidade, ou seja, estão ferencial de rendimento médio porque a "inexistência" é re- em situação francamente des- no trabalho entre "brancos" e sultado da tentativa de "escon- vantajosa frente à população "pardos" atinge a marca de 110% e entre "brancos" e "neder" a nitidez da situação de ex- "branca". Vamos utilizar basicamente gros" atinge a marca de 142%. clusão e marginalização dos afro-descendentes e fortalecer osdadosdaPNADde 1987para O diferencial na média de remuo discurso da democracia ra- cruzá-los com os Indicadores de neração no trabalho entre um cial, de cujo ideal de embran- Desenvolvimento Humano do homem branco e uma mulher quecimento é parente de pri- PNUD de 1994c9l_Como vimos, negra atinge a média de meiro grau. Por isso, durante são três os indicadores esco- 295%(!0). Saindo do ângulo da remuquase um século, tentou-se es- lhidos por este órgão para a conder uma realidade sócio- medição dos índices de desen- neração direta e entrando no econômica que privava os des- volvimento humano: nível de aspecto dos salários indiretos cendentes de escravos no país rendimento, nível de escolari- e demais benefícios sociais, de direitos mínimos a con- dade e esperança de vida. (8) A este respeito ver: Pinto, Regidições de vida adequadasC8l • na P.- Os Problemas Subjacentes ao Por outro lado, o ocultamento 2.1- NÍVEL DE Processo de Classificação da Cor da desta realidade é produto da RENDIMENTO População no Brasil. Trabalho apresentado no Encontro Nacional de falta de disposição política, Produtores e Usuários de Inforquando não de um sentimento Analisando a situação do mações Sociais. Econômicas e Tercontrário, para a construção de nível de rendimento da popuritoriais, Rio de Janeiro, 27 a 31 de ações concretas que revertam lação "preta" e "parda" vis-a- maio de 1996 (mimeo). este quadro. Se o Estado e a vis com a população "branca", (9) PNUD- Relatório do Desensociedade brasileira como um verificamos que toda nossa ar- volvimento Humano, op cit. todo tivessem tido o empenho gumentação sobre a margina- (10) Fonte: Wood , Charles & Carvalho, José- A Demografia da de integrar e promover a popu- lização social daquele grupo Desigualdade no Brasil. IPEA, lação de origem escrava ao étnico faz sentido. 1994. ln Jornal Folha de São Paulo, pleno desenvolvimento social, Segundo o levantamento da 8/4/95 .

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observamos que a situação dos "pretos" e "pardos" também não é mais favorável que a dos "brancos": 47% dos "pretos" e 51 % dos "pardos" não possuíam carteira de trabalho assinada contra 35% dos "brancos" na mesma situação. Quando observado sob o ângulo dos rendimentos médios, o estudo do PNUD para o Brasil aponta que "o rendimento médio dos homens pretos e pardos correspondiam em 1990, respectivamente, a 63% e 68% do rendimento dos homens brancos. A posição relativa da mulher preta e parda em relação à mulher branca é semelhante: seu rendimento correspondia a 68% da mulher branca"º 1l . De acordo com este estudo existem duas razões que ajudariam na compreensão destes diferenciais: a maior concentração dos "pretos" e "pardos" nas regiões mais pobres do Brasil (principalmente na região Nordeste) e as diferenças de níveis educacionais entre os "brancos" e "pretos" e "pardos". Contudo, o relatório do PNUD aponta que mesmo quando se corrige estatisticamente estes fatores, as diferenças de rendimento entre os grupos étnicos perduram: "vale dizer, mesmo quando se compara pessoas de diferentes cores de uma mesma região e com mesmo nível educacional, constata-se que o diferencial entre pretos, pardos e brancos, embora mais reduzido é ainda mais significativo"<12l . Feitas estas correções, os diferenciais de rendimento líquido entre "pretos" e "pardos" e os "brancos", são de 74% e 79%, respectivamente, entre os 26

homens, e de 86% e 82%, respectivamente, entre as mulheres. A construção do índice de desenvolvimento humano da população afro-descendente no Brasil necessariamente teria de passar por uma avaliação do rendimento per capita/ ano deste contingente em nosso país, informação esta que não está disponível. Para fins da construção do indicador da população afro-descendente no item rendimento consideramos duas situações. Na primeira, ignoramos quaisquer diferenças existentes entre os níveis de rendimento dos afrodescendentes e dos brancos. Na segunda situação, partimos de uma média ponderada dos quatro níveis diferenciais entre o rendimento líquido da população "preta" e "parda' em relação à população branc;:t. A ponderação está baseada nas proporções entre os tamanhos das populações negras e mestiças. Deste modo, considerando que os homens e mulheres negras correspondem a 11,08% da população afro-descendente no Brasil e que os homens e mulheres mestiços correspondem a 88,91 % deste contingente, verificamos que em média o rendimento líquido dos "pretos" e "pardos", correspondem a 80% do rendimento líquido da população branca. Após termos feito isto, fizemos uma ponderação entre estes níveis de rendimento da população afro-descendente e a média do rendimento nacional ajustado. Adotamos, ainda, a simplificação de que a população brasileira seja dividida exclusivamente entre brancos e afro-descendentes de modo

a chegarmos em um nível de rendimento médio da população afro-descendente baseado no rendimento dos brancos e não em relação a média de rendimento da população brasileira. Deste modo, dado um rendimento nacional per capita igual a US $ 5142,00 e um nível diferencial líquido de 80% do rendimento dos afro-descendentes em relação aos brancos, verificamos que o rendimento da população negra e mestiça seria igual a US $ 4.583,33. Cada um destes métodos apresentou um inconveniente. No primeiro, quando as diferenças de rendimentos são desprezadas, deixamos de levar em consideração um fato óbvio que é a diferenciação do nível de rendimento médio dos "pretos" e "pardos" em relação aos "brancos". No outro método, quando levamos em conta o diferencial destes ren-. dimentos, o procedimento estatístico adotado não foi dos melhores tendo em vista que partimos de uma suposição de que a população brasileira seria formada exclusivamente por brancos, negros e mestiços. Não obstante estas observações, a forma adotada para o cálculo do indicador de rendimento dos negros e mestiços aparentou ser bastante razoável na medida em que está vinculada ao próprio indicador de rendimento feito pelo PNUD. Qualquer outra forma de levantamento deste indicador, que por exemplo englobasse a concentração de renda, correria o risco de estar fundamentada em dados e metodologia (11) PNUD, op cit, p.22. Quadro 2.2. (12) Idem


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diferentes dos oficiais, o que 4.533,33, seu nível de renditornaria improcedente a com- mento médio estaria abaixo da paração entre os mesmos. linha de pobreza, definido pelo Tendo em conta este con- PNUD. Assim, o cálculo da junto de observações metodo- elasticidade marginal de sua lógicas, verificamos que o ín- renda pode ser calculada de dice do PIB da população acordo com a fórmula verifiafro-descendente no Brasil fi- cada acima, fazendo com que caria situada, no mínimo, dentro o indicador W (y) da populada seguinte faixa: O indicador ção afro-descendente seja igual otimista da população afro-des- à própria média do rendimento desta população tal como cendente não precisa ter sua indicado neste parágrafo. fórmula indicada posto ser Dado que a fórmula do indiigual à média nacional igual a cador de rendimento é definido 0,940. A forma pela qual che- por: R = (W -100)/(5449-100) gamos ao indicador pessimis- e que o rendimento pessimista ta está calcada na base de cál- da população afro-descendente culo das Notas Técnicas (p. seria igual a 4.583,33, o indica152) do Relatório Sobre De- dor pessimista do rendimento da senvolvimento Humano no população afro-descendente no Brasil para o indicador de ren- Brasil seria igual a: dimento. O valor W (y) é a uti- R * => Indicador otimista de lidade ou bem-estar derivado rendimento da população afroda renda y e a elasticidade descendente no Brasil. R ** => Indicador pessimista marginal da renda E indica que de rendimento da população o rendimento é decrescente. afro-descendente no Brasil. Para incorporar essa hipótese R*= 0,940 ao cálculo do IDH recorre-se R**= (4583,33 - 100)/ (5449 à fórmula de Atkinson relativa - 100) = 0,838. à utilidade de renda: (1) Cálculo otimista; R * = 0,940 (igual ao indicador de w (y) = [1/(1 - E)] * y1-E. Esta fórmula é válida para rendimento do Brasil) um nível de rendimento abai- (2) Cálculo pessimista; R ** = xo de US $ 5.120,00 definido 0,838 (89% do indicador de rendimento do Brasil). como equivalente a renda méDeste modo o indicador de dia mundial equivalente ao nírendimento da população afrovel de pobreza. Para qualquer descendente no Brasil situaroutro nível de rendimento mé- se-ia entre 0,838 e 0,940. dio abaixo deste valor, a elasticidade-renda é igual a O. DesNÍVEL te modo W (y) é definido por EDUCACIONAL ser igual a; W (y) = [111-0)] * yi -o.; ou; Da mesma forma que nos w (y) = y ( l 3) níveis de rendimento, a situComo a média pessimista de ação educacional da população rendimento da população afro- afro-descendente não é nada descenden te é igual a US$ favorável. Segundo os dados

a.a-

da PNAD, apresentados no Relatório de Desenvolvimento Humano no Brasil, 35,2% dos "pretos" e 33,6% dos "pardos" com mais de 25 anos eram analfabetos, contra 15% dos "brancos" em igual condição. Vale lembrar que o índice de analfabetismo no Brasil é de 18%. Somente 1,7% dos "pretos" e 2,9% dos "pardos" declararam ter 12 ou mais anos de estudos, contra 11,4% dos ''brancos" e 28,5% dos "amarelos". De acordo com o mesmo estudo, a probabilidade de entrar na escola é de 85 % para os "brancos", contra 65% para os "pretos" e "pardos". A probabilidade de ingressar na segunda fase do ensino elementar, uma vez tendo ingressado na escola, é de 55% para os "brancos", frente a 40% para os "pretos" e 44% para os "pardos". A probabilidade de um "branco" que completou o primeiro grau chegar ao segundo grau é de 57%, ao passo que a probabilidade de um "preto" e de um "pardo" fazerem o mesmo cai, respectivamente, para 36% e 46%. O acesso à Universidade é ainda mais restrito aos negros. Somente 18% dos "pretos" e 23% dos "pardos" que completaram o segundo grau têm probabilidade de chegar às Universidades, frente a uma probabilidade de 43% dos "brancos" na mesma situação. Este jogo de probabilidades se completa quando observa( 13) Para um nível de rendimento médio entre 2 e 3 vezes o valor desta linha de pobreza o cálculo de W (Y) = y + 2 . 112 + 3 [(y-2y' )) ll3 (14) Doze ou mais anos de estudo pode significar ingresso no Terceiro Grau. 29


mos o percentual da população particular. Na mesma via, mui"branca" e "preta" e "parda" de tas vezes o preparo dos pro14 anos de idade com atraso fessores não é suficiente e os escolar. Apenas 6, 1% dos "pre- livros didáticos não são adetos" e 8,3% dos "pardos" não quados para o enfrentamento ficaram para trás em seus estu- da questão racial. Ou pior, não dos, ao passo que este índice poucas vezes, tanto os profesentre os "brancos" sobe para sores como os livros didáticos 27,7%. O percentual dos afro- escondem o problema do predescendentes atrasados com conceito de suas turmas ou o mais de dois anos de estudo são estimulam abertamente. Reainda mais assustadores: 72% centemente o jornal Folha de dos "pretos" e 60% dos "par- São Paulo publicou a relação dos" menores de 14 anos en- de livros didáticos reprovados contram-se nesta situação, pelo MEC. Segundo a reporfrente a 34,9% dos "brancos". tagem, um destes exemplares, Naturalmente, este menor o livro Viva Vida: Ciência, da acesso ao ensino se traduz em Editora FfD, destinado a cri. . um ingresso mais precoce no . anças da terceira série, ou seja, mercado de trabalho. A praga do a partir de oito anos. No livro, trabalho infantil afeta 20% das "duas ilustrações mostram uma crianças "pardas" e "pretas". A sala de aula com crianças poquantidade de crianças "bran- bres, negras e mestiças. Uma cas" afetadas por este problema delas está se coçando, e a leatinge a marca, também muito genda diz: ' Na classe de elevada, de 15% do totalº 5l. Pedrinho havia um menino Outro aspecto que merece com piolhos'. Na figura seser mencionado é a baixa quali- guinte, todos estão se coçandade das escolas públicas no do e uma série de perguntas Brasil que afeta as crianças po- indaga de quem é a culpa dos bres em geral e as negras em alunos estarem com piolhos". 30

Segundo a reportagem da Folha, notava-se uma "tendência de reduzir a problemática das condições sanitárias a procedimentos individuais. As ilustrações mostram crianças pobres, uma delas descalça, como se cidadãos mestiços e pobres fossem os responsáveis pela disseminação de doenças"<16l . Com este exemplo concreto, verificamos que, além de todas as condições sociais adversas, as crianças afro-descendentes são obrigadas a enfrentar na escola a reprodução de práticas elitistas e racistas, o que, certamente, é um desestímulo a mais à continuidade dos estudos. O PNUD calcula o item educação estabelecendo uma média entre o nível de analfabetismo da população adulta e uma taxa combinada de matrícula nos ensinos fundamental, médio e superior. Utilizando uma média ponderada dos níveis de alfabetização das populações "pretas" e "pardas", verificamos que a taxa de alfabetização entre os afro-descendentes é de 34%. Já o índice combinado de matrícula da população de afro-descendentes nos três níveis de ensino foi calculada a partir da probabilidade que estes têm de atingir a cada um daqueles quatro patamares. Outra vez utilizamos uma média ponderada das populações "pretas" e "pardas". Adotando esse procedimento, verificamos que a taxa combinada de matrícula e o índice educacional da população afro-descendente encon(15) Wood & Carvalho, op cit (16) Folha de São Paulo, 14/5/97. Caderno Cotidiano

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trarn-se no seguinte nível: E* => Indicador de padrão educacional da população afro-descendente; A* => Taxa de analfabetismo de adultos afro-descendentes = 34%; M 1* => Taxa de matrícula de afro-descendendes na primeira fase do ensino primário= 65%; M2 * => Taxa de matrícula de afro-descendendesnasegunda fase do ensino primário= 27%; M3 * => Taxa de matrícula de afro-descendentes no ensino de segundo grau= 11,4% e; M4* =>Taxa de matrícula de afro-descendentes no ensino superior= 2,3%. Desta forma: M* => Taxa combinada de matrículas dos afro-descendentes nos três níveis de ensino é igual a: M* =Ml *+M2*+M3*+M4*/4 Ou seja; M*=65+27+11,4+2,3/4=26,42 Corno pondera a Nota Técnica do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano: o cálculo do nível educacional E envolve: (i) a aplicação naquela expressão dos valores observados para as variáveis relacionadas à educação (a taxa de alfabetização de adultos A e a taxa combinada de matrícula nos ensino fundamental, médio e superior M); e (ii) cálculo da média ponderada das duas variáveis, na qual a primeira tem peso dois e a segunda peso um. Desta forma, a fórmula do indicador de nível educacional dos negros e mestiços é igual a: E*=2/3x {(A*-0)/(100-0)} + 1/3 X {(M* - O)/ (100-0)}". Ou seja; E*=2/3x {(34-0)/(100-0)} + 1/3 X { (26,42 - O)/ (100 - O)}

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E*= 0,314 Deste modo, o indicador educação para a população afro-descendente seria igual a 0,314. Vale apontar que o índice nacional de educação do Brasil, medido pelo PNUD, é igual a 0,76, isto é, mais do que o dobro do indicador da população afro-descentende para este item.

1.3 • ESPERANÇA DEVIDA As informações referentes à esperança de vida da população afro-descendente no Brasil também não são nada animadoras. Entre 1940 e 1950, a expectativa de vida ao nascer da população "branca" brasileira era de 47,5 anos. Entre os anos de 1970 e 1980, a esperança de vida deste contingente subiu para 66, 1 anos. Já a população "não-branca" tinha uma expectativa de vida de 40 anos entre a década de 40 e 50. Ao longo do decênio dos 70, esta esperança de vida havia subido, mas para um nível menor que o da população "branca", para 59,4 anos, ou seja praticamente 7 anos a menos no mesmo período< 11>. Considerando estas informações, em absoluto seria absurdo apontarmos que os "pretos" e "pardos" têm, no mundo real, menos direito à vida que os "brancos" . Contudo, vale apontar que diversos outros aspectos, além do nível de rendimento, do nível educacional e das influências regionais, se fazem presentes na determinação desta menor esperança de vida da população afro-descendente frente à po-

pulação "branca". Devemos englobar também outros dados, que embora não entrem no cálculo do IDH propriamente dito, fazem parte dos Indicadores do Perfil de Desenvolvimento Humano e Perfil de Privação Humano elaborados pelo mesmo PNUD. Segundo os dados da PNAD de 1987, 13,9% dos "pretos" e 13,3% dos "pardos" viviam em "habitações rústicas", ou seja barracos ou casas de adobe, contra 3,4% dos "brancos" vivendo no mesmo tipo de moradia. Do mesmo modo, 42,2% dos "pretos" e 50,4% dos "pardos" não desfrutavam dos serviços de água com canalização interna, o que certamente resultaria em um melhor padrão de saúde, contra 19,9% dos "brancos" na mesma situação. Também o tratamento do lixo é diferenciado segundo o critério da cor: 34, 1 % dos "pretos" e 39,5% dos "pardos" escoavam lixo em terrenos baldios, contra 18,3% dos brancos utilizando-se da mesma alternativa. Por fim, as diferenças raciais acabam envolvendo o acesso a um padrão civilizatório mínimo, corno o acesso à informação e a um conforto no lar: 21,7% dos "pretos" e 28,0% dos "pardos" não desfrutavam de energia elétrica, contra 10,2% dos brancos sem o mesmo tipo de serviço. Consideraremos que a esperança de vida da população afro-descendente se encontra nos mesmos patamares da esperança de vida da população "não-branca" corno um todo. ( 17) A este respeito ver, Wood e Carvalho, op. cit.

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Este procedimento é bastante razoável se levarmos em consideração que a população afro-descendente ("preta" e "parda") corresponde a mais de 90% da população "nãobranca" do Brasil. Deste modo o indicador de longevidade da população afro-descendente é igual a 59,4 anos. Assim: I* =>Esperança de vida da população afro-descendente= 59,4 L * => Indicador de longevidade da população afro-descendente; Este indicador, segundo a Nota Técnica do Relatório do Desenvolvimento Humano, tem como fórmula a seguinte expressão: L * = (1 - 25)/ (85-25) Assim; L* = (59,4 - 25) / (85 - 25) L* = 0,573 Deste modo, o indicador da esperança de vida da população afro-descendente seria igual a 0,573. Vale apontar que o indicador nacional de longevidade, medido pelo PNUD, está situado na faixa de 0,69. ~.4•

INDICADORES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DA POPULAÇÃO AFRO· DESCENDENTE NO BRASii.: umo ov11/i111io preliminor

Antes de finalizarmos nossas contas acerca dos indicadores de desenvolvimento da população afro-descendente no Brasil cabe apontar algumas observações. Em primeiro lugar, o resultado a que se che32

gou é absolutamente preliminar, posto que alguns dos indicadores estão baseados em hipóteses. Em segundo lugar, também tivemos pouco tempo para discutirmos estes resultados com outras pessoas que teriam, com certeza, diversas ponderações a fazer acerca da nossa base de cálculo. Neste sentido ficaremos satisfeitos se este índice calculado conseguir pura e simplesmente provocar o debate e auxiliar a produzir políticas mais adequadas para o trato da questão racial no Brasil e em outros lugares do Mundo. Por fim, como vimos, o conjunto dos indicadores foram calculados a partir das indicações metodológicas apresentadas nas Notas Técnicas do Relatório de Desenvolvimento Humano no Brasil (1996). Na verdade, uma vez tendo-se calculado os índices de rendimento, educação e longevidade, o cálculo do índice de desenvolvimento humano torna-se trivial, bastando-se fazer uma média simples entre estes três indicadores. Como observamos páginas acima os indicadores verificados foram: R * => Indicador de rendimento da população afro-descendente = 0,838 < R > 0,940 E*=> Indicador de nível educacional da população afrodescendente = 0,314 L * =>Indicador de longevidade da população afro-descendente = 0,573 Assim, o IDH da população afro-descendente seria igual; R *+E*+L */3; Ou seja; (1) Perspectiva pessimista;

0,838 + 0,314 + 0,573 /3 = 0,57 5 (2) Perspectiva otimista; 0,940 + 0,314 + 0,573 /3 = 0,607 Posto estes números, verificamos que o IDH da população afro-descendente no Brasil situa-se entre 0,575 dentro de uma perspectiva pessimista, e 0,607, dentro de uma perspectiva otimista. Estes indicadores apontam que a qualidade de vida da população afro-descendente no Brasil fica abaixo da média da maioria dos Estados brasileiros<18l . De acordo com os padrões internacionais, ao apresentar estes dados, o IDH da população negra e mestiça brasileira seria considerado medianobaixo, visto estar situado, no máximo, no patamar de 0,607. Os países de IDHs tido como medianos apresentam um indicador médio de 0,64 7. Dentro da leitura otimista, o IDH da população afro-descendente estaria situada na 1oga posição, abaixo da China, cujo IDH é igual a 0,609, e acima do Iraque, cujo IDH é igual a 0,599. Dentro do enfoque pessimista, ao nosso ver o mais realista, o IDH da população afro-descendente cairia para a 116ª posição, abaixo de El Salvador (América Central) e pratica~ente junto com a Namíbia (Africa), cujo IDH está na faixa de 0,573. Dentro deste enfoque, a situação dos afrodescendentes no Brasil é melhor que a maioria dos países (18) A tabela do ranking do IDH dos estados brasileiros estão em PNUDPEA: Relatório sobre o DesenvolvimentoHumanoBrasil, 1996, p. 169. A tabela do ranking do IDH entre as 174 nações do planeta estão nas p.p. 135-137.


da África, mas cabe apontar que ainda assim seu IDH é pior do que os indicadores apresentados em nove países deste continente: Ilhas Maurício, Líbia, Tunísia, Botswana, África do Sul, Argélia, Egito, Swazilândia e está situado pouco acima da Namfbia, como vimos, além do Marrocos, do Gabão e do Zimbabwe. Do mesmo modo, dentro do enfoque pessimista, o IDH da população afro-descendente no Brasil é pior do que as médias de todos os países da América Latina, com exceção da Nicarágua que vem logo abaixo com um IDH igual a 0,568. Por fim, não deixa de ser curioso que, passado mais de um século do fim da escravidão, o IDH da população negra brasileira seja tão baixo e venha tão abaixo da média nacional, cujo IDH é igual a O, 796, o que é considerado mediano-alto. Triste situação para o paraíso da democracia racial. ..

tem sérios problemas de compatibilização estatística entre os diversos países do mundo. Por isso, dificilmente seria possível construir um indicador de desenvolvimento humano a nível internacional se este não se restringisse a captar somente poucas variáveis mais relevantes. Do contrário, o próprio instrumento analítico IDH ficaria comprometido, posto que ele retira muito de sua força justamente da comparação das situações sócioeconômicas vividas pelas diferentes nações em um mesmo momento. Neste sentido, a pergunta sobre a capacidade de revelação por parte da ferramenta IDH da realidade da comuni-

dade afro-descendente brasileira aponta tão-somente para a necessidade desta própria comunidade, junto com os órgãos estatais de produção estatística, definir quais seriam o (19) Vale lembrar, neste sentido, que o PNUD já desenvolveu um indicador específico sobre a Situação da Mulher, englobando as seguintes variáveis: esperança de vida ao nascer, mortalidade materna, taxa de fecundidade total, idade da mulher no primeiro casamento, domicílios cujo chefe é a mulher, taxa de alfabetização da população feminina adulta, mulheres integrantes da PEA, participação das mulheres no mercado de trabalho, rendimento das mulheres ocupadas e mulheres como administradoras e gerentes. A este respeito ver: Relatório Sobre Desenvolvimento Humano Brasil, IPEA/PNUD, 1996. Arquivo/KS

3· OS INDICADORES INDICAM TUDO? Com certeza a metodologia do DH traz muitas possibilidades em termos de uma melhor compreensão da realidade brasileira. Contudo poderíamos nos perguntar: será que aqueles indicadores mencionados indicam tudo o que é necessário ser revelado sobre a população afro-descendente? Antes de respondermos a esta pergunta, precisamos fazer uma ponderação inicial. Dado problemas metodológicos de levantamento e tratamento das informações, exis33


conjunto de critérios e parâmetros balizadores deste seu bem ou mal-estar coletivo< 19l . Será que todos os problemas dos negros no Brasil serão resolvidos no dia em que estes

vistados, negro é sinônimo de de acesso aos altos escalões hiincompetência< 20l . Ou seja, erárquicos de empresas e entimesmo que os negros estudem, dades públicas (como, por exse esforcem para obter diplo- emplo, o ltamaraty e as Forças mas, roupas bonitas, "boa Armadas). Estes últimos aspecaparência" etc, tos também colocam a nu toda a ainda assim, eles falsidade do ideário da democraSerá que todos os problemas dos serão um poten- cia racial no Brasil, ou, sob outro negros no Brasil serão resolvidos cial alvo de posângulo, coloca esta nação como no dia em que estes forem síveis desrespei- uma das mais racistas de todo o alfabetizados, receberem salários tos, preconceitos planeta. maiores e vi verem mais? Ou e violência. Enfim, a desigualdade que se Mesmo coma inicia com a falta de oportunimesmo que outras variáveis sejam contempladas, como o acesso ao falta de informa- dade de educação, atravessa as ções específicas, tratamento de lixo, esgoto, luz chances de participação plena, supomos poder elétrica, etc? leia-se condições igualitárias, encontrar diverno mercado de trabalho, aprosos outros indicafunda-se na menor remuneraforem alfabetizados, recebedores que apontam o nível de (20) Folha de São Paulo, 25/6/95. rem salários maiores e viverem precariedade em que vive a A pergunta feita era: "negro quanmais? Ou mesmo que outras variáveis sejam contempladas, população afro-des-cendente do não faz besteira na entrada faz na saída?", significando, no mínicomo o acesso ao tratamento do Brasil. Um dos mais impor- mo, se a sociedade questionava a cade lixo, esgoto, luz elétrica, tantes seria a questão da violên- pacidade profissional dos negros e etc? Ainda assim, será que as cia policial, que, muito embora negras. Por outro lado, cabe ler as condições de vida da popu- não incida somente lação afro-descendente esta- sobre os negros, Dados do Datafolha apontam riam compatíveis com os níveis tem nesta popuque 52% dos negros e 54% das desejados? lação seu alvo prenegras apontam a discriminação Na verdade, é preciso que ferencial. Por outro as medidas visando a superação no trabalho como o maior da situação de marginalização lado, não é somenproblema, o que é bastante econômica e social população te a falta de direicoerente com outro dado afro-descendente se combine tos que caracterilevantado na mesma pesquisa com medidas concretas de za a situação da segundo o qual para 14% dos combate ao preconceito e à população afrodiscriminação racial. Dados do descenden te no "brancos", 16% dos "pardos" e Datafolha apontam que 52% nosso país. A sua 17% dos outros grupos étnicos dos negros e 54% das negras própria auto-estientrevistados, negro é sinônimo apontam a discriminação no ma fica abalada no de incompetência trabalho como o maior problerespostas a esta pergunta, na qual a ma, o que é bastante coerente preconceito cotidesmagadora maioria discordava, sob iano, implícito e explícito, precom outro dado levantado na a luz da hipocrisia racial reinante mesma pesquisa segundo o sentes nas salas de aula, nos prono Brasil tal como vimos linhas aciqual para 14% dos "brancos", grama de televisão, nas mensa- ma em nosso texto. Ou seja, é de 16% dos "pardos" e 17% dos gens da mídia, nos textos didáti- esperar que esta concepção seja ainoutros grupos étnicos entre- cos e na falta de oportunidade da mais freqüente junto à população.

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ção obtida na atividade produtiva, perpassa os mecanismos velados ou explícitos de violência e discriminação e desemboca em outras desvantagens como o não gozo de serviços públicos e outro s serviços essenciais. Assim é que a população negra continua a construir escolas que não freqüenta- 1 r ã o .1}, instalar tubulações ' hidráulicas e construir torres de transmissão para viabilizar e disponibiliz r a serviços os quais não terão a satisfação de usufruir e a produzir riquezas que jamais poderão desfrutar. Podemos perceber, assim, que a questão racial no Brasil envolve um aspecto inerentemente político. Portanto, nossas constatações acerca da péssima situação vivenciada pelos negros brasileiros desdobramse em nossa convicção da necessidade de enfrentarmos esta problemática pela via da constituição de estratégias públicas como: ação afirmativa (política de cotas em diversos órgãos públicos e privados), políticas

1fr1°I.fBff•

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de garantia de renda mínima, pre-servação das áreas remanescentes de antigos Quilombos, a melhoria do padrão educacional de toda população - e da negra e mestiça em especial - e através do estímulo à dignidade e auto-estima de todos os afro-descendentes brasileiros . Observamos também que

gãos oficiais de levantamentos estatísticos visando a produção de informações - e seu respectivo tratamento - sobre a situação social, cultural e econômica dos diversos grupos étnicos do Brasil.

4- CONCl.USÃO:

vamos por o es• • • • • • . , - que/elo lora do armário!

a temática sobre desenvolvimento humano para a população negra no Brasil exige ainda uma discussão paralela imprescindível: o aperfeiçoamento, coleta e disponibilização ampla e adequada de dados relativos aos afro-descendentes. Isto requer que o Estado deixe de se omitir perante esta questão e, de forma amplamente discutida por toda sociedade, capacite e confira os recursos adequados aos ór-

Na Grã-Bretanha existe um provérbio que diz "há um esqueleto no armário" . Tal frase significa que, por exemplo, uma determinada família guarda um segredo a sete chaves, segredo este envolto em um ar de mistério, mas que constitui uma mácula na história daquele dado grupo . O Brasil também guarda um esqueleto trancafiado no armário. Este segredo, envolto em meio a densa bruma, é constituído pelas relações raciais em nosso país, envolvendo principal , embora não unicamente, a população de origem afro-descendente brasileira e a sua integração junto ao mundo branco. Mas por que e para quem a questão racial no Brasil poderia se constituir em uma vergonha? O Brasil abriga a segunda maior população negra em todo o Mundo. Como diria Malcon X, os bisavôs e bisavós deste amplo contingente não foram 35


Gianne Carvalho/Imagens da Terra

convidados para vir passear na América. Não puderam cantar bonitas canções para o Mundo Novo. Enfim não viveram o sonho americano. Como diz a música, "tudo chegou sobrevivente no navio". Trazidos à força, os negros viram "a crueldade bem de frente": tiveram seus nomes, nacionalidades , iden-tidades, crenças apagadas da história. Segundo as tradições econômicas e religiosas vigentes à época, escravos eram coisas e não gente, não tinham alma .. . Seja como for, os séculos se passaram, belos monumento, hoje históricos, foram erguidos, muita riqueza - açúcar, ouro, fumo, café - foi e continua sendo gerada. 36

'

Sem dúvida a história dos escravos trazidos para o Brasil e a sorte de seus descendentes guardam muito sofrimento e privações. Mas demonstra também a disposição de uma raça em sobreviver, em resistir aos maiores tormentos, enfim, em acreditar na vida. Logo, para os próprios afrodescendentes e para a maioria do povo brasileiro, não existe a menor razão para se envergonharem de seu passado e muito menos para serem céticos em relação ao seu futuro . Quem guarda o esqueleto no armário é quem quer esconder não apenas sua própria vergonha mas sua dupla responsabilidade pelo período es-

cravocrata e pela situação atual onde o racismo, a discriminação e a falta de oportunidades são aspectos cotidianos da esmagadora maioria da população descendentes de escravos em nosso país. A formação do Brasil republicano trouxe consigo uma profunda vontade, senão necessidade, de aprofundar os sentidos da identidade nacional. O país almejava ser uma nação séria, moderna, progressista. Entretanto, na ausência de uma Revolução democrática, o discurso das elites do Brasil do começo do século XX produziu a alquimia de transferir, através de uma análise pseudo-científica,

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para as maiores vítimas do antigo sistema, os ex-escravos, a culpa pela situação de atraso econômico, moral e intelectual no País. O Brasil era do jeito que era por culpa dos negros preguiçosos e das mulatas lascivas que, com sua indolência e permissividade, impediam o progresso da nação. Após a Revolução de 30, outro discurso ganhou corpo no Brasil. Inspirado em Gilberto Freyre , a nação adotou o ideário da democracia racial segundo o qual não haveria racismo no Brasil, mas uma doce e malemolengue forma de do- i>· minação dos brancos sobre os negros . Desta vez, não se tratava mais de impingir aos negros a culpa pela sua própria dor, mas de negar a realidade do racismo, do preconceito e das profundas de sigualdades sócioeconômicas que separavam a população branca e negra e mestiça no país. Esta concepção de que vigoram relações inter-étnicas harmoniosas exerce um papel hegemónico até hoje no Brasil , o que foi confirmado pela reportagem da "Folha" de 1995, que apontou a prática de um racismo, "politicamente correto", cordial em nosso país. Como podemos perceber, ao

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longo da história, o racismo no Brasil tanto já foi fundamentado em concepções (pseudo) científicas como já recebeu tentativas de acobertamento sócioideológico que ora não reconhecia sua exis-tência e ora ocobria de adornos e paetês. Sobre isso existem muitas histórias. Uma das mais populares relembra Rui Barbosa. Esse, cioso em ver realizado um futuro sem as marcas da escravidão ou buscando evi-

tar indenizações à escravos e senhores teria mandado queimar arquivos contendo documentos das compras de escravos. Sendo verdadeiro o ato, coloca-nos a questão de alcance das tentativas de evitar o tratamento adequado à problemática racial. Não sendo verdadeiro, mas popular a hipótese, releva-se aí o simbolismo do tratamento dissimulado frente aos escravos e seus descendentes. Finalmente, por um lado ou

por outro, esta história exemplifica a questão de que o levantamento e o acesso aos dados, aos documentos e às estatísticas colocam-se como elementos estratégicos para a constituição de políticas promotoras da melhoria da qualidade vida, seja dos negros e mestiços brasileiros seja de qualquer outro grupo específico da população. O debate sobre os indicadores de desenvolvimento humano para a população afro-descendente é importante porque permite ampliar o enfoque do desenvolvimento. Contudo, para que de fato o IDH venha a representar uma ferramenta a favor da ampliação da cidadania para esta comunidade é preciso que seus formuladores reconheçam " " ' que a questão racial é uma das variáveischave para a compreensão da exclusão social no Brasil, requerendo assim, um denodo especial na produção de conhecimentos sobre o assunto e no levantamento de informações. A sua execução ou não, de forma alguma alterará, por si mesma, a situação hoje vivida. Mas, na medida em que esclareça ou enevoe aspectos da realidade, podem ajudar a abrir ou fechar importantes caminhos para sua transformação. 37


Carlos Carvalho/Imagens da Terra

A Perspectiva de Desenvolvimento, o Ciclo Social de Conferências das Nações Unidas e a Iniciativa do Observatório da Cidadania Sonia Corrêa* Carlos Carvalho/Imagens da Terra

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Rio de Janeiro 3-14 June 1992

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* Coordenadora do Observatório da Cidadania - Pesquisadora do IBASE 38

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penhague 95)(1 l, Quarta Con- determinava em grande mediferência sobre a Mulher, Desen- da as negociações. Já as convolvimento e Paz (Pequim 95) dições de negociação que cao Habitat II (Istambul 96), a Cú- racterizam os anos 90 têm sido pula Mundial da Alimentação incomparavelmente mais com(Roma 96) e a II plexas e - não parece excessivo Conferência Inter- dizer - mais flexíveis e abertas. Entre 1990 - quando se lança o nacional de Edu- A emergência de novos atores primeiro Relatório Internacional de cação de Adultos políticos é intrínseca a esta nova Desenvolvimento Humano - e 1997, (Hamburgo, julho dinâmica. Muito embora os Estiveram lugar nove conferência sobre 97 )<2l. tados nacionais permaneçam temas de natureza social ( ... ) O Ciclo Social como os atores centrais nas ne- em função de seu gociações da ONU, muitas ouança em 1990 e se encerra em calendário intensivo - produziu tras vozes se fizeram ouvir enjulho próximo com a II Con- momentum político inédito no tre 1990 e 1996. As ONGs -deferência Internacional de Edu- contexto de negociações da nominação criada pela própria cação de Adultos - estão inseri- ONU. O ciclo foi concebido e ONU para definir tudo o que não dos numa mesma estratégia de processado de maneira sistêrni- seja governo - tem estado preretomada e revitalização do de- ca: resoluções de uma confe- sentes em negociações internabate sobre desenvolvimento. rência seriam transportadas à cionais desde a década de 40. Esta estratégia se origina, sem conferência seguinte num proEntretanto, nos anos 90, dúvida, em setores específicos cesso cumulativo. As conferên- elas transitariam da posição de das Nações Unidas. Mas, no mo- cias realizadas na década de 90 observadoras para a de "produmento atual, pode-se afirmarque tinham antecedentes. A ECO, toras de agendas". Esta "aberambos os processos envolvem Direitos Humanos (Viena), tura política do sistema ONU" uma gama incomparavelmente Habitat, Cúpula da Alimenta- passou a exigir do setor nãomais extensa de atores e atrizes ção e CONFITEA sociais, entre outras razões, correspondem a ( ... ) as conferências ocorridas antes porque ambas inicitivas têm segundas confe- de 1990 tiveram lugar num contexto como premissa forte a convo- rências em pelio- histórico internacional determinado cação das chamadas sociedades dos variáveis entre pela bipolaridade, cuja lógica 10 e 25 anos. No civis ao debate. determinava em grande medida as Entre 1990 - quando se Cairo realizou-se negociações. lança o primeiro Relatório In- uma quinta confeternacional de Desenvolvimen- rência de população e Beijing to Humano - e 1997, tiveram foi a quarta Conferência da Mu- (1)-A Cúpula Social deveria ter sido nomeada Cúpula de Desenvolvimenlugar nove conferência sobre lher. A única inciativa de fato to Humano. Mas em função da retemas de natureza social: a nova foi a Cúpula de Desen- sistência expressa por alguns países membros com relação às análises Cúpula da Criança, a ECO 92, volvimento Social. apresentadas pelos Relatórios GloEntretanto, as conferências bais, isto não foi possível. a Conferência de Direitos Huocorridas antes de 1990 tive- (2) A CONFJTEA que encerra o cimanos (Viena 1993), População e Desenvolvimento (Cai- ram lugar num contexto históri- clo, pode ser interpretada como um esforço, quase ex temporâneo, da ro 94) Cúpula Mundial de co internacional determinado UNESCO de também imprimir sua Desenvolvimento Social (Co- pela bipolaridade, cuja lógica marca ao Ciclo Social. Tanto a perspectiva de Desenvolvimento Humano quanto o chamado Ciclo das Conferência Sociais da ONU - que se iniciou com a Cúpula da Cri-

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governamental uma agenda proposi tiva (e não mais apenas denunciativa), assim como novas e sofisticadas habilidades políticas. Os Programas de Ação do Ciclo Social foram negociados pelos Estados, mas seus conteúdos foram em grande medida elaborados pelas ONGs. Ou seja, os Programas de Ação resultantes são formal mente um acordo de responsabilidade dos Estados e "nossos instrumentos políticos". Esta natureza hfürida facilita a in ternalização das resoluções nos contextos nacionais, pois trata-se de agendas que emergiram nas sociedades nacionais, foram levadas ao plano global, traduzidas numa linguagem mais "universal" e retornaram às nossas mãos na forma de um grande desafio: como fazer para que palavras sejam transformadas em políticas públicas e ações da própria sociedade? A afinidade entre a perspectiva do Desenvolvimento Humano e o Ciclo Social pode ser identificada em diferentes dimensões. Desde pelo menos 1992, os Relatórios Globais têm dialogado abertamente com a agenda do Ciclo Sociat. Em 1993, o Relatório Global incluiu a noção de sustentabilidade em face das resoluções da ECO. O Relatório de 1995 formulou doi s índices específicos para avaliar a situação das mulheres em relação ao Desenvolvimento Humano: o Índice de De40

senvolvimento da Mulher e a Medida de Empoderamento de Gênero num diálogo aberto com a Conferência de Beijing. Três das premissas fundamentais do Desenvolvimento Humano - eqüidade, empoderamento, sustentabilidade - cristalizaram-se politicamente nas negociações da ONU na década de 90 e são extensamente utilizadas nos diversos Programas de Ação resultantes das oito conferências. O chamado pacto 20/20 aprovada em Copenhague - que recomenda a aplicação de 20% dos orçamentos nacionais assim como dos recursos da cooperação internacional em políticas de desenvolvimento social - foi inicialmente apresentado pelo PNUD e pela UNICEF no Cairo (1994). Em seguida, o pacto 20/20 foi reiterado em Beijing e no Habitat II. No interior do Sistema das Nações o PNUD- que elabora os Relatórios de Desenvolvimento Humano - é também a

agência responsável pelo acompanhamento das resoluções da Cúpula de Desenvolvimento Social enquanto gestor da chamada "Iniciativas de Estratégias Contra a Pobreza" (IEP), que conta com um fundo especial de 9 milhões de dólares. Desde outubro de 1996, foram aprovadas 52 solicitações de fundos à IEP para programas de erradicação da pobreza: 13 demandas da Ásia e do Pacífico, 16 da África subsahariana, 4 da região árabe, 10 vindas da Europa do Leste e da Comunidade dos Estados Independentes e 9 da América Latina <3J. Finalmente, a extensa pauta de resoluções aprovadas nas conferências dos anos 90 pode ser interpretada como o leque de políticas necessárias para que possamos nos aproximar grada(3) É a meu ver significativo observar que o Brasil não está incluído na li sta dos nove países latino-americanos. (4) Divulgamos o Relatório Zero (1996) e estamos tradu zi ndo o Relatório I ( 1997)


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Carlos Carvalho/Imagens da Terra

tivamente de indicadores ideais de desenvolvimento humano ao longo das próximas décadas . Tal como definidas pelas conferências estas políticas estão desenhadas em termos de ações setoriais Pobreza, Trabalho Produtivo, Integração Social, Saúde, Saúde Reprodutiva. Todos os Programas de Ação reiteram, ou ampliam as definições de Viena com relação aos Direitos Humanos fundamentais na sua indivisibiljdade e inrussolubilidade (direitos individuais e coletivos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e de solidariedade). As agendas também enfatizam as especificidades dos grupos sociais a quem estas políticas se destinam, mulheres, crianças (especialmente meninas), pessoas da terceira idade, povos indígenas, populações rurais, e, em menor medida, apontam para a redução das disparidades étrucas e raciais.

A chamada Iniciativa Social Watch - no Brasil denominada Observatório da Cidadania - é parte deste mesmo ethos político. Ela foi criada durante as negociações da Cúpula Mundial de Desenvolvimento Social (Copenhague 1995) por um grupo variado de ONGs que havia acompanhado de perto o processo com o objetivo de instalar uma dinârruca de acompanhamento da implementação das resoluções aprovadas. No Brasil, a iruciativa está sendo conduzida por um grupo de cinco ONGs (IBASE, FASE, INESC, CEDEC, SOSCORPO) e envolve: a) a produção de análises sobre o contexto social brasileiro e o estado da implementação das resoluções das Conferência Sociais da ONU na década de 90, de que o Brasil foi signatário; b) disseminação dos Relatórios Globais(4). Para o ciclo 1997-1998, estamos prevendo a produção de análises mais substantivas do contex-

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to social e das políticas públicas brasileiras, e elaboração de um sistema integrado e participativo de monitoramento. O eixo central da Iniciativa Social Watch - Observatório da Cidadania é de manter viva as vozes das sociedades civis neste período pós-Conferências, quando a intensa dinâmica de relação entre as sociedades, os Estados e os aparatos globais tende a arrefecer. Nesta nova etapa, são imensos os desafios. A atmosfera global não é exatamente favorável às pautas do Desenvolvimento Humano e resultantes do Ciclo Social que preconizam a eqüidade e o bem estar humano. Além disto, está em curso urna dramática reconfiguração - que pode ser lida como retração ou crise - no sistema internacional de Cooperação ao Desenvolvimento. A expressão mais evidente desta instabilidade é a própria crise financeira das Nações Unidas. Além disto, os Programas de Ação aprovados na década de 90 não são convenções ou tratados. Ou seja, não há nada que obrigue os governos a cumprilos senão seu compromisso ético e, sobretudo, a capacidade política que tenham as sociedades civis, e mais especialmente, as mulheres de pressionálos neste sentido. A Iniciativa do Observatório da Cidadania se move fundamentalmente nesta charneira complexa, instável e, necessariamente, contraditória em que se articulam - e eventualmente se desarticulam - as arenas nacionais e globais de formulação de políticas públicas. 41


Maria Alice Resende de Carvalho Historiadora e Socióloga. Professora do IUPERJ. Autora de Quatro Vezes Cidade, Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994 e co-autora de Corpo e Alma da Magistratura Brasileira, Rio de Janeiro, Revan, 1997.

Marta Strauch

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Proposta - O conceito de Desenvolvimento Humano traz alguma novidade para a discos-são da problemática mais geral do desenvolvimento e, em particular, da extensão universal de direitos sociais? Maria Alice - Acho que o conceito de Desenvolvimento Humano e o chamado ciclo das grandes conferências da ONU são parte de uma mudança sutil, que se processa muito lentamente no mundo, e que não necessariamente progredirá no sentido desejado, a menos que a sua compreensão estimule as pessoas a caminhar na direção dessa mudança, a tomá-la como meta e a acelerá-la. Estou me referindo a um novo tipo de moralidade laica que toma o bem-estar do "homem comum" como centro e, ao mesmo tempo, como aferidor do desenvolvimento econômico e das grandes conquistas tecnocientíficas que estão aí. Não quero parecer panglossiana, mas uma perspectiva mais larga do tempo corrobora um certo otimismo. Desde o final da 2ª Guerra Mundial, ficou claro que a reconstrução do sistema de paz não poderia continuar a se basear, como anteriormente, no respeito à autodeterminação dos povos ocidentais e às comunidades de "cidadãos-proprietários" que constituíam o núcleo das democracias liberais. Foi o momento em que os oprimidos % povos e classes % despontaram como ameaça a qualquer reorganização mundial que mantivesse os mesmos padrões de exclusão. E o resultado mais importante disso foi o aban-

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dono das práticas do liberalismo do século XIX em favor de uma maior responsabilidade governamental na regulamentação econômica e na promoção do bem-estar de todos os cidadãos. É claro que não se pode desconhecer que as pretensões de Roosevelt de constituir um mundo unificado e um governo mundial cederam lugar ao realismo da Guerra Fria, em que o único objetivo da hegemonia norte-americana passou a ser a contenção do poderio soviético, produzindo, em nome disso, um estreitamento considerável dos parâmetros em que poderiam ser reconhecidas as demandas por progresso das classes pobres do mundo. As invasões da Coréia e do Vietnã decorreram disso, assim como o controle sobre a liquidez mundial % que passou a ser regida pelo Sistema da Reserva Federal dos EUA %, e, afinal, a transferência da administração de setores consideráveis da economia dos países pobres para investidores norte-americanos, mediante as conhecidas multinacionais. Mas, felizmente, a história não acabou aí. A hegemonia norte-americana consistiu, também, na difusão de certos valores e, dentre eles, uma consciência dos direitos civis, em dimensões inéditas no mundo. É assim que, à luta dos negros norte-americanos dos anos 60, se sucederam movimen-

tos similares de democratização, impossíveis de serem contidos nos limites da jurisdição política dos EUA. São esses movimentos, aliás, que, ao se generalizarem em um contexto de crise da hegemonia americana, vêm forçando a liberalização do sistema internacional, exemplificada tanto pela posição de destaque que as organizações de Bretton Woods reassumiram na década de '80', quanto pela articulação de alguns segmentos da ONU em torno do conceito de Desenvolvimento Humano. Tudo isso, entretanto, não tem um interesse meramente historiográfico. Como estamos no curso de um processo cujo desfecho não é visível, o que nos é dado reconhecer, se olharmos o nosso tempo sem preconceito, é que, pela primeira vez, a possibilidade de um governo mundial se expressa não em um concerto de Estados na. . . c1onais, mas em uma comumdade de indivíduos mais livres e mais cientes dos seus direitos, mais demandantes, inclusive. E para que fique claro: isto não significa compartilhar das teses neoliberais, ou abraçar as concepções de "desmonte" dos Estados nacionais. Significa, ao contrário, entender os Estados como subordinados a um~ dinâmica de valorização do "homem comum", cumprindo as funções que, afinal, jamais cumpriram de fato. A democratização do Estado vai de par com o Desenvolvimento Humano % e essa poderá ser a nova utopia do século XXI.

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Proposta - A publicação do Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil, em 1996, além da repercussão na mídia, começa a repercutir entre instituições da sociedade civil. A formação do Grupo de Discussão sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil e a realização do Seminário "Direitos Sociais e Desenvolvimento Humano no Brasil" % iniciativas que contam com a participação do Laboratório de Estudos de Cidadania e Desenvolvimento, do Iuperj % são um exemplo nesse sentido. Como você vê as possibilidades de desenvolvimento futuro de iniciativas desse tipo? Maria Alice - Estamos apenas iniciando um debate que, esperamos, atrairá muitas instituições e energias dispersas. O Índice de Desenvolvimento Humano é uma "linguagem" que tem tudo para se universalizar, trazendo para esse campo semântico as controvérsias sobre as grandes questões brasileiras % a consolidação da democracia e a superação dos índices alarmantes de desigualdade. E uma possibilidade que considero interessante deriva da própria natureza da linguagem adotada: em virtude da sua característica, digamos, "técnica", o IDH deverá mobilizar a inteligência estocada nas universidades e nos centros de pesquisa, que se mantiveram, até aqui, em uma posição discreta. 44

Intelectuais isolados sempre estiveram presentes no debate nacional, e essa é uma caracte-rística dos processos de modernização em contextos periféricos. Mas como atores institucionais, como "escolas de pensamento" e, sobretudo, como centros e departamentos de pesquisa ainda é pequena a contribuição dos pensadores sociais brasileiros. Mesmo quando existiram, o estilo da sua intervenção ainda guardava muito do paradigma mannheimeano, isto é, de uma inteligentzia que se via como representante em geral da sociedade, a partir de uma agenda intelectual igualmente generalista. A substituição geraci o nal desse tipo de intelectual ou mesmo dessas "escolas" coincidiu com a institucionalização das Ciências Sociais no país e com uma ampla democratização do acesso à universidade, inclusive aos cursos de pós-graduação, levando a que os temas sociais mais importantes % a questão da pobreza, a questão racial, entre outros % venham sendo assumidos por intelectuais homólogos aos seus objetos. Novamente, quanto a isso, estamos em meio a um processo, sendo, portanto, muito difícil avaliá-lo em toda a sua extensão. Já se sabe, por exemplo, que a excessiva especialização intelectual empobrece a controvérsia fundada nas teorias gerais % a da democracia é uma%, o que explica, em um certo sentido, a miséria con-

ceitual e, pior, política em que estamos imersos. Mas, por outro lado, o interesse e a capacidade de esse novo tipo de cientista social estabelecer vínculos com a sua sociedade não . derivam mais de uma "opção" política apenas. Há uma contingência "sociológica' 1 atuando também. Então, pelo menos como hipótese, é razoáve'l supor que essas novas gerações de especialistas acabem atuando como operadores qé "' uma reforma da sociedade, tendo no seu conhecimento técnico uma ferramenta de auto-esclarecimento social. Isto não é pouco. Significa uma maciça transferência de capital intelectual para parcelas da sociedade que não dispunham desse bem. E essa é uma perspectiva que poderia .;:~ . ser muito estimulada pela aproximação da universidade a outras instituições da sociedade civil em tomo do tema do Desenvolvimento Humano. Proposta - Voce acredita que pode ser ampliada e aprofundada a parceria entre essas iniciativas e o trabalho de instituições como o PNUD e o IBGE, que são os centros de produção e difusão desses estudos? Maria Alice - "Acho que tanto o PNUD quanto o IBGE vêm dando demonstrações efetivas de que são instituições interessadas nesse diálogo. O IBGE, por exemplo, cuja relevância é indiscutível, não sç acomodou com o prestígio de que desfruta. Recentemente,

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promoveu um grande seminário nacional voltado para a discussão do uso social das informações que a instituição produz. Estavam lá os chamados "usuários" desse tipo de conhecimento, com as suas críticas e sugestões, e a instituição foi muito receptiva ao que lhe foi trazido ... O IBGE deriva de um tempo em que o mundo se organizava de modo mais "vertical" do que o de hoje, quando a informação gerada ali atendia à formulação de políticas e de programas de \ ' inspiração welfareana, coman-~::.. dados centralmente. A tendên., .. eia contemporânea parece ser ...-t•' a do welfare society, caracte--$.. ·~ risticamente horizontalizado e multipolar, gerando uma demanda por informação que não só é mais segmentada, como também mais exigente quanto à circulação e ao ritmo em que ela se processa. As agências a que nos referimos estão cientes disso e têm demonstrado sensibilidade para as adaptações que correspondem às novas exigências de um mundo refigurado. Mas são parte de uma engrenagem institucional que não se moverá sozinha. Por isso é tão importante a organização do debate no âmbito da sociedade civil e a sedimentação de propostas simples que possam se traduzir em pesquisas socialmente relevantes , realizadas pela estrutura de que já se dispõe. O mais difícil talvez não seja a adesão de instituições como o IBGE e o PNUD a um projeto dessa natureza, e sim

a formulação de demandas simplificadas, pois isso implicará uma racionalização do debate social em termos de hipóteses mensuráveis. Tudo dependerá, portanto, do sucesso que obtivermos nesse esforço de rearticulação do espaço público, em tomo de uma linguagem como a do IDH.

Proposta - Como os governos municipais e os movimentos sociais podem se utilizar desse tipo de trabalho e potencializar sua ação na área dos direitos econômicos e sociais? Maria Alice - A democracia exige, entre outras coisas, eficácia na ação governamental. E isso supõe, cada vez mais, a aplicação racional de parcela dos recursos públicos em diagnósticos sociais e em planejamento. O Brasil, com a sua tradição de centralização política e administrativa, está apenas começando a produzir inteligência quanto aos planos regional e local, aferindo as possibilidades estruturais contidas no âmbito dessas jurisdições políticas, bem como a especificidade dos seus respectivos dinamismos. Essa etapa de "acumulação" não é suprimível e, infelizmente, não caminha tão rapidamente quanto gostaríamos. Daí que comecem a despontar iniciativas públicas e privadas de natureza emergencial, dando origem, muitas vezes, a uma série de programas e "experimentos" de inspiração generosa, mas pouco eficazes, do ponto de vista da

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sua abrangência e da sua capacidade de reprodução. O aspecto, porém, mais complicado desse tipo de ação é que, além de representar uma dispersão de recursos escassos, mobiliza expectativas sociais que, no geral, se vêem frustradas, ou, pior, orientadas por uma racionalidade perversa que tende a dissociar a satisfação das suas necessidades de qualquer vínculo com a política, produzindo um efeito circular entre pobreza e assistencialismo que é altamente deseducativo. A questão parece ser a de que o tema do "localismo" vem sendo entendido, equivocadamente, como uma alternativa às funções diretivas e de planejamento do Estado, quando, ao contrário, ele é a expressão de um certo aperfeiçoamento da capacidade de o Estado operar mais próximo do cidadão. É por isso que a descentralização administrativa do país e o fortalecimento fiscal dos municípios são conquistas democráticas das quais não se pode abrir mão, pois o sucesso das políticas públicas no âmbito municipal se traduz em melhorias imediatas do nível de bem-estar da população. O nexo, nesse caso, com o IDH é óbvio, e já começa a ter valia como instrumento de planejamento e intervenção das municipalidades. Minas Gerais, por exemplo, teve, recentemente, todos os seus municípios escalonados segundo o IDH de 1970, 1980 e 1991. A Secretaria Municipal do Tra45


balho do Rio de Janeiro começa a discutir também a utilização de um instrumento como esse na aferição do bem-estar dos cariocas e do tipo de ação governamental mais adequado às necessidades locais.

Proposta - Juntamente com o Prof. Luiz Werneck Vianna, você publicou, recentemente, um livro sobre o Judiciário brasileiro [Corpo e Alma da Ma2istratura Brasileira, Rio de Janeiro, Revan, 1996]. Quais são, em sua opinião, as descobertas mais significativas desse estudo? Maria Alice - O livro tem mais dois autores: o Prof. Manuel Palácios, da Universidade Federal de Juiz de Fora, e o Prof. Marcelo Burgos, da UERJ, sem os quais teria sido impossível realizar uma pesquisa como essa, envolvendo cerca de 4.000 questionários respondidos por juízes de todo o país. Na verdade, o livro é uma tentativa de traçar um perfil dos magistrados brasileiros quanto a aspectos tão variados como idade, gênero, origem social, formação universitária, padrão de mobilidade social familiar, experiência profissional anterior ao ingresso na magistratura e mais uma série de ítens referidos à percepção que eles têm de si mesmos no exercício das suas atividades, a sua atitude em face do Estado e das instituições do Poder Judiciário, a sua concepção de democracia etc ... Pretendíamos verificar se esse per46

sonagem do Estado brasileiro é sensível às transformações pelas quais o mundo vem passando % com a ênfase em questões como justiça, igualdade, e universalização de direitos % e, sobretudo, se ele está preparado para as novas atribuições que a democracia brasileira exigirá dele. A percepção que eles têm de si mesmos , das instituições do Poder Judiciário e da sociedade, somada às mudanças que a corporação está sofrendo, tanto pela diversificação da origem social de seus membros, quanto por sua abertura à crítica e ao debate de idéias, parece favorecer a sugestão de uma compatibilidade entre o perfil do juiz brasileiro e as demandas sociais por democratização daquele Poder e da sua prática. Uma ilustração sintética disso é o fato de que, indagados sobre a questão da "neutralidade" do juiz, tão característica em países de tradição assentada sobre o positivismo jurídico, 83 % dos magistrados consultados assinalaram a seguinte opção: 'o Poder Judiciário não é neutro; em suas decisões o magistrado deve interpretar a lei no sentido de aproximá-la dos processos sociais substantivos e, assim, influir na mudança social.

Proposta - A justiça tem estado em pauta ultimamente, seja do ponto de vista mais geral da reforma do Judiciário, seja do ponto de vista de que diversas questões em disputa acabam sendo levadas

ao Judiciário para a sua resolução final (o caso da Vale do Rio Doce sendo o exemplo recente talvez mais expressivo). Como voce vê a questão do Judiciário no atual momento político brasileiro? Em que medida uma reforma do Judiciário pode significar um aprofundamento da nossa democracia? Maria Alice - Essa é uma pergunta que envolve aspectos muito variados. Em primeiro lugar, a justiça tem estado em pauta não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro, porque o Poder Judiciário deixou de apenas cumprir a sua atribuição de preservar o cânon republicano do equilíbrio entre os Poderes, para desempenhar também as funções de guardião dos direitos do cidadão, inclusive contra o Estado. Pode-se dizer, então, que é nessa relação direta com a sociedade, avançando sobre espaços antes definidos como de atribuição dos outros Poderes % como, por exemplo, quando o juiz questiona a constitucionalidade de uma lei representativa da "vontade da maioria" em nome da "vontade geral" %, que o Judiciário vem definindo os termos da sua renovação nesse final de século. É claro que esse tipo de renovação se torna mais difícil no Brasil porque o nosso sistema jurídico não se filia à matriz institucional da common law , embora se possa considerar que a sua aproximação aos institutos e ao universo mental do constitucionalismo democrático só faz re-

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plicar um fenômeno de natureza universal. Mas, o aspecto mais relevante na discussão sobre o Poder Judiciário brasileiro é o de que, "retardatário" como foi o seu envolvimento no processo de transição do regime militar à democracia, após a promulgação da Constituição de 1988 ele não apenas viu redefinido o seu papel republicano, como também passou a ser identificado com o um lugar de ampliação de direitos por parte de uma nova clientela, até então distante dele. Quer dizer: ele passou a decidir os impasses entre o Executivo e o Legislativo e a conter o redobrado intervencionismo do Estado so-

bre a vida econômica % tal como nos sucessivos planos de estabilização monetária % , com as dramáticas conseqüências que esse intervencionismo gerou sobre os interesses privados dos cidadãos. Ora, o protagonismo do Judiciário, nesse caso, é um efeito inesperado da transição democrática e, por isso, o encontrou despreparado, quanto a meios e pessoal, para atender as demandas que lhe chegavam, em massa, e que significavam, em larga medida, a inscrição de novos seres, sem direitos e sem defesa, à vida democrática. E o interessante é que ele vem reagindo, no limite das suas possibilidades, com uma certa

Se você quer saber. .. - a verdadeira históri a da Operação Rio ... - as variáveis teóricas da conceitualização do "crime organizado" ... - porque setores da esquerda brasileira defendem idéias penai s conservadoras ... - algo sobre futebol e violência ... - quais as linhas gerais da política criminal do absolutismo pombalino ... - como, há um século, nascia nas elites cariocas preconceito e hostilidade contra a cultura negra ...

.. .leia

SoceQiCiOSOS

Nº 1

CRIME, DfREITO ESOCIEDADE A.C. Almeida Castro C.M. Naza reth Ce rque ira Eugenio Raúl Zaffaroni F. Viriato Co rrea Geraldo Carneiro Gisá li o Cerqu e ira Gi z le ne Neder João Lui z Duboc Pin a ud Leonardo Boff Mari a Lúc ia Kara m Mauríc io Mu rad Muriiz Sodré Nil o Batista Pl íni o Marcos Sergio Yerani S idney C ha lh oub Silviano Santiago Vera Ma lag uti Bati sta

capacidade de invenção, e não com o recrudescimento do padrão normativista. É necessário, então, observar se a reforma do Poder Judiciário que está sendo proposta favorece ou não a esse caminho de mudança. Em nome da agilidade e da maior eficácia no atendimento ao "consumidor" dos serviços jurisdicionais se poderá estar produzindo, na verdade, um maior controle da magistratura, exercido pelo vértice da sua estrutura piramidal , e um enrijecimento da sua capacidade de responder a essa demanda social por direitos, o que representaria uma perda importante, do ponto de vista da consolidação da democracia brasileira.

seàiciOSOS Nº2 CRIME, DIREITO ESOCIEDADE ... como os camponeses colombianos sobrevivem, entre a polícia, os traficantes e a guenilha ... .. . qual a fun ção real da Operação Limpas ... ... como a lei nº 9.271196 está sendo aplicada pelos tribunai s ... ... o que a conferência judiciári a-policial de 19 17 e seu legado ... ... de que forma se confrontaram teoricamente Nelson Hungri a e Roberto Lyra .. . ... o que pretende o Tribunal Internac ional para a antiga luguslávia ... Carlos A. Canedo G. Sil va- Mari a Lucia Karam Carlos Henrique A. Serra -C. M. Nazareth Cerqueira Cunca Bocayuva

-Domingo Bemardo

Eduardo Galeano

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- Humberto Teles

Joel Rufino

- Jorge Mautner

José Augusto Rodrigues - Julius M. Teixeira Lenio Lui z Streck

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Maria Letícia de Alencar - Massimo Pavarini

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Pedro Tórtima

- Ricardo Yargas Meza

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Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Historiador. Diretor da Área de Trabalho e Renda da FASE, Professor do Departamento de Sociologia e Política da PUCRJ. Doutorando do IPPUR/UFRJ. Co-autor de Novo Dicionário Político, Rio de Janeiro, Vozes/FASE, 1992.

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Proposta - A problemática do desenvolvimento consumiu esforços políticos e intelectuais de governos, pesquisadores, movimentos e partidos políticos, pode-se dizer até mesmo da nação, desde pelo menos os anos 50 até a década de 80. É possível fazer um balanço deste período em termos de resultados atingidos? Cunca - Nós já temos uma síntese que, no entanto, caminha em algumas direções, algumas vezes, diferentes. A primeira direção está ligada aos resultados. O Brasil alcançou as características de uma sociedade de semi~periferia industrial complexa, com enormes contradições regionais, grande concentração urbana, complexidade na pauta de produção e consumo e grandes problemas de articulação e de condições de continuidade ou de avanço na lógica da substituição de importações. Ou seja, na sua capacidade de desenvolver condições mais autônomas tanto de inserção internacional quanto de acumulação interna através de investimentos que partissem de capitais próprios e de um desenvolvimento tecnológico próprio. O segundo resultado está ligado a uma situação de desarticulação, de grande desigualdade. O Brasil tem, por um lado, uma gigantesca parcela da sua população, que alguns avaliam em trinta milhões e outros em mais de quarenta milhões de pessoas, vivendo em condições de pobreza absoluta. Por outro lado, tem um enorme setor intermediário vivendo em condições bastante limitadas e precárias. E tem, ainda, uma outra parcela da população integrada numa pauta mais

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sofisticada de consumo. Portanto, do ponto de vista dos resultados mais genéricos, nós passamos por um processo de modernização conservadora, cujos resultados já estão mais do que delineados, tendo já produzido durante as décadas de 80 e 90 os seus efeitos em termos dos processos internos de conflitos sociais, atuação de atores, exigência da democratização.

Proposta - É possível esboçar um diagnóstico da situação atual? Cunca - O primeiro resultado nos leva a um diagnóstico do colapso do modelo de industrialização substitutiva. Esse diagnóstico também está informado por diferentes percepções. Há percepções, bem minoritárias, que pensam que esse modelo poderia ter sido estendido, alargado ou completado. Esta era a hipótese que acompanhou todo o período inicial da redemocratização brasileira, pelo menos até 85, quando se pensava que seria possível manter e ampliar os efeitos e as características do desenvolvimento a partir de urna política de crescimento que pudesse produzir efeitos sociais. No entanto, na realidade, o novo cenário internacional e as dificuldades internas em termos de conflito distributivo já bloqueavam essa possibilidade. Aqui, então, ternos um outro diagnóstico daqueles que identificam que, por conta dos conflitos entre a disputa interna e externa en-

tre credores e devedores, da disputa de rendas e da problemática do financiamento, havia chegado ao fim a possibilidade da chamada acumulação política que redistribuía pelo alto os benefícios do progresso e do crescimento econômico anteriores entre grupos de diferentes capacidades e produtividade, mantendo uma área forte de exclusão. Isso não era mais possível tanto do ponto de vista dos resultados e das manifestações em termos econômicos, quanto do ponto de vista das questões sociais geradas. A esse diagnóstico chamamos da explicação do conflito inflacionário como um conflito distributivo. Ele define urna ótica de solução política, que seria a solução mais propugnada no terreno de se tentar desenvolver urna certa ruptura favoravelmente a uma estratégia mais distributiva de renda. Essa política acabou sendo derrotada nas eleições de 89 e 94. Um terceiro ângulo da questão (não relevando o fato que todos eles têm elementos de verdade, pois tanto era preciso completar a modernização quanto era preciso pensar na redistribuição) coloca questões-chave interligadas ao problema da globalização, das exigências de ajuste e restruturação. Este é o ponto de vista do esgotamento da capacidade de financiamento pela via do endividamento. Aqui entra o aspecto da determinação financeira, que se interliga ao problema que o Estado e parte da sociedade adotavam formas de distribuição, consumo e de financiamento das políticas que se refletem na 49


dívida interna e na dívida externa dando à dimensão financeira mais do que ao conflito distributivo, um papel de prioridade. Por sua vez, este, se manifestou na crise fiscal do Estado, ou seja, na capacidade do Estado arcar com as suas obrigações e responsabilidades e ao mesmo tempo enfrentar as mudanças que estavam em curso derivadas do processo inflacionário. Neste movimento, o próprio Estado havia se tornado um agente inflacionário, fazendo com que a inflação se tornasse crescente, dando força a uma interpretação mais monetarista da autonomia do processo inflacionário. Esse diagnóstico se relacionou com uma apreciação da conjuntura global. Conjuntura ligada particularmente aos novos fenômenos de competição: à autonomização crescente do capital financeiro na esfera internacional; ao problema das novas alianças tecnológicas e dos blocos regionais; à autonomização das grandes empresas atuando em esfera nacional e mesmo internacional e transnacional; à dimensão das mudanças tecnológicas de vulto e aceleradas; à relocalização das empresas e às dificuldades de certas economias, como a norte-americana, com seu endividamento, ou economias do tipo da européia, que é mais regulada, em face aos países de nova industrialização como os asiáticos e o próprio Japão.

Proposta - Em que este quadro difere da situação anterior de expansão das economias capitalistas adiantadas? Cunca - De certa forma, temos 50

a conformação de um novo quadro em relação ao anterior que ainda era geopoliticamente amarrado, isto é, o capitalismo ainda era obrigado a se regular mais fortemente por temor e por exigências estratégicas derivadas da unidade do capitalismo em relação ao socialismo real, burocrático e totalitário e do contexto da Guerra-Fria. Findo esse contexto, apareceram todas as disfunções que já estavam acumuladas nos países centrais, que eram derivadas tanto das pressões sociais que partiam dos movimentos sociais desde a década de 60, que não aceitavam mais as restrições burocráticas, as limitações, as formas de representação e as políticas existentes, por um lado, quanto por parte do Estado com sua impossibilidade de dar conta dos custos crescentes de suas políticas sociais (mas não só) e da competição internacional com sua exigência de investimentos, etc. Acrescente-se, por outro lado, a pressão dos novos setores que não encontravam alternativas do ponto de vista de uma incorporação virtuosa ao trabalho. O processo inflacionário, por sua vez, foi se desenvolvendo e desembocou numa crise que se acentuou diante do fato de haver taxas de crescimento muito elevadas em outras áreas e outros mercados e diante da autonomização financeira e do peso da competição tecnológica, que exigia uma restruturação das empresas e mudanças nas relações entre o Estado, o empresariado e a classe trabalhadora. Este processo resultou em restruturação na direção de reformas

neoliberais ou na direção de certos anteparos e defesas seletivas e especializações por parte das economias do Norte, ou em parcerias regionais e acordos políticos estratégicos em torno de definições quer de mercado comum e de economias articuladas e interligadas por divisão de trabalho, quer de mecanismos de acordo de livre comércio e de aberturas maiores em termos de fluxos de investimento. De qualquer maneira, a desregulamentação, a privatização e a chamada acumulação flexível se tomaram uma referência internacional que recondicionou o debate interno pegando esses 3 pontos do diagnóstico ligados à crise do modelo de desenvolvimento de industrialização substitutiva resultando em um cenário de modificações. É nesse cenário que entram algumas problemáticas universais que já se anunciavam, principalmente desde 73 . Tratamse dos termos formalizados em torno da questão militar, da questão nuclear, dos problemas de crescimento, das discussões sobre o efeito estufa, a problemática energética e a impossibilidade de manter e estender o padrão de consumo dos países centrais para o resto do mundo. Já se detectava uma problemática estrutural na agenda internacional: a impossibilidade de uma política de crescimento que fosse partilhada por todos. Eu não estou nem falando da possibilidade que antes existia do desenvolvimento de economias nacionais, mas sim do desenho de uma possível crise ambiental. Uma segunda dimensão

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está ligada às contradições oriundas da pobreza. Apesar de todos os avanços em várias regiões do mundo em termos da produção agroalimentar e dos efeitos da revolução verde tecnológica no campo e até por efeito dela e da agroindustrialização e em função do manejo dos produtos, dascommodities e das relações internacionais, vários países da periferia se viram ameaçados por regimes protecionistas, padrões de investimento e de consumo, mudanças no comércio internacional, mecanismos que afetavam a relação de preços relativos e ao mesmo tempo forçavam, em alguns casos, também a eliminação das populações camponesas por força de processos de modernização tecnológica ou outros que adotavam padrões dominantes ou determinados pela chamada Revolução Verde. Nas regiões onde houve acesso e constituição de setores modernos do proletariado, das classes médias , de um padrão de consumo próximo ao dos países centrais, mas não houve mudanças sociais relevantes na estrutura agrária por exemplo, como é o caso de países como o Brasil (ao contrário de parte dos países do leste asiático) -, onde não houve investimentos maciços em educação de primeiro e segundo graus, as conseqüências foram se tornando mais dramáticas diante da emergência dos novos padrões tecnológicos de investimento e das novas operações estratégicas no cenário internacional, que também desvalorizavam pautas de exportação anteriores. Países

como o Brasil, em que grande parte da modernização interiorizada operava no mercado interno e grande parte da produção externa era ligada à vantagens comparativas derivadas de um contexto anterior de recursos naturais e em termos da exploração de mão-de-obra barata, passaram a ter sérias dificuldades para se adaptarem às novas exigências. Daí nós passamos ao cenário atual, um cenário onde nós temos um condicionamento do ajuste macroeconômico, há o dorrúnio das expectativas das reformas liberais e uma orientação de reestruturação que sofre um condicionamento da idéia também de se enfrentar o problema da viabilização econômica através das soluções via mercado, afastando o Estado da capacidade regulatória e, portanto, afetando de vez o papel do tipo de coordenação exercida pelo Estado no padrão de desenvolvimento.

Proposta - A idéia de desenvolvimento está quase que indissoluvelmente ligada ao espaço de atuação nacional. A globalização elimina este espaço como centro de atuação e reflexão? O conceito de desenvolvimento e sua problemática estariam hoje esgotados? Cunca - O debate sobre o desenvolvimento é um debate profundamente atual. Há uma crise também do ponto de vista da capacidade interpretativa, das categorias de análises e dos referenciais para exercer políticas. Estes são aspectos que dizem respeito aos elementos culturais, ideológicos

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e institucionais. É um outro aspecto da crise do modelo de desenvolvimento que está ligado a um cenário de mudanças conjunturais que é o cenário da transição democrática. Durante o período da transição democrática, os modelos que tinham sido exitosos durante o período do desenvolvimento do Estado do Bem-Estar Social, do Fordismo, etc. nos países centrais, e da sua expansão para os países periféricos, entraram em crise. Nesse sentido a expectativa de uma saída clássica com um Estado que intervém para ações redistributivas; saídas clássicas do ponto de vista da estrutura tributária, dos seguros sociais e do contrato coletivo de trabalho; saídas clássicas de nacionalização de setores estratégicos e de articulação entre o setor bancário e financeiro e de outros elementos de centralização e coordenação econômica ou o pró-prio embasamento nacional dos projetos tornaram-se questionáveis. Os modelos clássicos de radicalização emancipatória, os movimentos mais autonomistas e mais independentes perderam um pouco do fôlego e se pulverizaram até na própria absorção de parte da agenda e parte do discurso de questões ambientais e questões de autonomia individual e outras, que foram reapropriadas por lógicas de mercado e lógicas estratégicas dos setores dominantes. Isso enfraqueceu bastante o próprio conflito e contradição entre setores que se representavam em estruturas tradicionais como sindica51


tos, partidos social-democratas e comunistas, etc. que se viram em choque com novos movimentos sociais que propunham valores distintos, que combinavam autonomia individual e coletiva e outros recortes em relação a desigualdade e discriminação de acesso à direitos, de acesso à renda, de acesso à justiça e de acesso ao bem-estar. Esses elementos trouxeram uma crise de paradigmas, de referências do ponto de vista institucional e do ponto de vista das estratégias, das éticas, das moralidades, das ideologias e das mentalidades reformistas , revolucionárias e utópicas, trazendo esse vazio relativo de utopias e projetos. Isso não quer dizer, no entanto, que não haja resistência e experimentos difusos; que não haja novas lógicas emergentes e velhas lógicas resistentes que tentam, de alguma maneira, se colocar diante do fenômeno principal num curso que, digamos, do ponto de vista político, seria o fecho da hegemonia civilizatória do ocidente através do capital via mercado e a vitória do indivíduo sobre o social, a vitoria, portanto, desses elementos individualizantes. Isso traz uma quebra e um efeito articulado com a cultura de massas, articulado com os novos padrões educacionais, articulados com a fragmentação e desregulamentação de direitos e um peso grande para a estrutura de formas de cultura de massas e de indústria cultural de massas, que também forçam uma certa uniformização de padrões gerando resistências de vários tipos.

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A teoria do desenvolvimento em sentido amplo permanece válida. Creio que trata-se hoje avaliar criticamente melhor por que tradições como a teoria da dependência geraram defecções. Por que tradições como a contradição centroperiferia não teria mais utilidade? O desenvolvimento é desigual e combinado ou não? Qual é a relação entre fenômenos e temáticas clássicas da teoria do desenvolvimento e do subdesenvolvimento? Ou seja, trata-se de revitalizar a teoria dinâmica do capitalismo na periferia: de revitalizar uma teoria que leve em conta a parti cul ari dade de um projeto econômico e que resgate até mesmo a reflexão sobre a dualidade, sobre porque a nossa sociedade é estruturalmente de várias velocidades. Se ela não é dual, cindida entre o atraso e o progresso, como consegue ter metamorfoses, ziguezagues, dar saltos para frente, arrastando formas diferentes para trás, tendo sempre um pólo à frente dos outros, um pólo que quer sempre se integrar, expressando um desejo de integração, uma vontade política de integração que agrega um bloco que, mais ou menos, no plano cultural, vai de segmentos da classe média e do consumo, até oligarquias e setores industriais, etc. No plano estratégico, sempre pegou segmentos tecnocráticos, dirigentes empresariais, grandes empresários e os seus aliados no plano político. Quer dizer, no terreno internacional sempre houve uma perspectiva de associação. Se, no passado, as metamorfoses do mercado

interno produziram uma autonomia relativa durante o período que vai de Getúlio, até a era JK, o padrão era ainda contraditório nos mecanismos de associação entre o interno e o externo. Os investimentos diretos na década de 50 e 60 e o regime militar propiciaram uma combinação entre a financeirização com elementos de articulação e associação e, ao mesmo tempo, adesão intelectual a um processo em que estar associado, estar bem inserido se torna um referencial essencial. Precisamos tentar entender essa dimensão estratégico-cultural que, no passado, pregava a necessidade de se internalizar a modernização a todo preço. E, para isso, se endividava ou reformava internamente ou se pagava mais a setores fortemente concentrados e oligopolizados e, portanto, se produzia uma inflação pelo privilégio que gerava para manter o pacto de setores de produtividade desigual do campo dominante. Hoje, o processo tem uma outra direção porque ele já é mediado por dentro pelo investimento direto e por fora pela financeirização, que é também um elemento de dentro em função de todo o processo de ajuste. Com todos os elementos de crise de financiamento e de endividamento nós temos um cenário em que o interno e o externo se confundem, mesmo que o país não tenha uma política indu strial ou uma política de comércio exterior capaz de gerar rendas suficientes e nem mesmo todo o processo de privatização e as reformas se anunciam como

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suficiente para fazer face a esse acúmulo, a esta herança que se coloca sobre nós. Sendo assim, ao lado da estratégia política de refletir sobre os elementos dessa associação, das alianças que embricam o interno e externo, existiria esse componente do endógeno, da aprendizagem na ponta, combinado com o terceiro elemento, que é um elemento de discussão chave no conceito de desenvolvimento que é a qualidade de vida, o bem-estar das populações conexo às políticas públicas. E é aqui que o conceito de Desenvolvimento Humano traz uma referência. Esta referência das políticas públicas, da qualidade de vida e do bem-estar relacionada com as demais, relacionada com o problema da acumulação, com o problema tecnológico, com o problema da direção intelectual, moral e política do desenvolvimento. Nesse sentido, a problemática do desenvolvimento é uma problemática cultural, onde a idéia de desenvolvimento joga um papel decisivo.

Proposta - Estas reflexões não estariam fadadas ao fracasso e ao descrédito pela ação da globalização? Parece que a receita é uma só, abertura de mercados, privatizações, controle dos gastos e do déficit públicos, etc. Discursos alternativos não ganham adeptos ou soam como coisas do passado. Há outros processos em curso, dentro da própria globalização, que permitam uma visão um pouco mais matizada? Cunca - A globalização

UM.I.UM

além de trazer os problemas de ajuste, de reestruturação, de perversidade na ponta, da indução forçada à abertura e à competitividade, traz uma outra ponta contraditória que é a de recebermos ao mesmo tempo contrapressões culturais, informações e elementos, que nos permitem visualizar o que a modernidade trouxe aos países centrais de benefícios e de conseqüências e observar como as próprias políticas que nos são propostas trazem problemas não só na periferia. Isto é, nos permitem visualizar os problemas de uma nova exclusão e nova pobreza no coração mesmo onde tentam se apresentar como solução. A globalização, que propõe uma homogeneidade, faz com que o mundo comece a receber características que em alguns lugares chamam de brasileirização. É muito interessante. Ou seja, a idéia é de uma sociedade de várias velocidades, contraditória, de desenvolvimento desigual e, aliás, nem sempre combinado, porque nem sempre é funcional: uma parte da população é adequada para rebaixar o custo do trabalho, a população chinesa, por exemplo, ou parte da população brasileira, que trabalha com trabalho escravo, com trabalho coercitivo, com um trabalho subordinado, etc.; outra parte é plenamente excluída, considerada supérflua; e, finalmente, parte da população forma o exército de reserva. Houve aumento de emprego nos Estados Unidos, único país no pólo do Primeiro Mundo que teve aumento de novos empregos e, no entan-

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to, você teve concomitantemente um aumento de diferenças sociais e de nova pobreza lá tão grande quanto a proporção de novos empregos gerados. O que nos faz dizer que, na realidade, os indivíduos ficaram no trabalho por sua própria conta e não ganham o suficiente para a reprodução permanente da sua qualidade de vida, que era o que o modelo anterior apresentava. Este modelo, que era o do bem-estar social apresentava a idéia de um padrão de vida qualitativo, que incluía trabalho, renda, cultura, educação, um conjunto amplo de bens e políticas, que fazia com que a produção e a reprodução da sociedade dessem ao indivíduo soluções que não fossem soluções só reguladas pelo mercado. O salário, os bens públicos e os equipamentos sociais e as políticas públicas não visavam dar apenas ao indivíduo o mínimo para a subsistência, mas o necessário para um dado padrão de qualidade de vida, conexo ao interesse de consumo de massas que a produção em grande escala exigia. Quer dizer, esta herança de padrões e de índices de qualidade de vida aparece ao mesmo tempo em que aparece a globalização. Portanto, para muitas das populações do mundo periférico independente, aderir ao Primeiro Mundo, inserir-se internacionalmente, acompanhar a perspectiva de nova associação valeria a pena porque elas supunham que no Primeiro Mundo as pessoas estariam mantendo aqueles elementos anteriores. E, na realidade, o que ocorre de fato é a chamada brasileirização do 53


Primeiro Mundo.

Proposta - Em sua opinião, o conceito de Desenvolvimento Humano traz alguma novidade em relação às noções tradicionais de desenvolvimento? Cunca - O conceito de desenvolvimento humano traz algumas novidades. A primeira é que ele tenta ser um instrumento de análise comparativa entre vários países e realidades diversas, ele está ligado a uma perspectiva de universalidade. A segunda novidade está em que, pela sua metodologia de coleta, tratamento e formulação dos dados, ele permite algum grau de intervenção da sociedade, o que é fundamental. Essa nova noção ou conceito de desenvolvimento humano, num sentido abrangente, econômico, político, social e cultural, tem ainda algumas contradições na elaboração com os planos dos principais indicadores escolhidos. Há uma gama enorme de indicadores, mas alguns são fundamentais tais como: o acesso à educação, às condições de renda e ocupação e às condições de vida em termos de saúde e longevidade. Existe ainda um quarto elemento de indicador de desenvolvimento humano, que é subjacente e que está ligado à capacidade de apropriação, ao que se chama, num neologismo, de empoderamento. Isto é, a capacidade dos grupos sociais, a partir da sua diversidade, da sua diferença, da sua capacidade de ação, terem acesso a alguma intervenção capaz de materializar instrumentos de controle, participação e definição de políticas. 54

Este é um aspecto importante que permite um trabalho que é exatamente o campo que leva as ONGs e movimentos sociais a poderem operar no terreno dos indicadores de desenvolvimento humano. Ou seja, a hipótese de monitorar políticas, de criar uma esfera pública de disputa e reflexão sobre o desenvolvimento. É verdade que os relatórios, em última instância, são de uma instituição que é representativa dos Estados. O sistema ONU, mesmo que sofra algumas transformações, ainda não sofreu modificações que pudessem tirálo do espaço realista dos mecanismos de poder estratégico dos Estados. E, no caso brasileiro, o relatório ainda é um instrumento oficial e, portanto, mediado pelas instituições do Estado. E, nesse sentido, no próprio relatório aparecem questões bastante diferentes.Na leitura do relatório brasileiro de 1996, nós observamos um esforço de adaptações estatísticas, um esforço de construção dos indicadores que produziu uma caracterização do Brasil como um país tripartido: um padrão Bélgica, um padrão Bulgária (intermediário) e um padrão Índia (da pobreza). Um aspecto importante é que o relatório apresenta alguns textos, alguns tópicos que derivam da ação da sociedade ou de preocupações da sociedade, como na questão racial, de gênero, do trabalho infantil, de ocupação, nível de renda, etc. E existem outros aspectos passíveis de serem desenvolvidos, o que é positivo. Há ainda um outro aspecto, esse mais problemático, que

é quanto forçosamente o relatório está marcado pelo desejo de responder aos condicionamentos internacionais de inserção competitiva? E aí vem o problema de quanto a matriz produtivista de inserção internacional e a visão de desenvolvimento derivada do modelo de capitalismo ocidental e de seu estágio atual dito de flexibilização e globalização estão marcando algumas das recomendações e sugestões apontadas.

Proposta - Como você mesmo acaba de dizer, este é, portanto, um conceito desenvolvido pelas Nações Unidas e diz respeito aos Estados membros. É possível aprofundar a discussão sobre o conceito, seus indicadores e as políticas públicas sugeridas pela sua utilização sem abandonar seu quadro institucional de elaboração? Cunca - Nenhuma produção de indicadores é neutra. Mas a vantagem desse debate em relação à elaboração dos indicadores de desenvolvimento humano é que ele aparece oficialmente em discussão pelos Estados, pelas sociedades, nas conferências que a própria ONU convocou para repensar o sistema ONU. Esse esforço de algumas instituições no Brasil e da própria FASE, nesse momento, se liga a essa abertura derivada da Conferência de Copenhague sobre a questão social. Foi a partir daí, por exemplo, que a FASE desenvolveu um projeto que parte da idéia que é possível sim a utilização dos indicadores como um instrumento que tanto permite o mo-

HM.I.Uttl

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nitoramento de políticas sobre qualidade de vida e bem-estar e de avaliação de estratégias relativas ao combate à pobreza e à desigualdade dentro dos marcos da noção de oportunidades, de alternativas, de saídas. Não trata, portanto, de um sentido de mudança, de um novo modelo e de um novo poder porque isso significaria uma ação de outro tipo: mudar as bases do Estado, mudar as relações econômicas e sociais. Produzir reformas mais profundas exigiria evidentemente muito mais do que uma reflexão que parte de indicadores. Passaria pelo próprio grau de desenvolvimento e organização dos programas e projetos políticos nas sociedades. Mas, isto não diminui a importância das sociedades estarem informadas e influenciarem indicadores e perceberem que estes são estratégicos para uma legitimação de poder. Quer dizer, os indicadores estão para as questões sociais, para a eficiência das políticas aplicadas pelos governos assim como os processos de opinião pública e enquetes eleitorais se colocam para as estratégias de legitimação e de definição de posições de aceitação e da capacidade de produzir consensos da parte dos governos. Os indicadores são instrumentos de legitimação muito importantes que não poderão ser facilmente desdenhados. E também são importantes como instrumentos de informação. Os indicadores são instrumentos institucionais e ideológicos com poder de infor-

mação e análise, sinalizadores e definidores de objetivos, portanto fazem parte também de contextos de planejamento e contextos de ação. Fazem parte do terreno privilegiado onde você pode combinar informação, monitoramento de políticas, definição de prioridades e, ao mesmo tempo, avaliação de resultados. E, nesse sentido, portanto, os indicadores de desenvolvimento humano são sinalizadores estratégicos para mudanças sociais.

Proposta - Como a sociedade civil e os movimentos populares podem se articular e potencializar sua atuação lançando mão do conceito de Desenvolvimento Humano e de seus indicadores de resultado na ação concreta? Cunca - De várias formas. Primeiro, colocando a massa crítica intelectual da universidade e as próprias instituições públicas, como o IBGE e outras que operam a base de dados primários através dos censos, atentas a prioridades que nem sempre são postas pelos pesquisadores e pelos governos. Isso por si já influenciaria todo o formato, as avaliações, as demandas por participação ou definições de prioridades. Já se conhecem experiências neste sentido. Por exemplo, podemos citar a experiência do movimento negro brasileiro com a campanha "Não Deixe a Sua Cor Passar em Branco", que tentava fazer junto ao IBGE e aos responsáveis pelo censo, junto aos

que participaram da coleta dos dados, da pesquisa e do tratamento posterior da informação toda uma construção no sentido de que a população brasileira se percebesse na sua diversidade étnico-racial. Isso é um exemplo de uma questão que permite depois cruzamentos com problemas de renda, problemas de mercado de trabalho, educação, etc. A mesma coisa é feita hoje por movimentos de mulheres. É preciso que isso seja feito por movimentos de trabalhadores, sindicalistas, movimentos de camponeses, sem terra, sem teto e de todos que tenham interesse em dar uma dimensão aos problemas, mas que também tenham interesse em qualificar as questões. A investigação é um instrumento essencial porque ela permite quantificação, focalização e avaliação posterior. E o índice de desenvolvimento humano permite através da intervenção da sociedade uma matriz distinta da formulação dos que vão trabalhar sobre uma base estatística ou do diagnóstico sociológico. Os sociólogos tipificam, qualificam, definem referenciais de estratificação, constróem modelos interpretativos . Os estatísticos equacionam, digamos que purificam, a informação, definem prioridades de variáveis. Os agentes públicos e certos pesquisadores tentam procurar focalizar políticas, definir ações. Isso, muitas vezes, descontextualiza, retira os elementos da complexidade do real. E a 55


reapropriação da complexidade do real exige uma interação entre os sujeitos e atores, para o que a noção de esfera pública e a noção de intercomunicação entre os atores é fundamental. O papel mobilizador que um censo pode ter em uma sociedade, o papel mobilizador da percepção da gravidade das questões, pode ser muito grande. O grupo de reflexão sobre desenvolvimento humano, que está se constituindo a partir do projeto "Direitos Sociais e Desenvolvimento Humano no Brasil", com Terre des Hommes, aponta a perspectiva de acompanhamento da mudança de contexto internacional no sentido de criar bases comparativas dos avanços das sociedades na direção do bem-estar e na construção de uma nova esfera pública internacional com perspectiva de direitos sociais que possam ser cobrados no momento de crise do Estado nação. Os resultados que as sociedades e os Estados devem alcançar, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais, exigem uma capacidade de articulação da universidade com ONGs, com movimentos sociais, com as instituições produtoras de informação. Proposta - Qual é o conjunto de referências que se tem

hoje para viabilizar isso? Cunca - São os trabalhos de produção de índices específicos que já começam a ser desenvolvidos nas estratégias dos planejadores e dos formuladores de políticas públicas ou daqueles que são alvo dessas políticas para avaliá-las. Esse sentido, que tem a ver com a transparência, o controle, o monitoramento, a participação, a gestão, a cogestão em e de políticas públicas exige algum espaço que tenha uma linguagem comum. Os indicadores de desenvolvimento humano não forçam um consenso, mas produzem uma linguagem sobre a qual se pode discutir. Não há uma imposição que diga que você tem que aderir aos resultados dos relatórios de desenvolvimento humano. Mas alguma performance educacional, de trabalho, renda, saúde, etc. a sociedade têm que ter. Algum grau de participação, controle social, de empoderamento pelo conjunto da sociedade, portanto de cidadania, de acesso a Justiça, de construção de direitos as sociedades tem que ter. E essa consciência é inclusive fundamental para poder controlar as condições de crise dos Estados nacionais em face a processos de reformas e de abertu-

ra econômica, condicionamentos de globalização e integração internacional. Esse lado das instituições internacionais que querem discutir, essa brecha que se abre, é positiva. A maioria dos aspectos das políticas de ajuste internacionais é temerária e ameaçadora, mas essa brecha é positiva. E permite também àqueles que estão em crise de referenciais, de paradigmas, que não têm como tratar em bloco alternativas repensarem políticas e qualificarem os seus resultados. Quando você diz que uma política alimentar, de consumo e de reprodução social e de qualidade de vida da população quer dizer o acesso a uma quantidade de proteína ou acesso a uma cesta básica? Quer dizer, o que é alimentar-se? A noção de combate a fome, a noção de qualidade de vida articulada com a problemática agroalimentar são noções que podem ser alargadas ou restringidas. Como muito das estratégias hoje são minimalistas, ter uma noção de desenvolvimento humano é retomar uma percepção mais maximalista, mais ampliada, mais complexa, mais integrada sem negar as particularidades, as especificidades, os aspectos e os recortes do real.

PROPOSTA Reproduza o cupom da página 79 ou faça sua assinatura pelo telefone: (021) 26216853 56

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Publicações da FASE DIREITO À MORADIA: Instrumentos e Experiências de Regularização Fundiária nas Cidades Brasileiras

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história de nossas cidades é marcada pela tensão permanente entre uma multiplicidade de forma de ocupação do espaço cujo elo comum é a posse da terra e a única forma considerada legal e oficial - a propriedade privada. Os efeitos urbanísticos e políticos desta tensão são imensos: as favelas, ocupações, loteamentos irregulares e invasões, que constituem a maior parte do território de nossas cidades, foram historicamente vistos com situações "provisórias" rejeitadas pela ordem urbanística e portanto nunca in vestidas de infraestrutura e equipamen tos urbanos. A não urbanidade do ponto de vista físi-

co sempre correspondeu à condição de subcidadania do ponto de vista político, de forma que a condição de posseiro urbano, embora majoritária, tenha sempre sido considerada marginal. Este livro traz um pioneiro balanço destas experiências, o que já seria extremamente oportuno e valioso de per si . Porém, o estudo vai mais longe: além de trazer o raro registro da experiência em seis cidades, avança na reflexão crítica propondo caminhos e alternativas para a superação dos entraves e dificuldades detectados. Por estas razões, é ferramenta das mais importantes para aqueles envolvidos na luta por uma cidade mais justa e bela.

Bancos, Incendiários e Florestas Tropicais

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este li vro o pesquisador Helmut Hagemann passa em revista um conjunto de projetos financiados por agências multilaterais de desenvolvimento direcionados para a Amazônia. Embora todos esses projetos impliquem em gastos públicos - e, portanto, a informação a seu respeito deva ser pública, aqueles que, no Brasil, procuram se inteirar sobre esses projetos podem testemunhar a

dificuldade em obter dados concretos e atualizados sobre o assunto. Este trabalho visa contribu ir para a superação desta lacuna. Temos aqui um conjunto de informações bastante atuais e sem dúvidas úteis para nossa compreensão da atuação dos bancos multilaterais na Amazônia, fruto de um intensivo trabalho de pesquisa do autor.

Publicação FASE/IPPUR

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CADERNO IPPUR é um periódico semestral editado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ desde 1986. Dirige-se ao público acadêmico interdisciplinar formado por professores, pesquisadores e estudantes interessados na compreensão dos objetos, escalas, atores e práticas envolvidos na intervenção pública nas dimensões espaciais, territoriais e ambientais do desenvolvimento econômico-social. É

dirigido por um Conselho Editorial composto por professores do IPPUR e tem como instância de consultação um Conselho Científico integrado por destacadas personalidades da pesquisa urbana e regional do Brasil. IPPUR / UFRJ - Prédio da Reitoria, Sala 543 - Cidade Universitária/ Ilha do Fundão - Cep: 21941590 Rio de Janeiro - RJ - Tel.: (021) 590-1 191 / (021) 260-5350 - Fax: (021) 230-4046. E-mail:cademos@ippur.ufrj.br htt:\\www.ippur.ufrj .br

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Erradicação da Pobreza: possível agenda comum para o PNUD e as organizações sociais Marcos Arruda(*)

Carlos Carva lho/Imagens da Terra

* Economista e educador, coordenador do PACS (Rio de Janeiro), presidente da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do ICVA (Conselho Internacional de Agências Voluntárias, Genebra) e membro do Instituto Transnacional (Amsterdam). 58

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Seria possível que as organizações da sociedade civil façam com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) uma parceria em tomo de uma agenda comum? É preciso apontar que, depois de muitos anos de atividades práticas e teóricas sobre o drama da pobreza e as políticas necessárias para erradicála, organizações e movimentos sociais encontraram um aliado importante no espaço internacional: o PNUD. Este Programa, a

papel de pioneiro, dentro da família de agências das Nações Unidas, ao adotar a erradicação da pobreza como um objetivo estratégico relevante das suas atividades. Infelizmente, este exemplo não tem sido seguido pelas instituições financeiras multinacionais. Entre as iniciativas do PNUD neste sentido estão: · a adoção de uma abordagem mais abrangente dos indicadores do desenvolvimento;

partir de 15ro, começou a publicar uma série de Relatórios centrados no Desenvolvímen to Humano, não hesitando em sublinhar a necessidade de os agentes de

Marta Strauch

desenvolvimento orientarem seus esforços prioritariamente para a erradicação, e não apenas para o alívio, da pobreza. E tem tomado outras iniciativas no mesmo sentido . Em outubro de 1996, o Conselho Internacional de Agências Voluntárias (ICVA), com base em Genebra, em parceria com o PNUD, organizou um seminário sobre Erradicação da Pobreza. Apresentei neste seminário as idéias propostas abaixo. O PNUD tem cumprido um

hi.J.I.UM

· a expansão da noção de desenvolvimento para além do simples crescimento econômico, visando o desenvolvimento das pessoas e coletividades humanas como o objetivo da atividade econômica; · a superação do conceito estreito de alívio à pobreza promovido por outras agências, através do esforço de substanciar uma estratégia de erradicação da pobreza; · contra a maré ideológica da desregulação, da liberalização

N2 73 JUNHO/AGOSTO DE 1997

e da contenção do Estado, a proposta de políticas para combinar crescimento econômico com pleno emprego e com a justa distribuição dos benefícios do desenvolvimento entre todos os cidadãos da sociedade e do planeta. Observemos que a abordagem do alívio/redução da pobreza tem vantagens e limites. Entre as vantagens citamos: ·o reconhecimento de que, apesar do processo maciço de criação de riqueza desde a Seg u n d a Guerra , o problema da pobreza contínua a afligir os países em desenvolvimento; ·a mobilização de fundos públicos (oficiais e multilaterais) para resgatar e aliviar aqueles que sofrem de privação extrema e perderam seu sentido de dignidade como seres humanos. Entretanto, os limites desta abordagem são evidentes: · em primeiro lugar, deixa de reconhecer e enfrentar o fenômeno do empobrecimento, como se a pobreza fosse uma estática herança de um passado distante : a contínua produção de mais pobreza e o hiato cada vez mais profundo 59


entre os que têm em excesso e os que têm excessivas carências, tanto entre nações e hemisférios, como no interior dos países; · em consequência, é uma abordagem orientada para o alívio da pobreza com um caráter apenas tático e de curto prazo, e que lida apenas com as consequências, sem questionar os fatores determinantes do empobrecimento; · reduzir a pobreza significa trazê-la para níveis mais baixos e, talvez, mais "aceitáveis". Mas pode a pobreza involuntária, imposta por sistemas injustos de propriedade,

A erradicação da pobreza significa reduzí-la até o ponto de arrancá-la pelas suas raízes, da mesma forma que qualquer enfermidade maligna. A pobreza é uma enfermidade social e deve ser erradicada para

humanos têm se organizado para enfrentar as tarefas ligadas à sobrevivência. Se tomamos a altura do Pão de Açúcar como medida do tempo desde que os seres humanos começaram a explorar o trabalho um do outro (5.000 anos), precisaríamos de 80 Pães de Açúcar para medir o tempo desde que os seres humanos alcançaram o estágio de Homo Sapiens (400.000 anos). E a humanidade continua a evoluir. Portanto, a natureza humana não é um conjunto de atributos estáticos: ela está se fazendo e se transformando ao longo de toda a evolução da natureza e

que a sociedade humana possa alcançar novos e superiores estágios de consciência e desenvolvimento enquanto espécie. A pobreza não é apenas um fato, é também e, principalmente, um processo. O processo chama-se empobrecimento. Para efetivar a erradicação da pobreza, temos que combater as raízes do empobrecimento. É este um objetivo possível? A pobreza é um produto humano - é um fenômeno histórico, enraizado não numa "natureza humana" abstrata, mas nos modos como os seres

da espécie humana, sempre para além de si própria. Existe suficiente riqueza para responder às necessidades de cada um e de todos os cidadãos do planeta. Se a renda "oficial" global de 1995 ( cerca de US$ 25 trilhões) fosse distribuída igualmente pelos 5,5 bilhões de habitantes da Terra naquele ano, cada pessoa, criança e adulto, mulher e homem, teria uma parcela de US$ 4.545, ou a renda percapita de um país como o Brasil. O problema, no entanto, não é apenas de distribuição. É também dos limites da terra.

to do empobrecimento como processo congênito do modelo vigente de capitalismo. Uma análise mais detalhada desta contradição não cabe neste espaço, mas prometemos fazê-la oportunamente.

O DESAFIO DA ERRADICAÇAO DA POBREZA

Marta Strauch

relações produtivas e apropriação da riqueza, em qualquer hipótese ser aceitável? Nossa principal crítica à abordagem do PNUD ao problema da pobreza, sobretudo da maneira como é expressa nos seus Relatórios Anuais sobre o Desenvolvimento Humano, é a contradição, e às vezes até o antagonismo, que emerge entre os seus diagnósticos do problema e dos seus fatores determinantes, por um lado e, por outro, as propostas de políticas e práticas que apontem para a superação tanto da pobreza como fato, quan60


Se tivéssemos que elevar o nível de consumo de toda a população do planeta aos atuais níveis da Suíça, precisaríamos de cinco planetas Terra! O desafio é multidimensional: manter o crescimento em níveis necessários e suficientes para responder às necessidades de todos em cada sociedade e no mundo - a isto chamamos economia do suficiente; fazer o crescimento econômico se orientar para as necessidades humanas, individuais e coletivas, começando pelo pleno emprego; adotar sistemas eficientes de distribuição dos benefícios do crescimento; fixar limites ao crescimento de modo a gerar estilos de vida sustentáveis para todos os cidadãos da atual geração e das futuras; e implementar uma educação qualitativa e permanente de todos, de modo que as pessoas e as comunidades ganhem a capacidade de uma crescente autonomia, combinada com relações de complementaridade e cooperação entre si. A ONU também parece acreditar que a erradicação da pobreza é um objetivo possível, quando declarou que o atual decênio é a Década da Erradicação da Pobreza. Entretanto, as organizações da sociedade civil duvidam que, se as tendências atuais de globalização furiosamente competitiva sob a bandeira ideológica das reformas neoliberais e neo-conservadoras persistirem, qualquer programa conseguirá efetivamente reduzir a pobreza, muito menos erradicá-la. Na pesquisa sobre

ºM·H'ül

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globalização, publicada pelo The Financial Times em outubro de 1996, o articulista sobre a América Latina comenta que "o crescimento não tem sido suficiente para impedir o crescimento da pobreza". Na verdade, apesar dos programas oficiais na América Latina e Caribe de alívio da pobreza, esta continua crescendo. Mas isto é apenas uma meia verdade, pois não é apenas a velocidade, mas também a qualidade do crescimento, e a direção que é dada aos seus frutos, que o tornam um instrumento para reduzir e, afinal, erradicar a pobreza. Mas o empobrecimento não é mais privilégio apenas do hemisfério Sul. A globalização competitiva está gerando mudanças na tecnologia e na organização da produção a um ritmo tão rápido que nenhuma empresa ou economia tem sido capaz de adotar medidas que evitem a catástrofe social e pessoal do desemprego estrutural. Um número crescente de economias ricas tem atualmente taxas de desemprego superiores

a dez por cento, sempre mais trabalhadores sub-empregados ou desocupados e mais um amplo setor de trabalhadores não pagos, sobretudo mulheres. Tudo isto seria porque já não há trabalho útil a fazer? Certamente que não. O número crescente de trabalhadores não pagos, sub-remunerados e precarizados em toda parte está aí para prová-lo. O que está faltando são mecanismos diferentes do mercado capitalista, capazes de reconhecer o potencial das pessoas de criarem, produzirem e serem úteis para si próprias e para a sociedade.

POR UMA DUPLA ESTRATÉGIA PARA A ERRADICAÇÃO DA POBREZA Em 1994, o Grupo de Trabalho de ONGs sobre o Banco Mundial produziu um documento de trabalho chamado "O Desafio da Erradicação da Pobreza", no qual brevemente

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Carlos Carvalho/Imagens da Terra

analisa os fatores estruturais do empobrecimento nos níveis micro, meso e macro sociais. O texto também faz recomendações de políticas ao Banco Mundial que coincidem em muitos aspectos com as recomendações do PNUD . Crucial para a proposta do GTONG é a idéia de que as estratégias de alívio à pobreza não são suficientes para erradicá-la. Devem ser vistas como complementares da estratégia de erradicação da pobreza. Isto obriga a uma dupla estratégia, por um lado , de confrontação das tarefas imediatas de alívio e redução da pobreza, da fome e do sofrimento de centenas de milhões de seres humanos e, por outro, de ação sobre as raízes do empobrecimento. Aqui estão algumas propostas para uma ação conjunta das organizações da sociedade com o PNUD nesta 62

perspectiva. · O alívio da pobreza inclui pressionar os governos dos países ricos por um aumento gradual mas contínuo da ajuda oficial, pelo menos de O, 7% do PIB dos respectivos países, como proposto pela OCDE. Os governos municipais e estaduais deveriam ser chamados a contribuir com proporções semelhantes dos seus orçamentos. Inclui também pressões sobre as agências financeiras multilaterais, sobretudo o Banco Mundial e os Bancos Regionais de Desenvolvimento, por metas de empréstimos que conduzam mais diretamente à redução da pobreza, em particular, ao melhoramento das condições das mulheres e crianças. Melhorar a qualidade do uso da ajuda bilateral e multilateral, sobretudo em países da América Latina, Caribe e África, por meio de mecanismos mais

participativos e da educação para a crescente autodeterminação é outra dimensão do desafio do alívio à pobreza. · Mas o empobrecimento não é apenas um fenômeno local. Suas raízes se espalham do local para o nacional e o global. No plano macroeconômico, um dos fatores mais chocantes e menos conhecidos do empobrecimento é a relação desigual entre o Norte pós-industrial e o Sul precariamente industrializado, conforme revela o Relatório do Desenvolvimento Humano de 1992, que apresenta evidência de que, devido a transferências financeiras líquidas, várias práticas injustas de comércio e proteções comerciais e outras políticas do Norte, as perdas dos países em desenvolvimento em 1990 alcançaram quase dez vezes o valor da ajuda oficial do Norte ao Sul naquele ano. O PNUD e as organizações sociais deveriam colaborar na formulação de estratégias que

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combinem medidas de alívio à pobreza relacionadas a ações emergenciais de todas as frentes , com políticas nacionais e internacionais destinadas a confrontar desafios como: · uma solução abrangente e sustentável para o problema da dívida externa e dos déficits em conta corrente dos países do Sul, incluindo a questão do alívio ou cancelamento da dívida multilateral dos países mais pobres altamente endividados; · um programa de aj uste econômico orientado para reforçar as instituições e a capacidade nacional de planejar e implementar o desenvolvimento dos potenciais humanos e materiais do próprio país, buscando uma inserção soberana e igualitária, e não subordinada, na economia mundial; investimento s e emprés timo s estrangeiros , ajuda externa e agentes econômicos do exte-

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rior deveriam ser vistos como fatores complementares, e não determinantes, do crescimento, desenvolvimento e progresso da economia local e nacional; · a transformação das relações globais de comércio, que implicam o fim de práticas de " dumping", de proteções contra produtos dos países em desenvolvimento, termos de troca mais justos e outras medidas; não há outra fo rma de corrigir as distorções atuais no comércio internacional senão o estabelecimento de um período em que prevaleça um viés favorável aos países mais necessitados; · o investimento estrangeiro ainda é apresentado como uma panacéia pelo PNUD; na verdade, a menos que os grupos transnacionais obedeçam fielmente às regras e regulações ligadas às prioridades do desenvolvimento local e nacional nos

países hospedeiros, eles tenderão a impor suas estratégias corporativas e a comportar-se de formas contraditórias com os interesses da nação e de sua população. Tais regulações, referidas a agentes que atuam globalmente, precisam ser estabelecidas e garantidas não apenas no espaço nacional, mas também no internacional. · Em âmbito mesoeconômico, o fenômeno emergente do crescimento com desemprego é ilustrado por casos como a Espanha, onde o PNB dobrou entre 1980 e 1992 enquanto o emprego cresceu apenas 0,3%. No Relatório do Desenvolvimento Humano de 1996, o PNUD apresenta propostas de políticas que levem ao crescimento econômico visando o pleno emprego. Podemos extrair algumas conclusões desta análise, como: · que o emprego é crucial para a erradicação da pobreza e que o trabalho humano devia ser valorado por outros critérios além de sua ligação com empregos assalariados e a mera sobrevivência material; · que o emprego e a renda não são automaticamente supridos pelo mercado capitalista ou pelo crescimento econômico centrado neste mercado; · que o desenvolvimento não pode ser ao mesmo tempo centrado no povo e no mercado; · que a erradicação da pobreza depende de políticas governamentais coerentes, que envolvam o planejamento e gestão estatal dos níveis adequados de crescimento, com políticas de pleno emprego; · entretanto, só um Estado democrático e participativo pode efetivamente desempe63


nhar esses papéis, de forma ao mesmo tempo descentralizada e articulada harmonicamente; portanto, reformas dos Estados são necessárias para tornálos instituições transparentes e responsáveis perante os seus constituintes, mais preocupados com os interesses amplos de toda a sociedade do que com os estreitos interesses corporativos dos grupos privados; · esta cidadania ativa e participativa inclui o desenvolvimento de novas formas de política, que combinem mais dinamicamente a representação com formas diretas de democracia, criando também um ambiente propício para a supressão de práticas de corrupção. O PNUD e as organizações da sociedade deveriam trabalhar juntos com o propósito de influir nos governos nacionais e nas outras organizações multilaterais na tomada de decisões orientadas para o crescimento com pleno emprego, o que implica mudar o curso atual das reformas que enfraquecem o poder regulatório do Estado, reduzem sua capacidade de formular políticas macroeconômicas, e de investir em programas sociais e em áreas estratégicas relevantes da economia, e franqueiam as fronteiras nacionais aos caprichos do capital global. Tais escolhas envolvem não apenas diversas políticas macro-econômicas interrelacionadas, mas também mecanismos nacionais e globais de regulação da competição para possibilitar que firmas individuais promovam a partilha do tempo de trabalho e outras práticas sem arriscaremse a ser esmagadas por outras. 64

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· Em nível rnicroeconôrnico, o fator mais negligenciado de empobrecimento é a falta de acesso à propriedade e gestão dos bens produtivos, assim como o acesso aos mercados. O PNUD , repetidas vezes, menciona isto nos seus relatórios, mas em geral limita essas referências à terra e ao crédito. É importante que, em nível operacional, o PNUD tenha estado apoiando programas de organizações sociais orientados para o acesso de trabalhadores pobres ao crédito. Porém, muito mais pode ser feito especialmente se o PNUD e as organizações sociais juntarem forças para: · promover a visão de que oportunidades para o trabalho produtivo deveriam incluir empregos assalariados, supridos por empresas e governos, ocupações socialmente úteis, supridas por governos e comunidades organizadas, e diversas formas de auto-emprego individual e coletivo, apoiadas explicitamente por políticas governamentais; · promover o reconhecimento moral e material do valor do

!ii.J,Mittj Nº 73 JUNHO/AGOSTO DE 1997

trabalho mediante a elaboração ou o respaldo a diferentes políticas de remuneração do trabalho, inclusive para o trabalho atualmente não pago, sobretudo o das mulheres; · promover reformas do Estado orientadas para a democratização da propriedade e do controle das firmas estatais e a cidadania ativa de cada membro da sociedade através da garantia do acesso de todos aos recursos produtivos e aos mercados; · promover oportunidades e apoiar iniciativas de trabalhadores para obter a propriedade e o controle de indústrias e bancos, assim como para criar suas próprias empresas cooperativas ou associativas; · apoiar programas de educação e de capacitação que desenvolvam os talentos dos trabalhadores e sua capacidade de coe autogestão empresarial; · apoiar o desenvolvimento de redes e cadeias cooperativas, e a interconexão entre elas, maximizando a complementaridade, a troca de informação e o apoio mútuo, tanto na produção quanto nas transações comerciais e financeiras;

· facilitar o desenvolvimento de redes e cadeias globais de cooperativas laborais, na perspectiva de uma globalização cooperativa, em vez de uma globalização meramente competitiva. Isto pode ser fei to através de meios para a comunicação eletrônica global, trocas comerciais solidárias, visitas recíprocas e outras formas de intercâmbio de experiências e de produtos. No Brasil, as organizações da sociedade civil têm se mostrado dispostas a colaborar com o PNUD no desenvolvimento e implementação de estratégias como as propostas acima. Como vemos, existe um potencial amplo e fértil e também se abrem novas áreas favoráveis ao fortalecimento dos laços de colaboração entre o PNUD e aquelas organizações, sobretudo em tempos como os atuais, em que a Sociedade, para além do Estado e das empresas privadas, é chamada a desempenhar um papel histórico sempre mais importante como o principal sujeito do seu próprio desenvolvimento material e humano.

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O Timing e o Déficit das Políticas Sociais: como reduzí-los? Jean-Pierre Leroy*

* Assessor da Área de Meio Ambiente e Desenvolvimento da FASE. Membro da Coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento. Este artigo reproduz a intervenção de seu autor no Workshop promovido pelo Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal e o BNDES dia 10 de março. 66

ht.J,gj@ Nº 73 JUNHO/AGOSTO DE 1997


1. A Agenda 21 afirma que a resolução das grandes questões ambientais e a implementação de um desenvolvimento sustentável passa também pela questão social. Faz, portanto, todo sentido a mesa organizada pelo Ministério do Meio Ambiente sobre " O timing e o déficit das Políticas Sociais". Estamos querendo aqui pensar no futuro, mas recomenda-se prudência e modéstia nesse debate. Se o Brasil demorou tanto para suprimir oficialmente a escravidão e se ainda há escravidão comprovada no Brasil, não há porque imaginar que a miséria e a exclusão social serão eliminadas no cabalístico ano de 2020. Vejo, aqui e em outros espaços oficiais, uma tendência em fazer esse debate nos marcos de indicadores de desenvolvimento macroeconômicos e me pergunto se não estaríamos participando de mais um amável exercício de salão destinado a tranquilizar a consciência dos que exercem res-ponsabilidades públicas e a mostrar ao povo que ele não está desamparado, e menos de um engajamento real. 2. Quantos pobres há no Brasil? Os números são discutidos e discutíveis, tanto estatisticamente quanto politicamente. Continuam em questão os indicadores e o aparato estatístico. A decadência induzida do IBGE, para não dizer o seu desmonte, não abriria a porta para a privatização da informação estatística? Quem se interessaria nesse caso por estatísticas sociais? Bastaria dar palpites: há ou não há frango

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na mesa do pobre e TV a cores na prateleira. Esse debate é importante para melhor definir estratégias fundamentadas e superar a sua "ideologização" . 3. A provável diminuição da pobreza absoluta não significa a diminuição do gap entre os que estão no topo da pirâmide e os que estão embaixo, ou seja, a diminuição do abismo que separa ricos e pobres. A desigualdade continua profunda e multifacetada. Está presente, por exemplo, tanto na renda, nos impostos e na propriedade, quanto no acesso à justiça e aos serviços públicos. É nesse contexto de exclusão

social que se reproduz a pobreza mesmo que com o tempo essa se revista de outras características. Até o começo do século a pobreza tinha a cara da morte que as campanhas de vacinação e maiores cuidados maternais fizeram recuar. Hoje, ela tem o rosto do jovem desempregado, dos sem terra e dos sem teto. 4. Reduzir significativamente o déficit das políticas sociais não será possível sem transferência de renda. Quem vai pagar a conta? Quem vai perder renda? Não se trata, portanto, principalmente, de uma questão econômica, mas de uma questão política. É

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difícil imaginar uma real transferência de renda sem uma certa transferência de poder. E todos sabemos que as chamadas "elites" brasileiras sempre souberam se perpetuar no poder com a aquiescência, consentida ou forçada, das classes subalternas. Como a história se constroi, mesmo que dentro de certas determinações, vale ressaltar o importante papel desempenhado pelos setores operários e rurais que, em alguns partidos, principalmente no PT, e nas suas organizações sindicais e populares, em particular a CUT e o MST, forçaram a entrada das classes desfavorecidas na cidadania política. Não reconhecer esse fato e não favorecer esse movimento de acesso à política de novos atores leva-nos a duvidar da vontade de mudança social. 5. Nos tempos da ditadura, escutava-se o Ministro Delfim Netto pedir paciência aos trabalhadores, pois era preciso fazer o bolo crescer para depois reparti-lo. Hoje, escutamos que é necessário o Brasil concluir a sua inserção internacional na economia mundial - o seu ajuste tardio - para depois enfrentar os problemas sociais. Desenvolvimento continua sendo visto como uma categoria estritamente econômica, divorciada das outras dimensões da vida da sociedade. A noção de desenvolvimento sustentável, entendida como uma combinação, ou melhor, uma integração de várias dimensões ambientais, sociais, culturais, econômicas, políticas e institucionais, poderia facilitar a compreensão de que a questão social deve ser 67


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Marta Strauch

parte integrante de um projeto de desenvolvimento e, mais profundamente, de um projeto da sociedade para o país. 6. Nesta linha, a primeira política social parece-me ser a de educação, condição básica para o exercício da cidadania e para o desenvolvimento sustentável. O professor João Paulo dos Reis Velloso escreveu que "a inovação é um processo social predominantemente endógeno" e que "é a própria sociedade que gera as forças capazes de produzir em grande escala, continuadamente". Essa inovação terá mais chance de nascer com pujança no humo fecundo de uma sociedade maciçamente instruída, do que de ilhas de saber fragmentado no meio de uma sociedade embrutecida. Além do que, tanto cidadania quanto sustentabilidade exigem que essa educação massificada seja integral, "generalista", "totalizante", "holística", "sistêmica". Listo aqui vários termos (que precisariam cada um de explicações e entre os quais teria que escolher) somente para indicar a mu68

dança de paradigma científico, metodológico e pedagógico que é necessária se quisermos enfrentar o terceiro milênio em boas condições. 7. Por ter as energias, as mentes e os recursos voltados para a sua inserção no mercado mundial, o Estado secundariza a economia doméstica. A macroeconomia faz com que os ministérios centrais e outros atores-chave não pareçam se interessar pela microeconomia. As dimensões continentais do Brasil e a sua população fazem com que soe meio ridícula a comparação com algumas economias asiáticas, recomendando o alinhamento com estas e nossa transformação em simples plataforma de exportação. As possibilidades endógenas do desenvolvimento para a resolução da questão social devem ser valorizadas, a começar pelas velhas questões nacionais, tais como a Reforma Agrária. 8. Quando se fala de Reforma Agrária e, em menor medida, de agricultura familiar, pensa-se em resolver uma questão social. Do nosso ponto de vis-

ta, mesmo que apareçam como propostas historicamente anacrônicas, elas, num país como o Brasil, podem ser poderosas alavancas para um desenvolvimento sustentável. Mas, para que isso ocorra uma condição básica é que essa agricultura seja assentada sobre parâmetros científicos, técnicos e ecológicos apropriados a um novo modelo de desenvolvimento. Uma agricultura que possa trazer uma contribuição que seja ao mesmo tempo de ponta e apropriada ao modo de produção familiar camponês e não fundada sobre o paradigma tradicional quimificação/ mecanização/monocultura. Uma estratégia contínua e integrada de assentamentos e o reforço da agricultura familiar (desde a pesquisa até a comercialização, desde a educação até a "urbanização" do espaço rural), aproximaria a produção do consumo, economizaria energia e seria geradora de empregos e trabalho. E, ainda, além contribuiria para frear a metropolização galopante, reequilibrando o território através do fortalecimento de pequenos


e médios municípios. 9. Essas breves indicações já apontam para a importância do paradigma da sustentabilidade na resolução da questão social. Podemos verificar que a exclusão social é acompanhada de exclusão ambiental. Por exemplo, moradores urbanos desfavorecidos moram em áreas de risco ou insalubres (encostas, à beira dos rios, em cima de canalizações, na vizinhança de emissões tóxicas, etc); os assentamentos humanos que concentram os pobres, tanto urbanos quanto rurais, não têm saneamento básico e o seu acesso à àgua potável é precário; trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra são empurrados para áreas marginais ou em via de diversificação. No Nordeste; os assalariados temporários da monocultura têm freqüentemente péssimas condições de moradia e trabalho. Nesses casos o enfrentamento de questões ambientais pode ajudar na resolução dos problemas sociais e vice-versa. Ao mesmo tempo, o setor produtivo incorporando critérios de sustentabilidade social e ambiental pode chegar a um patamar de reconhecimento internacional que lhe dê melhores condições de acesso ao mercado no futuro. Peguemos o setor papel/ celulose como exemplo. O modo como este setor lida com a floresta nativa, com o ecossistema no qual o empreendimento está inserido, com os

trabalhadores da cultura florestal e da planta industrial, assim como com os carvoeiros sub-empreitados ou autônomos e com a população do seu entorno é desde já um fator importante para a sua inserção no mercado internacional. Estes fatores são tão importantes quanto o fato do papel estar sendo produzido sem cloro. É nesse sentido que damos a maior importância a iniciativas como o FSC (Forest Stewardship Council), voltados para a certificação florestal e que já criou um Grupo de Trabalho FSC Brasil, e menos à série ISO 14.000, aonde não é exercido qualquer controle social/ público. Criar alternativas à abordagem clássica de grandes obras, na área de saneamento, favorecendo, por exemplo, o saneamento condominial, pode ser gerador de empregos na comunidade. Igualmente a possibilidade de geração de trabalho e renda oferecida pelo tratamento dos rejeitas já é bastante conhecida. 10. Enfim, gostaria de mencionar a "discriminação positiva", ou melhor, a "ação afirmativa". Certos grupos sociais, por serem secundarizados ou marginalizados pela sociedade, deveriam receber um tratamento preferencial que os colocavam em condição de igualdade real. O conceito e as práticas da ação afirmativa avançavam mais em relação às mulheres e aos negros, nos EUA particularmente. Este

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seria um caminho a trilhar com mais força aqui também. Devemos dar tratamento preferencial às mulheres do meio pobre, a começar pelas mães chefes de família; aos portadores de deficiências; às populações tradicionais; aos jovens, etc; não somente e não principalmente para receber ajuda, mas para a sua inserção econômica. 11. Manifestava no começo a minha preocupação em não transformar o debate de política social em debate de salão ou, digamos, em academicismo. Este não tem sido o caso deste debate que tem mostrado que certos setores do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal ultrapassaram a visão estritamente ambiental e passaram a pensar a sutentabilidade nas suas várias dimensões. E tem mostrado também que, para além do horizonte eleitoral, setores do Estado preocupam-se com o futuro mais longínquo, lá onde podemos realmente falar de "políticas de Estado", políticas públicas que exigem a participação dos grandes atores sociais. Penso que a chamada "sociedade civil organizada" quer hoje esse diálogo e pode dar uma contribuição relevante. Na impossibilidade de me estender mais pela exiguidade do tempo, limito-me a esses apontamentos que mais abrem um debate e dão algumas pistas para a reflexão e a ação do que concluem algo que, na realidade, mal se coloca na agenda pública. 69


Algumas considerações sobre trabalho das crianças de 5 a 9 anos a partir dos dados da PNAD* Ana Lucia Saboia**

Wi lson Costa/Imagens da Terra

* Versão para discussão no Seminário Rio Jovem Trabalhador, organizado pela Secretaria Especial do Trabalho e Secretarias de Desenvolvimento Social e de Educação do Município do Rio de Janeiro, nos dias 10 e 11 de abril de 1997 no Teatro Sesi. * * Socióloga, coordenadora da área de estatísticas da criança do IBGE. 70

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1- INTROOUÇAO

pitalistas passou a ser regula- anos". Reconhecendo as dido, fiscalizado e, finalmente, ficuldades para a implemenEste texto tem como finali- considerado inaceitável(!)_ tação de tal idade mínima para A questão do trabalho in- o trabalho, a Convenção abre dade explorar os dados sobre trabalho de crianças de 5 a 9 fantil abrange vários aspectos a possibilidade de sua redução anos e discutir algumas ques- e, para iniciar esta breve dis- para quatorze anos nos países tões utilizando basicamente os cussão, alguns merecem logo "cuja economia e condições de ser apontados. ensino não estiverem sufiO trabalho infantil teve sua origem Primeiro, a cientemente desenvolvidas". Convenção sobre O recente relatório da ONU no regime escravagista e tinha caráter de treinamento imediato de os Direitos da de 1997, divulgado em dezemnovos contingentes de mão-de-obra. Criança regida bro de 1996, sobre a situação pelas Nações mundial da infância foi espeUnidas de 1989, cialmente dedicado à questão dados da PNAD 1995 através da qual o Brasil é um dos paí- do trabalho infantil. O relatório do plano básico de divulgação ses signatários, obriga legal- chama a atenção para a exda pesquisa feito pelo IBGE e mente os países a proteger os ploração do trabalho infantil, quatro tabelas processadas es- direitos da criança. Um desses apresentando-o como um dos pecialmente para a realização direitos é o de ter proteção piores abusos praticados concontra o trabalho que expõe a tra as crianças e contesta a tese do presente estudo. Os dados da PNAD sobre criança a situações de risco e à que esta prática tenha sido eliminada nos países industriaa inserção de crianças de 5 a 9 exploração. Segundo, o Estatuto da lizados. O relatório propõe-se no mercado de trabalho são bastante ricos e ajudam a com- Criança e do Adolescentes de a avaliar a extensão do problepreender este fenômeno anti- 1990 fixou que é proibido ma em todo mundo, colocango e complexo existente na qualquer trabalho a menores do em xeque alguns mitos norsociedade brasileira. O traba- de 14 anos, salvo na condição malmente associados ao traballho infantil teve sua origem no de aprendiz a partir dos 12 ho infantil. Destaca-se um asregime escravagista e tinha anos, considerando apren- pecto que mereceu cuidadosa caráter de treinamento imedia- dizagem a formação técnico- atenção do relatório e que diz to de novos contingentes de profissional ministrada segun- respeito à suposição corrente mão-de-obra. Depois, esta- do as diretrizes beleceu-se no meio rural den- de educação em Somente a partir de 1992, a PNAD começou a, sistematicamente, tro do contexto familiar mais vigor. Terceiro, a restrito. O trabalho infantil só coletar informações sobre a mãocomeçou a despertar indig- Convenção 138 de-obra de crianças nação durante a revolução in- de 1973 da Orgadustrial por conta da substi- nização Internacional do Tra- de que: enquanto existir pobretuição do trabalho masculino balho define que a idade míni- za, o trabalho infantil não será pelo infantil em atividades no- ma para o trabalho infantil "não eliminado. Sem dúvida, pelo toriamente insalubres e com será inferior à idade de con- menos o trabalho infantil que salários abaixo daqueles pagos clusão da escolaridade com- envolve situações de risco aos adultos. A partir daí o tra- pulsória ou, em qualquer hipó- (1) Sobre a origem do trabalho inbalho infantil em atividades ca- tese, não inferior a quinze fantil , ver Pires, 1988 e Miller, 1993.

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pode e deve ser eliminado independentemente de medidas mais amplas de redução da pobreza. De fato , a maior parte das crianças que trabalham vem dos setores mais pobres da sociedade. Este fato pode levar a crer que o trabalho infantil e pobreza são indissociáveis e que tentativas para sua eliminação são irrealistas. Segundo a ONU, o trabalho infantil pode realmente perpetuar a pobreza na medida . . que uma cnança que mgressa precocemente no mercado de trabalho se tornará um adulto sem qualificação profissional, que somente poderá conseguir empregos mal remunerados. É importante classificar as formas de trabalho infantil para se entender melhor a questão. A ONU considera que o trabalho infantil adquire características de exploração quando envolve: · atividade em período integral quando a criança é muito Jovem; · muitas horas de atividade; · atividade que provoque excessivo estresse físico, social ou psicológico; · atividade e vida nas ruas e em más condições; · remuneração inadequada; ·responsabilidade excessiva; · atividade que impeça o aces-so à educação; · atividade que comprome72

ta a dignidade e a auto-estima da criança, como escravidão ou trabalho servil e exploração sexual; · atividade prejudicial ao pleno desenvolvimento social e psicológico.

anças são: Bahia, Minas Gerais, Maranhão, Ceará, Paraná, Rio Grande do Sul e Pernambuco. O Rio de Janeiro é o estado que tem o menor número de crianças ocupadas, 5.888 crianças, isto é, pouco mais de

1 - Distribuição regional das crianças de 5 a 9 anos ocupadas - 1995 ( % ) 7,4

4,2

50,9

Fonte: PNAD

or este

li u EJ Centro Oeste

•Sudeste li Norte Gráfico 1

2 - QUANTOS SÃO

1 % deste grupo de traba-

os

TRABAl.HADORES MIRINS E ONDE ESTÃO CONCENTRADOS? Segundo a PNAD, havia no país, em 1995, 522 mil crianças trabalhadoras na faixa 5 a 9 anos de idade, representando 3,2% das crianças deste grupo etário. O Nordeste é res-ponsável por pouco mais da metade destas crianças. Em valores absolutos, os estados que mais empregam estas cri-

lhadores. É interessante observar que o trabalho destas crianças não está restrito apenas às regiões mais pobres do país. Mas embora, tais crianças trabalhadoras sejam bastante visíveis nas grandes metrópoles, é nas atividades agrícolas que elas são encontradas majoritariamente. Mais de quatro em cada cinco crianças que trabalham com menos de 10 anos encontram-se no campo. São Paulo e Rio de Janeiro são os únicos estados onde a maior parte dos trabalhadores mirins

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2 -Crianças de S a 9 anos ocupadas em atividades agrícolas e não agrícolas por unidades da federação - 1995 Santa Catarina D. Federal Alagoas Mato Grosso Maranhão Paraíba Bahia R.G. do Sul Pernambuco Piauí M. G. Sul Paraná Minas Gerais R. G. do Norte Sergipe Ceará Espírito Santo Goiás São Paulo Rio de Janeiro 1

0% 10% Fonte: PNAD

localiza-se em atividades não agrícolas. Os gráficos 1 e 2 ilustram esta situação.

2. I • REMUNERAÇAO DO TRABALHO Sobre a remuneração do trabalho destas crianças, observa-se que mais de 90 % dos trabalhadores entre 5 e 9 anos não recebem qualquer tipo de rendimento. E daquelas que recebem algum rendimento, a quase totalidade não passa de 0,5 salário mínimo. Acima deste valor há menos de 1 % das crianças que trabalham nesta faixa etária. Até mesmo em São Paulo e Rio de Janeiro,

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1

1

1

20%

30%

1

40%

.Agrícola

50%

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1

60%

70%

1

80%

90%

100%

Não Agrícola

onde predominam trabalhadores urbanos, é muito pouco freqüente o trabalho remunerado - 85% e 94 % respectivamente dos trabalhadores mirins não são remunerados. O gráfico 3 mostra a proporção de crianças ocupadas sem remuneração pelo trabalho que executam em todos os estados à exceção dos que pertencem à Região Norte.

2.2 • FREQÜÊNCIA .À ESCOLA E HORAS TRABALHADAS O fato de 22% destes trabalhadores tão jovens não freqüentarem a escola é preo-

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1

cupante. No Nordeste, este percentual atinge 29 %, chegando a 31 % na agricultura. Em Alagoas, quase metade das crianças trabalhadoras não freqüentam a escola. Embora apresentando uma das menores taxas de crianças trabalhadoras fora da escola, o Rio de Janeiro ainda tem quase 13% de crianças nesta situação. É claro que parte destas crianças está fora da escola por não ter atingido a idade escolar obrigatória. Mas, nada garante que algum dia elas terão possibilidade de participar da vida escolar. A dificuldade em conciliar o trabalho e o estudo fica mais 73


Crianças de 5 a 9 anos ocupadas sem rendimento Alagoas São Paulo Ceará Sergipe M. Gerais &píritoSanto Paraná Mato Grosso M.G.Sul R.G.Norte RiodeJaneir Paraíba Pernambuco Bahia R.G.Sul Piauí Maranhão Santa Catarina

100

Gráfico3

clara quando verificada a jornada de trabalho destas crianças. Embora seja relativamente rara a jornada superior a 40 horas semanais, 49 % das crianças trabalham entre 15 e 39 horas por semana, enquanto 43 % não dedicam mais de 14 horas ao trabalho no conjunto do país. Em algumas unidades da federação, mais de dois terços das crianças trabalhadoras passam entre 15 e 39 horas semanais em atividades de traba74

lho. Este é o caso, por exemplo, do estado do Rio de Janeiro, conforme pode ser visto no gráfico 4.

2.3- RENDA FAMILIAR DOS TRABALHADORES MIRINS

cujo rendimento mensal familiar per capita não ultrapassa meio salário mínimo por mês. Aliás, esta informação vem confirmar a correlação entre pobreza familiar e trabalho infantil que tem sido constantemente apontada por vários estudiosos do tema. Nos esta-

A grande maioria das crian-

dos de São Paulo e Rio Grande

ças trabalhadoras desta faixa

do Sul, a proporção de cri-

etária vive em famílias pobres

anças ocupadas nas famílias


Crianças de 5 a 9 anos ocupadas p/ frequência à escola e horas trabalhadas - 1995

% Não frequentam escola

1 1

Alagoas Pernambuco R.G.Norte Maranhão Paraíba E.Santo Goiás Ceará Sergipe M.Gerais Piauí Bahia M.Grosso Distrito Federal Paraná São Paulo R. de Janeiro M.G.Sul Santa Catarina R.G.Sul

46,7 37,0 32,2 31,2 28,1 27,3 26,9 26,7 26,3 25,1 25,0 23,8 18,9 16,7 15,3 15,0 12,8 11,1 8,9 7,9

Horas trabalhadas até 14 15 a 39 1 15,4 76,9 56,0 34,4 32,1 39,3 44,3 54,1 56,2 40,6 40,9 40,9 57,7 36,5 60,6 28,9 36,8 42,1 32,0 62,5 35,7 46,4 36,1 53,7 70,3 27,0 83,4 16,6 50,5 36,4 54,9 40,1 67,7 32,3 11,1 88,9 66,7 33,3 43,4 56,6

mais pobres é menos significativa do que nos demais. Apesar das atividades desenvolvidas por estas crianças serem de natureza distinta - urbanas em São Paulo e rurais em Rio Grande do Sul -, estes estados apresentam níveis médios de rendimento elevados em relação ao país, justificando tais diferenças. No Rio de Janeiro, 64,3 % das crianças trabalhadoras pertencem às famílias mais pobres.

3- QUESTOES PARA DISCUSSAO É importante chamar a atenção para a questão do número de trabalhadores infantis no Brasil. Como foi dito an-

Gráfico 4 Crianças de 5 a 9 anos ocupadas em família com renda até 1/2 SM 1995 São Paulo Rio G. do Sul Santa Catarina Mato Grosso Sergipe Distrito Federal Mato G. do Sul Espírito Santo Pernambuco Paraná Rio deJaneiro Minas Gerais Bahia Goiás R. O.Norte Maranhão Ceará Piauí Paraíba Alagoas

20,3 31,4 44,5 ·45,9 47,4 50,00 51,9 54,5 59,4 61,4 64,3 68,1 •68,8 •69,2 1

~.

75,0 75,4 75,9 82,1 90,6 ·92,3

Gráfico 5

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pela primeira vez, o país tem um número oficial e confiável para dimensionar o trabalho infantil antes dos 10 anos de idade. A própria ONU veicula que há precariedade em termos de estatísticas oficiais dada a dificuldade de coletar esta informação por vários motivos. Um deles é que grande parte do trabalho infantil ocorre em atividades consideradas "invisíveis" realizadas no setor informal (no serviço doméstico, dentro de casa ou no campo). A PNAD possui a vantagem de ser um levantamento domiciliar capaz de captar este tipo de atividade. Há autores<2l que relativizam a questão do trabalho das crianças de 5 a 9 anos, afirmando que o trabalho infantil 76

ocorre fundamentalmente no contexto familiar. Das 420 mil crianças que trabalham no campo, 267 mil são filhos de trabalhadore s por conta própria, sendo bastante comum nestas áreas que os filhos acompanhem as atividades dos pais. Esta visão destaca que este fato não significa necessariamente exploração desumana - significa pobreza - e que 10% dos pais que trabalham no campo ocupam seus filhos de 5 a 9 anos em alguma atividade. A jornada excessiva de trabalho pode causar severos danos ao desenvolvimento da criança tanto do ponto de vista físico como emocional e, também, cognitivo. Não há tradição cultural no Brasil que justifique este número de ho-

ras trabalhadas semanalmente por crianças entre 5 e 9 anos. Crianças entre 5 e 9 anos deveriam estar na escola praticamente o dia inteiro, como ocorre na maioria dos países do Primeiro Mundo. Na França, crianças desta faixa etária permanecem na escola das 9 até as 16 horas; nos Estados Unidos, das 8 até as 15 horas. Na França, segundo dados do INSÉE de 1987 - o instituto francês análogo ao IBGE -, desde o final da década de 1960, 100% das crianças de 4 a 13 anos de idade freqüentavam escola. Os exemplos no mundo desenvolvido apontam (2) Vários trabalhos realizados por especialistas na questão do trabalho infantil (Fausto e Cervini , 1991, Lim a e Burger, 1988 e Pires, 1988, entre outros) afirmam que a causa básica que impulsiona a criança ao mercado de trabalho é a pobreza.


J.R.Ripper/lmagens da Terra

sempre no sentido da permanência das crianças na escola em horário integral. Não há justificativa para as crianças brasileiras trabalharem tantas horas, mesmo ao lado de seus pais. A escola é insubstituível para a socialização das crianças e o aprendizado em geral. A boa escola pode e deve ser a solução adotada pelo governo, sobretudo para erradicar o trabalho das crianças de 5 a 9 anos. Segundo a ONU, nos países que enfrentaram dificuldades econômicas ao longo da última década, os gastos per capita com educação caíram significativamente, principalmente os gastos por

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aluno de nível primário. Os recursos para educação já são insuficientes, mas o sistema escolar nos países em desenvolvimento necessita mais que recursos. Freqüentemente, a abordagem de ensino é pouco estimulante, com uma estrutu-

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ra rígida e distante da realidade das crianças, sobretudo das mais pobres. Nessa medida, fica muito difícil manter as crianças na escola. Se, além disso, elas trabalham , então a situação fica ainda mais complicada. A questão do trabalho infantil tem ainda interpretações no senso comum. Para alguns pais o trabalho é considerado um aprendizado importante para que a criança, desde cedo, saiba ter responsabilidades. Argumentam até que é uma contraposição à vadiagem para evitar o aumento de crianças nas ruas ou argumentam que o trabalho ajuda a "lapidar" moralmente o caráter das crianças, conforme aponta Grajew (1994) no prefácio do documento da OIT, que será comentado mais adiante. Para outros, ter filhos de 5 anos trabalhando é um atestado de incompetência, de pobreza e algumas vezes até motivo de vergonha.

77


O documento intitulado "Crianças de Fibra" da OIT (1994) faz uma reportagem através de fotografias de crianças trabalhando em vários pontos do país colhendo tomate ou laranja, chá, café e fumo, nas olarias, nas indústrias de calçados e nas cidades vendendo jornais e frutas nos sinais luminosos. O mérito deste documento foi, segundo a OIT, "tirar o véu que cobre o mundo das crianças que trabalham para revelar o que está por trás das estatísticas do IBGE". Os casos retratados não são isolados e servem para desvendar o significado das estatísticas.

4 - COMENTÁRIOS FINAIS A situação da criança no Brasil é ainda um reflexo quase perBibliografia BARROS, R. P. de et alli, "Is Poverty the Maio Cause of Child Work in Urban Brazil?", Série Seminários, nº 13/94, IPEA, Rio de Janeiro, agosto de 1994. DAL-ROSSO, S. e Rezende, M. L. S., Comerás o Pão com o Suor do teu Rosto : as Condições do Emprego do Menor Trabalhador, Thesaurus, São Paulo, 1986. FAUSTO, A. e Cervini, R. , O Trabalho e a Rua: Crianças e Adolescentes no Brasil Urbano dos Anos 80, UNICEF/FLACSO/CBIA, Cortez, 1991. GRAJEW, O e Souza, H. ln Crianças de Fibra , Paz e Terra, 1994. HUZAK, 1 e Azevedo, J. Crianças de Fibra, Paz e Terra, 1994. IBGE, Crianças e Adolescentes Indicadores Sociais, Volume 4, Rio de Janeiro, 1992. 78

feito das condições em que se encontram suas famílias. O Estado está longe de poder prover a infra-estrutura necessária ao pleno desenvolvimento das crianças, que ficam quase que exclusivamente dependente das condições de suas famílias. A entrada precoce no mercado de trabalho está fundamentalmente associada à condição sócioeconômica familiar. Fica fácil dimensionar os enormes esforços que devem ser feitos por vários segmentos da sociedade brasileira para a erradicação do trabalho infantil. Souza (1994) sugere que se procure formas de ocupação e renda para que os pais dessas crianças as desobriguem de ajudar no orçamento familiar, o que considera

tarefa difícil, mas possível através da organização e solidariedade de segmentos da sociedade incluindo governos em todos os níveis. Os Programas de Renda Mínima, surgidos recentemente no país, podem ser uma das vias para o combate ao trabalho precoce. A contribuição das estatísticas é fundamental para a solução do problema. Para que este seja enfrentado de maneira eficaz, é necessário ter informações confiáveis e disponíveis, análises e divulgação de dados sobre trabalho infantil. Neste particular a PNAD cumpre um papel fundamental, possibilitando estudos e estatísticas para o planejamento e execução de ações voltadas para a cnança.

LIMA, R. A. e Burger, F. , "O Menor e o Mercado de Trabalho no Brasil: da Crise ao Cruzado", in Chahad, J. P. Z. e Cervini, R., eds., Crise e Infância no Brasil: o Impacto das Políticas de Ajustamento Econômico, UNICEF/IPE/ USP, São Paulo, 1988. MILLER, L. M., "Condições de Trabalho da Criança e do Adolescente Urbanos", Anais do III Encontro Nacional de Estudos do Trabalho, ABET, Rio de Janeiro, 1994. PIRES, J. M., Trabalho Infantil: a Necessidade e a Persistência, dissertação de mestrado, USP, São Paulo, 1988. RIBEIRO, R. e Saboia, A. , "Crianças e Adolescentes na Década de 80: Condições de Vida e Perspectivas para o Terceiro Milênio", in Rizzini, 1., org., A Criança no Brasil Hoje - Desafio para o Terceiro Milênio, Editora Univer-

sitária Santa Úrsula, Rio de Janeiro, 1993. SABOIA, A. e Bregman, S. , "Evolução da Taxa de Atividade de Crianças e Adolescentes no Brasil Urbano - 1970 a 1990", Anais do III Encontro Nacional de Estudos do Trabalho, ABET, Rio de Janeiro, 1994. SABOIA, A., Caride, C., Alves, M. e Bregman, S., "Renda e Pobreza das Crianças no Brasil", mimeo, 1996. SABOIA, J., "Trabalho lnfanto-Juvenil no Brasil nos Anos 90", Cadernos de Políticas Sociais - Série Documentos para Discussão Número 3, UNICEF, Brasília, 1996 SABOIA, J. e Saboia, A., " Situação do Trabalho Infanta-Juvenil na Primeira Metade da Década de 90", mimeo, 1997. UNICEF, Situação Mundial da Infância 1997, Brasília, 1996.


nº 72 - Os Desafios do Mundo do Trabalho nº 71 - Desenvolvimento Sustentá vel nº 70 - Cenários do Século XXI nº 69 - Eleições e Cidadania nº 68 - Cenários do Século XXI nº 67 - Movimentos Populares Urbanos nº 66 - Mudar a vida nº 65 - Repensando o Brasil li nº 64 - Globalizar ou Integrar? nº 63 - Trabalh o e Renda nº 62 - Crise Urbana nº 6 1 - Repensando o Brasil nº 60 - Genocídio Social nº 59 - Cidadania e Políticas Públicas nº 58 - Democratização dos Meios de Comunicação nº 57 - Revisão Constituc ional: Estado, Trabalho e Cidadania nº 56 - Desen vo lvimento e Meio Ambien te nº 55 - Trabalho e Cidadania nos Complexos Ag roindustriais nº 54 - Democratizand o a Cidade nº 53 - Qua l Desenvol vi mento? nº 52 - Educa ção Básica : Essa Crise tem Solução nº 50 - Organização Sindical nos Locais de Trabalho nº 49 - Violência e Direitos Humanos: Uma Guerra no Brasil

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Reforma Agrária e Terras Devolutas no Brasil Márcia Maria Menendes Motta* J.R.Ripper/lmagens da Terra

* Historiadora. Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. 80

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cas do desenvolvimento brasileiro e o correlato agravamento das desigualdades sociais e visa discutir o problema do acesso à terra. Ou melhor, pretende-se aqui encaminhar uma análise no sentido de compreender não somente a perenidade da concentração fundiária no Brasil, mas tam-

1- lnlrodufÕO O Índice de Desenvolvimento Humano - uma combinação de indicadores de esperança de vida, escolaridade e nível de renda - tem sido visto como um diagnóstico mais fiel da realidade brasileira. A partir dele muitos analistas vislumbram um futuro mais otimista e, em nome de uma determinada visão de progresso, insistem em nos convencer que nossa chegada ao Primeiro Mundo é umaquestão de tempo. Mas nada é tão simples. Para além do otimismo manifesto e sua real vinculação com a propaganda do governo, o tempo e os dados do IDH também nos mostram que, se podemos verificar melhoria na condição de vida de uma parte da população ainda assim o Brasil possui hoje 42 milhões de pobres e miseráveis. "Este tipo de desenvolvimento, marcado e mesmo impulsionado pela perpetuação e agravamento das desigualdades sociais, faz, hoje, do Brasil, o país com a maior concentração de renda do mundo". O presente artigo parte das questões apontadas por Ricardo Salles e Sandra Mayrink Veiga acerca das característi-

bém questionar a noção de que as terras devolutas do país são o ponto de partida e de chega-

gumento utilizado por aqueles que defendem uma Reforma Agrária sem traumas e fissuras. Por esta ótica não haveria porquê reformular a estrutura fundiária, na medida em que o país conta com um número significativo de terras do Estado. Apesar de nunca poderem de fato mostrar a extensão exa-

ta ~as terras devol~tas em cada umdade da federaçao, os defensores deste tipo Carlos Carvalho/Imagens da Terra d R f e e orma consideram que sua mera existência é suficiente para condenar as ações empreendidas pelo Movimento dos Sem Terra. A defesa deste tipo de reforma fica um pouco mais difícil quando atentamos para a concentração fundiária no Brasil da da ainda polêmica Reforma e seus efeitos sociais. Somos Agrária. Neste sentido, procu- um país de dimensões contira mostrar como o argumento nentais capaz de construir uma da existência das terras devo- sociedade onde apenas 1% dos 1utas não se sustenta quando proprietários rurais detêm 44% tomamos ciência de que, a ri- das terras, enquanto outros gor, as terras devolutas têm sido 67% deles detêm apenas 6% invadidas ao longo de mais de das terras. Um país que pouco fez para deter os assassinatos cem anos pelos fazendeiros. no campo e onde, entre 1964 e 1992, 1.600 pessoas foram li- Terras mortas em disputas de terras. Devolutos: O que De qualquer forma, o reslizerom ~om elos? peito à propriedade privada consagrado pela Carta Magna A existência de terras devo- é, ainda segundo a mesma ótilutas no Brasil tem sido o ar- ca, o argumento definitivo na

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Marta Strauch

condenação das atitudes dos posseiros e de todos aqueles que questionam a legitimidade da estrutura fundiária vigente. Assim, para além de uma possível validade da crítica à concentração de terras em mãos de uma minoria, os posseiros não teriam razão, pois o que fazem - a ocupação de terras - fere as leis do país tornandoos, portanto, tão somente invasores das terras de outrem. Mas se falamos de lei, falamos de direitos, de justiça. A história da invasão de terras no Brasil dos últimos 150 anos nos mostra uma realidade mais complexa onde os principais invasores foram os antepassados daqueles que hoje se apóiam na lei para reafirmar sua condição de proprietários de terra. Em 1850, após 7 anos de debate, foi consagrada a Lei de Terras. A partir daquela data as terras devolutas só poderiam ser adquiridas por compra, ficando proibido o mero apossamento como forma legítima de ocupação. O conceito de terras de82

volutas ali definido é até hoje utilizado no país. O artigo terceiro da Lei de Terras determina que são terras devolutas: 1- as que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal; 2- as que não se acharem no domínio público particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura; 3- as que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concessões do Governo que, apesar de incursas em comisso forem revalidadas por esta Lei; 4- as que não se acharem ocupadas por posses que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta lei. Como se vê, a lei caracteriza o que seja terra devoluta a partir da noção de exclusão das terras particulares. Às avessas,

o conceito se afirma pela negação: o que não é particular pertence ao Estado. A maneira pela qual a lei definiu as terras devolutas tem até hoje provocado a querela referente à comprovação dominial das terras devolutas, ou seja, se cabe ou não ao Estado o ônus da prova sobre as suas terras. O caso de Pontal de Paranapanema é um exemplo interessante para encaminharmos a discussão sobre as terras devolutas. Pelas informações colhidas pela Folha de São Paulo, cerca de 50% das terras da região podem ser consideradas devolutas. Ao que tudo indica, a árvore genealógica dos títulos das terras, de 1852 até hoje, é incompleta ou falsificada. O jornal não deixou sequer de traçar um rápido histórico: "por volta de 1850, a Coroa determinou que áreas com títulos não registrados a partir de então se tornariam terras devolutas". Em vista disso, "dois fazendeiros de Pontal trataram de fraudar rapidamente os títulos, que foram passando de mão em mão com as revendas" . Paranapanema não é uma exceção. Desde o século passado, senhores e possuidores de terras tenderam a desconsiderar qualquer política de regularização fundiária. Ao contrário, sempre que puderam, operaram os pressupostos da lei em seu próprio benefício e se recusaram a medir e a demarcar suas terras. Após a Lei de Terras de 1850, a invasão das terras

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devolutas só aumentou. Basta analisar os relatórios provinciais de 1850 a 1889 para verificarmos o fracasso do governo em manter o controle de suas terras e impedir sua invasão.

Estes registros - os chama- informações sobre terrenos redos Registros Paroquiais de conhecidamente devolutos Terra - tornaram-se obrigatóri- cresciam cada vez mais, imprios para "todos os possuidores mindo a marca do fracasso na de terras, qualquer que seja o política de regularização então título de sua propriedade ou proposta pela Lei de 1850. Ao possessão". longo dos anos de 1860, vários Eram os vigários informes da Repartição Geral de Aprovada após intenso debate, a Lei de cada freguesia Terras Públicas encontrados de Terras de 1850 foi finalmente os encarregados nos Relatórios do Ministério regulamentada pelo Decreto número de receber as da Agricultura buscavam di1.318, de 30 de janeiro de 1854. declarações vulgar as terras devolutas que para o registro Com nove capítulos e 108 artigos. de terras. Cada haviam sido de fato medidas e a venda de algumas destas terdeclaração deveria ter duas ras, bem como informar sobre cópias iguais contendo: "o os registros de terras realizaAprovada após intenso denome do possuidor, desig- dos. Os relatórios procuravam bate, a Lei de Terras de 1850 nação da Freguesia em que informar também acerca do foi finalmente regulamentada cumprimento dos serviços a pelo Decreto número 1.318, de estão situadas; o nome particucargo dos juizes comissários e 30 de janeiro de 1854. Com lar da situação, se o tiver; sua nove capítulos e 108 artigos, extensão, se for conhecida; e dos engenheiros responsáveis pela medição. Para alguns reo Regulamento procurou dar seus limites" . A idéia de que a Lei de Ter- latores era preciso reorganizar conta das inúmeras situações relacionadas à ocupação das ras de 1850 e seu Regulamento as atribuições da Repartição . terras. Para tanto ordenou a cria- eram importantes e eficazes ins- Geral das Terras Públicas, que ção da Repartição Geral das Ter- trumentos para discriminar o havia sido criada pelo Regularas Públicas, órgão responsá- domínio público vel por dirigir a medição, do privado e, pordividir e descrever as terras tanto, regularizar Eram os vigários de cada freguedevolutas e prover sua conser- a estrutura funsia os encarregados de receber vação. Também era de comas declarações para o registro diária do país, inpetência da Repartição propor terferia na perde terras. ao governo quais terras devocepção de que os lutas deveriam ser reservadas registros das terà colonização indígena e flmmenta de 1854. Em vista disdação de povoações, e quais ras possuídas - tal como era ali so optou-se, em 1860, por proposto dificilmente poderia deveriam ser vendidas, além de fiscalizar tal distribuição e pro- por fim aos litígios de terra transformar a Repartição numa mover a colonização nacional decorrentes de limites territo- Diretoria da Secretaria do e estrangeira. Cabia ainda à riais imprecisos e/ou ocupação Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. mesma Repartição realizar o de terras devolutas. As dificuldades em dar conAs dificuldades para disregistro das terras possuídas e propor ao Governo a fórmula criminar as terras públicas das ta de situações tão variadas no a ser seguida para a revali- privadas através do registro país e a escassez de recursos dação de títulos e legitimação das terras possuídas e os es- seriam também apontadas destas terras. forços no sentido de receber como outras das razões pos-

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síveis para o não cumprimento das exigências do regulamento. Assim, por exemplo, em 1863, o relatório do ministério informava que haviam sido feitos importantes trabalhos de legitimação e revalidação nas províncias do Ceará, Alagoas, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e São Pedro do Rio Grande do Sul, "não podendo dizer o mesmo das províncias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e Mato Grosso por não haverem recebido ainda as informações dos respectivos juízes e comissários" . No entanto, apesar dos esforços, a evidência do fracasso da política de regularização fundiária ficaria por demais visível nos Relatórios Oficiais ao longo de toda década de 70. Em 1870, o Relatório do Ministério da Agricultura informava que a Lei de 1850 deveria ser revista, pois "ela nem sequer pôde impedir, como pretendeu, o abuso da invasão das terras públicas, as quais continuam não só a ser assoladas, extraindo madeira de lei de suas matas para ser vendida como também a ser possuída ilegalmente e sem estorvo". Ademais, as dificuldades dos órgãos responsáveis em discriminar as terras públicas das privadas se somariam à união de interesses dos grandes fazendeiros para impedir que parte das terras devolutas servissem para os aldeamentos indígenas, conforme o estabelecido em lei. Assim sendo, ao 84

menos na Província do Rio de Janeiro, os ofícios do Presidente de Província pedindo informações às Câmaras Municipais sobre o número de índios nas aldeias e extensão e valor de suas propriedades tornavam-se inócuos. Da mesma forma, as Câmaras Municipais tendiam a não responder às solicitações referentes à existência de terrenos devolutos em seus respectivos municípios. Em 1870, apenas quatro dos municípios fluminenses haviam respondido a um aviso em que se exigia informações a respeito: Nova Friburgo, Mangaratiba, Rio Claro e ltaboraí. O primeiro declarou que os terrenos devolutos ali existentes eram "tão estéreis e colocados nos altos das serras que por esse motivo não foram apossados". O segundo repetira parte da informação que havia sido divulgada em 1865 acerca da existência destes terrenos em Ingaíba e J acareí, "embora sejam contestadas por pessoas que dizem acharem-se elas incluídas em sesmarias que lhes pertencem". Ao mesmo tempo, nada mais se dizia acerca da provável existência de terrenos devolutos na freguesia de Mambucaba. O município de Rio Claro informou a existência de terrenos devolutos nos altos da serra de Angra dos Reis e Mangaratiba, mas estes se encontravam ocupados por foreiros. Por fim , o município de Itaboraí declarou não existir ali terrenos devo-

lutos. Quinze anos mais tarde, o Governo enviou, em maio de 1885, uma Circular às Câmaras Municipais do Rio de Janeiro, solicitando informações acerca da existência de terrenos devolutos. Muitas das Câmaras Municipais não deixaram de responder à Circular do Presidente de Província, mas simplesmente registraram: "temos a honra de informar que neste município não há terrenos devolutos" . Ao forjar a inexistência de terrenos devolutos em seus municípios, as Câmaras Municipais da Província do Rio de Janeiro, e provavelmente também de outras províncias, reiteravam os pressupostos que haviam consagrado o poder dos senhores de terras. Enquanto vereadores, os grandes fazendeiros que ocupavam assentos nas Câmaras nada mais faziam do que impedir a regularização de uma estrutura fundiária capaz de limitar os seus poderes. Em cada cantão do território fluminense e, quiçá, do território nacional se criava a ficção da inexistência de terrenos devolutos, ao mesmo tempo que fazendeiros e lavradores continuaram a expandir suas terras pelas portas dos fundos de suas fazendas e sítios. As invasões das terras devolutas continuaram nos últimos anos do Império. Os esforços do governo em deter o

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controle sobre as suas terras continuaram nos primeiros anos da República, como podemos perceber a partir do Projeto de Registro Torrens, de autoria de Rui Barbosa, Manoel Ferraz Sales e Francisco Glicério Ministros e Secretários do Governo Provisório. A Primeira Constituição Republicana, porém, passou para os governos estaduais a responsabilidade acerca das terras devolutas localizadas nas respectivas regiões. Neste sentido, ao descentralizar a questão das terras devolutas, o Governo Federal permitiu que as oligarquias regionais obstaculizassem qualquer política de discriminação destas terras.

Ili • CONSIDERAÇÕES

FINAIS Nos dias de hoje, o argumento da existência de amplas áreas de terras devolutas para fins de Reforma Agrária revela a ignorância acerca de uma parte importante do processo de constituição da estrutura agrária brasileira vigente. Ao arrepio da lei, fazendeiros e lavradores do século passado invadiram as terras devolutas e as transformaram em parte de seu domínio. Condenar as ações dos Sem Terra com o argumento de que eles estão invadindo terras privadas é desconhecer a história da ocupação territorial do Brasil e legitimar as invasões praticadas pelos fazendeiros de outrora. Em suma, se estamos hoje atentos à consolidação de um conceito de desenvolvimento

humano que é definido "como um processo para ampliação da gama de opções e oportunidades das pessoas", isso deve compreender o reconhecimento da luta dos que se negam a aceitar a estrutura fundiária de nossos dias. Isso deve implicar também em reconhecer que devemos fazer um "acerto de contas com o passado". Não basta alardear que possuímos terras devolutas, é preciso proteger o patrimônio público do país. Não basta reafirmar os direitos sociais do cidadão. Para o homem do campo, assegurar hoje o seu direito à terra implica assegurar o seu direito de conhecer a história da ocupação territorial do Brasil. Pois se a história pouco nos tem ensinado, ela ainda é um combustível importante na construção da legitimidade das ações dos movimentos sociais.

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Proposta 74 PLATAFORMA DE ECONOMIA POPULAR E SOLIDÁRIA A temática da crise do mundo do trabalho exige dos movimentos sociais e dos governos a busca de novos enfoques para a formulação de políticas e ações públicas geradoras de trabalho e renda. O número 74 de Proposta pretende reunir um conjunto de reflexões acerca dos experimentos e formulações em curso que apontam nessa direção, ou seja, para uma Plataforma de Economia Popular e Solidária. Partindo do enfoque do associativismo e do cooperativismo de caráter popular, das políticas de crédito solidário e das políticas locais de emprego e renda, vamos buscar o sentido inovador e experimental dessas formulações. Buscaremos observar os projetos demonstrativos e as políticas ativas capazes de reverterem o quadro social caracterizado por alguns como sendo de "novo dualismo". A reflexão sobre a inserção econômica dos trabalhadores e trabalhadoras do setor autônomo na sua relação com as políticas de capacitação para produção, gerenciamento, comercialização e crédito será relacionada com a tentativa de fortalecimento de um setor de produção de bens e serviços que confira cidadania aos microempreendedores. Na cidade e no campo, o trabalho de redes e fóruns de movimentos sociais, cooperativas e grupos produtores de bens e serviços tem se afirmado como instrumento de disputa redistributiva, que leva em conta o velho tema do subemprego estrutural e os novos mecanismos de exclusão. Temas como salário e renda mínima, mercado local, investimento social, qualificação profissional se interligam com a luta pela criação de estruturas produtivas e economias locais e regionais capazes de apoiar transformações nos mecanismos estruturais do desenvolvimento desigual e combinado. Essa reflexão depende de uma unificação maior desses processos e ações difusos e setorializados. Por isso, Proposta pretende refletir a partir de algumas dessas experiências organizativas, avaliando seus limites e possibilidades. Elaborado em colaboração com o PACS, o próximo número identificará metodologias de capacitação com o enfoque educativo direcionado para os setores excluídos voltadas para as formas de empreeendimentos populares. Vamos considerar ainda o sentido estratégico que emerge de mudanças culturais significativas para um novo modelo de desenvolvimento, que vem se acumulando na direção dos temas da economia popular e solidária, como uma opção de redirecionamento de muitas das atividades de sindicatos, ONGs e governos locais. Numa perspectiva mais abrangente, procuraremos relacionar o conflito e negocição que nascem desde a esfera pública local, e se projetam nacionalmente, com reformas e políticas sociais capazes de comporem as ações de uma mudança que priorize os direitos econômicos e sociais em seu conjunto para as grandes maiorias.

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