Agenda e interlocutores
Plan~o
diretor - limites da participação popular
• Raquel Rolnik* Grazia de Grazia**
Um dos grandes desafios do processo de democratização da gestão urbana é, sem dúvida, democratizar o planejamento. Isto se reveste de importância ainda maior, em se tratando do processo de elaboração do plano diretor, elemento estratégico na definição do marco legal da política urbana no novo contexto constitucional/institucional, aberto a partir da Constituição promulgada em 1988 e das Constituições estaduais e municipais dela decorrentes. Para o campo popular, constituído basicamente por movimentos populares organizados em tomo da reivindicação por moradia e por entidades de representação profissional e de assessoria, ligadas à questão urbana e a estes mesmos movimentos, a revisão constitucional representaria a oportunidade de retomar a luta por uma reforma urbana. A perspectiva da reforma urbana é justamente a de ruptura com a ordem urbana vigente nas cidades do país, através da mudança de regras excludentes de apropriação do território, que geram um espaço urbano injusto do ponto de vista social e degradado do ponto de vista ambiental.
* Arquiteta e urbanista. Diretora de Planejamento da Secretaria de Planejamento da Prefeitura Municipal de São Paulo. **Técnica da Equipe do Rio de Janeiro do Programa Popular Urbano da FASE.
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Entretanto, os textos constitucionais foram fruto de um processo de negociação, de modo que as redações finais estão-longe da ruptura pretendida pelo movimento pela reforma urbana. Um exemplo disto é a própria inserção da obrigatoriedade de produção de planos diretores, em municípios com população superior a 20 mil habitantes, exatamente no único artigo da Constituição Federal
que trata da Polftica Urbana. Assim, se para o campo popular a questão da função social da cidade e da propriedade urbana está no centro da questão urbana, esta posição não é partilhada por aqueles que consideram que um plano diretor, que defina o modelo de organização da cidade do futuro, é a condição necessária e suficiente para garantir o cumprimento da função social da cidade.
A entrada em cena dos planos diretores, no espaço que deveria ser o da reforma urbana na revisão constitucional, de certa maneira definiu a agenda de debates e os interlocutores no processo de elaboração dos planos que está ocorrendo hoje nos municípios. Em primeiro lugar, conferiu um enorme espaço e poder a um segmento - os urbanistas - que teoricamente deteriam o saber-fazer do planejamento urbano. São os entendidos no assunto, que sabem como deve ser feito um plano urbanístico, que dominam o jargão, que possuem a receita das "exigências fundamentais de ordenação da cidade" requeridas pelo plano. Isto significou também uma dificuldade adicional, além das já inerentes à participação popular na gestão da cidade. Mais um documento legal se tomou necessário para que algumas políticas na linha da reforma urbana pudessem ser implementadas pelos estados e municípios. Por exemplo: uma formulação simples e direta, que estava contida na emen~ da popular de reforma urbana apresentada à Constituinte, dizia que os terrenos ociosos (os chamados terrenos de engorda, que são guardados especulati vamente por seus proprietários) não deveriam existir na cidade e aqueles que agissem assim estariam descumprindo a função &acial de propriedade. Ora, com o tratamento dado à matéria pela Constituição, colocando o plano diretor no meio, nem um governo que desejasse executar uma política de combate à especulação imobiliária poderia fazê-lo diretamente. Precisaria, antes, garantir que esta possibilidade estivesse contemplada na Lei Orgânica e depois no plano diretor. E não acaba por aí. O modelo "clássico" de plano diretor, modelo que seguiu a maior parte dos planos produzidos a partir da década de 70 no país, é, na verdade, um documento de princípios, objetivos e diretrizes genérico, que requer uma legislação complementar para poder ser aplicado. Mais: nunca fez parte
proposta n11 54 agosto 1992