Evita, a bonequinha loira made in Argentina
“... está bem claro que é um melodrama, tudo na vida dos miseráveis é melodrama. Um melodrama ordinário, barato e ridículo para os homens medíocres e egoístas. Porque os pobres não inventam a dor. Eles sabem tirar partido da pobreza e se acomodar...” – Eva Perón.
o t n e m e l p u S o Perú
Ônibus da companhia inglesa queimados por nacionalistas - 5/07/1943
d l a i c e p Es
Pelo Comendador Thomas Sastre Copydeskado por Claudio Kuck
A
té os primeiros anos da década de 40, o país se limitava a observar como uma classe dirigente corrupta que tinha as marionetes do poder nas mãos, engordava as vacas e seus bolsos. Para os latifundiários a guerra européia, ou o trânsito dos negócios pelo Atlântico, resultava em sério problema. 17 de Outubro de 1945 e tudo está por se fazer, as oligarquias cultivam seus redutos políticos com representantes fantoches, mas no entanto a Argentina com sua modernidade e ambiente cosmopolita rodeado de parques, palácios afrancesados criaram uma ilusão ótica de reinado latino-americano. Os oligarcas, os novos ricos e a classe média tinham uma leve suspeita da existência de outros tipos de argentinos. Operários de língua afiada e incendiária com pinta de bandoleiros, vagabundos,
cafetões, desempregados, mão-de-obra explorada em fazendas por burgueses de moderada prosperidade. E nesse círculo vicioso se reunirão os fatores que darão uma capotada na história argentina. Seus protagonistas ignoram o que seus olhos verão: assistirão de camarote a fusão mística do proletariado. Quem são os protagonistas? As massas ou seus líderes? O 17 de Outubro de 1945 sela o pacto que os identificará por décadas. As massas para os ouvidos da alta sociedade soavam como se tratasse de outro tipo de espécie. “Viva o macho de Eva Duarte” grita a multidão que inunda a capital. O aludido macho é o coronel Juan Domingo Perón, secretário do Trabalho, ministro da Guerra e vice-presidente da República. Eva Duarte está no centro de um campo de forças, falar do seu comportamento re-
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sultará supérfluo quando se trata do 17 de Outubro, decididamente ela não está em condições de atuar com a coerência que lhe atribuíram seus detratores. A oposição anti-peronista a verá agitando operários em bairros pobres e favelas, carregando-os à Praça de Mayo ao resgate do seu macho. Mas Eva naquele dia em que ainda não era Evita, circula pelas ruas medindo a efervescência popular. Operários tiram seus paletós, sapatos, meias por causa do calor, molham e refrescam seus pés inflamados pela longa caminhada, na fonte da Praça de Mayo Descamisados que vociferam carregando trapos e bandeiras, repicando tambores, um começo de uma revolução suja e estrepitosa, homens alcoolizados urinando nos prédios públicos, hordas de arruaceiros nada merecedores de um sorriso ou uma ironia. Uma deprimente lembrança
Evita é uma mãe para mim disse o Comendador
de mulheres e homens amontoados em frente à Casa do Governo para oferecer seu sangue por Perón. Do balcão da Casa Rosada Perón fala para a multidão, estabelecendo um diálogo
direto com os trabalhadores para fundar a pátria do operário argentino. Ao mesmo tempo se produzirá um grande espetáculo na vida da atriz Eva Duarte, sua trajetória de fábula desde a ‘Ópera-Rock’ a
maior projeção social de ‘Cinderela’. Seu destino será amarrado aos seus carentes ‘ordinários’ (los grasitas), como os chamava em seu peculiar estilo amoroso de agitação política.
Juntos percorrerão todos os domínios do relato, desde o melodrama até a tragédia. Eva Duarte se converterá na grande projeção dos desejos das massas, e ascenderá na fantasia dos argentinos.
Desrespeito aos monumentos públicos
Lavandos os pés na fonte da Praça de Maio
O Signo do Folhetim N
a madrugada de 7 de Maio de 1919 Juana Ibarguren dava à luz a uma filha natural: Eva. Seu pai era Juan Duarte, um homem respeitável, influente na cidade de Chivilcoy, com sonhos de caudilho. Juana, mulher pobre e bonita, Juan estancieiro próspero: uma combinação fatal. Duarte tinha uma família legal e três filhas em sua cidade de origem, além de outros cinco fora do casamento com Juana, o tamanho de sua prole instigará o sentido da responsabilidade em sua amante Juana Ibarguren. Juan Duarte reconheceu seus quatro primeiros filhos do adultério. Alguns dias antes do casamento de Evita as certidões de nascimento dos cinco bastardos foram retocadas, mudando data e lugar. Eva Duarte queria consertar a injustiça de seu pai com seus filhos bastardos. Para a sociedade da época as instituições eram sagradas, Duarte tecnicamente era bígamo. A bigamia informal condena as mulheres com o escárnio social, mais tolerado para os homens. Um amor proibido, a
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bastardia, uma trama de pequenos poderes em povinhos interioranos regidos pelo império da moral machista. A família Ibarguren reunia todos os ingredientes de um folhetim. É incrível como a vida de Eva Duarte é cheia de Juanas e Juans, até a índia que fez seu parto também se chamava Juana. Duarte sustentava sua segunda família em Los Toldos. Ele se referia a prole de Juana como “minha pequena tribo”. Um ano depois do nascimento da quinta filha bastarda ele abandona sua pequena tribo e retorna à sua família legal. Juana entra em luta pela sobrevivência, a matrona começa a costurar em sua máquina a pedal, similar a Singer, que passaria a ter valor na novela familiar. Em janeiro de 1926 Juan Duarte morre num acidente de carro. Juana toma uma decisão drástica em sua vida. Vai para Chivilcoy com os cinco filhos para se fazer valer no velório do marido defunto. Apesar do ressentimento feminino permitiram a entrada de seus filhos naturais, mas não de sua amante.
Imaginemos a infância, o ciclo da máquina de costura, o silêncio da noite rural. A fantasia de uma criança nunca deve ser subestimada, mesmo quando se agiganta uma realidade austera. Eva com oito anos tinha o cabelo escuro e o rosto perfeito, apesar de tê-lo queimado aos quatro com azeite fervendo. Quando a casca da ferida caiu sua pele tinha aperfeiçoado a porcelana original. Pele de Fênix, a beleza de Evita nascida do martírio familiar. Em 1930, Juana com seus cinco filhos se muda para Junin, em busca de uma saída econômica. Dias após se produz o primeiro golpe militar contra um governo democrático e a derrubada do Presidente Hipólito Yrigoyen. Junin é um vilarejo típico de criação de gado destacado pela presença da estrada de ferro. Um trânsito de desconhecidos, uma legião de operários uniformizados que trabalhavam nas oficinas ferroviárias. As mulheres viviam imersas na ordem doméstica, um universo oral sujeito ao rádio e a circulação de fofocas. As disputas do poder chegavam em surdina até essas mulheres, que apenas registravam a política a preço de mercado, excluídas do mundo dos letrados. Davam à fofoca valor de verdade e se confundiam com as disputas políticas e a roupa suja da vida privada. Eva progredia com dificuldade na escola, tropeçando em números, mas suas notas
altas eram em declamação. A matriarca Juana tinha agregado ao seu serviço de costura refeição para hóspedes, os fofoqueiros veriam a sombra de um bordel nos respeitáveis almoços dela. Os analfabetos e os jovens inundavam a sala do cinema, a indústria cinematográfica Charles Pathé era a universidade do povo. Eva aprendeu mais indo ao cinema do que na escola, era naquela penumbra da imensidade de um cine popular, lá vivia de sonhos e ambições. Sonhos que não têm moral nem ética. Eva colecionava revistas de variedades, era capaz de se oferecer para lavar os pratos de toda a família, em troca de uma foto de sua artista favorita: Norma Shearer no papel de Maria Antonieta. Em 1935 Evita termina com dificuldade a escola primária, tem as ferramentas mínimas para abrir espaço na selva de signos do mundo letrado. Seu sonho fará uma passagem para a realidade, no verão os cantores do momento fazem giro pelo interior. Agustín Magaldi, conhecido como o ‘Gardel do Subúrbio’ chega a Junin para apresentar-se no Club Social. Eva se infiltra no camarim dele para suplicar que a leve a Buenos Aires em troca de um ‘favor’ erótico. Eva sobe ao Trem dos Desejos com destino à capital em companhia de Magaldi, vestia um conjuntinho plissado e levava uma mala de cartão.
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Vagou por alguns meses em casas de desconhecidos até encontrar um emprego miserável no teatro argentino. Seu primeiro trabalho em março de 1935 foi o papel de figurante: Uma doméstica na companhia de comédias de José Franco. Seu primeiro texto foi: O Jantar Está na Mesa. A atriz italiana Pierina Dealessi descreve Evita na época como uma figura transparente, magra, cabelos pretos, rosto alongado, muito
frágil de saúde. Era tão magrinha que não se sabia se ela ia ou voltava entre a fome, a miséria e o descuido. Tinha sempre as mãos frias e suadas. Nem ela nem sua mãe exerceram a prostituição como queriam e propagavam seus inimigos cruéis. Mas os testemunhos indicam que ela teve muitos amantes que a protegeram e ajudaram. Durante seu período artístico cada um de-
les foi selecionado segundo seus critérios precisos. Foi amante de Emílio Kartulowicz, um dos maiores editores de revistas de Rádio e cinema por quem se apaixonou. O golpe de estado de 1943, que derrubou Ramon Castillo, provocou uma reviravolta no mundo radiofônico. As emissoras passaram a ser vigiadas e censuradas. O novo administrador, Coronel Aníbal Imbert, mudou os parâmetros da censura. Eva logo se
tornaria sua amante. Foi assim que ela pela primeira vez se aproximou do Poder. A intimidade com o militar a leva ao caminho do êxito, um contrato na rádio como nunca poderia haver sonhado. Como podemos ver foi na rádio, no microfone da LR3, que alimentou sua fantasia: Eva, uma Ema Bovary que sonha com o poder e a era do rádio.
A Primeira Comunhão
Evita e Bernardo Gandulla crack de Boca Juniors em 1940
Agustín Magaldi
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O Dia da Glória
O cabelereiro e secretário particular Julio Alcaráz
Perón e Eva no teatro Colón
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A Pródiga, o filme
15 de Janeiro de 1944 – Um terremoto na província de San Juan sacudiu o país numa tragédia. A ajuda humanitária foi centralizada pelo Ministério do Trabalho sob o comando de Juan Perón. A comunidade de atores se organiza para arrecadar donativos e a atriz Eva Duarte não vacilou e se aproximou do ministro. Perón em suas memórias diz: “Eu olhava e sentia suas palavras me conquistando, estava subjugado pelo valor de sua voz e de seu olhar. Eva era pálida, mas quando falava seu rosto se acendia em chamas. Suas mãos avermelhadas e os dedos entrelaçados eram um conjunto de nervos”. 22 de janeiro no Grande Festival Beneficente realizado no estádio Luna Park: seu dia de glória havia chegado. O coronel Perón vestiu seu imaculado uniforme de gala, sentado na primeira fila com seu amigo Aníbal Imbert, amante da atriz Eva Duarte. Eva rebolava entre as colegas para chamar atenção, mas quando Perón discursou e foi ovacionado pela multidão, ela viu naquele coronel suntuoso o vôo luminoso de sua biografia. No meio do festival Perón se desculpou alegando intenso protocolo de compromissos e partiu com Eva para continuar a festa em seu apartamento.
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Foi nessa primeira noite que assinaram um pacto de poder. Perón colocou de imediato sua influência a serviço da carreira radiofônica da atriz. Ela retribuiu com sua arte recreativa a causa do ministro. Os dois perfis se unem para criar uma das mais fabulosas lendas matrimoniais do Século XX. Eva participou de alguns filmes: ‘A Cavalgada do Circo’, do diretor Mario Soffici, mas em fevereiro de 1945 conseguiu o
mais cobiçado papel cinematográfico como protagonista de ‘A Pródiga’. No 1º de Maio de 1945 as revistas penduradas nas bancas descobrem seu novo visual: cabelos oxigenados, virou loira. No caminho ao estrelato abandona sua quitinete da Rua Callao e passa a desfilar com seu secretário particular e cabeleireiro Julio Alcaráz. O deslumbrante romance com Juan Perón
converte Eva numa ativa propagandista do regime. Ela era apresentada nos cassinos dos militares, assistia negociações políticas. A guerra contra o casal foi formalmente declarada em 9 de Julho de 1944, quando o então vice-presidente a levou para o desfile militar e ao Teatro Colón. Eva se comportou como se o Colón fosse um cinema do interior, um teatro de comé-
O Batismo Político
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m setembro de 1945 Perón era um homem forte no governo, suas declarações e discursos o convertiam num personagem pouco confiável. Os latifundiários, industriais e, também, os Estados Unidos assistiam com desconfiança suas manobras. Apesar de se esforçar para tranqüilizá-los, assegurando que também era proprietário rural. Desconfiava-se quando afirmava que fortalecendo os sindicatos frearia o avanço comunista. Seu porte marcial e gestos de mando faziam as pessoas mais esclarecidas, acreditar estar diante de um Benito Mussolini dos Pampas. Quando adido militar na Itália, acompanhou a criação da Carta do Laboro, de onde copiou o estatuto da CGT. O autor, Mussolini, dava uma ênfase fascista aos estatutos. Em suma, Perón era um político inclassificável. Com a opinião pública dividida, em 19
de setembro de 1945 uma insólita marcha sacode Buenos Aires: a classe média, os estancieiros e intelectuais. A marcha é denominada de ‘Constituição e Liberdade’ e surpreende a cidade com 200 mil manifestantes. Sua bandeira é iluminista na tradição liberal argentina. Entoam a Marseilaise e o Hino Nacional. Acusam Perón de fascista e gritam palavras de ordem: “Livros sim, botas não”. A marcha se estendia entre o Congresso e a Recoleta. 17 de Outubro – A marcha da resposta dos descamisados: das favelas, vilas miseráveis marcham até a Casa do Governo gritando: “Livros não, alpargatas sim”. A política peronista de assistencialismo mostrava sua cara: as massas como poder de manobra. O presidente Farrel demite Perón da VicePresidência e do Ministério, emite por cadeia nacional mensagem a seus partidários, uma proclamação agitadora: “Peço que
respeitem a ordem pública para continuar nossa marcha triunfal, se um dia for necessário lhes pedirei a guerra!” Perón é preso e exilado na ilha Martin Garcia e lá estiveram detidos também os célebres caciques indígenas a mando do general Roca. A ilha era administrada na época pela Igreja Católica, que vendia os indiozinhos aos latifundiários para ter em casa como um suvenir pra seus filhos brincarem. A Confederação Geral dos Trabalhadores faz uma manifestação e greve geral para libertá-lo. É preparado um grande festejo pela vitória. O coronel os premiará com o dia do San Perón, feriado nacional de agradecimento. A cultura nativa é trocada pela política tradicional e explorada como nunca por um caudilho carismático. O peronismo ocupa um espaço inteiro da realidade e produz-se
dia e rebolado. Sua presença no reduto da alta cultura do templo lírico foi entendida como uma provocação, as esposas daqueles generais e os olhares depreciativos da aristocracia rural criaram nela uma sede de vingança. Dois anos mais tarde, na noite de gala de 1946, Eva voltaria ao teatro como Primeira Dama acompanhada de sua prole peronista. Anuncia que o Colón se converteria no Teatro Popular dos Descamisados.
um giro completo na linguagem dos argentinos. Jornais queimados, bibliotecas destruídas, desprezo aos livros e à elite letrada. Os símbolos não têm mais caráter alegórico, a palavra se torna pornografia: é o desafio dos descamisados. No final de 45 já se aceitava a máquina eleitoral, a fórmula: Juan Perón-Hortencio Quijano contra os candidatos das forças anti-peronistas reunidos na União Democrática. Perón é reincorporado ao Exército e promovido a general. Ele reduz a voltagem revolucionária da sua campanha e sai vitorioso. Fez dois terços da Câmara dos Deputados, 28 das 30 cadeiras no Senado e todos os governadores, a exceção de Córdoba. Seu poder pareceria aplastante.
O Giro do Arco-Íris Eva teria sua consagração em sua turnê européia um ano depois da vitória eleitoral. A Dama da Esperança se estenderia de um ao outro lado do oceano como um arco-íris de felicidade. Desde o golpe nacionalista de 1943, a Espanha mantinha excelente relações com Buenos Aires. O problema de Francisco Franco era a escassez de alimentos, Perón teve um gesto ao proporcionar-lhe condições vantajosas. O convidado original era ele, mas não era conveniente vê-lo junto ao ditador Franco, aliado do nazismo até o fim da guerra civil espanhola. Vendo sua presença desfavorável nomeou sua esposa para representá-lo. A visita não foi como o Conto do Mágico de Oz como sugere a ópera Evita, mas as deliciosas festas das ‘Mil e Uma Noites’. O papel de negociadora com os trabalhadores faria de Eva uma experiente política, mas o grande desafio foi internacional. Em 6 de junho de 1947 embarca rumo à Madri. Trezentos mil espanhóis a esperam no aeroporto, foi saudada jubilosamente pelos canhões enferrujados da guerra civil. Os espanhóis tinham um bom motivo com a samaritana ‘Dama do Mundo’, ela carregava o trigo que alimentaria o povo. Sua estadia foi um desfile de vestidos floreados e decotes pecaminosos, Franco lhe concedeu a Grã-Cruz de Isabel, a Católica. Mandou retirar do Palácio do Pardo um
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Discursando em Madrid, Espanha
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antigo gobelino e entregou a ela como presente. Se a Espanha estava empobrecida, a Itália chafurdada na miséria, mesmo assim foi recebida com cálidas boas-vindas. O Papo Pio XII lhe concedeu 20 minutos de audiência, à revelia queria ganhar o título de Marquesa Pontifícia e a distinção da Rosa de Ouro. Mas a Rainha do Proletariado teve que conformar-se com um singelo rosário protocolar como suvenir papal. Eva se retirou para a cidade de Repallo e a Riviera del Fiori. Fez um passeio fugaz por Portugal e partiu para recarregar suas luzes em Paris. Um crédito vantajoso a esperava na França sua assinatura, que permitiria aos franceses provar a carne e o trigo argentinos. Mas a oposição anti-peronista havia lhe preparado uma pequena surpresa. Tinham feito chegar às redações dos jornais e revistas fotos eróticas de sua época de atriz, a que mais chamou a atenção foi ela nua segurando um quadro. Um periódico francês deu em manchete: “Agente do Fascismo”. O problema era que o exílio dos nazistas na Argentina estava contaminando o peronismo. No final da 2ª Guerra Perón acolheu os criminosos nazistas, centenas de técnicos e cientistas do Partido Nacional Socialista. O general valorizava a vinda desses criminosos desocupados, que modernizaram a indústria aeronáutica e a energia nuclear argentinas. No primeiro mandato de Perón altas patentes nazis processadas em Nüremberg chegam amparados ao país. A rota de escape é a Igreja Católica que fornece documentação falsa, autenticada com o aval da Cruz
Condecorada por Franco
Vermelha. Os principais personagens são Mengele, Schwamberger, Eichman, Kutschman, Roschman e o criminoso croata Ante Pavelic, entre outros. Eles ingressaram pelo porto de Buenos Aires, vindos de Gênova, abençoados pelo Vaticano. À curta lista oficial se agregam centenas de funcionários e colaboradores alemães, franceses, belgas, italianos e croatas. Em 13 de agosto, dois meses depois de sua partida, Eva foi à Suíça. Apesar da cordialidade do governo a visita não foi o glamour que esperava. Seu carro oficial foi atacado a pedrada e depois sofreu um atentado com tomates e ovos, que impressionaram o ministro de Relações Exteriores. A viagem à Suíça ficou tingida por rumores sobre depósitos e transferências bancárias de Evita. Documentos acusam a Primeira Dama como testa de ferro dos capitais nazistas, através de suas transações financeiras. A senha e o número da conta Eva entregou ao seu irmão Juancito. O nebuloso suicídio dele um ano após a a morte de sua protetora parecia dar crédito às suspeitas. O Giro do Arco-Íris chega ao seu fim. Os franceses beberam todo seu encanto. As principais casas de moda organizaram desfiles. A Maison Christian Dior fez um manequim com suas medidas, para que seus futuros modelitos não tivessem erros. Deixou suas medidas na Casa Marcel Rochas e adotou o perfume ‘Femme’. Estas frivolidades não faziam com que esquecesse os clochards de Paris de quem se despediu com um vultuoso donativo. Seus vestidos de lamé dourados e sem alça, os largos braceletes de ouro maciço com pedras preciosas marcam sua presença na casa da América Latina. Percorre a Costa Azul e se delicia em Montecarlo. E nas portas do Palácio de Versailles, acompanhada da esposa do presidente Vincent Auriol, conhece o balcão de onde Luiz XVI contemplava o levante da Revolução Francesa: sua fantasia de Maria Antonieta se tornava realidade...
Emancipação das Mulheres
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Modelo exclusivo de Cristian Dior. Perón comentou: "Parecés una gallina"
presidência simbólica de Evita colocara em marcha uma genuína revolução das mulheres, com sua chegada ao campo eleitoral e na vida pública. A própria biografia dela cruzava com os vai-e-vem do futuro papel da mulher e os retrógrados conceitos vigentes. Sua mãe Juana não foi uma mulher emancipada, apenas uma mulher sozinha sem o respaldo econômico de um marido. Sua independência não era produto da educação, mas dos erros de uma moral irregular para a época. Evita era contemporânea das mulheres jovens da 2ª Guerra Mundial. Elas tinham que enfrentar desafios para os quais não estavam preparadas. As argentinas perderam a inocência e saíram debaixo da cama. Nos primeiros dias de fevereiro de 1946, 20 mil mulheres lotam o estádio Luna Park para apoiar o candidato Perón. O evento terá cenas de violência inusitada, as mani-
festantes impedem a entrada dos homens e agridem alguns curiosos, as mais exaltadas levantam suas saias, mostram as calcinhas, outras as genitálias gritando em coro: “Queremos um filho de Perón”! Entoavam uma marchinha que ficou popular: “Nós, as mulheres temos embaixo do avental um coronel bigodudo da guarda nacional”. O general Perón não apareceu no evento, Eva estreou como oradora em seu lugar. Foi vaiada pela tribuna que ainda não a aceitava como sua líder. A polícia dispersou as desaforadas com gás lacrimogêneo. As socialistas deixavam bem claro que não se sentiam representadas pela senhora. Eva Duarte. Em 1946, o sufrágio feminino já era uma conquista segura, em 1947 Evita foi nomeada presidente da Comissão Parlamentar Pró-Sufrágio Feminino. A igreja católica, sempre influente, apoiara Perón na eleição, mas via com receio Evita
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Discursando para as afilhadas mulheres delegadas peronistas
devido ao seu passado promíscuo. Por outra parte, o culto aos pobres e o assistencialismo empregados politicamente, roubavam da igreja sua clientela natural. Ela se esforçou para tranqüilizar a Cúria e uma negociação de conteúdo equilibrado dividiu o espólio: a pobreza. A campanha para o voto feminino se respaldava na legalização do ensino religioso,
orientação católica romana na educação pública. Eva chegou a defender publicamente uma educação sob o signo da cruz. Para ter uma idéia da mobilização das mulheres, ela conquistou para a causa mais de 1 milhão de filiadas e formou 3.600 unidades básicas. A política se converte num furor contagioso. A missão explícita das delegadas do censo era viajar por todo o país
para determinar a quantidade de mulheres peronistas. As imagens mostram ativistas cruzando o altiplano no lombo de mulas, as mulheres aderiam de imediato, retiravam os móveis da sala, colocavam várias cadeiras, uma foto do casal Perón e pronto. A unidade básica já estava inaugurada. Evita, a última heroína da tradição argentina, com sua máquina de propaganda pero-
nista desde o balcão da Casa Rosada e seus discursos incendiários, apoiada por bandas, escudos e estandartes, embaixo de dois retratos gigantes numa encenação ao estilo pontifício, que triplicava as imagens do casal Perón, aproximando-os dos manifestantes: assim construíram sua condição de ícones modernos.
O assalto ao Tesouro Uma Lavanderia Chamada Fundação
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s Fundações e ONGs, com raras exceções, sempre tiveram um critério demagógico e oportunista por seus fundadores: lavar dinheiro e forçar um poder paralelo na política regente. Todos estes fatores fazem com que elas sejam vistas com desconfiança e cautela até os dias de hoje. Na Argentina tudo é amor, amor... amor, constantemente, loucamente, apaixonadamente, nacionalmente. Perón está em estado de amor, suas reações personalizam suas imagens públicas. Os decretos governamentais não têm
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mais assinatura de Eva, passa a ser chamada com o diminutivo Evita, nome de guerra, doméstico, infantil. Em 19 de junho de 1948 é inaugurada a Fundação de Ajuda Social Eva Duarte de Perón. Uma usina de mitos e templos ao culto de sua personalidade. Inspirada na propaganda nazista criada por Joseph Goebbels, inventor da propaganda subliminar, o maquiavélico ministro da Propaganda que conseguiu o apoio popular a Hitler, com suas estratégias demagógicas de Fundações, Centros Culturais e de Lazer das crianças
Bicicleta distribuída na Fundação
abandonadas da Europa ocupada, catequizando-as para se tornarem ponta de lança da Juventude Hitlerista. A Fundação centralizou grandes campanhas de ajuda social. Oficialmente era uma entidade privada, mas empregou recursos e executou programas de vários Ministérios, como do Trabalho, Saúde e Obras Públicas. Passou a ser o termômetro do eleitorado, alguns historiadores se referem como: a peronização do país. A Fundação dirigia altíssimos orçamentos com um critério dispendioso. A maior parte das doações era empresarial e não voluntárias, mas à base de chantagem. Deram muito o que falar. Algumas por decreto e outras extorquidas com publicações no jornal peronista, assediando os doadores para evitar uma publicação sórdida no diário da própria Fundação. Recolhia também uma percentagem do salário dos trabalhadores, dinheiro das loterias e multas de trânsito. Em 1948 iniciava seu primeiro Centro de Saúde, o poder central da Fundação tinha Evita como diretora-geral. Ela chamava carinhosamente de ‘pela-gatos’ o grupo que fazia o serviço burocrático. Os recursos da Fundação deram a Evita uma arrojada atividade filantrópica. A instituição coloca em marcha a circulação do País dos Pobres. Em 1951, ela enviou um trem sanitário ao interior do país, da Patagônia a Tucuman. O comboio chegava a lugares inacessíveis. Tinha um vagão com mesa cirúrgica e outro com laboratório completo, sem faltar o vagão-cinema que exibia propaganda da Fundação e do governo. Através da distância a Madona dos Humildes achacava seus fiéis. Outra ação foi organizar um turismo social e colônias de férias escolares, que permitiram a muitas crianças conhecerem o interior do país. Foi através da Ajuda Social direta que a Fundação despertou um carinho febril. Tratava-se de verdadeiras intervenções de Evita no cotidiano dos argentinos miseráveis e marginais. O procedimento consistia no interessado enviar uma carta com pedido de audiência, as cifras oficiais dizem que recebiam 12 mil por dia. Ela distribuía móveis, brinquedos, máquinas de costura, casas, próteses, dentaduras e cadeiras de rodas para a gente que queria deixar de ser pobre: a Fundação penetra nos lares através dos meios de consumo. Cada descamisado recebia um broche com os perfis alinhados de Evita e seu marido. Tudo transformava-se num merchandising partidário, que os visitantes podiam exibir como suvenires de seus sonhos. O Natal peronista: durante anos o casal mandava uma cesta com cidra e panetone até os confins do território. O bizarro da cesta era uma estátua em gesso dos dois para colocar na mesinha de cabeceira com os dizeres: “Presente da família Perón”. Na catequese da campanha da peronização se introduziu uma reforma educacional com novos livros a partir do primário. “Mamãe me ama e me mima”. Esta frase canônica do primeiro grau foi substituída por: “Evita me mima e Perón me ama”. No livro ‘Caixinha de Música’, destinado a formar pequenos peronistas lemos a parábola de uma criança que contempla as estrelas, a constelação Três Marias: “Uma das estrelas é o general Perón, a do meio é Evita e a terceira o povo argentino”. A imagem da família se converteu numa estranha noção de pátria: Evita no centro aparece como mediadora entre o País e o responsável pelo Estado argentino, integrando os familiares. Era um país de parentes peronistas com quem ela podia dialogar através de seu toque mágico. A Fundação foi um factóide de um dos empreendimentos mais exitosos do governo. Os campeonatos de futebol Evita. Centenas de pequenos clubes do interior enviavam seus jogadores, o vencedor recebia um campo esportivo e fundos para as instalações. A participação incluía um passeio no iate presidencial acompanhado do casal. As partidas começavam com a presença de Evita para dar o ponta-pé inicial. Muitos times tinham nomes patrióticos, uma forma de participação juvenil no novo espírito nacional. Em 1951 ganhou a equipe chamada ‘Evita Morning Star’, que se inspirou para seu nome inglês na origem do esporte bretão. Foi imediatamente traduzido para ‘Evita Estrela da Manhã’, porque se não fizesse isto perderia o troféu. Seria o último campeonato que teria a presença de sua criadora.
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Evita atendendo pedidos de carentes na Fundação
Através da Fundação o governo peronista intensificou a política de assistencialismo social e populismo mais consistente do século XX. Nos anos dourados do peronismo a ‘Nova’ Argentina não foi só uma metáfora, a Fundação tinha aproveitado o período de repentina prosperidade registrada no fim da década de 40. Em 1950 apresentava um capital simbólico: colocou no bolso o grosso do eleitorado do país. Os brinquedos e máquinas de costura eram o carro-chefe da Fundação, milhares de brinquedos, balas e doces eram distribuídos em caminhões. Foram construídos grandes galpões para armazenar todo material. Cada vez que recebia um visitante estrangeiro e personalidades Evita se fazia fotografar com crianças que acarinhava e beijava diante das câmeras. Seus detratores viram esses gestos como uma Fundação pedófila. A prática política se incorporou ao folclore do país. Uma das histórias mais conhecidas conta como Evita beijou uma leprosa. Ao ser advertida por um médico presente sobre o perigo de contágio se limitou a responder: “Vocês não pensaram que o maior consolo que a pobrezinha leva daqui é o beijo que acaba de ganhar”. Mas longe da referência às curas
milagrosas de Jesus, ela estava consciente que aquele beijo consolidava o mito e haveria de circular em infinidades de versões até ingressar na realidade. Uma nota fiscal emitida pela Fundação revoltou os seus críticos. Foi a compra de 5 mil pistolas 9 mm e 1.500 metralhadoras de origem belga. Sua intenção era defender o governo de alguma aventura de anti-peronistas tentarem um levante militar. Interpretou seu gesto como a vontade de armar uma milícia popular para o bem, em defesa do povo. E no golpe de estado de 1955 com o nome de Revolução Libertadora, o novo regime mostrava como prova de roubo ao Tesouro as centenas de suas jóias, pesando 136 quilos: safiras, esmeraldas, diamantes, rubis... Tudo de grifes famosas. Os emblemas e broches peronistas que a Fundação distribuía como simples suvenir foram fundidas e resultaram em 244 lingotes de ouro, alem de 201 de prata. Tudo isso foi exibido publicamente e leiloado no Salão do Automóvel Club Argentino. O maior diamante foi separado para ser incrustado no topo do bastão de mando da Presidência da República.
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Evita e Perón, um só Coração
O dia da renúncia
Perón deu aos trabalhadores instrumentos que eles jamais haviam tido para lutar por seus direitos. Através de uma legislação reacionária movida pela lenda do fascismo. A esquerda tradicional dos anos 30 combatia este movimento popular constituído por uma classe operária nova. Os operários da esquerda o acusavam de serem lumpens. Esses supostos lumpens eram o proletariado de uma Argentina capitalista industrial. Essa classe operária reconheceu Perón como seu único líder. O cancioneiro peronista destacou uma das rimas mais entoadas: ‘Evita e Perón, um só Coração’ atravessou décadas para destacar o componente sentimental da cruzada política. O primeiro sintoma da doença dela aparece no começo de 1950, quando tinha apenas 31 anos. Um desmaio num ato oficial obriga Evita a internar-se. Naquela época o tabu rodeava o exame ginecológico. Em sua afã de mostrar-se respeitada ela se negava a ser examinada. A insistência do médico da Presidência a fez perder o controle emocional e começou a gritar: “A mim ninguém me toca, eu não tenho nada, o que acontece é que todos vocês querem me eliminar, para que não participe mais da política, mas não conseguirão”. Ante a insistência optou por aplicar ao doutor um tremendo bolsaço na cabeça que o deixou nocauteado. A propaganda oficial logo deu a entender em metáforas, que Evita queimava sua saúde por amor aos seus miseráveis descamisados. Em 1951, a CGT pede a Perón que aceite ser reeleito e que Evita fosse sua vicepresidente: “Perón e Evita, a Fórmula da Pátria”. Em 22 de agosto daquele ano um aeroplano escrevia no céu de Buenos Aires “CGT, Perón e Evita”. As massas reunidas na Avenida 9 de Julho levantaram o olhar para apreciar essa bandeira estampada no céu azul profundo. O fato passa a ser conhecido como o ‘cabildo aberto do Justicialismo’, lembrando o 25 de maio de 1808 quando o povo argentino não queria mais ser tutelado pelos espanhóis. Mais de 1 milhão de manifestantes reunidos em frente ao gigantesco palco do Mi-
nistério de Ação Social venceram a resistência do Poder que não queria Eva como vice-presidente. Consciente que a vice-presidência de sua mulher irritaria as Forças Armadas e a Cúria, Perón saiu em cena rodeado de legisladores e dirigentes sindicais, mas sem sua esposa. Ante o clamor do público que a convocava Eva surge das sombras esgotada para dialogar com a multidão. Resiste em aceitar o pedido dos trabalhadores, dizendo que prefere ser Evita para aliviar a dor da pátria do que ser vice. O chefe da CGT, José Espejo, pede aos manifestantes para dar um tempo até o casal considerar a proposta popular. As massas grunhem: “Não, queremos uma resposta agora”. Ela volta ao palco e mostra sua resistência: “Não me façam fazer o que eu nunca quis fazer. Pelo carinho que nos une, pelo amor que compartimos mutuamente, eu peço que para uma decisão na vida desta pobre mulher, me dêem quatro dias pra pensar”. A multidão insiste: “Queremos agora”! O chefe da CGT anuncia que o povo concederá duas horas para o casal decidir. Todos ficaram esperando até que Eva volta a emergir da escuridão para acalmar seus descamisados com um ‘truco’ de oratória. Em 31 de agosto ela emitia mensagem pelo rádio e anunciava sua decisão irrevogável. Entrou para o calendário como ‘O dia da Renúncia’. Apesar das massas terem certeza dos obstáculos obscuros de sua renúncia, na verdade Evita nunca a aceitou, principalmente por ser a primeira eleição em que as mulheres votariam. Mesmo com seu problema de saúde implicaria em desafiar Perón. A oposição não reconhecia a legitimidade dos parlamentares oficiais, políticos improvisados, ignorantes que esmagavam a minoria culta. O diário ‘La Prensa’ sofre intervenção, os oposicionistas conspiravam com as Forças Armadas. Em 28 de setembro de 1951 um levante militar estourava liderado por Benjamin Menendez, mas Perón conseguiu sufocálo em questão de horas com o apoio dos sindicatos e decretou uma greve geral. Naquele dia Evita estava no hospital fazendo uma transfusão de sangue, de onde enviou uma mensagem radiofônica agradecendo o apoio popular: “Peço a Deus que não permita que estes insensatos levantem a mão contra Perón. Porque neste dia sairei com as mulheres do povo, com os descamisados da pátria, morta ou viva, para não deixar em pé nenhum tijolo que não seja peronista. Porque não vamos nos deixar ser esmagados jamais pelas botas da oligarquia, traidora da pátria. Esses vendilhões da pátria que exploram a classe trabalhadora. Saibam estes traidores que nós não estaremos para dizer presente senhor presidente, mas faremos justiça por nossas próprias mãos. Porque violência na mão do povo não é violência, é Justiça!” Em resposta, os salões sociais da burguesia são quebrados e destruídos, o Jockey Club é queimado, igrejas católicas são destruídas e os santos colocados na rua. Os descamisados só aceitavam uma santa, a sua ‘Santa Evita’.
25 de julho de 2008 – O Perú Molhado
Votando na cama do Hospital
O Sangue de Evita U
m câncer útero-vaginal avançado com perigosas ramificações é diagnosticado, o especialista comunicou a Perón. Os oposicionistas começaram a espalhar diante do evidente contato que havia entre os cientistas e médicos nazistas em torno do peronismo, que o vírus cancerígeno poderia ter sido inoculado nela como forma de livrar-se do seu carisma. A Sub-Secretaria de Informação comunica ao País que Evita sofria de uma anemia passageira. O dia 18 de Outubro é dedicado a um feriado especial para homenagear ‘Santa Evita’. Foi dela a primeira imagem que apareceu na inauguração da TV na Argentina. Se o cinema e o rádio retratavam seu apogeu físico e político, a televisão registrava sua dupla queda: a renúncia e uma Evita moribunda. A coincidência da renúncia e a doença lhe dará uma estatura mitológica. Os muros e paredes dos bairros ricos de Buenos Aires amanhecem grafitados com a mensagem “Viva o Câncer”! Já os descamisados organizam por toda Argentina missas para rezar por seu restabelecimento, as classes miseráveis da população se envolveram numa onda de espiritualidade sem precedentes. Em 11 de novembro o país votava. Poucos dias antes da eleição envia outra mensagem radiofônica. Na ocasião escolheu a metáfora do discurso do fantasma: “Eleitores e eleitoras, eu seguirei como sombra, repetindo ao ouvido, na consciência, o nome de Perón, até que depositem na urna seus votos, como uma mensagem de fé e lealdade ao líder do povo, Juan Domingo Perón”. Uma versão argentina fantasmagórica da ‘boca de urna’ brasileira. Era o primeiro sufrágio das mulheres. Evita pediu que levassem
uma urna junto a sua cama no hospital. Depois na rua em frente, mulheres ajoelhadas rezavam e beijavam a urna onde ela depositara seu voto. Segundo seus detratores, seu aspecto dava crédito aos piores rumores, seu corpo exalava uma horrível pestilência que obrigava Perón a cumprimentá-la com uma máscara médica. Os hospitais tiravam secretamente sangue de crianças para aplicar em suas transfusões diárias. Mas Evita não era um vampiro, apenas seu próprio espectro. Enquanto enfrentava os tormentos do câncer acossada por dores lancinantes, seu rosto adquiriu uma expressão fora de órbita. Em 4 de junho de 1952 seu marido faria o juramento de seu novo mandato. Ela insistiu em acompanhar o general. Foi sua última e maior produção cinematográfica. Um cenógrafo construiu um andaime e uma estrutura de gesso com arames escondidos no seu casaco de vison, uma armadura segurando sua cintura a manteria em pé para saudar seus descamisados: Perón em pé numa grande limusine conversível, colocando no centro da cena a esposa moribunda: uma caveira sorridente quase sobrenatural. O Diário Peronista a compara a Jesus Cristo. Evita pesando 33 quilos sem forças nem para sorrir. Era paródia de uma judia num campo de concentração. Crianças rezando pela recuperação da saúde de Evita
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A Imortalidade
Doutor Ara: um Nosferatu inofensivo que contempla sua beleza adormecida em um leito de cetim
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m 18 de julho ela entra em coma de acordo com a história oficial. Um médico foi designado para transmitir ao doutor Pedro Ara, um famoso anatomista espanhol, que o expresso desejo de Evita era ser embalsamada. Exatamente às 22h25m os médicos registram o último sinal de batimento em seu pulso.
Um comunicado oficial informa ao País: “A Chefa Espiritual da Nação acaba de passar para a imortalidade”. Ara começou a tarefa no corpo de sua faraona, passando a noite num embalsamento preliminar. Segundo a palavra dele, o cadáver de Eva Perón era incorruptível. O destacado doutor Pedro Ara era adido cultural na embaixada espanhola em Buenos Aires. Tinha um busto embalsamado de um velho mendigo num pedestal junto a sua licoreira. Evita tinha tomado conhecimento dele quando foram publicadas as fotos da filha de um senador de Córdoba. Ela morreu na adolescência e foi embalsamada por Ara. O senador mantinha a menina num quarto que motivava a
peregrinação de curiosos, que a chamavam de ‘A Bela Adormecida’. Entre outras atividades supervisionava, nada mais nada menos, do que a múmia de Lênin no Kremlin.E também havia conservado o corpo do compositor Manuel de Falla, morto no exílio em Alta Gracia (Córdoba). Ara ordenou que fosse ampliado o segundo andar da CGT, instalou três grandes tinas metálicas, onde submergiu o cadáver alternativamente em fórmulas secretas. Não tirou nenhum órgão, nem abriu nenhuma cavidade no corpo, só praticou duas pequenas incisões superficiais, uma atrás do lóbulo e outra no pé esquerdo. Na realidade esses cortes eram sua assinatura de ‘autor’. Perón visitou o gabinete do embalsamador em duas ocasiões. Numa teve que ser retirado quase desmaiado ao ver sua mulher pen-
durada de cabeça pra baixo e com os braços cruzados, numa viga do teto, procedimento natural para secar o corpo. Ara recheou partes do corpo com parafina pura, a pele foi platinada com cera, dando uma cor amarelada de folha seca. O espanhol cobrou US$ 100 mil pelo trabalho, enquanto isso as emissoras de rádio interrompiam suas programações para comemorar a passagem de Eva para a imortalidade. Ao terminar sua obra faraônica, ela ficou do tamanho de uma menina na idade da puberdade. Reduzida primeiro pelo câncer e logo pelos banhos de formol. Uma vez eternizada seus inimigos naturais seriam: o sol, as traças, as aranhas e outros tipos de insetos que poderiam se alojar na mortalha e na cabeleira.
O Monumento O
Maquete do monumento ao descamisado
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projeto original do governo era colocar o corpo num sarcófago de prata em monumento aos descamisados. Seria o maior do mundo com a figura de um operário peronista, duas vezes maior que a Estátua da Liberdade. Candidato certo a entrar no livro Guinness dos Recordes. Ara propôs ao presidente completar o cenário com outros seis corpos embalsamados: dois fardados como guardas militares presidenciais e quatro descamisados que acompanhariam o cortejo fúnebre de Evita. Os seis corpos estavam na morgue à disposição. Eram indigentes. O preço do embalsamador teria um grande desconto para agradar o governo e o Partido Peronista. O general estudou a proposta até que acabou descartando-a por achar que
‘poderia’ ser de mau gosto. O monumento nunca foi concluído. O Doutor Ara tinha uma relação peculiar com sua paciente-múmia. Uma célebre foto mostra ele de avental branco com os óculos na mão, calmo e grave: um Nosferatu inofensivo que contempla sua beleza adormecida num leito de cetim. Em 29 de julho o Partido Peronista organiza uma procissão de tochas lembrando a hora de sua morte, tudo voltava a ser teatral. Cerimônias coletivas. O Presidente Perón não perdeu a oportunidade de disciplinar a dor, quem não chorasse por tristeza, choraria por decreto. O luto foi oficial e obrigatório. Diariamente eram feitos minutos de silêncio nos locais de trabalho. Em 30 de julho recomeçaram as aulas
escolares que estavam paralisadas, mas o povo seguia submetido à hipnose. O velório público acabou só a 9 de agosto. Durou um recorde de 22 dias. Uma carreta militar com o ataúde foi puxada por cordas. Eram trabalhadores anônimos vestidos com camisas brancas de mangas compridas. À passagem do cortejo centenas de milhares choravam num verdadeiro rio de lágrimas, Evita foi saudada no Congresso, o caixão fechado e partiu pra CGT onde o embalsamador aguardava sua obra. Deveria permanecer até que se construísse o anunciado monumento aos descamisados, que só ficou nos alicerces. Um bom lucro para o comércio de material de construção da época.
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O Golpe Contra a Fauna Peronista E
m 1955 a aviação naval lançou um bombardeio na Praça de Mayo, antecipando o golpe de estado. Três meses depois com o nome irônico de Revolução Libertadora destitui o Presidente Perón, que foge numa canhoneira paraguaia, que estava de prontidão, cedida por seu amigo general Alfredo Stroessner. O ditador vizinho foi regiamente remunerado por sua ajuda. Uma feroz repressão política se coloca em marcha. Os analistas das Forças Armadas chegaram à conclusão que o peronismo tinha toda sua influência devido à propaganda e controle dos meios de comunicação. A palavra Perón é proibida. É demolido o Palácio Unzué, pelo fato dele e Evita terem morado lá. A ditadura instaurou por decreto a inexistência da fauna peronista. Foram fuzilados todos os líderes sindicais e os mais chegados a Perón. A única prova tangível seguia sendo o corpo do delito no segundo andar da CGT. O destino do cadáver era o problema das três Forças Armadas. Os militares temiam que ele fosse idolatrado como símbolo da resistência partidária, ou que poderia ser usado como bandeira de um enfrentamento civil. A Marinha, mais hostil à Evita, simplesmente recomendava incinerá-lo e jogar ao mar, mas algum vestígio de respeito os impedia de destruí-lo. Na noite de 12 de novembro um grupo comandado pelo coronel Carlos Eugênio de Moori Koenig, chefe do Serviço de Informação, seqüestra oficialmente o corpo. O embalsamador estava presente. Evita coberta apenas por um simples lençol: com um sorriso irreverente e nua. Parecia um manequim. Ara não pôde se conter e começou a chorar abraçado ao cadáver. A reação de Moori Koenig: “Sai galego asqueroso, estás apaixonado pelo cadáver. Pára de manusear suas tetas. Degenerado!” Os militares cobriram o corpo e embalaram num esquife. A múmia de Evita foi carregada num caminhão militar da Marinha. De madrugada o ‘cortejo’ saiu a passear, iniciando uma macabra jornada. Foi levada ao Serviço de Inteligência do Exército. Os participantes diretos do seqüestro sofreram catástrofes misteriosas. Uma semana depois aconteceu a morte da esposa do major Eduardo Arandia, com três tiros no coração, estava grávida. O assassinato ocorreu quando o major levou o féretro a sua casa. Transtornado com a ‘boneca loira’ no seu quarto, com sua macabra missão de fiel depositário, o levou a cometer este obscuro episódio. Finalmente, Moori Koenig a conduziu secretamente ao seu gabinete no 4º andar do Serviço de Informação. A embalagem tinha gravada na tampa a legenda ‘equipamento da Rádio Belgrano’, que por ironia utilizava o slogan: “A Voz da Liberdade”. No dia seguinte ele sofreu um atentado a bomba na varanda de sua casa. Achavam que o corpo de Evita estava lá. Sua filha teve seqüelas permanentes devido à explosão. Em fevereiro de 1956, o presidente da Revolução Libertadora, Pedro Eugênio Aramburu, decretou que o corpo fosse sepultado no Cemitério da Chacarita. Moori, que padecia de profunda alteração nervosa, não acatou a ordem presidencial. O problema é que ele mantinha relações sexuais com a múmia, uma eterna lua de mel de necrofilia. O general afastou o coronel de suas funções. Koenig estava enlouquecido e profundamente apaixonado pelo cadáver de Evita, não querendo entregá-lo de jeito nenhum. Três ataúdes idênticos, com réplicas em cera, seriam enviados para a Itália, Bélgica e Alemanha. A intenção era confundir. A dificuldade diplomática obrigou o governo de Aramburu a tomar outras providências. Optou por inventar uma onda de informações, que confundiu a todos e consolidou pistas falsas. Em 1970 surgiu uma esquerda peronista chamada Montoneros. Este grupo revolucionário tinha um objetivo, forçar o regresso de Perón ao país. Seqüestram o ex-presidente Aramburu, responsável pelo fuzilamento dos líderes peronistas e oficializam um comunicado: “A guerrilha informa, o cativo será solto se os restos mortais de Evita aparecerem e voltem à Argentina”. Aramburu indicou aos seus seqüestradores que o corpo dela estava num cemitério italiano, sob a custódia do Vaticano. A verdade é que em 23 de abril de 1957, como mostram os registros, o féretro tinha sido despachado num barco com bandeira italiana. Uma misteriosa mulher as-
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Bombardeio da aviação naval na Casa Rosada e no o centro de Buenos Aires - 1955
sistiu ao seu enterro no cemitério Maggiore de Milão, no lote 41, campo 86, onde se deu sepultura a Evita com o nome de Maria Maggi de Magistris, tendo o Vaticano como testemunha. A Igreja Católica da Argentina providenciara esta farsa de sua rival natural, afinal Evita tinha lhes tirado o monopólio da ‘administração’ da pobreza. Em 4 de setembro de 1971 o corpo é devolvido pelos militares a Perón na sua residência Porta de Ferro, em Madri. Presente ao ato estavam também Isabelita, Lopez Rega e a cúpula peronista. Por expresso pedido do general, o embalsamador Pedro Ara apalpou a cicatriz atrás do lóbulo e reconheceu sua obra: era mesmo a faraona Evita. Sua ‘assinatura’ estava intacta. A restauração do corpo passou aos cuidados de Tellechea, um jovem anatomista argentino. A múmia tinha o nariz afundado pela violência de um soco, um dedo quebrado (o indicador), a vagina e o ânus extropiados, os pés untados com piche asfáltico e um seio cortado por um objeto de fio duplo: sabre ou punhal. Fora estes detalhes a faraona estava em boas condições. Perón voltou a ser eleito presidente em 1973 e morreu a 1º de julho de 1974. À frente do governo ficou sua outra mulher e vice-presidente, Maria Estela Martinez de Perón - uma caricatura de Eva -, que delegou todo seu poder ao amigo, amante e pai-de-santo Lopez Rega, ministro do Bem-Estar Social, consultor em questões de astrologia e bruxaria. O bruxo tomou o poder e o tornou um emaranhado esoté-
rico, desencadeando uma perseguição sistemática aos peronistas de esquerda, com um bando pára-militar chamado Triple A: Aliança Anticomunista Argentina. O corpo de Evita continuou exilado na casa de Perón em Madri, onde tinha como vizinha Ava Gardner, ex-mulher de Frank Sinatra. Lá, o casal Isabelita e Perón nos seus longos anos de exílio, se tornaram amigos íntimos da atriz. A relação entre eles se deteriorou devido às reclamações contra as ruidosas festas da estrela. O problema é que Ava com suas festas de arromba atrapalhava o ritual macabro de magia negra, que Rega realizava no apartamento geminado do general. A cerimônia consistia em colocar Isabelita deitada nua ao lado de Evita. O assoalho era ornamentado por signos esotéricos e rodeado de velas coloridas, enquanto entoavam cantos satânicos. Como vingança das reclamações, Gardner e sua empregada costumavam ir para a varanda e gritar: “Perón, Maricón’ (viado), esculachando a macumba argentina. Duas exiladas compartilhavam a vila espanhola: Ava Gardner de Hollywood – uma das estrelas mais deslumbrantes que já pisou neste planeta – e Evita, aquela que foi sem nunca ter sido. Os montoneros exigiam a repatriação do corpo de Eva, mas Rega e Isabelita retardavam o regresso da múmia. Em 15 de outubro os guerrilheiros seqüestram o cadáver de Aramburu, fuzilado depois do seqüestro, mesmo com todas suas reivindicações terem sido atendidas. Não perdoaram a chacina da Praça de Mayo e o condenaram à morte quatro anos antes.
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De Volta Para o Passado E
m 17 de novembro de 1974 Evita volta a Buenos Aires. O corpo é guardado na residencia oficial de Olivos, junto ao de seu marido, aguardando a construção do ‘Altar da Pátria’, um novo mausoléu que também não foi erguido. Atualmente os restos mortais de Perón se encontram no cemitério plebeu da Chacarita. Ela descansa junto de sua mãe e um do irmãos, no famoso cemitério da Recoleta, bairro nobre da oligarquia, tendo como vizinhos os burgueses que ela odiava e longe dos seus descamisados. Numa câmara blindada em aço com quatro metros de concreto, no segundo subsolo do panteão familiar. Totalmente a salvo de futuros seqüestros. Divinizada pelas massas, apenas um objeto do embalsamador e refém dos seqüestros. Evita foi o corpo mais expressivo que a história argentina produziu. Seu mito acabou superando seu criador: Juan Domingo Perón. Ela ainda permanece no imaginário popular. Mas a bonequinha loira dos argentinos, a Barbie das Multidões, está cada vez mais esquecida. A placa que a lembra às vezes recebe flores. O turismo mórbido internacional é o mais freqüente agora no cemitério.
Evita amarrada a uma estrutura de gesso e arame coberta por um casaco de vison. Uma caveira sorridente quase sobrenatural
O cadáver de Eva e de Perón na Quinta de Olivos aguardando a construção do novo mausoléu, o altar da pátria.
Exclusivo - Thomas Sastre, autor desta pesquisa histórica nasceu em Córdoba (Argentina), reside no Brasil desde 1966. Atuou no teatro na Companhia de Ruth Escobar. Em 1970 trabalhou na TV Globo. Projeta painéis artísticos em vidro e cristal. É supervisor de obras de hotelaria. Escreve artigos em jornais buzianos. É comendador. Nunca foi nem será jornalista, apenas um amante da história universal. Mora na Armação dos Búzios.
Thomas Sastre
Cláudio Kuck
25 de julho de 2008 – O Perú Molhado
Esta pesquisa histórica não seria elaborada sem a ajuda do jornalista Cláudio Kuck, que teve a paciência de corrigir meu portunhól. E a digitou no seu computador porque a informática me deixa meio perdido. Sua paciência e sabedoria deram o tom a esta história ridícula e verdadeira, onde a realidade superou a imaginação.
Para realizar este trabalho foram gastos 42 folhas de papel ofício, duas canetas BIC, cinco garrafas térmicas de café, consumindo mais de 20 dias pesquisa. Duas colheres de azeite de fígado de bacalhau por dia, nove garrafas de vinho tinto argentino, duas chilenas, 64 latas de cerveja, sete doses de uísque. Sem falar nos óculos quebrados e um pequeno acidente: uma mordida do cachorro por pisar em sua pata na escuridão da madrugada enquanto escrevia. Os livros pesquisados foram: Perón y Eva, La Razón de Mi Vida; Memórias del General; Historia del Peronismo; El Mito de Eva Perón; Mañana es San Perón; Eva Sin Mitos; Evita, Imagines de Una Pasión.