AGIR - TODOS CONTRA O CORONAVÍRUS

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FORTALEZA-CE, 22 DE MAIO DE 2020 EDIÇÃO #5

PÓS-PANDEMIA ENTREVISTA DEBORA DINIZ + QUEM JÁ SE CUROU + CENÁRIOS


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AGIR. TODOS CONTRA O CORONAVÍRUS - # 5

EDITORIAL

PERGUNTAS EM ABERTO Este é o quinto caderno de uma série que discutiu o coronavírus em todos os aspectos possíveis até aqui. Possíveis, porque a Covid-19 é uma doença tão nova que as questões em torno dela não se encerraram no Brasil, nem no mundo. Falamos dos cuidados, de novas rotinas, de saúde mental, do cenário mundial e queremos apontar nas páginas a seguir os sopros de esperança. O primeiro deles é a resposta feminista à pandemia. Em entrevista por WhatsApp, a professor Debora Diniz reflete sobre como a crise mundial do coronavirus escancarou e agravou as desigualdades sociais no Brasil, e a desigualdade de gênero é uma delas. Há curados. Vítimas da doença revelam como enfrentaram os sintomas e as incertezas PAULA da Covid-19 e venceram. LIMA JORNALISTA Ainda, refletimos sobre o mundo pós-pandemia. O que áreas como de tecnologia, turismo, mercado de trabalho e consumo irão experimentar a partir de então? As perguntas estão em aberto. Acompanhe tudo sobre coronavirus em: www.agirbrasil.com.br

EXPEDIENTE AGIR TODOS CONTRA O CORONA VÍRUS FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) Presidência: João Dummar Neto | Direção Administrativo-Financeira: André Avelino de Azevedo | Gerência Geral: Marcos Tardin | Gerência Editorial e de Projetos: Raymundo Netto | Análise de Projetos: Emanuela Fernandes AGIR TODOS CONTRA O CORONAVÍRUS Concepção e Coordenação Geral: Cliff Villar | Coordenação Executiva: Ana Cristina Barros | Coordenação Adjunta: Patrícia Alencar | Direção de design: Gil Dicelli | Edição de texto: Paula Lima | Coordenação de Produção: Gilvana Marques | Produção: Valéria Freitas e Rebeca Saboia Coordenação geral do Caderno: Gil Dicelli | Editora-executiva do Caderno: Paula Lima | Editora-adjunta do Caderno: Amanda Araújo | Textos do Caderno: Amanda Araújo, Ana Beatriz Caldas e Letícia do Vale | Projeto gráfico do Caderno: Gil Dicelli | Edição de arte do Caderno: Natasha Ellen


ÍNDICE

ENTREVISTA DEBORA DINIZ (P. 4) ELES ESTÃO CURADOS (P. 8) O QUE ESPERAR DO PÓS-PANDEMIA? (P. 12)


AGIR. TODOS CONTRA O CORONAVÍRUS - # 5

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E N T R E V I S TA

ANTROPÓLOGA ​DEBORA DINIZ COMPARTILHA O QUE ESPERA DO MUNDO PÓS-PANDEMIA E OS VALORES NECESSÁRIOS PARA ISSO AMANDA ARAÚJO amandaaraujo@opovo.com.br

@RELIQUIA.RUM

ARQUIVO PESSOAL

TODOS NÓS PRECISAMOS DE CUIDADOS


E N T R E V I S TA

PERFIL Antropóloga, natural de Maceió, Debora Diniz é professora da Faculdade de Direito da UNB e pesquisadora do Centro para Estudos Latino Americanos e Caribenhos da universidade americana Brown. Venceu, em 2017, prêmio Jabuti de ciências da saúde pelo livro "Zika: do Sertão Nordestino à Ameaça Global". Este ano, recebeu o prêmio Dan David na categoria igualdade de gênero. Vive, desde 2018, fora do Brasil devido às ameaças que sofre
por defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Todos nós precisamos de cuidado”. Papel esse, na esmagadora maioria das vezes, desempenhado por mulheres. A distribuição do cuidado é desigual, e, em defesa de um pós-pandemia no qual valores feministas façam parte do nosso vocabulário comum, a antropóloga Debora Diniz destaca a urgência de fortalecermos

políticas e mecanismos de proteção a meninas e mulheres. Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB), Debora pesquisa os impactos do vírus zika no Brasil e traça um paralelo com o momento atual que vivemos. “Até hoje, mulheres e crianças afetadas pelo zika estão por conta própria”, diz,

em entrevista por WhatsApp ao caderno Agir. O que se espera é que a pandemia do novo coronavírus, que agrava sobremaneira as desigualdades sociais, tenha um desfecho diferente para a população vulnerável, com proteção social, interdependência e cuidado coletivo. Porque “as desigualdade sociais nos afetam a todos”.


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AGIR - Em meio à crise econômica, cultural e biológica, o que podemos esperar do "novo normal"? Debora Diniz - Começo estranhando a expressão "novo normal". As aspas cabem tanto para "novo", quanto para "normal". O que vivíamos como normalidade, e a pandemia nos põe em perspectiva, eram desigualdades naturalizadas na sociedade brasileira. Não há nada garantido para o que eu chamaria, em vez de "novo normal", de vida social depois da pandemia. Tudo depende de como estamos respondendo às crises, seja como cidadãs, sociedade civil ou governos. Minha expectativa - e meu trabalho - é de que não haja uma nova naturalização de desigualdades. O que penso é o seguinte: as pessoas não são expostas à Covid-19 da mesma maneira. Os riscos - de saúde, sociais e econômicos - que enfrentamos são condicionados por vulnerabilidades anteriores, produzidas pelas desigualdades de gênero, raça, classe, deficiência. Mas o desamparo nos une agora, à medida que testemunhamos a centralidade do trabalho de cuidado na vida social. Todos nós precisamos de cuidado e estamos aprendendo sobre os trabalhos essenciais à vida coletiva: dependemos de trabalhadoras da saúde, de professoras, de trabalhadoras domésticas, de cuidadoras de crianças e de idosos, de motoristas de transporte público, de trabalhadores da limpeza, de caixas e atendentes de supermercados e farmácias, de cozinheiras, de vendedores de rua, de entregadores de comida. Assim, o que espero para o mundo

E N T R E V I S TA pós-Covid-19 é um mundo em que os valores feministas façam parte do nosso vocabulário comum. O desamparo e a vulnerabilidade estão no centro dos debates políticos e econômicos atuais, e não haverá saída se não fortalecermos políticas e mecanismos de proteção. Para aqueles que sobreviverem a essa pandemia e a todo o sofrimento e perdas que ela está causando, minha esperança é que não possamos mais evitar falar sobre nossa interdependência. Precisamos falar sobre proteção social, cuidados básicos para trabalhadores de atividades essenciais - que em sua maioria são trabalhadores informais ou precarizados - distribuição justa de trabalho de cuidado, fortalecimento do acesso universal à saúde. AGIR - A senhora teve que deixar o País em 2018 por causa de uma série de ameaças após defender a descriminalização do aborto. Como é viver a pandemia longe do país de origem? Debora - Saí do País com a convicção de que as ameaças não me calariam, e assim tem sido. Desde então, tenho escrito mais em jornais e passei a participar de debates sobre a vida política do País por meio de redes sociais, que eu nunca tive enquanto estava no Brasil. Hoje estou ativa no Twitter e no Instagram, e também por meio dessas plataformas eu acompanho e compartilho histórias sobre os impactos da pandemia sobre a vida das mulheres, especialmente. Na conta de Instagram Women in times of pandemic (Mulheres em tempos de pandemia, https://www.instagram.com/womenintimes/), que lançamos há poucos dias, contamos histórias reais de mulheres da América Latina e do Caribe sobrevivendo

à pandemia. Já falamos de mulheres que são mães de crianças afetadas pelo zika e agora enfrentam também os riscos da Covid-19; falamos de mulheres que caminham por horas para conseguir atendimento em clínicas de saúde reprodutiva para acessar métodos contraceptivos, porque não querem engravidar em meio à crise; falamos de mulheres ajudando outras mulheres a buscar proteção longe de companheiros agressores enquanto a violência cresce em tempos de isolamento social. Vivo a angústia de não poder estar mais perto da minha família, da Universidade de Brasília e seus estudantes, mas tenho feito todo uso que as estratégias digitais me permitem para seguir ativa na defesa de direitos de meninas e mulheres. AGIR - Qual tem sido a atuação da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero durante a pandemia? E no pós-pandemia?

Debora - A Anis (https://www. instagram.com/anisbioetica/), a organização que fundei e que hoje é liderada por jovens doutoras, Luciana Brito e Gabriela Rondon, está empregando suas maiores fortalezas - em pesquisa, comunicação, advocacy, litígio estratégico, engajamento comunitário - para fortalecer uma resposta feminista à pandemia. Ou seja, uma resposta que tenha os direitos de meninas e mulheres e políticas de proteção social ao centro. A Anis atuou, por exemplo, no caso recente do principal serviço de aborto legal do País, que ficou fechado por vários dias por causa da pandemia e só reabriu graças à pressão da sociedade civil, para que não esqueçamos que serviços de saúde sexual e reprodutiva e de enfrentamento à violência são serviços essenciais. AGIR - A pesquisa da senhora sobre os impactos do vírus zika no País lhe rendeu o prêmio Jabuti de ciências da saúde. O que, nos resultados ao longo dos anos, a senhora percebe que se assemelha e se diferencia do impacto agora do coronavírus? Debora - Assim como a pandemia do coronavírus, a epidemia do zika escancarou e agravou as desi-


gualdades sociais no País, e a desigualdade de gênero é uma delas. Mas nós nos esquecemos do zika muito rápido. E por quê? Porque afetava principalmente populações mais vulneráveis - jovens, negras e indígenas, mulheres pobres nordestinas. As desigualdades sociais tornaram essas mulheres invisíveis muito antes do zika mudar suas vidas, e a invisibilidade tornou mais fácil para que governos as abandonassem. Até hoje, mulheres e crianças afetadas pelo zika estão por conta própria, a maioria das mulheres sem ter como trabalhar por serem cuidadoras em tempo integral, às vezes com companheiros que as abandonaram pela dureza da rotina, e lutando para acessar o Benefício de Prestação Continuada ou a pensão vitalícia para crianças com a síndrome congênita do zika em meio ao desmantelamento do sistema de proteção social brasileiro. AGIR - A quarentena aumenta a violência doméstica. Há dados que comprovam isso. O que seria possível fazer para reverter essa realidade? Debora - Políticas públicas, inclusive as emergenciais, têm que ser pensadas desde uma perspectiva de gênero, atenta a como as desigualdades de poder tornam as mulheres mais vulneráveis. Há hoje deputadas feministas lutando para aprovar projetos de lei que pedem que o poder público providencie, em caso de falta de vaga em abrigos, hospedagem em pousadas e hotéis para mulheres vítimas de violência durante a quarentena, e tem que haver formas adaptadas de atendimento às mulheres, seja por telefone ou meios online. Estamos lutando também para que serviços de saúde sexual e reprodutiva sejam considerados essenciais. O já aprovado pagamento da renda básica emergencial em dobro para mulheres que são mães solo é também uma medida importante. AGIR - Na conta @reliquia.rum, a senhora e o artista Ramon Navarro registram memórias

de mulheres mortas pelo coronavírus. Particularmente, teve algum retrato que a comoveu mais? Debora - Não, todas as histórias são muito comoventes. Contamos uma história por dia, e isso é uma miudeza trágica diante das quase 900 mortes diárias por Covid-19 que têm sido registradas no País nos últimos dias. O que sempre nos toca muito, a mim e ao Ramon, são as famílias em luto que nos escrevem todos os dias. Se emocionam com as histórias e querem contar mais sobre as vidas das mães, irmãs, amigas e companheiras que perderam. Um dos muitos efeitos terríveis de uma pandemia assim avassaladora é a dessensibilização ao luto, ao direito de sentir a perda, a falta. Os relicários são nossa forma de tentar resistir ao processo de desaparecimento de biografias, de pessoas reduzidas a números. AGIR - A senhora disse que o mundo pós-pandemia terá valores feministas. Além da descriminalização do aborto que a senhora citou, o que mais esses valores poderão significar, na prática, na vida das mulheres? Debora - Para mulheres e meninas, lidar com essa crise de saúde pública significa não apenas o risco de ser afetada por uma nova doença, mas também enfrentar outros problemas de saúde decorrentes da exacerbada desigualdade de gênero. Partindo daí, levar a sério os valores feministas de proteção social, interdependência e cuidado coletivo significa, por exemplo, rever a distribuição desigual de trabalho doméstico e de cuidados, com investimento em creches e incentivos à participação igualitária de homens no cuidado das famílias com crianças, idosos, pessoas com deficiência, doentes. É preciso garantir a inclusão de serviços de saúde sexual e reprodutiva dentre aqueles considerados serviços essenciais e básicos em um cenário de acesso universal à saúde, para que meninas e mulheres não sejam

Debora e o artista plástico Ramon Navarro contam histórias de mulheres vítimas de Covid-19 de forma poética e anônima na conta do Instagram @reliquia.rum

forçadas a enfrentar gestações indesejadas, abortos inseguros, falta de cuidados pré e pós-natais, violência obstétrica. Também é necessário criar sistemas de seguridade social que protejam trabalhadores informais, especialmente em casos de adoecimento e perda de renda; na América Latina e Caribe, 59% dos trabalhadores informais são mulheres. E isso seria, é claro, apenas o começo. AGIR - O que a senhora acredita que seja um caminho para enfrentar esta pandemia, sem surtar? Debora - Poderia mencionar duas coisas. A primeira é renovar nosso compromisso com a ciência, com debates públicos responsáveis baseados em evidências. A pandemia nos mostra todos os dias efeitos concretos e trágicos da disseminação de notícias falsas, teorias conspiratórias e curas milagrosas que afastam pessoas

dos cuidados básicos de higiene e isolamento social. A segunda é reconhecer nossos privilégios. Quem pode realmente trabalhar de casa, com cuidados adequados, e seguir à risca o isolamento social sem correr risco de passar fome é uma minoria da população global. Isso tem que nos mobilizar para pensar seriamente o mundo que queremos. Esta minoria não pode viver isolada, e as desigualdade sociais nos afetam a todos.


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ELES ESTÃO

CURA DOS HISTÓRIAS DE QUEM ENFRENTOU A COVID-19 E APESAR DOS MEDOS E SINTOMAS VENCEU A DOENÇA LETÍCIA DO VALE

leticiadovale@opovodigital.com


Á J , A R O G “A OU EM EST

” A S A C

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A M R A P O H L O “ U O J E V E S Á TR RE”

G A L MI

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VERA LÚCIA LIMA 51 ANOS MONITORA DE ALIMENTOS

LEONARDO ÂNGELO DA COSTA 36 ANOS FOTÓGRAFO

Mesmo respeitando a quarentena e saindo só para o essencial, comecei a sentir os sintomas da Covid-19 no final de março. Sentia dor nas articulações, o corpo mole, um estado febril, indisposição e perdi o olfato e o paladar. Meu filho, de 24 anos, sentiu febre, falta de ar, dor no peito persistente e também ficou sem paladar e olfato. Quando fomos ao hospital fazer o teste, só deixaram que eu fizesse. Sendo hipertensa, pré-diabética e sobrevivente de um câncer de mama, fui considerada grupo de risco, e, mesmo com sintomas leves, acharam melhor eu fazer o teste. Já meu filho, com sintomas mais graves, mas jovem e saudável, não pôde fazer o teste, já que era mais provável que ele se recuperasse bem e com facilidade da doença. As recomendações foram ficar em casa, em repouso. O resultado do exame, positivo, só saiu 10 dias depois. Ligaram para mim da Secretaria de Saúde e disseram que, pelo tempo e pela minha falta de sintomas no momento, eu já deveria estar curada. Eu não imaginava que fosse Covid e tinha medo, mas, como quando o resultado saiu eu já estava bem, foi tranquilo para mim. Já a forte dor no peito do meu filho, seu último sintoma, permaneceu por mais uns 10 dias. Hoje, olho para trás e vejo um milagre, pois depois de sobreviver a um câncer, também consegui passar por isso. No começo, tínhamos poucas informações, mas agora o problema já se estabeleceu e muitas pessoas estão morrendo. Continuo em casa, vendo a vida pela janela.

Comecei a sentir os sintomas cerca de quatro semanas atrás. Moro com algumas pessoas, e uma delas precisou continuar trabalhando fora. Primeiro veio a tosse, a falta de ar e a coriza. Depois, perdi o paladar e o olfato, comecei a sentir dores no corpo e tive febre alta. Com o passar dos dias, veio o cansaço e a dificuldade de respirar. Sem conseguir dormir direito, fui ao hospital cerca de oito dias depois que os primeiros sintomas começaram. Tinha uma esperança de ser só uma virose, mas quando cheguei lá, fiz um raio X e recebi uma requisição para marcar o teste. Foi muito difícil conseguir marcar o teste, demoravam para me responder, e eu só consegui fazer uma semana depois. Quando cheguei ao hospital para fazer o teste, me internaram imediatamente. Sou diabético e a situação já estava crítica. O resultado positivo para Covid-19 só veio quando eu já estava internado. Respirava muito mal, com ajuda de um cateter de oxigênio, e ficava sem saber se a próxima respiração viria. Tinha uma tosse horrível, que deixa você sem ar, e você fica pensando se vai morrer ou não. Falava com a minha família o tempo todo por mensagens. Não sabia se ia vê-los de novo. Após cerca de três ou quatro dias de internação, consegui dormir pela primeira vez, e os sintomas foram aliviando. Começaram as sessões de fisioterapia para recuperar a capacidade respiratória. Fui me alegrando, vendo que as sessões me faziam evoluir. Assim que melhorei, já me mandaram para casa, talvez por conta da alta demanda de leitos. Foram nove dias no hospital e cerca de 16 a 18 ao todo me sentindo doente. Agora, já estou em casa e livre dos sintomas.


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R E D O P I O F O I V Í L A R O “MEU MAI AGEM PARA A S N E M R E A D U Q MAN O D N E Z I D LIA O Í D M N I A F T N A MINH O ESTAVA SE DA” A N NÃ S I MA

3 MARINA MONTENEGRO 21 ANOS ESTUDANTE Contraí a Covid-19, provavelmente, durante a viagem da França para o Brasil. Estava em um intercâmbio no país, mas, devido à situação, decidi voltar para o Rio de Janeiro e ficar em quarentena com meu namorado. Cheguei ao Brasil no dia 13 de abril, uma segunda-feira. Apesar de ter ficado totalmente em quarentena na França e ter tomado todos os cuidados possíveis durante a viagem, comecei a apresentar os sintomas no sábado, 18: amidalite e tosse seca. Dois dias depois, com falta de ar, fui ao hospital, mas os indícios não eram graves e pude voltar para casa. Apesar de apresentar certa melhora, na sexta-feira a tosse e a falta de ar voltaram muito piores. Fui ao médico, e, como a tomografi a já tinha dado o indicativo de Covid-19, não me foi recomendado fazer o teste. Os sinais não eram graves, e a recomendação foi ficar em casa, em repouso. Mesmo não precisando ser internada, lidar com os sintomas foi horrível. A dor no peito era como se alguém estivesse pisando em mim o dia inteiro. Não conseguia me concentrar em nada, então passava o dia tentando dormir, para que a dor aliviasse. Também não conseguia conversar por muito tempo, por causa da falta de ar. Tomar banho e andar até a cozinha era difícil. Era muito estressante se sentir inútil. Meu namorado, além de cuidar de mim, tinha que trabalhar home office e cuidar da casa. A pressão psicológica de viver uma pandemia já é muito grande, mas viver com a doença é assustador. Passei cerca de uma semana e meia com os sintomas. Meu maior alívio foi poder mandar mensagem para a minha família dizendo que não estava sentindo mais nada. A outra grande conquista foi conseguir voltar a fazer atividades simples, como cozinhar e lavar a louça. Mesmo com um histórico de problemas que já tive ao longo da vida, como infecção e derrame pulmonar, quatro pneumonias e febre reumática, não tive medo de piorar, pois confiei no médico e no diagnóstico de que era um quadro leve. Os dias ruins nunca eram piores que os anteriores.


L, I C Í F I D I O F “ MAS A VIDA DO O BRASILEIR É ASSIM, DE LUTA”

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AGRIPINO MENDES 53 ANOS FARMACÊUTICO

ANTÔNIA VANDA MARTINS 58 ANOS DONA DE CASA

Por trabalhar na área de saúde, tive que continuar saindo durante a quarentena. Comecei a sentir os sintomas no dia 17 de abril, uma febre leve e uma tosse, inicialmente com secreção e depois seca. Fui ao médico, fiz uma tomografia e recebi atestado por 14 dias para ficar em casa. Existia a suspeita de Covid-19, mas a situação era estável. Alguns dias depois, comecei a sentir falta de ar. Ao voltar para o hospital, o exame mostrou que a lesão no meu pulmão tinha se agravado. Como sou diabético e hipertenso e apresentei uma evolução grande da doença em pouco tempo, fui internado. Comecei a tomar os medicamentos, e meu corpo teve uma boa resposta. Foram quatro dias no hospital. Antes de ser internado, minha preocupação era ter leito no hospital, e, quando eu cheguei lá, realmente não tinha. Fui atendido na emergência inicialmente e só depois transferido para o local adequado. No dia 4 de maio, recebi alta, mas continuei o tratamento em casa. Acredito que em condições normais os médicos teriam me mantido mais tempo no hospital, mas como eu estava bem eles se sentiram seguros para liberar o leito. Fiz o teste assim que fui internado, mas o resultado, positivo, só saiu cerca de uma semana depois que eu já estava em casa. Já voltei à rotina normal de trabalho. Mesmo a gente se cuidando, a maioria dos meus colegas de trabalho pegaram o vírus, felizmente, em geral, com sintomas leves.

Desde o começo do decreto, estou respeitando a quarentena e saindo só quando essencial. Comecei a sentir os primeiros sintomas no dia 21 de abril. Eram espirros e dor na cabeça e nas costas. Comecei a piorar no dia 23, com muita dor de cabeça, nos olhos, febre, falta de olfato e paladar. Fui ao médico e depois de três horas esperando ser atendida, disseram que era só uma sinusite. No dia seguinte, amanheci pior: as dores e a falta de ar tinham aumentado. Depois de conseguir me consultar com um médico em um posto, ele me passou um antiviral e um encaminhamento para fazer o teste. Fui na UPA de madrugada, horário em que estava mais vago, mas só consegui fazer o teste às 9h. Não sentia vontade de comer nem de beber. Fiz o exame no dia 28, mas o resultado só saiu no dia 14 deste mês. Felizmente, já estou melhor, me alimentando, e voltei a fazer as atividades de casa. Tinha medo da doença por ser diabética, hipertensa e ter sobrepeso. Meus dois filhos tiveram sintomas, mas foram leves. Foi difícil, mas a vida do brasileiro é assim, de luta.

À I E T L O “JÁ V ” L A M R O N A N I T RO


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O QUE ESPERAR DO PÓSPANDEMIA? O MUNDO AINDA NÃO TEM AS RESPOSTAS, MAS JÁ HÁ SINALIZAÇÕES DOS CAMINHOS QUE NÃO SERÃO OS MESMOS QUE NOS TROUXERAM ATÉ AQUI ANA BEATRIZ CALDAS beatriz.caldas@opovo.com.br


MUDANÇA DE HÁBITOS

Ainda é cedo para prever como o mundo sairá da maior crise sanitária dos dias atuais, visto que muitos países seguem na luta contra altos índices de casos e mortes pelo novo coronavírus. No entanto, já é possível afirmar que, assim como aconteceu em outros marcos históricos, nada será como antes após a Covid-19, doença que encerra oficialmente o século XX e modifica tudo o que considerávamos normal. O que devem esperar os principais segmentos afetados pela crise – e como está sendo projetado o retorno à “normalidade” no Brasil?

Assim como os atentados de 11 de setembro mudaram a história da aviação mundial, a pandemia de Covid-19 deve modificar diversos hábitos em relação à saúde, especialmente os que estão diretamente relacionados à prevenção de doenças. Segundo a virologista Maria Fátima da Silva Teixeira, que integra o grupo de enfrentamento ao novo coronavírus na Universidade Estadual do Ceará (Uece), a mudança mais radical esperada é a manutenção de práticas que se tornaram obrigatórias para evitar o vírus, como lavar as mãos com frequência e usar máscara quando doente. "As pessoas foram obrigadas a ter um cotidiano diferente, com uma série de medidas que já eram recomendadas, mas não eram seguidas. A população não tinha nenhum desses hábitos e agora aprendeu a lavar as mãos da forma correta, a desinfectar corretamente diversos locais e objetos, além de evitar aglomerações. Com certeza haverá uma mudança de comportamento no cuidado com o outro e com o próprio planeta", conclui a professora. Profissionais e pesquisadores da saúde também têm a esperança de que a etiqueta respiratória, pouco difundida no Brasil, se torne mais comum mesmo em casos de doenças mais leves. Para Magda Moura de Almeida, doutora em Ciências Médicas e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), isso deve ocasionar mudanças na forma como as pessoas tratam esses problemas de saúde, que não costumam ser levados a sério. “A gente via muito uma cultura de ir trabalhar de qualquer jeito, mesmo doente, por se tratar de algo mais brando. Esperamos que as pessoas mantenham a percepção de que sair de casa doente é um problema, porque você se torna uma fonte de contaminação, e que se for necessário sair, é preciso usar máscara para proteção de todos”, ressalta. Outras tendências apresentadas por profissionais da saúde são o uso da telemedicina, temporariamente permitido para evitar o contágio da Covid-19, e uma reviravolta nos movimentos anticiência. “A pandemia está mostrando que é possível se utilizar de teleconsultas em casos de baixa complexidade, algo que já existe em outros países. Além disso, acredito que o discurso anticiência irá enfraquecer, pois quando as pessoas adoecem ou têm medo de adoecer, elas voltam a procurar vacinas e legitimar cientistas e profissionais da saúde. Isso precisa perdurar”, completa Magda.


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NOVAS FORMAS DE CONSUMO Com a necessidade da aplicação de medidas de distanciamento social, a forma de consumir mudou. Compras online ou por delivery, que já eram tendência, se tornaram a única forma de consumo possível em diversos lugares ao redor do globo, e manifestações culturais se tornaram digitais através de lives, exposições virtuais e outras iniciativas. Para Carlos Bittencourt, professor do Centro de Comunicação e Gestão da Universidade de Fortaleza (Unifor), o consumo de conteúdo cultural e educativo através da internet, especialmente no caso das lives/shows online e de cursos em formato de educação a distância, é algo que se manterá forte mesmo após a crise. “No entanto, em relação ao poder de compra, haverá um acirramento nas diferenças de classe, causado pelo forte impacto econômico da Covid-19. Como vai ser a entrada de classes menos favorecidas em um shopping, por exemplo? Nosso País tem disparidades sociais muito grandes, e vivenciaremos uma crise ainda maior nesse sentido”, pontua. Empresas e profissionais autônomos também terão que se reinventar. “Temos visto transformações que podem ter chegado para ficar: lojas de roupas com consultoria a distância, fotógrafos trabalhando por meio de plataformas de vídeo. Além disso, os profissionais de marketing ou que trabalham com influência precisarão lidar com um público mais exigente e colocar o consumidor como centro de maneira humanizada desde agora. As marcas que se portarem dessa maneira sairão na frente no retorno”, conclui.

TURISMO Outra tendência em relação às formas de consumo que vinha se mostrando crescente antes do coronavírus e que deve ser reafirmada é a priorização do “ser” ao invés do “ter”. Essa projeção, conectada aos novos hábitos de simplicidade e consumo mais consciente reforçados pela pandemia, é um dos pontos que deve favorecer o turismo - especialmente o interno.

Segundo Murilo Pascoal, CEO do Beach Park e presidente do Sistema Integrado de Parques e Atrações Turísticas (Sindepat), há uma expectativa da categoria de que as pessoas permaneçam investindo no turismo no pós-pandemia para visitar familiares, amigos e se divertir. Com a alta nas moedas internacionais, boa parte dos 19 bilhões investidos por brasileiros em viagens ao exterior devem ser convertidos em viagens pelo Brasil, especialmente em destinos com atrações ligadas à natureza, como o litoral. “Nos próximos 12 ou 18 meses, o dinheiro investido no turismo pode ser muito pouco, mas deve ficar no Brasil, o que é uma boa notícia. Em Fortaleza, especificamente, já vivemos bem sem ‘depender’ do turista internacional, que deve demorar a voltar, então a diferença não deve ser tão grande. Pesquisas indicam que as pessoas estão priorizando praias na hora de pensar no primeiro destino após a pandemia, o que também deve afetar positivamente o Nordeste”, explica Pascoal. Para a retomada, no entanto, já estão sendo estudadas novas formas seguras para abertura de atrações turísticas, que operarão inicialmente em capacidade reduzida. Protocolos utilizados em países que já experienciam o retorno às atividades, como a China, devem ser adotados no Brasil, como o aumento da desinfecção e a medição de temperatura. “Também estamos investindo em soluções tecnológicas para reduzir o contato, como a utilização de transações virtuais para compra de ingressos e a digitalização de cardápios”, ressalta.

MUNDO DO TRABALHO Alguns dos primeiros setores que precisaram construir um "novo normal" estão ligados ao mundo do trabalho. Profissionais que trabalham com tecnologia da informação, recursos humanos e gestão enfrentaram, já no início da pandemia, a necessidade de adaptar a realidade a um mundo em crise - e muitas das medidas tomadas como temporárias podem ter chegado para ficar.


De acordo com Cláudio Moreira, supervisor do CIEE em Fortaleza, a pandemia antecipou situações de mercado que devem se fortificar após a crise, como home office. "Alguns setores absorverão muito o home office a partir de estruturas tecnológicas, especialmente em áreas de atendimento ao cliente, comercial e administrativo. Muitas empresas podem perceber que nem sempre há necessidade de possuir uma estrutura física", explica. As relações de trabalho, segundo Cláudio, também devem ser modificadas. "Exigir produtividade e resultados vai ser mais importante do que bater ponto. O home office veio para mostrar que o ensino a distância é possível, que não é preciso viajar milhares de quilômetros para reuniões presenciais e que a estruturação tecnológica é essencial para uma empresa", pontua. Novos cargos - e perfis profissionais - também devem ser esperados. Os profissionais deverão demonstrar ainda mais domínio em competências como autogestão, resiliência e organização. "Restará a quem sobreviver nesta crise aprender com o que ela trouxe. Não poderemos fazer do mesmo jeito de antes. Por sorte, hoje temos todas as ferramentas para ajudar a superá-la", lembra.

TECNOLOGIA Com a ampliação de estudos e cargos profissionais em regime remoto, praticamente todos os segmentos precisaram investir em soluções tecnológicas, de pequenos empreendedores nas redes sociais a grandes empresas que precisaram estabelecer servidores e conexões para o home office. Por isso, para Denis Viríssimo, coordenador de Serviços de Tecnologia da Informação do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), a pandemia foi o maior motivador para haver uma transformação tecnológica nas empresas - e isso mudará a forma como a tecnologia será produzida e encarada pelas empresas daqui pra frente. "Haverá a necessidade de plataformas únicas que possam reunir atividades como troca de mensagens, realização de reuniões virtuais e compartilhamento de arquivos e planilhas, por exemplo, para facilitar o trabalho remoto", afirma. O uso de automatização, através de softwares como robôs, deve ser utilizado cada vez mais não apenas para substituir as pessoas, mas para colocá-las em atividades mais complexas e produtivas. "Esperamos uma expansão nessas ferramentas, que já estavam sendo utilizadas, ainda que já seja possível prever que haverá diminuição de investimento no setor de TI", comenta Denis. A discussão sobre proteção de dados, com o possível adiamento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entraria em vigor em agosto deste ano, também deve se acirrar nos próximos anos. "Neste momento, há muitos serviços que coletam dados sendo utilizados para controlar a pandemia, e a própria LGPD prevê autorização para usos em saúde pública. Porém, não sabemos até que ponto o uso está sendo feito, então a população ainda se encontra um pouco fragilizada nesse sentido", lembra o coordenador.

HIERARQUIA GLOBAL Assim como nos períodos pósguerra, a pandemia também deve ocasionar rupturas importantes na organização política e socioeconômica dos países, e mesmo os que possuem menos casos e mortes por Covid-19 sofrerão o impacto da doença. Para Emmanuel Furtado Filho, doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), o pós-pandemia deve ocasionar uma transformação completa nos modelos e configurações de vida, a níveis individual, institucional e global. Essa reconfiguração será necessária porque a crise no multilateralismo, ou seja, na forma como países trabalham em conjunto quando necessário, já estava em curso e se agravou com a chegada do novo coronavírus. “Essa crise mostra o grau de profundidade do conflito entre EUA e a China e o potencial de danos que ele pode gerar à segurança internacional. Ela também acirra os problemas de cada país; no Brasil, o vírus escancara os efeitos sociais da desigualdade e nosso déficit de educação, visto que o problema das fake news e o agravamento interno da pandemia só foram possíveis devido a uma falta de senso crítico e educação de base”, explica. A nível global, a crise também pode fragilizar alguns pressupostos ideológicos da globalização, como as ideias neoliberais de diminuição do estado e de privatização, que devem ser revistas após o fim desse período. A disputa pela narrativa pós-pandemia também deve ser uma pauta no futuro. “Podemos enfrentar pelo menos três narrativas após a pandemia: a populista, que pode preconizar um grande controle de fronteiras; a de autoritarismo digital, em um momento delicado em que ainda não há legislação implantada para proteção de dados do cidadão; ou uma narrativa democrática, em que há dúvidas e conflitos em debate. Essa é a mais difícil de construir”, completa Furtado Filho.



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