Villa de Nossa Senhora da Assunção (abaixo) em 1730. Perspectiva do forte com a bandeira da coroa portuguesa, a igreja, a casa de Câmara e o pelourinho.
o Sertão desterrado do Ceará colonial (17521802*), a Inquisição portuguesa também vigiou consciências. Alimentou a alcovitagem da vida alheia, perseguiu bígamos, falsos profetas, libertinos, blasfemadores, serviu de trampolim social para famílias dos dedo-duros e foi responsável por assassinato de gente daqui nos cárceres em Lisboa ou nas galés lusitanas de cruzar mares. Aqui, não existiram os espetáculos mórbidos dos autos-de-fé nem se espalhou o odor da fumaça das fogueiras de expiar bruxas. Como aconteceu no largo da Igreja de São Domingos e trilhas das ribeiras do Tejo, em Lisboa. Mas muita gente teve o nome queimado publicamente e estigmatizado, por gerações. Os repórteres Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio viajaram a Portugal e, na Torre do Tombo, o arquivo nacional português e fonte de
O projeto gráfico da trilogia, criado pelo editor de Arte, Gil Dicelli, é inspirado nos azulejos portugueses, representação artística que marcou o período. A tipografia dos títulos é a mesma usada no século XVI.
boa parte da história de suas ex-colônias, investigaram os porões do Santo Ofício no Ceará e as relações com as perseguições na capitania de Pernambuco. Na investigação jornalística, da qual participaram também os repórteres Luiz Henrique Campos e Ana Mary C. Cavalcante, a descoberta de processos inéditos relacionados ao Ceará. Entre as narrativas de perseguição, a história de Francisca Rodrigues de Sá, da serra da Meruoca, até agora como a única mulher no rol dos amaldiçoados pela igreja no Ceará. Dos 19 processos, 11 foram descobertos pelos repórteres e não constam, até aqui, em pesquisa acadêmica ou publicação jornalística. Pela primeira vez serão divulgados, com exclusividade, por um jornal. Ainda é raso o conhecimento sobre o tema por aqui. Há escritos do Barão de Studart, um artigo do historiador
baiano Luiz Mott, a tese de doutoramento (livro) do professor Otaviano Jr. e alguns livros índices sobre a formação judaica no Nordeste, produzidos pelo pesquisador Cândido Pinheiro. Mesmo assim, há pouca literatura sobre a ação do Santo Ofício num Ceará pobre, pertencente à capitania de Pernambuco, que a coroa portuguesa custou a se interessar e a ocupar. Nas 12 páginas que se seguem, e em mais dois cadernos que virão, O POVO vai tirar do silêncio o episódio que marcou o destino dos caçados pela Inquisição no Sertão cearense. Uma teia do moralismo e intolerância onde caíram índios, escravos, viúvas, comerciantes, cristãos velhos... No ano que marca a passagem de quase dois séculos (189 anos) do fim da Inquisição lusitana em suas colônias (1536-1821) e no dia que marca os 474 anos da instalação da Inquisição em Portugal (23 de maio de 1536), O POVO convida o leitor a lançar
um olhar sobre essa faceta violenta da formação cotidiana do Nordeste brasileiro. Forjada entre a vida privada e pública dos que aqui habitaram ou se refugiaram no tempo do Brasil Colônia. * 1752 é o ano da primeira sentença dos 19 condenados pelo Santo Ofício no Ceará. O bígamo Manuel Fragoso de Albuquerque, do Cariri Novo. E 1802, o ano da última condenação aqui. Francisco Luís de Mariz Sarmento, da Vila de Fortaleza, por libertinagem e blasfêmias.
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Inquisição – No rastro dos amaldiçoados Diretor Geral de Jornalismo: Arlen Medina Néri; Diretora de Redação: Fátima Sudário; Editor-Chefe: Erick Guimarães; Edição: Fátima Sudário, Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio; Concepção Gráfica: Gil Dicelli; Fotomontagens: Guabiras; Infográficos: Pedro Turano; Gerenciamento de Imagens: Alcides Freire; Edição de Imagens: Demitri Túlio e Cláudio Ribeiro.
Este edição histórica é parte de uma trilogia do O POVO sobre a Inquisição no Nordeste. O segundo caderno será publicado em junho e vai trazer a história dos descendentes de judeus condenados – cristãos novos – pelo Santo Ofício e desterrados para Pernambuco, Paraíba e Ceará.
Conteúdo extra www.opovo.com.br Leia a íntegra da entrevista com o pesquisador Antonio Otaviano Vieira Jr Empresa Jornalística O POVO S/A – Av. Aguanambi, 282, Joaquim Távora, 3255 6000.
O levantamento das informações para os três cadernos sobre a presença da Inquisição no Ceará incluiu viagens a Lisboa e incursões na documentação da Torre do Torre do Tombo, Arquivo Nacional de Portugal, entrevistas com padre Bráulio Reis, prior da igreja de São Domingos, e roteiros nos locais por onde atuou o Tribunal do Santo Ofício na capital lusitana. Além de Lisboa, os re-
pórteres percorreram comunidades descendentes de cristãos novos corridos de Portugal, que se instalaram no sertão do Seridó no Rio Grande do Norte e na Paraíba. No Ceará, as andanças se deram pelos municípios de Aracati, Icó, Tauá, Quixeramobim, Sobral e Viçosa. Parte da pesquisa também contou com a orientação do pesquisador A. Otaviano Vieira Júnior, professor doutor
do Departamento de História da Universidade Federal do Pará (UFPA). Além dos arquivos disponíveis da Torre do Tombo, em Lisboa, e na internet, O POVO consultou também documentação do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, escritos de Capistrano de Abreu, António Baião, Anita Novinsky e índices do banco de Dados da Fundação Ana Lima.
Denúncias e suspeições
Processos e Tribunal
Inquirições e sentenças
Degredo e prisões
Demitri Túlio Enviado a Portugal demitri@opovo.com.br
portuguesa Maria Eleonor, 60, ministra da eucaristia, diz que testemunhou a Igreja de São Domingos pegar fogo em 1959. Trabalhava em uma loja na Baixa Lisboa, no Rossio, e viu quando a fumaça avisou de longe que um incêndio havia tomado conta do prédio construído no século XIII. Um santo, trepado à esquerda do imponente altar principal, teve as mãos derretidas na a fogueira que atingiu a nave principal. Na parede oposta, explica a leiga, a cabeça nova de outra imagem ainda chamuscada foi obra do prior Bráulio Reis. E Maria Eleonor vai desfiando mais histórias sobre a igreja ícone do Santo Ofício que ruiu e foi reconstruída depois de um fogaréu e dois terremotos, um em 1531 e 1755. Era lá onde se desfechavam os autos-de-fé da Inquisição portuguesa (15361821), espetáculos de execração de hereges promovidos pela igreja católica e a coroa lusitana. “Aqui”, se orgulha a ministra, se batizaram (dom Carlos em 1863) e casaram
reis (Pedro V e dona Estefânia , em 1853), “mas houve também sofrimento. Muitos inocentes foram queimados (na verdade na ribeira do Tejo)”, observa a voluntária das de São Domingos. Para o pátio da igreja, em dias de agitação na baixada da aldeia real, próxima ao Castelo de São Jorge, além dos próprios hereges capturados em Portugal, vinham prisioneiros das mais diversas e distantes terras submetidas à Coroa e ao intolerante Tribunal do Santo Ofício. Do fim de mundo do Seará Grande, trouxeram bígamos, um falso padre, uma mulher enredada por usar um patuá e outros infelizes anônimos que permanecem silentes. Biografias ainda por serem descobertas no mar de papéis da Torre do Tombo.
O capelão aposentado Bráulio Reis, que pastoreia São Domingos desde 1960, ficou curioso com o destino que lhe chegou às mãos. Para saber onde estava pisando, foi ter com a Inquisição na Torre do Tombo. Viu por lá, cálculo dele, por volta de 27 mil fichas de familiares do Santo
Ofício. “É a lista telefônica de Lisboa”, brinca. Clãs perpetuados até hoje e que serviram de olhos e ouvidos da Igreja. E quem não queria ser vigilante de “Deos”, amigo do rei, delatar impuros, estar no rol dos homens bons? Indaga padre Bráulio. Todos os importantes ou quem queria limpar o sangue, se tornar da corte, ter privilégios, não pagar impostos, ter a mulher vestida em de seda... “Vocês também tiveram os seus”, reconstrói as pontes com o Ceará. Sim, os “Pinto Martins, os Costa Barros”, grifa o historiador Otaviano Jr. em “A Inquisição e o Sertão”. Mas, é preciso entender a história e seus contextos, prega padre Bráulio. O que eram as mentalidades há 474 anos? Hoje, lembra o religioso, se formatam mentes
e há “gajos” que se enveredam pelos tortos, “mas não pelo prazer de fazer o mal”. A igreja poderia até ter tido a “boa intenção” de evitar o desvio do rebanho, no entanto se enlinhou com a realeza. “Uma coisa é matar, outra é querer salvar”. Passado o tempo dos rebentos da intolerância inquisitorial, das tramas domésticas, do leva-e-traz entre Lisboa e a América dos índios cearenses, negros, mouros, judeus e outros impuros, São Domingos – avisa padre Bráulio – é para servir e não dominar. “Minha grande preocupação é com as viúvas abandonadas, velhas solitárias e idosas pobres de Lisboa. Dá pena, só há a igreja pra elas”, sentencia o religioso octogenário. (colaborou Cláudio Ribeiro)
Demitri Túlio Enviado a Portugal demitri@opovo.com.br
espionagem sobre a vida privada de cearenses ou portugueses que sentaram praça no Ceará não levou ninguém à fogueira. Mas entre os castigos impostos pela Igreja Católica, o degredo e o confinamento nas galés lusitanas que cruzavam o Atlântico e outros mares entre 1752-1802, marcaram a violenta história da Inquisição. De 19 perseguidos, seis homens amargaram os serviços forçados nas caravelas do reino de Portugal. Entre eles, dois idosos de 60 anos. Um dos processos, investigados pelo O POVO na Torre do Tombo em Lisboa, revela que o escravo Domingos da Silva de Oliveira foi o que mais tempo ficou à mercê do insalubre castigo nas galés. Foram dez anos preso em uma caravela. Mais novo entre os condenados daqui, Domingos tinha 30 anos de idade e acabou dedurado ao Santo Ofício por crime de sacrilégio. O negro, de propriedade de capitão-mor Bento da Silva de Oliveira, morador do Icó, antes do degredo no mar foi açoitado publicamente, teve de pagar penitências espirituais e foi obrigado a receber instrução católica para sará-lo do pecado.
Por bigamia, os inquisidores condenaram também às galés o pastor de animais Francisco Barbosa, 60, Manuel Ferreira de Morais, 60, António Tavares de Sousa, 38, António Mendes da Cunha, 40, e Manuel Fragoso de Albuquerque, 40. Os cinco foram capturados e levados para Lisboa. Além de serem torturados em praça pública durante os autos-de-fé, foram obrigados a remar feito cativos durante cinco anos nos porões dos navios reais. Manuel Fragoso de Albu-
querque, 40, habitante do Icó e natural do Cariri Novo, hoje Crato, teria sido entre os sentenciados o primeiro a ser preso e condenado pelo Tribunal católica do Santo Ofício. Foi preso em outubro de 1752 e sua sentença foi lida em 29 de maio de 1754. Fragoso pecou contra a lei de Deus ao se casar com duas mulheres sem ter enviuvado da primeira. No segundo casamento, uniu-se a Francisca Rodrigues da Silva. A idade não era atenuante para os julgadores do Tribunal da Santa Fé em Lisboa. Dos Inhamuns, na localidade de Várge da Vaca, atual Campos Sales (que hoje é município da região do Cariri), os familiares da Inquisição – espiões do Santo Ofício nos sertões -, denunciaram o idoso Félix José da Silva Gaia, 70, por falso sacerdócio jesuíta. Nos documentos da Torre do Tombo há a indicação de condenação, mas não há registro detalhado sobre a pena imposta.
Entre os 19 sentenciados no Ceará, uma mulher. A ré Francisca Rodrigues de Sá, 32, vivia na Serra da Beruoca, hoje Meruoca (região norte do Ceará), entrou no rol dos culpados da Inquisição de Lisboa por crime de sacrilégio. Destruído pelo tempo, o processo não informa sobre a sentença da prisioneira que morreu durante o andar do processo. Segundo pesquisas do historiador Otaviano Vieira Jr., autor do livro A Inquisição e o Sertão e professor da Universidade Federal do Pará (ler entrevista página 12), entre 1750-1821 foram encontrados 47 nomes de denunciados no Ceará segundo o caderno 328 do promotor. Desses, nove foram processados pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. (Colaboraram Cláudio Ribeiro e Luiz Henrique Campos)
O historiador baiano Luiz Mott escreveu sobre sete episódios entre 1746-1778. Três denúncias de sodomia, feitiçaria, solicitação e bigamia. A de bigamia virou e processo e envio do acusado para Lisboa.
Luiz Henrique Campos lhcampos@opovo.com.br
Inquisição chega ao Ceará na primeira metade do século XVII quando o então Ceará Grande pertencia à capitania de Pernambuco. Inóspita e desconhecida, a região era pouco explorada pelos colonizadores, mesmo tendo pertencido ao Maranhão anteriormente. As primeiras denúncias coincidem com a ocupação do território através da pecuária explorada ao curso dos rios. A dificuldade enfrentada pelo Ceará no século XVII é atestada por documento microfilmado na Torre do Tombo, datado de 1816, quando o terceiro governador do Ceará, Luís Barba Alardo de Meneses, faz referência ao começo da capitania. Ele diz: “Pode-se seguramente afirmar que até esse tempo era desconhecida e considerada como árida e estéril e por isso não teve nunca donatário...”. A criação do gado seguindo o caminho das águas Interior adentro, porém, produz fenômeno diferenciado de ocupação territorial na capitania cearense. Se núcleos urbanos surgidos no litoral mantiveram a posição hegemônica em outras regiões, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, no Ceará se deu o contrário. Os primeiros povoamentos a alcançarem relevân-
cia econômica surgiram no Interior, como consequência da migração advinda da Bahia, de Pernambuco e da Paraíba. Elementos aglutinadores dessa ocupação, as fazendas de gado surgem às margens dos rios Jaguaribe e Acaraú, como responsáveis pela formação dos primeiros núcleos de povoação, nascendo daí as cidades de Icó, Aracati e Sobral. O Ceará pertenceu à capitania de Pernambuco até 1799. Com a independência, já em meados do século XVIII, a pecuária consolida-se como a primeira atividade de importância para o Estado, a partir da produção da carne seca. Por essa época as vilas de Icó e Aracati se destacam como
polos econômicos. Mas apesar do progresso verificado, a situação da capitania ainda era muito pobre. Em descrição sobre o ano de 1814, o naturalista João da Silva Feijó, afirma: “à vista do que se há expendido até aqui, he para admirar o atrazamento em que tem estado esta capitania, apesar de ser povoada a mais de duzentos annos; com tudo, como se vê, ha grandes recursos e meios infinitos de se prosperar, e fazer rapidos progressos....”. Feijó, sargento-mor, e encarregado de investigações filosóficas na capitania, bem como Luís Barba, ignoram a Inquisição em suas observações quase um século depois da primeira denúncia.
Entre os séculos XVII e XVIII os gravadores fizeram representações dos castigos da Inquisição. No detalhe, um condenado sendo torturado na polé.
Cláudio Ribeiro C E Enviado a Portugal cclaudioribeiro@opovo.com.br
Os bígamos não foram poucos. Foi a principal das acusações registrada no Ceará colonial, em processos da Santa Inquisição. Alguns tachados de polígamos também, por terem tido mais que duas mulheres. No total, 13 dos 19 casos encontrados pelo O POVO nos arquivos da Torre do Tombo referentes a esta capitania. Três dos casos de perjúrio (falso juramento) apurados pelos inquisidores no Ceará e listados pelo O POVO estão associados a um único caso de bigamia, cometida pelo pernambucano João Cavalcanti e Albuquerque (processo 12954). João se casou com uma segunda mulher, Maria Pereira do Vale, na freguesia de Russas, mas a primeira, Filippa de Santiago, ainda estava viva no Engenho de Apuá, em Pernambuco. Três das quatro testemunhas deste seu segundo casamento foram acusadas de “malícia no juramento”. Já sabiam que ele não era tão solteiro como se mostrava. Para a Inquisição, cometeram o perjúrio: o criador de gado e curtidor de couros José Cardoso de Melo (processo 2778), morador da freguesia de Russas, na localidade Xique-xique, ribeira do Jaguaribe; Miguel Alves de Faria Pita (processo 2776), que vivia de comércio em Russas; e Domingos Gonçalves Borges, também do lugar. Todos vizinhos do bígamo.
José Cardoso e João Cavalcanti, foram presos no mesmo dia, 31 de julho de 1782, e levados para a cadeia de Aracati. Depois para os cárceres de Lisboa. Miguel e José foram punidos em 1783 com penitências espirituais (rezas, instruções de fé) em processos distintos. O POVO não conseguiu localizar documentos na Torre do Tombo, em Lisboa, com as penas de João e de Domingos. Mas há os registros que existiram. Histórias que se cruzaram nos tribunais. (CR)
aschoal Martins foi um mentiroso de marca maior. Talvez até chamado de safado, ssem-vergonha, ou mais que is isso, depois do que souberram dele. Português, da ilha d dos Açores, pastor de gado. Jo Jovem, foi mascate. Pois se m meteu de casar três vezes no ssertão do Brasil sem nunca e enviuvar. Inadmissível para aaqueles anos de Inquisição. Ainda era a primeira meta tade do século XVIII. Pior: p para cada outra mulher que aarranjou depois da primeirra, Paschoal inventou para ssi um nome diferente. Uma d delas, a terceira, viveu aqui n no território da então Capita tania do Ceará Grande, Bisp pado de Pernambuco. Eis que d descobriram tudo, a Santa Inquisição soube. A casa caiu. q Na verdade, as três. N O próprio admitiu aos inquisidores tudo o que fizera, q já levado de volta a Portugal, como réu preso. Estava com c 60 anos. Confessou em depoimento: “foi malícia”, agiu p por “fragilidade”, “tudo fizep ra como tollo”, “pouco juízo”. É o que contam as letras em bico de pena no seu processo, b o de número 7157, na Inquisição de Lisboa. Está no arquivo nacional português da Torre do Tombo. Acusação formal no Tribunal do Santo Ofício: poligamia. Hoje, no mínimo, também seria imputado judicialmente em falsidade ideológica.
Mesmo quando as sentenças eram anunciadas nos autos-de-fé, muitos dos processos continuavam em andamento. Paschoal Martins ouviu sua pena em 27/10/1765, mas seu processo foi até 5/4/1766.
Em 27 de outubro de 1765, em Lisboa, Paschoal Martins vestiu o sambenito (roupa dos penitentes, acima) e participou do auto-de-fé. Uma das penas foi o açoite público no percurso.
Acima, a capa do processo nº 7.157, do réu Paschoal Martins, e o entalhamento dos seus autos de culpas, que estão no acervo da Torre do Tombo, em Lisboa.
O caso é curioso, mesmo para época. Com a primeip ra “e única” mulher, Violante Dias, mais velha que ele quase 20 anos, viveu em Recife por seis ou sete anos. Não tiveram filhos. Casou-se na Capella do Paraízo, da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário, em 8 de novembro de 1723. Era ele cristão batizado. Da infância que teve em Braga e Porto, ainda em Portugal, a vida acabou trazendo-o adulto para a colônia Brasil. Bateu-se no Pernambuco. Foi o trabalho de masb cate que o soltou pelas vilas do Ceará Grande. Achou tão cômoda a distância de casa que quis voltar à “solteirice”. Para “esconder-se”, Paschoal inventou ser Antônio da Costa de Souza. O processo não apurou melhor se mudou o nome por dívidas, se fuga de outras safadezas amorosas ou se só mesmo pela tal “malícia” declarada. Bastaram dez testemunhas e a confissão. Pois nas andanças de galego, vendeu também no Limoeyro, freguesia de Santo Antônio do Tracunhaem, ainda Pernambuco. Conheceu Francisca de Barros da Sylva, segunda e “única”. Lábia das boas, pelo que parecia, estrangeiro, apesso-
ado, e já estava casando de novo. Em 15 de setembro de 1746, Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, na missão do Limoeyro. Os autos inquisitoriais dizem que viveu por lá mais seis anos. Parecia sua cota de tempo num lugar. Queria andarilhar e foi-se de novo. Para as bandas do Acaracú (hoje rio Acaraú). A ribeira cearense, ao lado da Villa de Sobral e de outras bem sucedidas, atraía negociantes. Lá, afirmando que “já estava sete a outo anos longe da segunda mulher, casou-se pela terceira vez”. A terceira “e única” era Clara de Mendonça, branca, viúva, não sabia a idade (“mais de 50 anos”, segundo os autos).
O nome também já era outro: Francisco Barbosa Braga. Criado a partir do nome da segunda (Francisca) e da cidade onde viveu (Braga). O terceiro casamento está registrado no Livro dos Assentos dos Cazamentos da Freguezia de Nossa Senhora do Acaraú, folha 138, realizado em 13 de fevereiro de 1752. “Corrido a banhos nesta freguezia e sem impedimento algum”, apurado e registrado nos autos do processo. No interrogatório nos Estaos, a casa das audiências da Inquisição, Paschoal chegou a dizer que foi um amigo que o avisou da morte da primeira mulher. Não convenceu. Seu processo, de 240 páginas, foi concluso em 28 de novembro de 1764. “Com grave damno e prejuízo de sua alma e injuria do sacramento do matrimonio”. “Mandão que o reo Paschoal Martins, aliás Antonio da Costa, aliás Francisco Barbosa em pena e penitencia das suas culpas vá ao auto publico da fé na forma costumada, nele ouça sua sentença, faça abjuração de leve(...): será açoutado pelas ruas públicas dessa cidade, citra sanguinis effusionem e o degradão por tempo de sinco annos para as galés de sua magestade(...). Será instroido nos mistérios da fé necessários para a salvação de sua alma e cumprirá as mais penas e penitencias que lhe forem impostas e paguem as custas”. Recebeu ordem de rezar um terço do rosário e em cada sexta-feira cinco Pais-nossos e cinco Aves-Marias e Paz de Christo. A última das notícias sobre Paschoal foi a de que padecia em várias internações de “sezões” (febres muito altas com sintomas de delírio), “queixas habituais”, e sofrendo da “suspensão de urinar”, “maltratado pelo guarda com pancadaria”. Nas galés, os porões dos navios, os presos apanhavam constantemente. O último documento de seu processo é o registro de uma visita do cirurgião dos cárceres secretos. Tinha dores de “diabetes” e “incontinência urinária”.
Acima, cena de tortura no interrogatório de um preso da Inquisição de Lisboa chamado John Coustos: do ilustrador Boitard, feita em 1746.
Cláudio Ribeiro Enviado a Portugal claudioribeiro@opovo.com.br
nda vagabundo pelas freguezias da Granja, Serra dos Cocos, e Vila Viçoza hum homem cego com coroa aberta e intitulando-se sacerdote”. A descrição era implacável, nas comunicações entre comissários e familiares do Santo Ofício aos inquisidores. Noutro documento, as ousadias do senhor desconhecido que perambulou lesando incautos pelas veredas da serra cearense da Ibiapaba. O tal vinha “confessando, baptizando, benzendo e exorcizando”, “dizia missa e confessava”. Félix Gaia era cego dos dois olhos. Uma testemunha chegou a afirmar no processo que sabia de uma ida dele mais longe, ao Maranhão. Lá, teria rezado “missas para moribundos”.
Se a Inquisição era por demais inclemente, havia os que davam ‘motivos’. Como modesto jesuíta, estava ali o “padre Francisco de Faria”, orientador das almas e de gestos. Só embuste. A coroa aberta na cabeça, roupas adequadas, a cegueira e as rugas de seus 70 anos eram o disfarce perfeito. Como se só quisesse distribuir bondades e curas. Porém, omitia seu nome verdadeiro, Félix José da Silva Gaia. Era um farsante. Interrogado, mão direita sobre os Santos Evangelhos, confessou até ser casado
com Francisca Dias Xavier, em Quebrabó (hoje Cabrobró, Pernambuco), pelas bandas do rio São Francisco. Uma das testemunhas ouvidas, um capitão da freguesia de Amontada, ouvira até falar de um filho que o acompanhava. O falso sacerdote já estava há algum tempo em atividade.
Já havia percorrido localidades como Varge da Vaga (hoje região dos Inhamuns), Vila Viçosa Real (hoje Viçosa do Ceará), Granja, Serra dos Cocos (hoje Canindé)... onde os trocados fossem generosos. Quase sempre cobrou por graças e benzeduras. Chegou a vender pedacinhos de fita a 80 réis dizendo ser de Nossa Senhora da Penha. Benzeu cavalos e carrancas, curava feitiços e mordidas de cobras. Tirava proveito da fé e alguma tragédia alheia. Antes do golpe, chegou a pedir esmolas. Segundo seu processo, o de número 3972 no Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Félix Gaia foi facilmente achado na região. Poucos talvez tivessem aquela aparência, um velho “seco de corpo e sego” – os escrivães costumavam alterar grafias de algumas palavras até num mesmo processo. A autuação aconteceu em Viçosa no dia 3 de julho de 1787, na povoação chamada São Pedro. De lá, foi levado para a Villa de Sobral. O então visitador Bernardino Vieira Lemos, que tinha a função fiscalizadora da dita fé pra-
ticada nas villas e freguesias da capitania, inteirou-se do caso por documentos que lhe chegaram em Olinda. No depoimento, Félix disse ter feito o que fez “regido da tentação do demônio por se ver cego, pobre e necessitado”. O nome Francisco Faria era de um primo que se formara religioso. Aproveitou-se. Para curar cabeças cheias de ilusões de feitiços ou o que aparecesse. Repetiu até como benzia: “In nomine patris, et filis, et spiritus sancti...”. Os autos inquisitoriais não trazem a sentença. Félix foi levado em 10 de março de 1788 para Olinda, para ser trancafiado num aljube. Era o cárcere dos padres – mesmo que ele nunca tenha sido um. De lá, não há notícia se saiu.
Se o entalhador Antonio teve aviso do irmão sobre suposta viuvez, ao Antonio pedreiro também chegou carta. Era de uma tia que, por ele estar viúvo, lhe pedia para vender suas terras em Portugal.
Guilherme Studart, o Barão de Studart, trabalhou na primeira citação de processos da Inquisição no Ceará: “Por conta de bigamia figuram num auto de fé em Lisboa Antonio Correia de Araujo, entalhador, de 52 annos, natural de Landim, Concelho de Barcellus e morador na Villa do Icó, e Antonio Mendes da Cunha, pedreiro, 40 annos, natural de Coura e morador em Quixeramobim”. O Antonio entalhador era casado em Braga, Portugal. Veio para a Bahia e depois Ceará. Alegou ter recebido carta de um irmão avisando-o de viuvez. Assim justificou o novo casório. Mas a mulher não havia morrido. Punido em 1761, foi degredado para Castro Marim (Portugal). Pediu perdão, conseguiu licença para vir ao Ceará em 1762. Foi ficando. Em 1765, estendeu a permanência por mais dois anos. Morreu aqui ou foi esquecida a pena, disse o Barão. Já o Antonio pedreiro era “sujeito, ao que parece, de proceder irregular”, observou o Barão. Foi condenado em 1761. Cumpriu pena no arsenal das galés por três anos. Em 1764, pediu revisão da sentença para degredo, “para tratar de moléstias”. Um cirurgião dos cárceres confirmou o padecimento. Em 15 de setembro de 1764 foi liberado de mais dois anos de pena.
Detalhe de gravura de Andreas Antonius Horatius (1698), que mostra costa das províncias do Seará, Maragnone (Maranhão) e Rio Grande (do Norte).
Cláudio Ribeiro Enviado a Portugal caudioribeiro@opovo.com.br
m homem do governo da Capitania do Ceará Grande também caiu na lista da Inquisição. Na carta-denúncia, enviada pelo padre Antonio José Cavalcante ao comissário do Tribunal do Santo Ofício Joaquim Marques de Araújo, em 8 de dezembro de 1802, o palavreado não poupava Francisco Luís de Mariz Sarmento: “Não só tem mofado e mettido à bulha publicamente os preceitos da Igreja, os seus sacramentos e actos de piedade os mais santos uteis e necessários; mas tão bem tem commettido a sacrílega temeridade de insultar directamente mesmo Deos na adorável pessoa do Espírito Santo”. Sarmento era secretário do governo no Ceará, que justamente naquele ano era exercido por uma junta governati-
“A obrigação que tenho de defender a religião a custa do próprio sangue e da mesma vida, não só como um dos professores do Christianismo, mas tão bem como hum ministro de Jesus Christo, ainda que indigno, he quem unicamente me move nesta occazião a por na prezença de Vª Sª os escandalosos procedimentos, e malignas proposiçoens, com que o Bacharel Francisco Luís de Mariz Sarmento, secretario de Governo desta Capitania, ousadamente tem incentivado contra a disciplina da Igreja, e os mais importantes dogmas da nossa crença. Este miserável, e desgraçado homem, que por libertino, e sectário das doutrinas condemnadas, e prohibidas pela Igreja, foi já penitenciado em Lisboa, segundo dizem, pelo Santo Tribunal da Inquisição, esquecido disto mesmo, e da sua salvação, de tal sorte se tem conduzido a respeito da Religião, que além do universal escandalo, que tem causado nesta Capitania, a todos deixa duvidosos da sua fé, e persuadidos da sua libertinagem...”
va. Fazia exatamente um mês que havia morrido o primeiro governador do Ceará Grande, Bernardo Manuel de Vasconcelos. Sarmento, “homem acreditado, instruído, influente”, fora tratado na mesma carta por “miserável, desgraçado homem”, acusado de blasfêmias e libertinagem.
O padre, morador da Villa de Fortaleza, listou argumentos e reclamava “falta de providências”. As difamações a Deus e aos dogmas religiosos teriam sido por Sarmento em missas que faltava costumeiramente ou incentivando que familiares ou conhecidos também não frequentassem. Até bate-boca por isso teria acontecido com um vigário da Villa Nova do Arronches (hoje bairro Parangaba). Sarmento teria aversão à vida mística, segundo o registro. O padre o denunciou também por consumir “livros prohibidos”. Entre eles,
Fac-símile (acima) da carta do padre Antonio José Cavalcante denunciando ao comissário do Santo Ofício os atos impróprios do secretário Mariz Sarmento.
La Phylosophie du bons sens (A Filosofia do Bom Senso), de Jean-Baptiste Boyer D´Argens (1722-1759), e La Antiquité dévoilée par ses usages (A Antiguidade Desvendada por seus Hábitos), de Nicolas-Antoine Bourlanger (1704-1771). Assim como a vigilância aos fiéis, a Inquisição também fazia cerco a publicações que considerasse ousadas demais.
A mais agressiva das delações foi a de que Sarmento, agora chamado de “monstro da maldade, triste desgraçada victima da lascívia”, “cometeu pecado de molice (?) com um índio parvolo” (párvulo, pequenino) nos fundos da casa de um padre, e logo após ter se confessado. Não foram mesmo meias palavras contra o então secretário. O denunciante falou de “notícias de 1800” e disse que Sarmento “foi já penitenciado em Lisboa, segundo dizem pelo Santo Tribunal da In-
A história do português João José de Medeiros Albuquerque e a do crioulo baiano André Soares da Cunha se juntam por simples trâmite inquisitorial num mesmo processo (nº 7043) no Tribunal do Santo Ofício. São ocorrências diferentes, distantes, mas têm a honra, bigamia e o Ceará como elo. João José de Medeiros, nascido nos Açores, era viajante no Brasil. Morava na Villa Real de Sobral, aqui no Ceará Grande, quando foi chamado na casa do capitão Antonio Furtado dos Santos, “a quem devia obrigações e boa amizade”. Ouviu do então comandante da villa que a neta Francysca Maria Ribeira Borba “estava desacreditada por dizerem que elle (João) casava com ella”. O capitão estava era fulo e cobrava-lhe explicações. João havia engabelado a moça e ali, diante da bronca e “por algum temor de lhe tirarem a vida, por ser terra de fascinorozos” (o poder do capitão o assustava), admitiu se casar. Era por volta de 1793. Mas, ele já era ma-
quisição”. O POVO procurou registros desta afirmação no acervo da Torre do Tombo, em Portugal, mas não conseguiu localizar nenhum documento a respeito. Francisco Luís de Mariz Sarmento era casado com Maria Amélia de Figueiredo. Tinham um filho, Alexandre Maria de Mariz Sarmento, que inclusive veio a ser contador-geral do Tesouro e foi um dos fundadores, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A família Mariz Sarmento teve até título de nobreza em Portugal. Mas a Inquisição não perdoava de antemão. A queixa do padre Cavalcante chegou às mãos dos inquisidores. O comissário enviou comunicação em 21 de janeiro de 1803. Virou processo (nº 13.977). O arquivo da Torre do Tombo só consta a carta do padre. Em 1802, a Villa de Fortaleza tinha pouco mais de 3 mil habitantes. O caso deve ter virado fofoca fácil na época.
rido de outra, Francisca Xavier, dos tempos em que vivera na capitania do GramPará. João viveu de remorsos por um ano. Era a honra do avô da nova mulher e a sua. Numa viagem a trabalho, nunca mais voltou a Sobral. Foi a Pernambuco, Bahia e, no Rio de Janeiro, cinco anos depois, apresentou-se no convento da Virgem Maria do Monte do Carmo e contou sua história. Por ser cristão, pediu para ser punido. Já o escravo André, morador do Rio do Peixe, nas margens do São Francisco, da Bahia, veio se esconder nos Inhamuns. Fugiu desonrado. “Casando e fazendo vida marital com sua primeira mulher, esta adulterando, fugira de sua companhia, e elle envergonhado se mudara de seo domicílio para os sertoens do Inhamum”. Casou de novo, também. Arrependido, cristão, foi outro a se denunciar e pedir castigo. Os arquivos da Torre do Tombo, em Portugal, não falam de penas que sofreram. (CR)
Mariz Sarmento atuou como secretário da junta governativa do Ceará Grande formada por Gregório José da Silva Coutinho, José Henrique Pereira e Antônio Martins Ribeiro. Que atuou de 8/11/1802 a 3/11/1803.
Casos do Brasil só tramitaram no Tribunal de Lisboa. Porém, o Santo Ofício tentou saber de culpa de João e André em de Évora e Coimbra. Não havia.
Cláudio Ribeiro Enviado a Portugal claudioribeiro@opovo.com.br
ambém houve denúncia formal à Inquisição contra judeus nas plagas sertanejas do Ceará Grande. Na ribeira do Jaguaribe, o médico José Balthazar Auger, italiano de Turim, morador da então villa do Aracathy e devoto frequentador da matriz de Nossa Senhora de Russas (ainda pertencente àquela vila), denunciou um tal Gaspar Roiz Reis Calçado. Delatou que o homem, também residente ali, fazia “coisas escandalosas contra a Santa Fé Cathólica indicativas de judaísmo”. Gaspar já seria conhecido na freguesia de lá por ironizar, debochar, ser indiferente ou até xingar e execrar alguns ritos e cultos católicos. “Tido, havido e reputado como judeu e cristão novo”. Uma das acusações descreveu que, certa vez, o denunciado afirmou que “Maria Santíssima não podia parir e ficar virgem”. Ou, numa Semana Santa, apontou que “a imagem do senhor Jesus amarrado a coluna (da igreja) era hum macacão”.
O médico apresentou a denúncia no dia 21 de novembro de 1758, ao comissário do Santo Ofício Antonio Alves. Os comissários eram, ao lado dos familiares, os principais representantes da Inquisição
nos locais de morada. Eram os olhos e ouvidos da Igreja naqueles anos. Balthazar foi a Recife para oficializar a queixa. Dissera que não era nada de inimizade, mas “desencargo de consciência e temor a Deus”. Tudo aqui ainda era atrelado a Pernambuco, o governo e a Igreja. Aracati, àquela época, era a vila mais próspera da capitania do Ceará Grande. Era nosso principal ponto comercial, com oficinas de charque e negócios em couro curtido. Os judeus foram o principal povo a sofrer a perseguição dos tribunais eclesiais, também nos rincões nordestinos - para onde vieram, escurraçados da Península Ibérica (Portugal e Espanha) pela Inquisição. Ainda das feitas atribuídas a Gaspar, o italiano disse que ele costumava ir à igreja “e com grandes risadas escarnecia (zombava) da santa imagem” e que “as cerimônias da Semana Santa eram macaquice”. Num dos muitos atritos que teria tido com vários da vila, foi contado por Balthazar que Gaspar afirmou: “tanto fazia ouvir missa ou não porque não enchia a barriga”. Disse até que a igreja do Aracati não servia para nada que não fosse fazer necessidades fisiológicas nela. Mesmo que o médico tenha negado inimizades, havia, sim, uma rixa intestina com o judeu Gaspar. No próprio relato feito ao comissário, o italiano listou uma vizinhança toda que, segundo ele, poderia testemunhar o que
Num caderno do promotor havia o registro superficial das denúncias. Por exemplo: “Acaracu Ibiapaba - Pixaim, cas° co Andresa e em vida deita co Mª dos Índios do Brazil. Bigamia”.
acabara de contar. Do mestre caldeireiro do curtume e sua mulher ao tenente, também o tabelião público, o capitão e outros casais. Todos referenciados para o comissário como probos e cristãos velhos, fidedignos e moradores do Aracathy de Jaguaribe. A Igreja exigia dessas formalidades e reputações. Um sargento-mor também foi acrescido à lista de testemunhas.
O POVO encontrou a denúncia do médico contra o judeu de Aracati num dos cadernos do promotor, o de número 121. Estava arquivado no microfilme 1.444 na Torre do Tombo, em Lisboa. Os cadernos eram as anotações prévias das denúncias - que poderiam ou não seguir como processos. Pesquisadores consultados pelo O POVO apontaram que a maioria dos registros referentes ao Ceará está no caderno 328. Com ocorrências a partir da segunda metade do século XVIII, quando a colonização da capitania começou a ganhar impulso. Até ali, Gaspar era só um denunciado ao Santo Ofício, num andamento semelhante ao do Poder Judiciário atual. Na pesquisa com o acervo digitalizado, a partir do nome e da localidade, não houve confirmação se o caso virou processo. A apuração feita pelo comissário não dá informações também sobre a procedência de Gaspar Roiz, se era ou não nascido no Brasil.
Acima, imagem do anúncio de um auto-de-fé, representando inquisidores ao lado do bispo e do governador da cidade. Obra: The Slaughter House, de William Marshall, de 1683.
Se hoje, tanto tempo depois, as denúncias sugerem algum tom mais jocoso ou bizarro, à época eram escândalos religiosos. Pipocavam à mesa dos familiares da Inquisição, colhidas de fé. Um dos casos foi descrito por Joam Guedes, homem do Santo Ofício, numa carta de 28 de agosto de 1722. No “Curral das Guaramirangas, distante seis legoas da aldea dos indios da serra da Ibiapaba”, Joseph Bandeira de Mello disse que um sobrinho vira “Bento Rodrigues, homem pardo e casado com uma tapuya ter ajuntamento
com uma cachorra da casa”. Já havia se passado nove anos do episódio, mas foi mesmo assim para o rol de acusações. Não prescrevia. Um tal Florêncio ou Floriano também “cometera bestialidade com uma égua”. Um padre entregou que um escravo “era tido e havido por sodomítico”. Tarado. “Tão desaforado nesse vício que onde quer que topava com algum índio... o solicitava a esse pecado”. Os índios até o apelidaram por “tibiru”. O bispo de Pernambuco alertava de excomungar também quem atacasse índias. (CR)
Regra eclesiástica: segredos de confissão são invioláveis. Pois na ribeira do Jaguaribe, freguesia dos Inhamuns, o padre Francisco Callado Bitancort caiu numa denúncia dessas de sigilismo (o nome do crime). Sacerdote do hábito de São Pedro e capelão na Villa do Icó, diziam que o padre “era acustumado arrevellar o sigillo da confição, do que se queixavão os moradores do Sítio dos Oitis e de Jagoaribe Mirim”. Callado ganhou a pecha de falador dos pecados dos outros e acabou na boca
do povo. O próprio nome o contradizia, curiosamente. A acusação foi feita ao comissário do Santo Ofício Gabriel da Costa Louzadas no dia 20 de agosto de 1757, na fazenda Quixadá, Ribeira do Quixelô. À época era tudo parte do grande Jaguaribe. O denunciante foi um morador da região. O comissário chegou a considerar que a distância atrapalhou na apresentação rápida da acusação. O caso, arquivado em microfilme na Torre do Tombo, em Lisboa, foi registrado num dos cadernos do Promotor, número 121. (CR)
Na carta sobre o padre Callado, o comissário do Santo Ofício registrou: “a distância de quazi duzentas légoas e pouca communicação de portadores capazes” atrasaram a apresentação da denúncia.
Cândido Pinheiro Koren de Lima Médico
Antiga designação de mouros e judeus excomungados e dos cristãos novos.
Membro de seita religiosa e também política dos almorávidas, dominantes na Espanha até a conquista de Granada pelos reis católicos.
presença judaica na Ibéria é antiquíssima. No livro de Salomão, há referências à presença deles na região de Tarshish, para onde iam em barcos fenícios do rei Hiram em busca de matéria-prima para construção do primeiro templo. A convivência na terra peninsular, no entanto, quase sempre foi marcada por perseguições e tragédias. Nas épocas godas, muçulmanas e da reconquista, curtas fases de paz e liberdade religiosas entremearam períodos extensos de escuridão. Apenas nos períodos godo, que antecedeu a conversão destes ao catolicismo, e no muçulmano omíada viveu-se certa tranquilidade. Nesta última fase a Espanha transformou-se no mais rico país do mundo e albergou a mais numerosa colônia judaica do planeta. Com queda dos omíadas e durante os períodos almóadas e almorávidas, e nestas mesmas fases, na área da reconquista, a luta pela vida e pela liberdade religiosa foi uma tarefa diária e extremamente árdua. Tudo culminando com decisão dos reis católicos de Espanha em não permitir mais a presença da religião judaica em seu território.
As opções eram converter-se ao catolicismo ou sair. Os que não aceitaram a conversão saíram da Espanha em 21 de agosto de 1492 (9 de av). Cerca de 300 mil judeus emigraram. Cem mil deles entram em Portugal, que somados aos hebreus autóctones passaram a representar 10% a 20% da população portuguesa. Ao entrarem em sua nova pátria pagaram tributos por cabeça e por posse em troca da promessa de liberdade religiosa. Eram os de pouca posse: artesãos, ferramenteiros, ferreiros, ourives, médicos de pouco nome e demais pequenas profissões que interessavam a Portugal. O avô e o pai de Mestre Roque fizeram esta opção. No país luso passaram a morar em Évora, em Monxarax. Esperavam muito. Afinal a Ibéria era a terra
deles há muitas e muitas gerações. A paz, no entanto, demorou muito pouco. No ano seguinte ao da expulsão da Espanha, movido por motivos políticos, e usando o furor do fanatismo religioso, iniciou-se a onda de conversões forçadas. Ao mesmo tempo era firmada a proibição de deixarem o país. Os conversos passaram a ser propriedade do estado. Em 1497 a religião judaica foi proibida em Portugal e ao lado disto todos os judeus foram conversos forçadamente. Aprisionados e sem comida e água, sobre eles foram jogados baldes de água benta. Assim estava extinto oficialmente o judaísmo na Ibéria. Os produtos deste ato bárbaro, os cristãos-novos, ou marranos, no entanto continuaram secretamente a prática de sua fé ancestral, até que em 1536 foi criada a Inquisição portuguesa com a finalidade principal de zelar pela prática católica daqueles, em sua maioria, conversos à força. O avô e o pai de Mestre Roque também foram obrigados à conversão. Como a maioria do povo converso continuara secretamente na sua fé. Ao mesmo tempo, ele exercia a medicina rudimentar que aprendera com os seus. Vivia de sua profissão em Évora quando foi surpreendido e preso pelo Santo Ofício sob a alegativa que praticava a lei antiga contida no Velho Testamento. Levado ao cárcere e sob torturas sucumbe.
Confessa a fé e prática na lei mosaica, e denuncia os seus parentes e amigos. Com remorso de ter levado a desgraça a mais pessoas toma um urinol de cerâmica, sujo de fezes e urina, único objeto existente em seu cárcere, quebra-o e com seus fragmentos corta as veias e artérias de seu pescoço. Tinge de sangue rutilante judeu o chão de Portugal. O mal, no entanto, já estava feito. Nos últimos depoimentos Mestre Roque havia dito que seu irmão Fernão Lopes acreditava no Velho Testamento. Este era alfaiate do Duque de Bragança. Isto nada lhe valeu de proteção no Santo Ofício. Preso, confesso e renitente, terminou
sendo queimado vivo pela Santa Inquisição. A esta altura, o que restava da família, que estava fora do cárcere, em polvorosa fugiu de Portugal. A mulher de Fernão Lopes, Branca Rodrigues, uma irmã dela, Violante e seu marido, juntamente com os filhos de ambas as irmãs fugiram para a Bahia. Cá estavam e em paz em 1591 quando chega o visitador do aparelho inquisitorial, que pela primeira vez na Bahia faria uma devassa terrível nos costumes então relativamente livres da capitania, cujo objeto maior era verificar a prática do catolicismo por parte dos judeus conversos e seus descendentes. Na Bahia chovem denúncias da prática religiosa da família. Afirmavam inclusive que possuíam Sinagoga em sua residência. O destino mais uma vez fechava as portas para eles. Beatriz Mendes, uma filha de Fernão Lopes, o executado, e de Branca Rodrigues, já então casada com Francisco Mendes Leão, temerosa refugia-se com o marido, em Pernambuco. Não sabiam o destino do visitador. Este, terminada a devassa na Bahia, vai imediatamente a Pernambuco, com mesma finalidade, onde chega em 1593. A primeira denúncia feita ao inquisidor em 24 de outubro de 1593 é exatamente contra o casal fugitivo, e por judaização. Sabedores da denúncia, eles novamente fogem. Abandonaram Pernambuco. Deixam, no entanto, uma filha. Isabel Mendes, a filha do casal fujão, ficou em Pernambuco, porque já então era casada e com cristãovelho, coisa que lhe dava certa proteção. O marido era Pero Cardiga Lobato, que nascera em Sardoal em 1534. Depois passou a Pernambuco onde em 1593 era capitão de ordenanças de Olinda e rico senhor de dois engenhos, um na Várzea e outro no Jaboatão. A mulher Isabel escapa do Santo Ofício, mas Pero Cardiga não consegue fazê-lo. Possuidor de um pavio curtíssimo e de uma língua bem solta foi denunciado, processado por blasfêmia e julgado pelo Santo Ofício em Olinda. O ato final ocorreu em 16 de julho de 1594. Foi penalizado com repreensão sigilosa e pagamento de custas processuais de 100 cruzados. É bom falar-se aqui que, apesar de se dizer que tribunais do Santo Ofício só existiram em Portugal (5) e Goa, o processo do velho Pero Cardiga é prova inconteste que existiram em outras paragens, inclusive aqui em Olinda. O cristão-velho Pero Cardiga e a marrana Isabel Mendes tiveram vasta descendência. Dois de seus filhos são objetos de nossa citação: Felipa e Tomázia Cardiga. Felipa Cardiga foi a mulher de Frutuoso Barbosa que, apesar de apresentado como cristão-velho, não era exatamente isto, pois oitavo neto do judeu Ruy Capão, fato que não lhe impediu de ser Cavaleiro da Ordem de Cristo. Ele chegou a Pernambuco ainda novo e embrenhou-se na Paraíba ainda virgem à procura de paubrasil. Fez grandes cabedais nesta atividade. Rico, voltou a Lisboa onde reivindica o arrendamento da Paraíba, capitania real. Conseguiu-o em 25 de janeiro de 1579 pelo prazo de dez anos, com investimento total às suas expensas. Obteve para tal o título de primeiro capitão-
mor governador da dita capitania e um salário anual de 200$000. Armou navios, contratou mão-de-obra, adquiriu ferramentas e armas e partiu para Paraíba. A pressa era tão grande de chegar ao seu destino que, tocando primeiro em Pernambuco, atracam os navios ao largo, para um reabastecimento rápido, e resolvem pernoitar nos navios sem descer. Nesta mesma noite, uma monstruosa tempestade abate-se sobre a costa pernambucana, arranca os barcos das amarras e jogaos aos mares sem destino. O navio em que se encontrava Frutuoso Barbosa veio dar no Caribe, onde falece sua primeira mulher Maria Jacques. Viúvo e pobre, volta a Portugal para novamente reivindicar a Paraíba, agora governada por João Tavares. Foi assim que ele em 1587 passou a ser o segundo capitão-mor governador da Paraíba. Em Pernambuco havia casado com Felipa Cardiga, a judaizante. Deixaram enorme descendência. Entre eles os primevos Barbosas no Nordeste, e em Portugal. Entre os últimos citam-se os Viscondes de Montalegre. Uma irmã de Felipa Cardiga, Tomázia, também filha de Pedro Cardiga e da judaizante Isabel Mendes, morou na Paraíba onde vivia casada com Pero Coelho de Souza, que era, segundo o Barão de Studart, açoriano. Em 1603 Pero Coelho de Souza resolve tentar a conquista da Ibiapaba, então defendida por nativos hostis secundados e auxiliados por franceses. Recebeu ele para tal missão o título de capitãomor. Mandou por mar três barcos com mantimentos e munições em direção ao rio Jaguaribe, onde deveriam se encontrar com os que iam por terra, chefiados por ele próprio, que seguiu com 65 soldados, entre os quais Martim Soares Moreno, e ainda 200 índios flecheiros. Encontraram-se no rio Jaguaribe, daí seguiram para Camocim e, em seguida, à Ibiapaba, onde venceram os nativos e aprisionaram os franceses. Segundo Barão de Studart, desejava ele seguir ao Maranhão então dominado pelos franceses. Uma rebelião entre os seus o obrigou, no entanto, a retornar.
Em 1605 Pero Coelho de Souza, acompanhado da mulher, a marrana Tomázia, e filhos, parte novamente para o Ceará, desta vez em uma caravela. Aqui chegando, sofrendo a deserção dos seus soldados, enfrentando forte oposição nativa e, diante de uma seca terrível, empreende uma terrível retirada a pé, em busca da Paraíba. Além da família acompanham-no 16 soldados e o índio Gonçalo. A travessia da infeliz caravana foi por demais dramática. Desesperados e atingidos pela fome e sede, viram um a um irem-se sem vida os companheiros. Dos cinco filhos do capitão-mor, pelo menos dois, entre eles o mais velho de 18 anos, faleceram de fome e sede. Finalmente, esqueléticos, chegam ao Rio Grande, onde Tomázia não conseguindo resistir aos sofrimentos do corpo e da alma falece. Cumpre-se assim em Tomázia o destino dos seus desde a Ibéria até o Ceará. Cândido Pinheiro Koren de Lima é médico e pesquisador da cultura judaica no Nordeste
A Dinastia Almóada (ou Almôada, ou Almôade) foi uma potência religiosa berbere que se tornou a quinta dinastia moura, tendo se destacado do século XII até meados do século XIII.
Povo antigo da Germânia que invadiu os impérios romanos do Ocidente e do Oriente do século III ao século V. Dividiam-se em ostrogodos (godos de leste) e visigodos (godos do Oeste).
Foi a primeira dinastia de califas do profeta Maomé que, embora não sendo do seu sangue, pertencia também a uma tribo de Meca, o Curaixita. A primeira reinou de 651 a 750.
CLÁUDIO RIBEIRO
Ao lado, a sede do Arquivo Nacional Torre do Tombo, que desde 1990 funciona no campus da Universidade de Lisboa. Até 1755, o acervo (tombo) do Estado português ficava numa torre do Castelo de São Jorge, daí o nome.
Demitri Túlio Enviado a Portugal demitri@opovo.com.br
extensa documentação proveniente dos cartórios da Inquisição (15361821), cerca de 8 milhões de peças, é um quebra-cabeça que pode revelar não só o que foi esse aparelho da Igreja Católica e da coroa portuguesa. É caminho para se chegar também a outras tramas do cotidiano da metrópole e suas colônias. Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, pesquisadora aposentada da Torre do Tombo, que durante 15 anos sistematizou os arquivos da Inquisição em Lisboa, sugere que os documentos revelam além dos enredos que estão nos processos dos amaldiçoados pelo Santo Ofício. A partir das fontes inquisitoriais há rotas de investigações que apontam para conflitos sociais, dificuldades econômicas, censura, movimento marítimo, arquitetura urbana, toponímia, integração de estrangeiros na sociedade portuguesa, evolução das mentalidades e outras especiarias da memória colonial.
Bibliotecáriaarquivista pela Faculdade de Coimbra. É historiadora pela Universidade de Lisboa. Atuou na Torre do Tombo de 1967 a 2005.
Por duas décadas e meia, Maria Dias Farinha, principal referência de catalogação dos arquivos da Torre do Tombo, dedicou parte de sua vida à identificação e inventário de “uma enorme massa documental de cerca de 1.200 grossos maços” de papéis com idade de quase cinco séculos e em estado delicado de conservação. Na sede da Torre do Tombo, a pesquisadora portuguesa teve de decifrar montanhas de papéis misturadas e escritas com as mais diversas tipologias e linguagens dos séculos XVI, XVII, XVIII e XVIIII. Um amontoado de documentos históricos criados a partir de 1536, com o início da Inquisição portuguesa.
Estavam à sua disposição, por exemplo, os processos dos tribunais de Lisboa, Coimbra e Évora. Documentação do Conselho Geral, como correspondência para os vários tribunais e para comissários no Brasil, habilitações para ministros e oficiais do Santo Ofício. Com o fim da perseguição católica lusitana aos hereges, em 1821, e as idas e vindas da burocracia de cada governo, a Torre do Tombo incorporou em 1825 e 1836, respectivamente, os arquivos do Conselho Geral do Santo Ofício e os da Inquisição de Lisboa, além dos registros de Coimbra e de Évora. Além do precioso arquivo da Torre do Tombo, ainda existem registros esparsos sobre a Inquisição na Biblioteca Pública Municipal do Porto, Biblioteca Pública de Évora, Arquivo do Tribunal de Contas de Portugal e Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Na Biblioteca Nacional de Portugal ficaram, por ordem do Ministério do Reino em 16 de Setembro de 1824, livros impressos e vários códices factícios, que posteriormente foram desmembrados e catalogados como documentos.
A consulta pública dos arquivos da Inquisição portuguesa na Torre do (acima), em Lisboa, só se iniciou no começo do século XX. Faltava um inventário.
Somente no início do século passado é que a Torre do Tombo abriu, para consulta pública, os arquivos da Inquisição de Portugal. Mesmo assim, sujeita a autorização do diretor da instituição. Não se tratava de proibição ou resquícios de censura da Igreja ou do governo. Segundo Maria Dias Farinha, autora do livro Os Arquivos da Inquisição (1990), a falta de um inventário dificultava as buscas e o trabalho dos pesquisadores. Até então havia pouca investigação sobre o tema e só com as publicações do escritor António Baião, funcionário em 1902 e depois diretor da Torre do Tombo, é que se despertou o interesse pelos arquivos. A edição do livro A Inquisição em Portugal e no Brasil promoveu uma corrida a Lisboa. Em 1965, por exemplo, por conta da falta de sistematização dos documentos das colônias referentes ao Santo Ofício, investigadores como Anita Novinsky, da Universidade de São Paulo, só foi autorizada a trabalhar nos depósitos da Torre do Tombo acompanhados de “um conservador” (atualmente o técnico superior de Arquivo). Hoje, boa parte dessa documentação está disponível na internet pelo endereço: digitarq.dgarq.gov.pt. (DT)
1. A Inquisição e o Sertão. A.Otaviano Vieira Jr. Edições Demócrito Rocha, 2008 2. História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. Francisco Bethencourt. 3. Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, volume 1. António Baião. 4. A Inquisição em Portugal e no Brasil, subsídios para a sua história. António Baião. 5. Gente da Nação – Cristãos Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. José Antônio Gonçalves de Melo. 6. Cronologia Sobralense e Raízes Portuguesas do Vale do Acaraú – índice Onomático. Padre Sadoc. Fundação Ana Lima. 7. Confissões de Pernambuco, 15941595. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. José Antônio Gonçalves de Melo. 8. Denunciações da 2ª visitação do Santo Ofício na Bahia. Marcos Teixeira. 9. Padre António Vieira, bibliografia 1998-2008. Jorge Couto (coordenador). 10.A América Portuguesa nas coleções da Biblioteca Nacional de Portugal e da Biblioteca da Ajuda. 11. A Igreja e o convento de São Domingos de Lisboa. M.M.de Brée. 12. Os Arquivos da Inquisição – Instruções de Descrição Documental. Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha. 13. Os Baptizados em Pé – estudos acerca da origem e da luta dos cristão-novos em Portugal. Eçias Lipiner.
ações cotidianas mais íntimas: em Recife, por ocasião da Visitação de 1593-1595, esposas denunciavam seus maridos que durante a relação sexual colocavam debaixo da cama um crucifixo, ou procuravam ter relações sexuais anais. Outros foram denunciados por dizerem, em momentos de raiva, que Maria, a mãe de Deus, não era virgem, ou que a mulher não tinha sido feita da costela de Adão e sim das fezes de um cachorro que tinha arrancado a costela da mão de Deus e comido.
O historiador Otaviano Jr. é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará e autor do livro A Inquisição e o Sertão (2008), da Edições Demócrito Rocha.
Ana Mary C. Cavalcante anamary@opovo.com.br
ara o historiador Antonio Otaviano Vieira Jr, as pesquisas sobre a Inquisição alargam o horizonte para além da visão dualista do “bem contra o mal”. Nesta entrevista, ele retoma a intolerância e as condenações à luz do século XXI A Inquisição portuguesa dos séculos XVI a XIX está mais próxima do que se imagina. Não em sua forma de tribunais ou fogueiras. É o seu espírito de intolerância que ainda ronda. “A base da Inquisição era o medo do diferente: algo que encontramos ainda hoje nos movimentos separatistas, nos ataques homofóbicos, nas brigas entre torcidas de futebol, nas piadas racistas, nos linchamentos públicos”, relaciona, nesta entrevista por e-mail, o historiador Antonio Otaviano Vieira Jr. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará, Otaviano muda o foco do lugar comum ao pesquisar A Inquisição e o Sertão (Edições Demócrito Rocha). Para o estudioso, deve-se ir além da visão dualista do “bem contra o mal”, de crucificação pura e simples da Igreja ou dos romances de Umberto Eco. “Estudar a Inquisição e sua presença em terras cearenses é ter acesso a novas possibilidades de análise sobre o período colonial cearense”, aponta. Na condução de sua pesquisa sobre o tema, Otaviano vai tecendo ligações entre os tempos. “O que a documentação sobre a Inquisição está nos ensinando é a forma de pensar, de imaginar o mundo e as tensões sociais e econômicas que muitas vezes marcavam os cotidianos dos séculos XVI a XIX do Império lusitano, incluindo o Ceará”, indica. (Colaboraram Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio)
O POVO - Acusados de bruxaria queimados vivos em fogueiras, a organização de tribunais religiosos para o julgamento de crimes contra os dogmas católicos, os autosde-fé se convertendo em espetáculo para a cidade. O que o senhor lê de toda essa história? Qual a sua versão para a Inquisição? Antonio Otaviano Vieira Jr. -Os trabalhos acadêmicos sobre Inquisição ajudaram a ter uma visão menos dualista, “o bem contra o mal”. Ou seja, não pensar a Igreja como um berço de “crueldades” que queimava pessoas por prazer e sadismo. A Inquisição deve ser pensada para além dos romances do Umberto Eco e dos filmes com atores famosos. Não estou defendendo as
ações inquisitoriais, mas chamando atenção que a base da Inquisição era a intolerância, o medo do diferente: algo que encontramos ainda hoje nos movimentos separatistas, nos ataques homofóbicos, nas brigas entre torcidas de futebol, nas piadas racistas, nos linchamentos públicos (que nos lembra os autosde-fé)... Enfim, leio a Inquisição como mais um momento que marca a incapacidade e o medo das pessoas em conviverem com a diferença, momento onde o diferente é pensado como inferior, pecador e por isso deve se expurgado. Temos muito que apreender com os estudos sobre a Inquisição, pois o passado é um ótimo caminho para o presente se revisitar. OP - A Inquisição ficou intocada por muitos anos, como bem lembra o historiador Capistrano de Abreu em prefácio para o livro Primeira Visitação do Santo Officio (de 1935). Quando se começou a mexer nesse arquivo silencioso da Igreja e como se deu essa abertura? Otaviano Jr. - Não acho que a Inquisição tenha ficado “intocada” por muitos anos; já em 1852, (ou seja, 31 anos após o fim do Santo Ofício), Alexandre Herculano escrevia um estudo clássico sobre o funcionamento da Inquisição em Portugal. Mas, o que marcou durante muitos anos esses estudos foi o foco sobre os processos inquisitoriais e sobre a organização administrativa do Santo Ofício. Por outro lado, no Brasil, os estudos inquisitoriais foram instigados inicialmente para estudar os cristãos-novos. Hoje ampliamos nossos estudos não só em relação às fontes documentais, como também temáticas variadas estão sendo analisadas. O que a documentação sobre a Inquisição está nos ensinando é a forma de pensar, de imaginar o mundo e as tensões sociais e econômicas que muitas vezes marcavam os cotidianos dos séculos XVI a XIX do Império lusitano, incluindo o Ceará. OP - O Tribunal do Santo Ofício perdurou por 285 anos, de 1536 a 1821. Que balanço o senhor faz da atuação da Inquisição no Brasil – qual o período e a região mais afetados por denúncias e processos,
por exemplo, e o que estava por trás desse cenário local? Otaviano Jr. - Destaco que estou sempre falando da Inquisição portuguesa, pois também teve Santo Ofício na Itália, na França e na Espanha. Também não nos esqueçamos que tribunais religiosos não foram exclusividades de reinos católicos; Alemanha e Inglaterra (que eram países protestantes) também tiveram seus tribunais. No caso do Brasil, estávamos atrelados a Inquisição lusitana, especificamente, ao Tribunal de Lisboa. O período mais afetado é complicado dizer: por exemplo, se, por um lado, a segunda metade do século XVIII assistiu uma diminuição dos processos e denúncias inquisitoriais, foi nesse período que mais se nomeou “espiões” da Inquisição no Brasil. E, no caso do Ceará, também foi na segunda metade do século XVIII que tivemos mais denúncias e processos. O que quero dizer é que a força da presença da Inquisição no Brasil variou de capitania para capitania, estando atrelada ao próprio adensamento populacional das regiões, as suas importâncias econômicas e administrativas. O Ceará, por exemplo, era uma capitania periférica, e a presença da Inquisição está em sintonia com o crescimento da importância da pecuária na pauta exportadora, a criação de vilas pelo Sertão, estruturação administrativa e crescimento populacional. Mas, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e o Estado do GrãoPará e Maranhão tiveram um número significativo de denunciados e “espiões” habilitados, Visitações e um diversificado quadro de funcionários do Santo Ofício (Comissários e Qualificadores). OP - Qual a importância do rigor da Igreja (com seu Tribunal do Santo Ofício) para ajudar a monarquia a se fortificar politicamente, no Brasil, naqueles anos? Otaviano Jr. - A relação não era linear entre Inquisição e monarquia, apesar do primeiro inquisidor de Portugal, o cardeal D. Henriques, ser irmão do rei português. Entretanto, devemos considerar a Inquisição como mais uma forma de marcar a ingerência do Governo Português no cotidia-
no do Brasil – além de outras partes do Império, não nos esqueçamos do Tribunal de Goa. Mas, isso não significava que a Colônia era um simples desdobramento dos desígnios da Metrópole. Já com o Regimento da Inquisição de 1774, o Regimento era uma espécie de Guia de Ação e de Fundamentos do Tribunal, houve uma série de mudanças atrelada a influência do marquês de Pombal. Por exemplo, os feiticeiros deixaram de ser tratados como agentes do demônio e passaram a ser pensados como “loucos”, ou “embusteiros” que queriam enganar o povo; assim deixaram de ser queimados e passaram a ser presos em hospitais ou prisões comuns. Trabalhei com um caso de Sobral, sobre um menino voador, que a estruturação da denúncia revela tensões entre o pensamento iluminista pombalino e práticas de cura marcadas por rituais que envolviam a bebida da Jurema, ossos de cavalos mortos no campo, imagens de santo... Falar em monarquia portuguesa é muito amplo, mas acredito que, de maneiras diferentes, governantes lusitanos se apoiaram na estrutura e na força dos Tribunais do Santo Ofício – o contrário também aconteceu. Agora sua pergunta é interessante porque nos faz pensar na manipulação da legislação e de agentes judiciais por elites políticas e, ao mesmo tempo, enveredar para a relação entre práticas cotidianas e as leis. Um tema bastante atual. OP - Em Portugal, a Inquisição pretendia “recuperar o cristão”, digamos, trazê-lo de volta para a Igreja. Em contrapartida, como o senhor mesmo revela na pesquisa que resultou no livro A Inquisição e o Sertão, no Brasil, “as denúncias não tinham grande consistência argumentativa”. As fofocas e as brigas de ocasião eram o que motivavam as denúncias no Ceará. Que perfil o senhor retrata da Inquisição no Estado? Otaviano Jr. - Bom, não acho que o empenho era de “recuperar o cristão”, mas, sim, puni-lo e com isso evidenciar para a sociedade quais as práticas que eram aceitas e quais eram proibidas; lembra os presídios brasileiros, que mais enchem de medo os que estão fora do que “recuperam” os que estão dentro. A consistência argumentativa era baseada em outra lógica, diferente da lógica judicial de hoje: nesses casos, o “saber por ouvir dizer” tinha tanto peso quanto o presenciar, o mais importante – repito – era a criação de um clima de denúncia, onde a todo instante a sombra inquisitorial pairava nas situ-
OP - E qual o perfil das pessoas envolvidas nas denúncias e nos processos a partir do Ceará? Otaviano Jr.- No Ceará, o delito mais comum era o de bigamia. Mas, também encontrei denúncias de feitiçaria, de bestialismo, de sodomia e sigilismo (padre que revelava segredos de confissão). O leque de denunciados é amplo: escravos, índios, altos funcionários, militares, padres... Mas, o número de casos levantados é, metodologicamente, limitado para traçar um perfil ou uma tendência geral. OP - O Brasil era colônia portuguesa ao tempo da Inquisição. Em que pontos as duas versões da Inquisição – a que vinha de lá para cá e a que ia de cá para lá - se cruzam e se influenciam? Otavianoa Jr. - Na realidade, o Brasil estava sob a tutela da Inquisição do Tribunal de Lisboa. Ou seja, os processos e as nomeações de “espiões” transcorriam lá. Agora, por exemplo, para a nomeação de “espiões”, aqui, no Brasil, o Tribunal fazia vista grossa para alguns limites dos nomeados, pois se mantivesse o rigor, simplesmente, não nomearia quase ninguém. Por outro lado, muitas vezes, pela distância entre Lisboa e o Brasil, e as distâncias internas do Brasil, muitas denúncias – eu diria que a maior parte – não eram averiguadas e nem se transformavam em processo. OP - O desinteresse das visitações do Santo Ofício ao Brasil em relação ao Ceará foi só por causa do volume de denúncias e processos que havia aqui (numa vila ainda muito pequena naquela época) ou por algum outro motivo? Otaviano Jr. - Salvo o GrãoPará e Maranhão, todas as outras Visitações do Santo Ofício aconteceram em fins do século XVI e início do século XVII. Nesse período, o Ceará não tinha muita coisa além de algumas esparsas fazendas de gado e arremedos de uma estrutura administrativa. A própria condição periférica cearense, pensemos durante todo o período colonial o Ceará nunca teve uma vila com status de cidade, não instigava muito a atenção das autoridades coloniais e menos ainda metropolitanas. OP - O que a Inquisição traz de novo para a narrativa do Ceará? O taviano Jr. - Estudar a Inquisição e sua presença em terras cearenses é ter acesso a novas possibilidades de análise sobre o período colonial cearense. E o é por trazer à tona elementos que compunham um cenário cotidiano marcado por tensões sociais, por diferentes práticas culturais, por famílias de elite, por escravos, por índios, por homens e mulheres... É estudar a configuração de realidades diárias que eram experimentadas, vivenciadas de maneiras diferentes por indivíduos diferentes. É falar de paixões, de enganos, de magia, de sexo, de casamento, de padres...
Planta da cidade de Lisboa Antiga (1844)
Planta da cidade de Fortaleza (1888)
Capitanias do Nordeste do Brasil (1640)
O 1º caderno da trilogia Inquisição - No rastro dos amaldiçoados (A perseguição) foi publicado no dia 23/5/2010 e trouxe histórias inéditas sobre os réus do Santo Ofício no Ceará Grande. Aguarde o terceiro caderno para julho.
O projeto gráfico da trilogia, criado pelo editor de Arte, Gil Dicelli, é inspirado nos azulejos portugueses, representação artística que marcou o período. A tipografia dos títulos é a mesma usada no século XVI.
* Percurso já feito para os dois primeiros cadernos da trilogia Inquisição. Nova rota será incluída
o sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, um padre católico se desvendou judeu e ergueu num pedaço do semiárido nordestino um castelo em reverência ao rei David. A edificação, batizada por Engady ou das Escrituras Sagradas - o lugar onde David se refugiou para escapar da espada de Saul, tem um Leão de Judá empalhado no cimento e uma estrela de seis pontas pintada. No mesmo sertão nordestino, que na época do Brasil colônia foi terra de quem invadiu ou foi enviado pelo rei, os vestígios vão ressurgindo. Em Campina Grande, território da Paraíba, durante os festejos do shavuot (Pentecoste) estava escrito na entrada de um templo judaico improvisado:
“Eis que dos escombros ocultos da Inquisição espanhola e portuguesa, qual fênix das cinzas, um povo não mais considerado povo, desacreditado, rejeitado, de identidade quebrada, roubada e massacrada, renasce!”. E que povo seria esse que, segundo a pós-doutora em judaísmo Anita Novinsky, a história formal faz questão de não dar conta? Uma nação silenciada nos subterrâneos
do Brasil ibero-holandês, que aos poucos vem fazendo um caminho de volta. Nesse labirinto, cheio de fios e tramas esquadrinhadas a partir de 1492 e mais o desenrolar da Inquisição portuguesa (1536-1821), O POVO foi investigar os movimentos que a história faz. Para além do auxílio da Torre do Tombo e seus mais de 18 mil documentos digitalizados sobre a Inquisição lisboeta, os repórteres Luiz Henrique Campos, Ana Mary C. Cavalcante, Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio saíram pra recolher histórias de vida. Narrativas orais feito a do padre católico e judeu Antenor Salvino de Araújo, que para refazer sua descendência trocou até missivas com a primeira-ministra de Israel Golda Meir. Ou depoimentos de gente que mora num dos cafundós da Paraíba (Boa Vista) e que conta de uma sinagoga que se disfarçava de casa de oração cristã. No percurso do segundo caderno sobre o “rastro dos amaldiçoados”, um inédito encontro da investigação jornalística com os judeus descendentes dos “forçados” à conversão ao catolicismo. Numa LisboaBrasil tão longe e tão perto do ano de 1497. Clãs de bnei anussim ou anoussitas que começam a sair da histórica clandestinidade. Gente da nação, ho-
mens de negócios, senhores de engenho, degredados, mandados para o Nordeste brasileiro e algumas outras partes da colônia ibérica. Para Anita Novinsky, do Laboratório de Estudos Sobre a Intolerância da Universidade de São Paulo (LEI-USP), 30% desses colonizadores, judeus convertidos e batizados na marra com nomes de católicos portugueses, acabaram por deixar marcas na diversidade cultural que molda, principalmente, o homem do Nordeste. Uma outra perspectiva da colonização. Não só aqui, mas também no Rio de Janeiro, São Paulo, Manaus, Minas Gerais... A ponto de surgir, embora recente, um Sindicato Israelita das Comunidades Anoussitas (Sica) para mediar diálogos entre o Estado de Israel e o povo que reivindica cidadania e reparo à memória de ancestrais que foram caçados, queimados ou apodrecidos nos porões da Inquisição portuguesa.
No primeiro caderno da trilogia da Inquisição, publicado em 23 de maio último, O POVO trouxe histórias inéditas sobre a perseguição do Santo Ofício no Ceará. Agora, um convite para um mergulho no Brasil ainda incógnito dos anoussitas.
Capa do primeiro caderno da trilogia especial “Inquisição”
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Inquisição – No rastro dos amaldiçoados II Diretor Geral de Jornalismo: Arlen Medina Néri; Diretora de Redação: Fátima Sudário; Editor-Chefe: Erick Guimarães; Edição: Fátima Sudário, Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio; Concepção Gráfica: Gil Dicelli; Fotomontagens: Guabiras; Infográficos: Pedro Turano; Gerenciamento de Imagens: Alcides Freire; Edição de Imagens: Demitri Túlio e Cláudio Ribeiro.
Este edição histórica é parte de uma trilogia do O POVO sobre a Inquisição no Nordeste. O primeiro caderno foi publicado em 23 de maio e trouxe a história da atuação do Santo Ofício no Ceará. O terceiro caderno será publicado em julho e vai mostrar a descendência judaica na região.
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A Torre do Tombo tem a mesma designação desde o século XIV. A referência mais antiga a ela é 1384. Lá estava tudo dos arquivos da realeza. Todo o registro de propriedade real, numa das torres do Castelo de São Jorge, no alto da velha Lisboa. Daí o nome. O tempo passou e os arquivistas o tornaram acessível para recontar histórias. Como O POVO faz agora sobre os anos de Inquisição no Nordeste do Brasil Colônia. Hoje é chamada de Arquivo Nacional Torre do Tombo, órgão da adminis-
tração central (federal). Tem cerca de 60 mil usuários por ano. Do acervo total, o mais consultado é o da Inquisição de Lisboa. Além da pesquisa in loco, O POVO folheou o acervo digitalizado, buscando processos e denunciações no Ceará. Até março último, havia 2,7 milhões de imagens disponíveis na Internet ligadas à Inquisição portuguesa. A documentação original existente no local, se totalmente enfileirada, teria 90 quilômetros de extensão, segundo o diretor-geral do ANTT, Silvestre Lacerda. A
área ocupada pelos documentos ocupa 50 mil metros quadrados – o equivalente a cinco campos de futebol. O original mais antigo existente na Torre do Tombo é de 872, século IX. É um documento do mosteiro de Cête, freguesia do concelho de Paredes. Diz de uma doação da igreja de Lordoza (do concelho de Penafiel, próximo à cidade do Porto). Entre o material arquivado não há só papéis. Réus acusados de bruxaria e feitiçaria também tinham seus pozinhos apreendidos. (Cláudio Ribeiro)
Denúncias e suspeições
Processos e Tribunal
Inquirições e sentenças
Degredo e prisões
Ao lado, representação da disputa religiosa entre judeus e cristãos. Ilustração da Espanha, no século XIII. Imagem tirada do Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, de Alan Unterman.
Abaixo, o Menorá (lâmpada, em hebraico). É o candelabro de sete braços, um dos principais e mais difundidos símbolos do judaísmo. Dizse que simboliza os arbustos em chamas que Moisés viu no Monte Sinai.
Demitri Túlio Enviado a Portugal demitri@opovo.com.br
Expulsos da Espanha (1492), cerca de 200 mil judeus migraram para Lisboa. Batizados à força (1497), receberam nomes lusos e muitos vieram para o Nordeste do Brasil.
os amaldiçoados pela Inquisição portuguesa (1536-1821), os bnei anussim - descendentes de famílias judias que penaram nas mãos do Tribunal do Santo Ofício e foram forçadas a se converter ao catolicismo para escapar de tortura e fogueira -, tentam, hoje, no Nordeste brasileiro, reconstituir sua origem e refazer laços de nome e sangue com Israel. A história desse novo capítulo, 513 anos depois da era de intolerância da Igreja Católica e dos reinos de Portugal e Espanha, esquadrinha a reconstrução de pontes para um retorno ao judaísmo da terra original. A raiz dos sobrenomes da maior parte dos que povoaram o que hoje se conhece por Nordeste tem origem no inquisitorial 1497, em Lisboa. O historiador José Antônio Gonsalves de Mello conta, em seu Gente da Nação, que milhares de judeus, ao se negarem à conversão católica, foram expulsos da Espanha em 1492. Os convertidos viraram marrano e obrigaramse a professar a fé católica. No mesmo ano, a coroa lusitana abriria as portas do reino aos enjeitados mediante pagamento de taxas. Mas a perseguição não findou. Cinco anos depois da diáspora espanhola, dessa vez por causa de um conchavo político oficializado pelo casamento do reis católicos dom Manuel I e Isabel da Espanha, o el-rei lusitano decretou um novo expurgo. Colocando, no entanto, as caravelas do reino à disposição dos degredados. Os judeus, reconta David Salgado, coordenador de projetos do Departamento Anussim da ONG israelita
ortodoxa Shavei Israel, “ficaram a ver navios ao largo do porto de Lisboa, em 1497”. Daí a expressão que teria atravessado o continente e o tempo. Sem poder embarcar, enganados por dom Manuel I, outra leva foi tangida para armazéns em Lisboa. Lá, trancadas as portas, foram batizados em pé e à força ao cristianismo.
Receberam, narra David Salgado, nomes portugueses. E nascia aí, registra o historiador José António Gonsalves de Mello, os cristãos-novos e os problemas daí consequentes. Com a instalação da Inquisição, em 1536, iniciou-se a dispersão ou emigração dos “forçados”. Também apelidados por criptojudeus ou o povo que praticava o judaísmo às escondidas. Aos domingos iam à missa e, em casa, mantinham rotinas judaicas. José Antonio Gonsalves grifa que os judeus resistentes e os cristão-novos correram para a Antuérpia (1537); foram acudidos como homens de negócios na França (1550) e do território francês migraram para Amsterdam e Hamburgo (1590). Para o Nordeste do Brasil, principalmente Pernambuco que possuía o Ceará, desembarcaram a partir da primeira metade do século XVI com o “ânimo da permanência”. Iludidos, acreditaram estar longe dos olhos e ouvidos do Santo Ofício.
É o nome em espanhol para judeus convertidos ao cristianismo que se mantiveram secretamente ligados ao judaísmo.
A história se passa como numa película que liga épocas e lugares. Visualize o ano de 1497. Clãs de judeus bnei anunssim, já corridos da Espanha em 1492, foram obrigados, em Lisboa, a virar cristãos. O livro Liras - O Nome e o Sangue, uma Charada Familiar no Pernambuco Colonial, do médico cearense e pesquisador do judaísmo no Nordeste, Cândido Pinheiro, projeta o ocorrido assim: “Primeiro, tiraram seus filhos menores de 8 anos e os remeteram para Ilha dos Lagartos para obrigar (os pais) a assumir a fé católica. Depois informaram que no Estaus (Lisboa) se encontravam navios para sairem de Portugal. Os que ainda permaneceram na fé judaica foram em massa à procura da saída. Mas foram trancados nos armazéns, batizados com panelões de água benta jogada brutalmente sobre eles, após resistirem dias e dias sem comida e água. Trocaram-lhes os
nomes. Criaram a Inquisição para vigiá-los na fé”. Da cena descrita no século XV, o roteiro passa para o atual século. Maio de 2010, em Fortaleza. Cerca de 80 descendentes dos batizados à força se juntaram pela primeira vez no Brasil para revindicar, através do 1º Congresso Nacional Bnei Anussim, o que a Inquisição lhes tirou há 513 anos. Entre as gerações remanescentes, gente que se descobriu bnei anussim por causa do sobrenome ou por cultivar desavisadamente hábitos judaicos que foram repassados por tataravós, bisavós, avós... Segundo as anotações do israelita radicado em Fortaleza Sagiv Simona, idealizador do encontro e casado com uma anunssita cearense, famílias que vivem no Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Sergipe, Paraíba, Bahia, Piauí, Pará, Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. (DT)
FOTOS IGOR DE MELO
A história dos cristãos-novos no Rio Grande do Norte é o mote do documentário A Estrela Oculta do Sertão (2005), de Elaine Eiger e Luiza Valente. Luiz Henrique Campos Enviado à Paraíba e ao Rio Grande do Norte lhcampos@opovo.com.br
região do Seridó norte-riograndense tem chamado a atenção de pesquisadores e estudiosos pela quantidade de costumes e tradições originários da cultura judaica. As garras da Inquisição no Rio Grande do Norte não se mostraram tão vigilantes como na Paraíba. Segundo levantamento do antropólogo Luiz Mott, foram quatro denúncias entre o período de 1750 e 1765, com uma característica: todas elas envolviam religiosos, que se aproveitavam dessa condição para fazer pedidos “imorais” às mulheres que bus-
cavam a confissão (crime de solicitação). A maioria casadas e humildes. Nenhum dos caso resultou em processo. Mas o medo da Inquisição fez com que cristãosnovos, após a queda do domínio holandês no Nordeste, desbravassem o sertão potiguar. Essa história, que por mais de dois séculos esteve escondida, começa a chamar a atenção de pesquisadores que, nos últimos 20 anos, passaram a voltar seus estudos para o fenômeno do marranismo na região. Hoje há pesquisadores que apontam a região do Seridó potiguar como o centro mais importante de irradiação da presença de cristãosnovos no Nordeste durante o período colonial no Brasil. É Nathan Wachtel, historiador do Collège de France.
Wachtel, um dos mais celebrados pesquisadores sobre o fenômeno do marranismo no mundo, já esteve várias vezes na região do Seridó. Foi levantar a memória do criptojudaísmo ainda presente em histórias familiares. No momento, o professor Wachtel finaliza, na França, uma pesquisa, dando-lhe forma de livro, que tratará das conclusões a que chegou sobre o marranismo no Nordeste. Em Caicó (RN), onde centralizou suas pesquisas, Wachtel contou com a colaboração do professor da Universidade Federal da Paraíba, historiador Muiraky-
O documentário ganhou o 9º Festival de Cinema Judaico, realizado em São Paulo, em 2005. Exibido depois em Israel, causou grande impressão no público.
tan de Macêdo. Estudioso do século XVIII, ele diz que, como historiador, ainda não se defrontou com nenhuma evidência documental escrita sobre a presença de cristãosnovos no Seridó. No entanto, afirma que muitos costumes, sobretudo funerários, segundo estudiosos do tema, são heranças marranas. Boa parte das atenções sobre a presença de cristãosnovos no Seridó no período colonial se deve à ousadia do padre aposentado de Caicó, Antenor Salviano de Araújo. Coube ao religioso, que desde sua entrada no seminário se interessou pelas origens da região, fazer um pedido ao rabino Fritz Pinkuss para que investigasse aspectos da herança judaica na região. A investigação etnográfica contou com a participação da pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Anita Novinsky, que colheu provas das suspeitas levantadas pelo padre Antenor. Mais recentemente, o também pesquisador Jacques Cukierkorn realizou estudo em várias cidades do Seridó e noutras do Rio Grande do Norte, onde há predominância marcante dos costumes e tradições herdados da cultura judaica. Para Muirakytan de Macêdo, se não há provas documentais da presença judaica na região do Seridó, os estudos relatando os costumes e tradições trazem indícios, apesar de muitas dessas tradições já terem se perdido no tempo. Ele ressalta que até mesmo os que praticam essas tradições não sabem direito a origem desses costumes.
Muirakytan de Macêdo diz que costumes são herança judaica
A atenção sobre a região do Seridó em torno da forte presença de judeus na época da colonização brasileira tem sido alvo até de uma polêmica que envolveu o historiador Luís da Câmara Cascudo. Para ele, a origem do termo Seridó seria indígena. “De ceri-toh, sem folhagem, pouca folhagem, pouca sombra ou cobertura vegetal”. Para o pesqui-
sador João Medeiros Filho, do Rio Grande do Norte, “Serid” em hebreu significa “o que escapou”, mas pode ser também traduzido como refúgio ao se acrescentar a letra “o”. Nesse sentido, Medeiros defende que Seridó seria “refúgio Dele”. Ao se referirem a Deus, é tradição dos judeus omitirem o nome Deus, por se tratar de uma heresia citá-lo em vão.
Além do Seridó, Venha Ver, com 3 mil habitantes, na Serra de São Miguel, divisa com o Ceará, virou reduto de pesquisadores do judaísmo no Rio Grande do Norte.
O apego às tradições é uma das marcas fortes da presença judaica na região do Seridó. Como não podiam professar abertamente suas crenças, os cristãosnovos tiveram que fazê-las às escondidas. O resultado é que são poucas as marcas físicas desse período e os que ainda podem haver surgem no campo da especulação. Uma dessas especulações, na cidade de Caicó, no lado paraibano, é a história passada de gerações segundo a qual o local onde hoje é a igreja da cidade, foi uma sinagoga. A comprovação desse fato obviamente só será possível com um estudo sobre as ruínas da edificação, o que é pouco provável que seja feito. Já nas cidades de Carnaúba dos Dantas e em Caicó, dois castelos em estilos medievais chamam a atenção pela imponência de suas estruturas. Em Carnaúba dos Dantas, o Castelo de Bivar pertence a José Ronilson Dantas, que
Reprodução de detalhe na fachada do castelo o construiu em 1984 em homenagem ao filme El Cid, que retrata a vida de uma família de nobres espanhola que morava em um castelo denominado Bivar. A edificação não guardaria nenhuma relação com a presença judaica na região. Já o Castelo de Engadir, foi construído em homenagem aos judeus pelo padre Antenor Salviano de Araújo.
Ao fugir do rei Saul, David se refugiou na Palestina em Engady, que significa “a fonte do cabrito”, por ter água farta onde esses animais iam beber.
FOTOS IGOR DE MELO
Luiz Henrique Campos Enviado à Paraíba e ao Rio Grande do Norte lhcampos@opovo.com.br
inda na adolescência, o jovem de Caicó (região do Seridó), Antenor Salvino de Araújo, dizia se apaixonar pelas histórias e costumes repassados por seus avós. Para ele, chamavam atenção os fatos relacionados à história sagrada e à origem dos povos. Ao cursar Filosofia e depois o seminário em São Paulo, as convicções do futuro padre foram se fortalecendo no sentido que seu povo tinha o faro de judeus. No começo, diz ele, chegou a ser ridicularizado quando aventava a hipótese de descendência judaica. Até que uma vez, em São Paulo, decidiu procurar o rabinomor naquele Estado, Fritz Pinkuss, para lhe relatar suas impressões. Um mês depois, o rabino e a pesquisadora Anita Novinsky entravam na sala do padre Antenor Araújo, em Caicó, para dar início ao trabalho de investigação etnográfica sobre o Seridó. Anita Novinsky, uma das maiores pesquisadores das origens judaicas no mundo, saiu encantada com o que viu na região. Estava comprovada a tese despertada no jovem Antenor ainda na sua adolescência. Hoje, diz ele, não se incomoda de ser tratado por padre judeu. “Sou judeu de raça, mas não de credo”. Antes de terminar a conversa com o padre aposentado em uma final de manhã em Caicó, ele reforçou: “Dessa origem não se tem provas em cartório. Mas há o cheiro. De agora em diante, quem quiser que tome conta”. O POVO - Como o senhor foi despertado por essa possível relação com a presença judaica no Seridó? Antenor Araújo - Desde criança na propriedade rural de meus avôs onde estive um período, aqui em Caicó, sentia que nós pertencíamos a um povo, que éramos uma raça, por tudo aquilo que nossos avós nos contavam com tanta veemência, tanto ímpeto. Não se dizendo judeus, mas falando sobre a história sagrada. E eles transbordavam tudo aquilo que mais tarde, nos meus estudos de História Geral, no seminário por onde eu passei, fomos vendo e comecei a sentir e achar que nossa gente não era só de portugueses e espanhóis que vieram para cá. Mas que teria uma raiz. OP - Mas que fatos lhe chamavam a atenção? Antenor - Os contos deles, da história sagrada, e também de tantas peças que a gente via aqui no sertão. As figuras bíblicas que foram sempre
A área total da edificação do castelo de Engady em Caicó é de 51 mil metros quadrados com estilo arquitetônico que lembra o mouro-medieval. Na fachada, o leão de Judá.
Padre Antenor Salvino é judeu assumido, mesmo com a batina de padre católico. Na foto, com a pintura da ex-primeira ministra de Israel, Golda Meir apresentadas, como a roca, a candeia. O modo de vida, por exemplo, a família patriarcal, aquele respeito enorme, o pai determinando a educação dos filhos, escolhendo o marido das filhas. OP - Mas não havia uma noção clara dessas tradições? Antenor - Ninguém tinha. Enquanto não toquei a corneta não havia uma noção clara. Havia tudo isso, toda essa cultura, esse flash de cultura, toda essa raiz, esse lampejo, mas ninguém se voltava para isso e se dizia de origem judaica. Origem judaica. Não é o credo. O credo é outra coisa. Todo mundo aqui é católico, apostólico, romano... OP - A sua família é católica? Antenor - Sim. Acreditamos em Jesus e não abrimos. A questão é só de raça. OP - Nesse período que o senhor retorna para cá já tinha uma bagagem teórica para entender esse processo? Antenor - Sim. E 1977 fui a São Paulo, porque sempre voltava por lá e passei um mês lá. E me veio à mente falar com o rabinomor de São Paulo (Fritz Pinkuss). Quando fui recebido por ele, chovia muito e trovejava. Ele disse: os seus santos do Nordeste lhe favoreceram para chegar aqui. Expus aquilo que sentia sobre nossa região e nossa gente. Perguntei se não mereceria um estudo. Então ele disse: dentro de um mês estará lá na sua região a doutora Anita Novinsky. OP - Ele não tinha nenhuma noção do que veria por aqui? Antenor - Não. E com um mês
a doutora Anita entrava aqui nessa sala com o Olavo de Medeiros Filho, o maior genealogista do Rio Grande do Norte, e o rabino. Reuni todo o conselho paroquial, líderes da sociedade de Caicó. A doutora Anita fez uma explanação muito bonita. Andou pela feira, pelas ruas, fotografou, foi até a Chapada do Apodi, onde encontrou até fósseis. Então, o que em princípio colegas debochavam de mim, ficou comprovado que havia sangue judeu nessa raça. E hoje são diversos estudantes universitários fazendo pesquisa nessa área e ninguém ri mais. Com o tempo as pessoas foram se interessando mais e certa vez eu recebi 16 sábios judeus. Eles tiveram uma conversa com a sociedade de Caicó e depois disseram que foi a reunião mais calorosa que eles tiveram no Brasil. Depois um desses rabinos fez sua tese de doutorado sobre a origem judaica no Seridó. OP - O senhor se incomoda de ser chamado de padre judeu? Antenor - Não. Acho até muito bom. Não é o credo, é a raça. OP - O senhor manteve contato com Golda Meir (ex-primeira-ministra de Israel no período 1969-1974). Como foi sua relação com ela?
Antenor - Escrevi para ela uma vez. Ela respondeu e fiquei constantemente me correspondendo com ela. Dentre essas correspondências tem uma que ela escreve: “Sensibiliza-me ter um amigo tão sincero em terras tão distantes”. Então quando fui a Jerusalém levei até uma caneta em cobre para dar de presente para ela, mas não foi possível. Ela já estava hospitalizada e morreu poucos dias depois. OP - O senhor nunca foi recriminado pela comunidade católica? Antenor - Nunca. Olhe, no cabeçalho do meu bloco de escrever, tem lá: “Monsenhor Antenor Salvino de Araújo, padre emérito de Santana, capelão do papa etc e judeu da diáspora”. A diáspora é local para onde foi chutado o judeu que chegou até o Seridó com seus troncos. OP - O que mudou na sua vida depois dessa militância? Antenor - Só fiquei mais convencido. Aquele povo todo, hoje eu sei, é base de nosso povo. Sempre senti, em tudo, por tudo, que éramos descendentes de Abrahão. OP - O senhor chegou a construir um castelo em Caicó para homenagear seus antepassados? Antenor - Meus avós, bisa-
vós, tiveram terras, fazendas e tal. Quando fui ordenado era um joão sem-terra. Mas queria muito. Ao menos uma chácara. Fiquei procurando e a diocese pegou um trecho de uma fazenda e loteou. Fui um dos primeiros a comprar. Comecei a construir com muita perseverança uma casa. Sempre fui louco por História Geral, por esse mundo bíblico, castelos, conventos, mosteiros, essas coisas. Então, quando comecei, decide fazer a imitação de um castelo. Tinha um lajeiro, e no lajeiro formava assim uma espécie de gamela, que no inverno ficava cheio de água. As cabras vinham beber e lembrei que na Bíblia tinha uma passagem dessa, em que as cabras vinham beber, e se chamava Engady, que era o lugar onde David se ocultava da ira de Saul. Tinha alguns benfeitores que me ajudaram quando morei em São Paulo e eles sempre me diziam: “O senhor é tão louco por uma chácara, quando tiver a terra, nos mostre que nós daremos uma ajuda”. Eles mandaram uma ajuda para eu entrar no prédio. Então passei 30 anos para terminar o prédio. E um dia, visitando a Terra Santa, estava vendo o roteiro de visitação, e estava lá a foto do meu castelo em Israel.
O castelo de Engady em Caicó chama atenção pela reprodução de aspectos da cultura judaica, como uma grande estrela de David em ferro logo na entrada (detalhes nas fotos ao lado).
Comprado pelo governo do Estado, o castelo encontrase abandonado, com a perspectiva de uma possível reforma onde deverá abrigar um centro cultural.
Luiz Henrique Campos Enviado à Paraíba e ao Rio Grande do Norte lhcampos@opovo.com.br
O pesquisador e memorialista Ouriques Soares (à esquerda na foto abaixo), natural de Boa Vista, converteuse ao judaísmo após descobrir sua origem em pesquisas na cidade.
em vindo à Boa Vista de Sancta Roza. Na entrada da pequena cidade de Boa Vista, a 40 quilômetros de Campina Grande, no Cariri paraibano, uma casa de alvenaria estilo colonial com telhado quatro águas, serve de depósito para o estábulo onde o proprietário José de Anchieta Vitorino, 65, cria algumas poucas vacas. O local é mais um imóvel prestes a ser comido pelo tempo, dado o avançado
estado de abandono. O lugar que hoje guarda apetrechos para a lida com o gado é, porém, um dos mais antigos do Cariri paraibano, remontando ao ano 1760. Com parte do material da construção ainda em perfeito estado, ali já foi a Casa Grande de Boa Vista, habitada por descendentes de Teodósio de Oliveira Lêdo, de família das mais importantes do sertão paraibano nos séculos XVII e XVIII. É da antiga Casa Grande que o pesquisador Francisco de Assis Ouriques Soares, pesquisador e memorialista, autor do livro Bôa Vista de Sancta Roza, de Fazenda à Municipalidade, publicado em 2003, vai narrando o que considera a possível presença de judeus na região. Kiko, como é conhecido, defende a tese de que Boa Vista foi um reduto de cristãosnovos quando ainda Teodósio era proprietário da fazenda Sancta Roza, que deu origem à cidade. Pertencente, em Campina Grande, à comunidade judai-
ca Magen David (Estrela ou Escudo de David), Kiko cita como evidência o local onde está erguida hoje a capela de Boa Vista, segundo prédio erguido na localidade após a Casa Grande. Da Casa Grande até a igreja, a distância é de mais de 600 metros, o que, para o pesquisador, vai contra a tradição da época de se erguer os templos religiosos próximos às residências mais importantes. Segundo Kiko, no local onde fica a igreja atualmente seria uma sinagoga clandestina, que ao ser descoberta teve sua estrutura transformada em templo católico. Diz ainda que o próprio bispado de Olinda, a quem pertencia a capitania da Paraíba, chegou a embargar essa construção. O estudioso revela também que, somente depois de concluída a igreja, é que casas foram sendo montadas. Outro argumento favorável à tese do pesquisador, é que a estrada, que irradiou posteriormente Campina Grande às artérias do Sertão, passava em frente à
Casa Grande, o que para ele, não justificaria a localização da igreja tão distante desse ponto. Além disso, o templo religioso católico teve iniciada sua construção em 1819, tendo sido finalizada em 1839, quando a Casa Grande é de 1760. Natural de Boa Vista, Kiko utilizou no livro sobre a origem da cidade, de 500 páginas, a oralidade da população para caracterizar os costumes e tradições das antigas famílias. Há casos, por exemplo, onde as pessoas relatam que seus antepassados eram holandeses, fazendo referência à ocupação das tropas daquele país entre 1624 e 1654, ou que não comem carne de porco por influência dos mais antigos. Nas ruas e no material de divulgação da história da cidade, há poucas referências sobre a possível origem judaica da população. Para Kiko, é natural que seja assim. Mas se não há referências oficiais históricas a um possível passado judaico, o símbolo da cidade é uma estrela da David.
Boa Vista é uma cidade pequena, mas chama a atenção pela limpeza de suas ruas e a atenção que seu povo dispensa aos visitantes. Segundo Kiko, isso é também uma tradição judaica. “Somos pobres, mas somos limpinhos”, diz ele quanto à impressão que a cidade causa. Se nas áreas abertas é assim, é digno de registro a conservação dos imóveis residenciais pelos proprietários. Tudo muito bem cuidado. As casas são modestas, mas com fachadas impecáveis. Por dentro, as moradias revelam um passado arquitetônico que merece ser apreciado. Desde as janelas com descanso para os braços ao estilo dos pisos e telhados resistentes. Ao menor sinal de que os jornalistas estão de passagem pela cidade, não faltam convites para uma refeição ou para as festividades do município. Boa Vista é conhecida na região como a terra do queijo e não há eventos para marcar isso. Mas a cidade é também conhecida por ser área de exploração de bentonita, mineral utilizado na perfuração de poços, entre outras utilidades. Essa condição geográfica lhe permite ser hoje a responsável pelo sexto melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Paraíba e o sétimo no ranking do Produto Interno Bruto do Estado (PIB) local.
IGOR DE MELO
José de Anchieta Vitorino (à direita na foto), 65, o vaqueiro que mora na antiga Casa Grande (Boa Vista), quer morar no imóvel, mas dá pouca atenção ao fato histórico.
A família de Teodósio de Oliveira Lêdo foi a grande responsável pela ocupação do sertão paraibano a partir de 1664, quando deixaram a região do São Francisco, hoje pertencente ao estado de Sergipe, que à época pertencia à Bahia. Na Paraíba fundaram várias cidades. Entre elas, Brejo da Cruz, Catolé do Rocha e Campina Grande, só para citar algumas. Nesta última, Teodósio recebeu virou permanência. No município há um monumento erguido em sua homenagem. O primeiro capitão-mor da Paraíba foi o tio de Teodósio, Custódio de Oliveira. Ele mesmo, Teodósio Lêdo, chegou ao posto em substituição ao irmão, Constantino de Oliveira Lêdo. A história registra ainda sobre Teodósio o fato de ter incentivado, por meio das missões de catequese e bandeiras, a conquista do Interior paraibano após as invasões holandesas.
Além do Shavuot, ou Pentecost, as outras festas mais importantes do judaísmo são a Pessach (Páscoa) e a Sucot (festa das cabanas ou das colheitas).
FOTOS IGOR DE MELO
A equipe do O POVO acompanhou a cerimônia do shavuot entre os judeus residentes em Campina Grande: silêncios respeitados e proibição do uso do flash pelo fotógrafo
No Shavuot, recomenda-se que todo judeu, inclusive os bebês, façam todo o esforço para estarem presentes às sinagogas durante a leitura dos Dez Mandamentos.
Novas gerações judaicas recebem desde cedo a instrução de seus familiares, aprendendo sobre o passado de seu povo. Entre as lições, as perseguições inquisitoriais Luiz Henrique Campos Enviado à Paraíba e ao Rio Grande do Norte lhcampos@opovo.com.br
escada de 18 degraus que vai dar em um portão vertical meio escondido é o único acesso para a rua da modesta casa. Já passava das 19 horas e, aos poucos, as famílias, com seus idosos e crianças, começavam a chegar trazendo como oferenda os alimentos à base de leite que seriam utilizados na comemoração. Naquele 19 de maio, em todas as sinagogas do mundo, é a data dedicada ao Shauvot, uma das três festas mais importantes da cultura judaica. O Shauvot significa “semanas” e marca o período da unidade com a Pêssach (Páscoa judaica), que acontece sete semanas antes. Neste intervalo aconteceu a preparação do povo judeu para a outorga do Torá, que representa a purificação das cicatrizes da escravidão e a ascensão a uma nação sagrada. No dia do Shauvot, todas as sinagogas fazem uma vigília estudando o Torá. Em Campina Grande, no Cariri paraibano, a comunidade Magen David (Estrela ou Escudo de Davi), repete o ritual há 13 anos desde que o grupo foi fundado por
Hanna Arruda. Hanna, ex-católica praticante, aderiu ao judaísmo após visitar Israel e descobrir sua descendência. Até sua morte, há dois anos, era uma das maiores incentivadoras do estudo do judaísmo na cidade, onde existem atualmente três comunidades judaicas bastante atuantes Na sinagoga Magen David, os que adentraram no local naquela noite o encontraram enfeitado com frutas, flores e folhagens. O motivo da utilização dos adereços é lembrar que os primeiros frutos da colheita eram oferecidos na data do Shauvot. Na cerimônia, o ritual é seguido à risca, começando com os cânticos em hebraico entoados por crianças e adolescentes nascidos, todos naturais de Campina Grande. O papel dos mais jovens na celebração não é à toa. Os sábios, segundo membros da comunidade, relatam que Deus, para outorgar a Torá, teria pedido fiadores. Os judeus sugeriram: “Nossos filhos serão os fiadores de que o povo judeu ganhará a Torá”, no que Deus aceitou. Na cerimônia da Magen David, a leitura das escrituras também fica a cargo de um adolescente. Com a morte de Hanna Arruda, o Magen David passou a ser presidido pelo advogado Alessandro Magno de Oli-
veira e conta com cerca de 70 adeptos de várias idades, que como ele já adotam os mandamentos proibitivos ou negativos da cultura judaica, como não trabalhar no shabat. O shabat é o dia de descanso semanal no judaísmo, que varia de semana para semana e de lugar para lugar, dependendo do horário do pôr-do-sol. Dentre os outros mandamentos adotados pelos componentes do Magen David estão não comer carne de porco nem crustáceos; só consumir peixe de escamas e que não tenham couro; tomar vinho exclusivamente feito por uma comunidade judaica em São Paulo, autorizada para tal; não tomar refrigerantes à base de uva nem guaraná. No entanto, o consumo de CocaCola é permitido. Isso porque os ingredientes têm que ser processados de acordo com as leis rabinas. Alessandro admite que a religião judaica é uma das mais difíceis de se praticar e que, por isso, nem todas as recomendações são seguidas à risca. “Mas aos poucos vamos adotando o que podemos”, afirma. O presidente da comunidade reconhece ainda que não há como provar a origem deles como descendentes de cristãos-novos,”mas os sobrenomes indicam isso”.
Em uma das paredes da sinagoga em Campina Grande, no sertão da Paraíba, inscrições que remetem aos acontecimentos da Inquisição portuguesa.
Para a comemoração é recomendada, após o almoço, refeição festiva à base de laticínios. Antes da refeição noturna, recitar trechos relativos ao shabat.
Mapa abaixo integra coleção comemorativa da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), sobre os 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil
Atlas da Costa do Brasil, de 1646. Trecho é referente à Capitania do Cumã, perto da Barra do Maranhão. Na imagem está a povoação do Cumã, onde Ludovico morou
Cláudio Ribeiro Enviado a Portugal claudioribeiro@opovo.com.br
A história da condenação de Ludovico foi o 21º processo da Inquisição encontrado pelo O POVO, dentre os que fazem referência à Capitania do Ceará Grande.
eará Grande e Maranhão eram vizinhos. A geografia da Igreja Católica naquele Brasil colonial, desenhada a partir da área de atuação dos bispados, deixava lado a lado as duas capitanias. As regras religiosas cearenses vinham do bispado de Pernambuco. O Maranhão tinha sua autonomia episcopal. Justo nessa risca imaginária que separava os bispados - entre a Vila Viçosa Real, hoje Viçosa do Ceará, e a Vila Cumã, atual Guimarães, município maranhense – deu-se a investigação da vida do bígamo Ludovico pelo Tribunal do Santo Ofício. Antes de ser apenado com açoites e desterrado para os porões praguejados das galés pelos inquisidores, porque ousou ter duas esposas, Ludovico já tivera outra vida difícil. Teve dono. Foi escravo do senhor Teófilo de Barros, proprietário de terras e de gente. Alforriado em junho de 1755, o ex-escravo casou-se por aquela época com a mestiça Faustina de Campos na
dita vila Cumã. Ela também era das posses desse Teófilo. Mas, livres e apesar de unidos na lei divina, marido e mulher acabaram tendo vidas distantes. Ludovico afastou-se dela porque veio para o Ceará Grande ser soldado. O lugar de onde saiu distava quase 800 quilômetros da Viçosa Real. Foi só no Ceará Grande que Francisco Pereira Leitão virou Francisco Ludovico Pereira (ou mesmo Ludovico Leitão, a apuração dos inquisidores divergiu sobre isso, segundo os autos do processo 5.674). Era nascido em São Luiz (ainda grafada com z) do Maranhão. Aqui, morava a sete léguas da vila cearense. Adotou a alcunha quando foi para o Regimento. Foi espalhando, vivendo de nome novo.
Até que conheceu Bárbara Alves Fernandes. Conquistou a moça, bem criada, nascida no Rio Grande do Norte. E botou o nome novo também num segundo casamento. Quisesse ser feliz outra vez, teria que ser conforme a
Lei da Igreja. Porém, se não era viúvo, não poderia casar novamente. Ludovico virou réu da Inquisição. O padre pernambucano Luis Fernandes de Carvalho, da vila de Granja, no Ceará, confirmou em depoimento que a celebração foi no dia 2 de outubro de 1759. Esteve nela. Vários colegas de quartel endossaram a informação que Ludovico seria mesmo já casado com outra. Só de terem ouvido falar, o que já era muita coisa para os inquisidores. Além de Viçosa Real, as diligências da Igreja também foram às vilas de Granja e Sobral. Numa das comunicações, o juiz do processo reclama de ter percorrido mais de 40 léguas e o escrivão outras 28, quatro dias fora de suas casas, para tomada de depoimentos. Eram os apuros daquela época. O deslocamento incluía a longa subida e descida na Serra Grande (também chamada Serra Geral ou Hibiapaba, com H mesmo). Na Torre do Tombo, em Lisboa, os papéis arquivados do Santo Ofício sobre o soldado bígamo incluem até carta do então capitãomor do Ceará Grande, Antô-
nio José Victorino Borges da Fonseca. Enviada ao comissário Henrique Alves Gaio, um investigador da Inquisição. O capitão-mor era a autoridade máxima na capitania. Borges da Fonseca falava que não havia condições de manter um preso que cometera um crime do Santo Ofício. A correspondência é de 28 de setembro de 1773, redigida na vila de Fortaleza de Nossa Senhora Assumpção. O capitão-mor soube da história durante uma viagem a Viçosa Real, ocorrida em julho anterior. O réu confirmou suas culpas. Chegou aos cárceres secretos de Lisboa em maio de 1777. Foi condenado ao açoite público, degredo para as galés por cinco anos, rezas e bancar as custas do processo (como a viagem dos inquisidores, por exemplo). Da primeira mulher, confirmaram o matrimônio e ela terminou seus dias na Vila Cumã. A segunda, aos 32 anos, “morreu de bexigas” (varíola) em Juritianha, ainda hoje distrito de Acaraú. Ludovico, já com 50 anos ao ser preso, não se deu mais conta. Não foi mais visto no Ceará Grande nem no Maranhão.
Imagem ao lado é do processo 9.352 da Torre do Tombo, em Lisboa. Um dos 18 mil documentos digitalizados da Inquisição portuguesa
Demitri Túlio Enviado a Portugal demitri@opovo.com.br
Para entrar em contato com o departamento Anussim da Shavei Israel, acesse: www.shavei.ong ou pelo email salgado@shavei.org
influência do povo de fora na formação do Nordeste brasileiro durante o período colonial é um labirinto. Nos caminhos que indicam a presença dos judeus no sangue ibero, ainda há muito atalho para se percorrer. Os batismos à força e a Inquisição, observa o médico cearense e pesquisador do judaísmo há 20 anos, Cândido Pinheiro, 63, fizeram com que o “se assumir judeu” fosse sempre algo escondido, clandestino. Por causa das perseguições, e aqui o referencial é a expulsão e conversão forçada na Espanha (1492) e Portugal em 1497 e a Inquisição (1536-1821), o anonimato tornou-se a única opção para escapar da alcovitagem em terra estrangeira dominada por espiões do Santo Ofício. Mas a clandestinidade deixou vestígios. Num processo recente da história, os descendentes dos judeus caçados pela Inquisição, ou em hebraico bnei anoussim, começaram a montar o quebra-cabeça de suas origens e despertar para o fato de que foram criados em meio às práticas judaizantes. O fenômeno, conta a historiadora Anita Novinsky, é tema de investigação do Laboratório de Estudos Sobre a Intolerância da Universidade de São Paulo (leia entrevista na página 12). Para auxiliar na aliáh, ou na volta à terra de Israel, surgiram algumas instituições dispostas a fazer me-
diações de cultura, religião e cidadania entre o Brasil e o território onde nasceram ancestrais sentenciados pela Inquisição. O Sindicato Israelita das Comunidades Anoussitas (Sica), fundado em 22 de abril de 2002, é um desses atalhos. Sem fins lucrativos, o Sica nasceu do casamento do israelita Asher Ben-Shlomo, 45, neto de judeus sobreviventes do holocausto nazista, com a anoussita alagoana Cissa de sobrenomes Henrique, Silva e Soares. Poucos brasileiros sabem, mas tais sobrenomes indiciam o parentesco com judeus convertidos à força ao cristianismo e que vieram colonizar o Brasil. No sindicato estão famílias de bnei anoussim do Brasil e Espanha. O Sica, sediado na cidade de Ashdod, e o deputado rabino Haim Amsalem discutirão com o Parlamento israelita, no próximo dia 22, a questão anoussita e a reaplicação de critérios que possibilitem aos herdeiros de sangue dos judeus perseguidos pela Inquisição, e convertidos à força ao catolicismo, de receberem o status especial de “retornantes ao seio do povo judeu”. Asher Ben-Shlomo, presidente da instituição, esclarece que a lei do Retorno de Israel, de 1950, estabelece que judeu é todo nascido de mãe judia ou que se tornou prosélito (pessoa que se converteu ao judaísmo) e que não pertence a outra religião. Mas há uma polêmica e um entrave. Como Israel se constitui num estado secular, esmiuça Asher Bem-Shlomo,
o vínculo de nacionalidade se resume ao laço de religiosidade. Porém, há uma possibilidade de releitura desse preceito. Baseado em uma jurisprudência, ou halacha do rabino Shlomo Bem-Shimon, que viveu na época da Inquisição portuguesa, é judeu aquele nascido de mãe judia ou que se tornou prosélito de acordo com as leis rabínicas. O halacha de Shlomo Bem-Shimon considera judeu de sangue o “forçado” que teve de mudar de religião por causa da Inquisição. Nesse caso, observa Asher Bem-Shlomo, essa pessoa não teria de se converter a fé judaica, mas passar por um processo de reintegração nacional ou retorno, que em hebraico significa ashava.
Centenas de anoussitas brasileiros, inclusive do Ceará, conseguiram fazer a aliah (emigrar para Israel) e adquirir a cidadania israleita. Mas, alerta Asher BenShlomo, somente após conversões por meio das congregações religiosas israelitas reformistas e não ortodoxas. São instituições sediadas em São Paulo, a exemplo da Congregação Israelita Paulista, e no Rio de Janeiro, onde atua a Associação Religiosa Israelita. As conversões reformistas realizadas no Brasil são reconhecidas para fins de aliah, através da Agência Judaica. Faz quem pode desembolsar de 2 a 5 mil dólares para finalmente se reencontrar com a própria origem.
O amazonense David Salgado, 47 anos, há cinco trabalha na organização não governamental Shavei Israel. Uma instituição israelita ortodoxa que possui um departamento exclusivo para dar respostas aos anoussitas que querem completar sua história. Diferente do Sica que trabalha principalmente com o resgate da cidadania perdida dos “forçados” pela Inquisição, a Shavei direciona esforços para a conversão. A história de David Salgado também cruza com a Inquisição. Nascido em Manaus, ele descende de judeus expulsos da Espanha, em 1492, que em vez de migrarem para Portugal, tomaram o rumo de Marrocos. Com o advento do ciclo da borracha na Amazônia (1879-1912), muitos marroquinos - descendentes dos judeus corridos - emigraram para o Brasil. “Meu avô foi para a Amazônia e vou fazer uma revelação: minha mãe é judia convertida marrana, da família Sousa de Oliveira”. Em 2005, David Salgado decidiu usufruir da cidadania israelense. Foi depois que a esposa, grávida de nove meses, passou por momentos de aflição na casa onde morava em Manaus. Um assaltante a fez refém no banheiro do quarto de casal. “Por incrível que pareça, vivo num país hoje onde não tenho medo. Nem minha esposa nem meus filhos. Só quem esteve em Israel é capaz de entender”. Salgado, que estudou na Universidade Bar Ilan Histporia Judaica e Educação em Israel e foi oficiante religioso, ou chazan, durante quase 20 anos nas comunidades judaicas de Manaus e Belém do Pará, explica que a Shavei segue os critérios estabelecidos pelo Rabinato de Israel para a conversão ou reencontro com o judaísmo. Os critérios valem para todos que querem se converter e não têm pais, avós ou cônjuge judeus. A pessoa além de precisar de carta de recomendação de um rabino ortodoxo, deverá ter frequentado uma comunidade por pelo menos um ano. Após esse estágio, o pretendente ao judaísmo deverá escrever carta de punho contando sua história de vida e por que quer ser judeu. A Shavei recebe esses documentos e encaminha para o Rabinato de Israel que analisa e dá retorno. Caso seja aprovado, a documentação segue para o Ministério do Interior para emissão do visto de um ano específico para um processo de conversão no país. Mas não é fácil consolidar a conversão. O candidato deve viver por conta própria em Israel por um ano. O visto proíbe o trabalho. Os anoussitas no Brasil, comenta David Salgado, na maioria das vezes, não conseguem nem estar em comunidade judaica, pois onde moram a história deles não se consolidou.
Sobre o “retorno”, os anoussitas brasileiros acesse o Sica: http://anoussitas. blogspot.com ou email: bneihamedina@yahoo.com
Asher Ben-Shlomo, da Sica, é jornalista e advogado. É do Diretorio Nacional do Partido Politico Israelita Hatikva e vice-delegado do Congresso Sionista Mundial
São índices que relacionam os nomes dos acusados de judaísmo. Servia para sujar o nome do suspeito por gerações.
Cândido Pinheiro Koren de Lima Médico e pesquisador
verdade que o Ceará não possuiu prisões do Santo Ofício por judaísmo. A época em que o Estado começou a ter alguma importância econômica e política, a ponto de merecer a presença de um visitador, coincide com o período em que o marquês de Pombal e primeiro conde de Oeiras praticamente liquidou com a força inquisitorial do órgão. Destruiu as listas de fintas, tributos especiais que se pagava pelo simples fato de ser judeu ou cristão-novo, anotações cartoriais sobre origem judaica, e proibição definitiva dos autos-de-fé. As influências do certame inquisitorial, os temores e terrores por ele difundidos, os órfãos originários pela destruição de lares e assassinatos de inocentes espalham-se e cobrem, no entanto, como um manto o nosso Ceará. A existência de familiares do Santo Ofício servia como um aviso e sinal de alerta castrativo da liberdade em todo local abarcado pelo estado português. Aqui no Ceará também. Nada se comparava, no entanto à presença do visitador para apurar denúncias de desvio de conduta religiosa, principalmente entre a comunidade judaica conversa ao catolicismo. Os criptojudeus do nordeste foram severamente dizimados e aterrorizados pela presença do visitador do Santo Ofício na Bahia (1591-1593), Pernambuco (1593-1595) e novamente na Bahia em 1618. Quando os terrores pareciam abrandarse, surge um fato novo tenebroso na Paraíba, nas barbas de Pernambuco. Uma moça enciumada escreveu carta ao Santo Ofício onde denunciava toda comunidade de judaizantes de Tapecima.
Os efeitos foram terríveis. A devassa provocou a prisão, no período de 1729 a 1741, de 54 marranos e remessa dos mesmos aos cárceres do Santo Ofício em Portugal. O número é muitas vezes maior do que o ocorrido na Bahia em duas ocasiões e em Pernambuco. Muitos deles faleceram no próprio cárcere antes da sentença. Outros 26 foram con-
denados a cárcere e hábito penitencial perpétuo, 12 a cárcere e hábito penitencial a arbítrio, dois, à abjuração, dois a degredo e dois à pena de morte. Todos eles sempre tinham suas penalidades acompanhadas dos pagamentos das custas dos processos e despesas do Santo Ofício com o “hóspede”, além do perdimento do restante dos bens. Entre os sobrenomes dos condenados da Paraíba estão: Rego Monteiro, Fonseca, Nunes, Thomaz, Barbalho, Bezerra, Silveira, Mendes, Henriques e Valença. Seus descendentes estão, no entanto, entre nós. A terrível devassa teve uma influência enorme sobre os descendentes de judeus crípticos da região. Isto provocou uma grande migração dentre os descendentes de Branca Dias e do rabino Abraão Senior de Pernambuco para Zona Norte do Ceará, terra então virgem da Inquisição. José de Xerez Furna Uchoa fez parte desta leva que saiu de Pernambuco, onde nascera para Sobral. Ele teve grande importância política e econômica na formação da nova região. Aqui foi juiz ordinário e por fim capitão-mor. Aqui enriqueceu. Entre suas propriedades citava-se o Sítio Santa Úrsula, em Meruoca, para onde trouxe as primeiras mudas de café do Ceará (1743). Sua casa em Sobral, continua em pé e tombada como marco histórico pela municipalidade. Apesar do sucesso político e econômico, viveu temeroso do sangue judeu que lhe corria nas veias. Gastou boa parte de sua vida escrevendo um livreto onde esquecia propositalmente sua origem marrana e mostrava sua origem em um barão holandês (Henrique de Renenburg), casado com uma irmã (Margarida de Florença) do papa Adriano VI. Poderia até ser, mas isto é tudo muito esquisito. Quem afirma tal coisa é Borges da Fonseca em sua Nobiliarquia Pernambucana. É ele também quem diz que os judaizantes Branca Dias e Diogo Fernandes não deixaram descendência. Se assim fora nem o nobre capitão-mor nem tão pouco este simples escriba existiriam para refutar ou contar tal história. O papa Adriano VI era de Utrecht na Holanda e foi o último papa não italiano até João Paulo II. Na briga entre os Médicis e os Cardeias da França pelo trono papal, e na falta de
acordo, foi escolhido já idoso, porque iria durar pouco (seu papado foi de um ano), enquanto resolvia-se a sucessão de um Médici por um outro. Era um Papa de origem muito pobre. Estudava menino, na Holanda, na luz da iluminação de rua por não ter luz em casa. Como uma irmã de um seminarista ou padre tão pobre poderia casar com um barão holandês? Onde está qualquer livro sobre a nobreza holandesa em que conste um barão de Renenbourg ou Renanburg casando com uma irmã do papa Adriano VI? E o nome da moça era Margarida de Florença? E eles não eram de Utrecht? Procure-se em todos os livros de nobiliarquia em Holanda filho do supracitado casal, um Arnao de Holanda que migrou para Pernambuco.
O papa Adriano VI foi homem de grande cultura. Era professor e foi mentor do imperador Carlos V e chefe da Inquisição espanhola. Religioso da linha dura, impediu relaxamento das regras do Santo Ofício na Espanha. Agora diga-me: se um sobrinho neto deste papa e sua mulher fossem denunciados ao Santo Ofício por judaização, não caberia, no ato de depor, uma tirada bem brasileira? “Você sabe com quem está falando? O meu marido é sobrinho neto do papa Adriano VI, chefe de vocês inquisidores na Espanha!” No entanto quando a mulher de Agostinho de Holanda pretenso sobrinho neto do papa e neto de barão de Renenbourg é denunciado ao Santo Ofício por judaização nada disto é lembrado. Diante de tal origem até o depoimento teria de ser evitado. Maria de Paiva quando depôs ao Santo Ofício, acusada de práticas da lei mosaica, assim como foram sua mãe e avós já falecidos, tem como apoio não o possível parentesco papal, mas sim seu pai Baltazar Leitão Cabral, cristão-velho, da governança de Olinda, que tinha enorme influência sobre o clero. Exemplo disto é o que ocorreu com uma filha bastarda e mameluca, meio-irmã de Maria de Paiva (ver Denunciações do Santo Ofício-PE de 1593 e Bahia de 1591), que era casada com português cristão-velho. Desgostoso com o genro ou querendo fazer melhor negócio, anula na igreja o casamento da filha mameluca, põe a correr o ex-genro de Olinda e casa-a agora com um rico mercador cristãonovo. O ex-genro foge para o Rio de Janeiro. Quando o Santo Ofício chega à Bahia (1591) ele lá foi especialmente para denunciar o sogro e o clero, desejando retomar
a mameluca e os filhos. A denúncia não progrediu. O clero de Olinda e o sogro de Agostinho de Holanda eram fortes. O capitão-mor José de Xerez Furna Uchoa escondia sua origem judaica, tentando proteger a si e os seus. Era, no entanto, quinto neto de Maria de Paiva e sexto neto da denunciada Inês Fernandes e de Baltazar Leitão Cabral. Esta Inês era filha do casal de judeus conversos Branca Dias e Diogo Fernandes. A própria Branca Dias, sua mãe e uma irmã foram processadas e presas pelo Santo Ofício de Lisboa. Ela, Branca Dias saiu sambenitada para Pernambuco onde encontrou o marido que aqui já estava fugido do Santo Ofício. A família é a que detém o maior número de denúncias de práticas judaicas ao Santo Ofício em Pernambuco (1593-1595) e a que originou o maior número de prisões e condenações no dito certame. E não foram mais porque quando o visitador cá chegou, Branca Dias, Diogo Fernandes e boa parte das filhas já eram falecidos. O capitão-mor, no entanto, não possuía apenas esta afinidade de sangue com a família hebraica. Sua mulher Rosa de Sá e Oliveira, uma das sete irmãs (e assim todas sete irmãs tem a origem aqui dita), era filha de Manoel Vaz Carrasco e de sua segunda mulher Maria Madalena de Sá e Oliveira. O pai, Manoel Vaz Carrasco é quinto neto de Branca Dias e Diogo Fernandes. A mãe Maria Madalena de Sá e Oliveira, segunda mulher de Manoel Vaz Carrasco, possui pelos menos entroncamento em duas raízes judaicas importantes. Ela era quinta neta de Mateus de Freitas Azevedo, alcaidemor de Olinda no período da visitação em Pernambuco e de sua mulher Maria de Herede. Ambos aparecem nas denunciações. Maria Herede era cristã-nova e mameluca, filha da conversa Maria Reymoa e do mameluco com sangue espanhol João Quesado ou Quesada ou Queixada. Mateus de Freitas Azevedo, o alcaide-mor de Olinda, era neto de Vasco Fernandes de Lucena judeu marrano, cujos avós assim vieram de Lucena na Espanha um dos troncos dos Lucenas em Portugal e o nosso tronco de Lucenas em Pernambuco. Vasco Fernandes Lucena foi cofundador de Olinda e alcaide-mor hereditário da referida vila. Teve grande destaque na conquista de Pernambuco sendo companheiro principal de Duarte Coelho em fase primeira da colonização. Quando veio para Pernambuco deixou a família legítima em Portugal. Este tronco da família que lá ficou é a origem, entre outros, do primeiro marquês
de Pombal e primeiro conde de Oeiras Sebastião José de Carvalho e Melo, seu quinto neto. Em Pernambuco o quinto avô do marquês de Pombal acasalou-se com várias nativas e assim originou os Lucenas nossos, inclusive este vosso escrevinhador. Pode assim ser que o nosso capitão-mor não tenha entre seus parentes um papa e um barão holandês, mas tem dentre os seus o homem mais importante de Portugal no seu tempo, o marquês de Pombal, reconstrutor de Lisboa após o terremoto de 1755, o aparador das garras do Santo Ofício.
É o nome da localidade que existia na Paraíba colonial.
Os sofrimentos e as perseguições infelizmente não se resumiam à Inquisição. Em 20 de julho de 1788, a Câmara de Sobral determina que as terras da Serra da Meruoca, onde se localizava o Sítio Santa Úrsula, passassem a ser parte do patrimônio da Câmara. Seriam, então, reavaliadas por uma comissão especial e tributados anualmente em 2,5% de seu valor. O procedimento provocou revolta nos proprietários então chefiados por José de Xerez Furna Uchoa. O governo determina a prisão dele e dos demais componentes do grupo de revoltosos. Todos fugiram. O capitão-mor recusou a fuga e foi o único preso, sendo trazido a Fortaleza. Daqui foi remetido a Pernambuco e depois a Bahia e ali condenando a sete anos de prisão em Pedras Brancas na África.
Ao fim de dois anos ainda estava preso na Bahia a espera do degredo africano, quando seus parentes e amigos, conseguiram a comutação da pena de prisão e do degredo por 15 mil cruzados, sendo-lhe porém vedada a sua entrada na Capitania do Ceará por mais cinco anos, resto do tempo de sua sentença. Longe de seus bens, e tendo que indenizar os gastos que seus parentes e amigos tiveram com ele, ficou praticamente sem nada. Em 1789 retirou-se por mais três anos em Pernambuco temendo novas perseguições e intrigas. Assim, pobre e perseguido, faleceu em Sobral em 1797. Seu duvidoso parentesco com o papa Adriano VI e com o barão de Renembourg e com certeza a ligação familiar com marquês de Pombal pouco valeramlhe no episódio, quando teve que enfrentar o poder da Capitania do Ceará. Cândido Pinheiro Koren de Lima é médico e pesquisador da cultura judaica no Nordeste
Sobrenome de família de origem espanhola que também veio para o Brasil colônia.
Para Capistrano, a maior perseguição, no Brasil, deu-se no Rio de Janeiro: de 1707 a 1711, foram mais de 160 pessoas presas, “ás vezes famílias inteiras”.
A presença da Inquisição na Bahia e em Pernambuco foi registrada em nove livros, conta o historiador Capistrano de Abreu: três de confissões, quatro de denunciações e dois de ratificações. A maior parte dessa história se perdeu: apenas os volumes de ratificações estão completos.
A cronologia da visitação a Pernambuco e capitanias vizinhas, por exemplo, “não pode precisar-se na falta de documentos essenciaes”, atesta Capistrano. Sabe-se que, em junho de 1594, “o visitador continuava em Olinda, aonde chegara de volta de Paraíba em 1º de fevereiro”.
Ana Mary C. Cavalcante da Redação anamary@opovo.com.br
ra um disse-medisse. “Ao desvairado e quase deserto território brasílico chegavam essas notícias vagas e incompletas”. Assim, o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927) inicia uma curiosa narrativa sobre a Inquisição portuguesa e que vem à tona no prefácio do livro Primeira Visitação do Santo Officio às Partes do Brasil. Pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia 1591-92 (Edição da Sociedade Capistrano de Abreu, 1935). Um dos pesquisadores que mais influenciam a historiografia do Brasil também foi atraído pelas brechas da Inquisição. Os trechos reproduzidos nesta matéria conservam a grafia e o retrato da época. Capistrano explica que, até ser nomeado um inqui-
Conta Capistrano: “Nos autos de fé de 1709 em Lisboa appareceram já algumas desgraçadas filhas do Brasil... No anno de 1713 se contou o numero maior de condemnações em gente ida do Brasil; foram 66 os sentenciados, incluindo 39 mulheres”.
Em 1618, houve outra visitação na Bahia. Uma notícia que Capistrano toma como novidade. O visitador era Marcos Teixeira e deixou um registro de 322 folhas: “Nas primeiras, vem a lista das pessoas denunciadas, 134 ao todo. Até a folha 81, falaram 50 denunciantes”.
sidor geral para o reino – no dia 16 de junho de 1547, por bula do papa Paulo III -, “occorreram varios movimentos de recuo e de avanço”. Tanto que, em 13 de setembro de 1543, em Lisboa, João Barbosa Paes denunciou a Pero do Campo Tourinho, donatário de Porto Seguro, por se proclamar papa e rei e fazer trabalhar aos domingos. Em 1546, “quando o tribunal (do Santo Ofício) estava suspenso por Paulo III”, atenta Capistrano, Tourinho foi capturado pelos clérigos “e preso, a ferros, remetteram o potentado para alémmar, onde, em 1550, ainda respondia a interrogatorio”. Entre os casos que garimpa nos arquivos baianos e de Pernambuco, o historiador encontra “um francez heretico”, queimado, na Bahia, em 1573. “As circumstancias não vieram a nosso conhecimento”, limita-se. “A quem cahia na sua alçada, a Inquisição podia infligir todos os castigos até a prisão perpétua. Si esta parecia insuficiente, o criminoso ia entregue ao braço secular, que se encarregava do resto: o resto era a fogueira”, resume. A primeira visitação do Santo Ofício “ás partes do Brasil”, revela, foi ordenada pela bulla de 25 de janeiro de 1586. O documento do papa Sisto V constitui Heitor Furtado de Mendonça como inquisidor geral dos reinos e senhorios portugueses. Assim, no dia 9 de junho de 1591, um “domingo da Santíssima Trindade”, ele aporta na capital baiana. Ainda que sua permanência em Salvador se estenda até 2 de setembro de 1592, quando, a bordo da nau São Miguel, parte para Pernambuco, Heitor de Mendonça deixa poucos
rastros significativos para Capistrano de Abreu. Além da octogenária Ana Roiz, queimada na fogueira, o historiador cita um “caso diffícil de esclarecer”. “Certo Rocha” atirou com um arcabuz na janela do inquisidor. A sentença foi o degredo para as galés, por dois anos, depois de um ano na prisão. Além da exposição, na Sé, durante cinco domingos, “com grilhão e baraço e no cabo delles pregão por toda a cidade com baraço”.
Blasfêmias, heresias, infrações dos mandamentos da Igreja iam compondo as diversas “feições da sociabilidade bahiana”, em confissões e denúncias. A sexualidade sempre esteve na mira do Santo Ofício, ao lado das feiticeiras – “capazes de produzirem impotencia ou esterilidade”. Aqui, três bruxas aparecem com frequência, aponta Capistrano de Abreu: Isabel Rodrigues, de alcunha Bocca torta, Antonia Fernandes, a Nóbrega e Maria Gonçalves, popular como Ardelhe o rabo. Com seus “pós mirificos” ou “orações fortes”, pactuadas com o coisa-ruim ou alimentando criações bizarras com cebolas e vinagre. Mas nenhuma “se emparelha a velhinha Leonor Soares, chegada á terra bahiana em 1550”. A viuvez e a perda do irmão deram-lhe uma sombra misteriosa “e a aura popular envolveu-a em bruxedo. Depõe uma denunciante: ‘quando nesta cidade houve um dia grandes brigas e revoltas entre o bispo e o governador Luis de Brito, esta na mesma noite foi a Portugal dar aquella nova’”. Teria cruzado o Atlântico em uma vassoura?
REPRODUÇÃO
Capistrano de Abreu também foi atraído pelas bruxas da Inquisição Para o historiador Capistrano de Abreu, “o Atlântico entre Lisboa e o Rio” contribuiu para manter a Inquisição longe do Brasil – pelo menos, mais distante do que Goa (Índia), onde se implantou um Tribunal do Santo Ofício. O amplo litoral, “navegável segundo as monções que ora sopravam num, ora em outro sentido”, também se configurava em um bloqueio. Além disso, a Inquisição necessitava de frades para prosperar “e a metrópole desde os começos do século XVII começou a oppôr difficuldades á creação de novos conventos na colonia”. Mas o familiar do Santo Ofício supria a falta de tribunais da Inquisição no Brasil. Era os olhos, os ouvidos e – principalmente – a boca das denúncias. O título, a propósito, tornou-se “muito cobiçado”, sublinha Capistrano, porque explicitamente affirmava a limpeza de sangue e implicava numerosos privilégios”. Entre eles, enumera o historiador, “ficava isento de pagar fintas e talhas,
de lhe serem tomadas para a aposentadoria a casa de morada, cavallariças, etc, de lhe tomarem pão, vinho, roupa, palha, cevadas, lenhas, gallinhas, ovos, bestas de sella ou albarda; podia trazer armas offensivas; a mulher, o filho e a filha do familiar podiam usar seda em seus vestidos”. Finalmente, no dia 31 de março de 1821, as Cortes Constituintes de Portugal expediram um decreto abolindo os tribunais do Santo Ofício, no reino e em seus domínios. Segundo Capistrano de Abreu, o último inquisidor geral foi um sacerdote carioca: José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho, nomeado por dom João VI. Também escritor, o religioso entra para a história como um dos influenciadores da geração idealista pernambucana de 1817, ressalta Capistrano: Azeredo Coutinho havia sido bispo de Pernambuco, “aonde exerceu, pela fundação de um seminario inspirado em idéias modernas, extraordinaria influencia sobre a mentalidade pátria”.
EFEITO SOBRE FOTO DE GEORGIA SANTIAGO
Anita Waingort Novinsky é graduada em Filosofia pela (USP) e chegou ao pósdoutorado na Universidade de Paris I. Atualmente, é professora da USP e integra o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. antiguidade, sou a favor de recebê-los de braços abertos, em Israel, como cidadãos israelenses. E não é só cidadão israelense, não; cidadão judeu, entendeu? Porque os religiosos dizem que o brasileiro pode entrar lá como cidadão israelense, mas não como judeu.
Anita Novinsky é ainda presidente do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI-USP). A pesquisadora atua em temas como Brasil Colônia, cristão-novo e holocausto. Contatos podem ser feitos pelo site www.rumo atolerancia. fflch.usp.br.
No livro Rol dos Culpados (1992), Anita registra: no século XVIII, 1.819 nomes estavam entre os sentenciados, no Brasil. A lista abarca, principalmente, os estados da Bahia, da Paraíba e de Minas Gerais.
Cláudio Ribeiro claudioribeiro@opovo.com.br
Demitri Túlio demitri@opovo.com.br
Nordeste foi colonizado por judeus. A assertiva vem à tona de um Brasil subterrâneo, lavrada pela pesquisadora Anita Novinsky. Nesta entrevista por telefone, a presidente do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da Universidade de São Paulo conta outra história do Brasil: “Como cada senhor de engenho tinha 20, 30 filhos com as escravas, o sangue dos negros também é judeu ”. Sangue que correu pelas entranhas do País. De Pernambuco, assombrado pela visitação dos inquisidores, a Paraíba, ao Rio Grande do Norte, ao Ceará. E além: Belo Horizonte, Goiás, Bahia, Rio de Janeiro, “tem até no Sul: a Colônia do Sacramento que, hoje, é Porto Alegre, também tem os descendentes”, mapeia Anita. A polonesa, filha de uma “mãe ultraortodoxa” que sequer matava galinha “à moda cristã”, busca os cristãosnovos desde 1965 - quando vasculhou os arquivos da Torre do Tombo para sua tese de Doutorado. No século XXI, chega ao Ceará. Vem no rastro dos amaldiçoados pela Inquisição. “Os que dizem que são descendentes de forçados porque as famílias praticam, até hoje, rituais judaicos”. Anita Novinsky quer desbravar memórias: “O Ceará ainda não foi pesquisado. A gente vai ver qual a origem da família, o que ela lembra. A história oral é que vai nos ajudar”. São as lembranças e os dizeres, a cruzar os tempos, que, justamente, trazem à tona um Brasil subterrâneo. (Colaborou Ana Mary C. Cavalcante)
O POVO - O que o Laboratório de Estudos sobre a Intolerância trabalha na questão do judaísmo e da Inquisição? Anita Novinsky - O Laboratório foi construído para a pesquisa. Tem vários módulos, é interdisciplinar. Tem o módulo de Filosofia, de Psicanálise, de Antropologia, de Educação, de História. O módulo de História estuda a Inquisição e os conversos e tem uma equipe de pesquisadores, que é a minha equipe, para a questão judaica na Inquisição e no Nazismo. Trabalhamos esses dois períodos, os mais violentos do antissemitismo em toda a história da humanidade.
OP - O que a senhora destacaria de produção significativa na questão do judaísmo e da Inquisição, nesse tempo em que Laboratório vem trabalhando? Anita Novinsky - Minha equipe trabalhou várias teses. Teve uma tese defendida sobre o antissemitismo da Companhia de Jesus; sobre o padre Manoel Lopes de Carvalho (baiano), que morreu queimado pela Inquisição; tem outros que trabalham sobre diversas regiões do Brasil... Inclusive, um aluno meu vai trabalhar o Ceará. Tem alunos para o Rio de Janeiro, a Bahia. Cada aluno meu se especializa numa área do Brasil. O Nordeste é o lugar mais povoado por conversos, por cristãos-novos. É um dos lugares onde concentramos grande parte dos nossos estudos. OP - O estudo da senhora vem desde 1965... Anita Novinsky - Fui para Portugal trabalhar nos arquivos da Inquisição em 1965. Foi a primeira vez que fui lá para vasculhar os arquivos. Fui com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, de Portugal. Fui preparar minha tese de Doutorado. Fiquei lá durante o ano de 65, trabalhando nos arquivos, na Biblioteca Nacional, na Academia de Ciências, na Biblioteca da Ajuda... São todos os arquivos que têm assunto ligado aos cristãos-novos. OP - Já é possível dizer qual é a porcentagem da influência do judeu converso no Nordeste? Anita Novinsky - A porcentagem de influência, não posso dizer... Os brancos, a classe média para cima, todos eram de origem judaica. Como cada senhor de engenho tinha 20, 30 filhos com as escravas, o sangue dos negros também é judeu. Porque os senhores de engenho eram judeus - isso em grande número. Se eles tinham dezenas de filhos com as escravas... Então, você pega os mamelucos, os mulatos, todos têm sangue judeu. OP - É correto dizer que o Nordeste foi colonizado por judeus? Anita Novinsky - Foi colonizado, foi construído sem dúvida nenhuma. O Nordeste todo e o Norte também. OP - A senhora contou, no I Congresso Nacional de Bnei Anussim, que, quando voltou de Portugal para cá, recebeu ligação de um padre que lhe pediu que fosse a Caicó, no Rio Grande do Norte... Anita Novinsky - É, padre Salvino de Araújo... Ele me convidou para ir a Caicó porque disse que toda a população de Caicó era de
origem judaica. Fui, e ele me levou em várias casas. Encontrei muitos cristãosnovos de origem judaica que ainda mantêm várias cerimônias, costumes judaicos. Caicó tem uma fama mesmo. Me disse o vigário que toda população de lá é de origem judaica. Porque, quando os holandeses saíram de Pernambuco, os que não quiseram ir embora caíram na mão da Inquisição. Os portugueses tomaram conta, outra vez, de Pernambuco, do Nordeste e, aí, a Inquisição atuou de novo. E eles, com medo dessa perseguição nova, fugiram para a Paraíba, primeiro. Cem anos depois, a Inquisição pegou eles na Paraíba. Daí, foram para o Rio Grande do Norte, do Rio Grande do Norte foram para o Ceará e se espalharam. Foram os primeiros pecuaristas do Nordeste. OP - Há várias cidades com esse perfil no Nordeste ou até mesmo na parte mais central do Brasil? Anita Novinsky - Deve ter, mas temos pouquíssimos pesquisadores trabalhando com a história atual. Mas Belo Horizonte tem muita gente que diz ter origem judaica, Goiás também, Bahia, Rio de Janeiro. Tem até no Sul: a Colônia do Sacramento que, hoje, é Porto Alegre, também tem os descendentes. O Brasil inteirinho foi colonizado pelos judeus.
demos voltar atrás para entrevistar as pessoas. Então, a história oral é que vai nos ajudar a reconstituir a vida dos cearenses. Da Paraíba, do Rio Grande do Norte, eles se espalharam pelo Ceará. E começaram as comunidades. Até hoje, pelo o que ouvi no congresso, muitas famílias, entre elas, os costumes são, totalmente, judaicos. OP - No congresso, aqui, a senhora fez uma defesa: a grande discussão, em relação ao retorno, era a história da conversão, ou não. De ser reconhecido, simplesmente, como cidadão judeu sem a necessidade da conversão. Queria que a senhora explicasse um pouco isso. Anita Novinsky - Não tem uma só resposta. Há opiniões diferentes. Os ortodoxo-judeus têm uma opinião. Não sou uma pessoa religiosa, sou muito judia, identificada com os judeus e com Israel, mas não sou muito praticante. Tenho uma opinião diferente dos praticantes. Fui convidada para ir ao Parlamento de Israel, onde vai se realizar um encontro, no dia 22 de junho, em Jerusalém, para ser discutida, entre políticos e religiosos, essa questão da conversão ou do retorno. Quem tem costume judaico na família e lembra coisas, cenas, palavras que remetam aos judeus na
OP - O que a senhora tem de pesquisa sobre o Ceará? Anita Novinsky - Agora que vamos começar. O Ceará ainda não foi pesquisado. Foram pesquisados Rio de Janeiro, Bahia, Goiás, São Paulo, Paraíba. Agora que estive em Ceará e vi a grande quantidade de presentes que são bnei-anussim, os que dizem que são descendentes de forçados porque as famílias deles praticam, até hoje, rituais judaicos. Conheci essa gente agora e tenho um aluno que vai começar a pesquisa do Ceará. Quem fez pesquisa no Ceará, já começou é o Cândido Pinheiro. Ele publicou vários livros com índices de nomes, das origens, então, é preciso considerar os trabalhos dele. OP - O que vai ser o ponto de partida dessa pesquisa sobre o Ceará? Anita Novinsky - Vamos pegar os arquivos da Inquisição, começar pelos antigos e, depois, a gente vai ver quem tem aquele nome, qual a origem da família, o que ela lembra. Porque uma grande parte dessas pesquisas é a história oral. Não po-
A família de Anita Novinsky mudou-se para São Paulo, driblando o semitismo que cavalgava na II Guerra Mundial. O pai, lembra a pesquisadora, “foi o primeiro fazendeiro judeu do Brasil. Ele introduziu a criação de peixe carpa aqui”.
OP - Só pode entrar como judeu se fizer a conversão... Anita Novinsky - Isso dizem os religiosos. Acho que não precisa da conversão. A história oral da família é suficiente. A história oral muito usada hoje e muito fidedigna. A gente tem que considerar se ele tem lembranças, memórias. Se tem famílias que o pai foi na igreja, nunca deixou o filho ir na igreja, não batizou os filhos... OP - Eles dizem que têm esses costumes e, certamente, vaise fazer uma comprovação de como essa história chegou até eles, não é? Anita Novinsky - Uma história que tem 500 anos de judaísmo secreto é uma coisa única no mundo. Não tem outra civilização, a não ser a brasileira, onde aconteceu isso. Em Portugal, temos também esse fenômeno, em Belmonte, e agora são muito velhinhos, os praticantes. No Brasil, é diferente porque é gente moça, de meia idade, jovens. OP - As escolas de História ainda estão devendo muito a essa questão judaica? Anita Novinsky - Tenho dez doutores que estão trabalhando na história da Inquisição. Então, a Inquisição durou 300 anos e vai levar mais duas, três gerações para acabar de pesquisar! (risos). OP - A sua origem é judaica... Anita Novinsky - Sou judia de pai, mãe, avós e antepassados e nasci na Cracóvia (Polônia), no lugar onde houve a lista de Schindler. Seria uma das crianças de Schindler se tivesse ficado lá. Mas meu pai veio para o Brasil e salvou a vida da família. Vim na década de 30. Tinha dois anos de idade, quase três.Meu pai viu quando o semitismo estava ficando cada vez mais forte, então, resolveu ir para os Estados Unidos. Mas ele não podia entrar porque não tinha visto, e eles não davam. Então, veio para o Brasil e pensou em ir para os Estados Unidos do Brasil. Mas, quando chegou aqui, adorou o País. E ele sempre foi um grande brasileiro. Naturalizou toda a família e adora o Brasil. O Brasil é o único país no mundo onde não há uma hostilidade entre as raças. OP - Na casa da senhora, no cotidiano da família, se tinham as práticas judaicas? Anita Novinsky - Tinha. Minha mãe era ultraortodoxa, meu pai era livre pensador. Toda casa dela era kasher, que segue os rituais da religião: não comia carne de porco, não misturava leite com carne e era toda judaica (a carne vinha especial do bairro judeu), não matava galinha à moda cristã, mas à moda judaica, pra galinha não sofrer. De modo que cresci numa casa muito judia.
Acima, mapa antigo de Lisboa. A cidade foi revisitada pelos repórteres do O POVO, para traçar alguns caminhos de inquisidores e castigados do Tribunal do Santo Ofício.
Acima, arte de Pedro Turano sobre reprodução da gravura Mapa Geográfico da América Meridional, do cartógrafo espanhol Juan de La Cruz Cano y Olmedilla. Obra de 1776, do acervo da Biblioteca Nacional de Portugal.
as derradeiras andanças por caminhos de Lisboa e do Nordeste brasileiro em busca de herança ancestral e vestígios dos descendentes dos amaldiçoados pela Inquisição Portuguesa (1536-1821), chegamos ao miúdo Bonfim, em Sobral, no Ceará. Para lá fomos levado, pela boca de um senhor do cemitério de São José, em Sobral, que indicou morar ali um povo “faladamente” de origem judia. Fomos campear conversas, emendar retalhos, costurar texturas da vida alheia e pública de gente tida como diferente. Aportamos para observar, principalmente, fronteiras e permanências do que ficou e o tempo cuidou de reinventar. No discurso caseiro dos Farrapos, sobrenome de uma das famílias incorporadas à terra ocupada, os mais velhos apontam para silêncios da história e pistas que indicam uma
Inquisição – No rastro dos amaldiçoados III Diretor Geral de Jornalismo: Arlen Medina Néri; Diretora de Redação: Fátima Sudário; Editor-Chefe: Erick Guimarães; Edição: Fátima Sudário, Cláudio Ribeiro, Demitri Túlio e Luiz Henrique Campos; Concepção Gráfica: Gil Dicelli; Fotomontagens: Guabiras; Infográficos: Pedro Turano; Gerenciamento de Imagens: Alcides Freire; Edição de Imagens: Demitri Túlio e Cláudio Ribeiro.
Este edição histórica encerra a trilogia publicada pelo O POVO sobre a Inquisição no Nordeste. O primeiro caderno abordou a perseguição aos considerados hereges. O segundo tratou da colonização e ocupação do Nordeste pelos judeus perseguidos. Este caderno fala da herança cultural que permanece entre nós. Empresa Jornalística O POVO S/A – Av. Aguanambi, 282, Joaquim Távora, 3255 6000.
ancestralidade para além da escrita dali. De quem chegou, mas não se sabe os porquês. “Viemos daquela guerra do Rio Grande do Sul”, orgulhase Argentino Alves Farrapo, 83. “Judeus, aqui? Dizem que tem toda seita. Eu, pelo menos, só creio em Deus e Nossa Senhora e pronto. Se existe santo é porque inventaram”, reponde como se precisasse fazer uma defesa. E vai se revelando entre um café e uma água para matar o calor dos forasteiros. “Farrapos”, seria, ouviu dizer, comboieiros, comerciantes andantes, que vendiam tecidos. Talvez. Segundo anotações do padre e historiador sobralense João Mendes Lira, uma bisavó Farrapo daquele arraial “era rica, possuía 14 escravos. Fabricava muita farinha e embarcava para Angola, através do porto de Camocim”. Há outra versão apresentada por seu Argentino. Um compadre dele, de nome Ab-
delmon de Melo, disse “que tinha um livro que contava a história da família. Os Muniz Farrapo tinham sangue real. Hoje não”, lamenta o branco do olho azulado.
Por indicação do velho e do filho Elder Farrapo, nos embrenhamos pela caatinga atrás de uma pedra onde estaria desenhado, de tempos pra atrás, símbolos de Salomão. De verdade, existe já desgastada e ameaçada pela presença de uma cerâmica. A pedra virou anotação do padre Lira, que achou a pedra depois da indicação do velho Ferreira da Ponte. Um fazendeiro, do hábito secreto de desenhar menorah no chão de seu terreiro, e que havia comprado a fazenda Sobradinho dos Gradwohl. Venderam e rumaram para se estabelecer em Fortaleza.
“A inscrição era uma espécie de senha que levava os judeus mais adiante, uma vez que existiam outras. Estava confirmado o caminho por onde passavam os judeus que, fugindo à perseguição dos inquisidores do Santo Ofício de Recife, chegavam ao Ceará, pelo porto de Camocim. Tomavam a direção de Sobral e se internavam mais, interior adentro, indo fixar residência em Várzea do Pinto (hoje Bonfim), Cariré, Groaíras, Forquilha etc. No Bonfim, mais pistas encontradas pelo padre Lira e uma constatação. Os Gradwohl constavam no Dicionário Biográfico II – Judeus no Brasil/Século XIX, na página 150. No verbete: “Gradwohl Frères. Importadora e Exportadora em Fortaleza, à rua Major Facundo, 102”. Eles, que negociam jóias, bijuterias e exportações a partir de Sobral, andaram se informando com os Farrapos como chegar a Jaibaras, São Vicente e outras localidades. Bonfim é apenas um dos pontos de chegada e partida dessa viagem sem fim em busca da história dos descendestes dos “forçados” no Nordeste. Descoberta do padre cearense João Mendes Lira e pouco estudada na academia. É mais um ponto de vista sobre a influência da Inquisição Portuguesa e ocupação dos cafundós ibéricos.
Acima, reprodução das capas dos dois cadernos anteriores da trilogia Inquisição - No Rastro dos Amaldiçoados. O primeiro (A Perseguição) foi publicado em 23 de maio. O segundo (A Colonização) saiu em 19 de junho.
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Denúncias e suspeições
Processos e Tribunal
Inquirições e sentenças
Degredo e prisões
Gravura Tribos de Israel (ao lado), do acervo da Biblioteca Nacional de Portugal. Sem data de criação nem autor informados na catalogação. Retrata o formato de acampamentos hebraicos em épocas remotas.
Bnei Anussim são os descendentes de judeus que foram forçados à conversão ao catolicismo em 1497, depois de enganados pela coroa portuguesa. Com a Inquisição lusa (1536-1821), muitos criptojudeus vieram para o Brasil.
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Cláudio Ribeiro claudioribeiro@opovo.com.br Enviados à Região Norte do Ceará
uma investigação sobre o rastro dos “forçados”, o padre e historiador João Mendes Lira, já falecido, colheu pistas sobre a presença dos judeus acudidos em Sobral e em outros lugares do norte do Ceará colonial. Professor da Universidade do Vale do Acaraú (UVA), ele sublinhou dicionários, escarafunchou livros de batismos, casamentos e óbitos. Anotou depoimentos de idosos, traços de moços, percorreu cemitérios, embrenhou-se por parte do sertão grande cearense e observou heranças e modos de viver. Com a mesma admiração dos repórteres, esbarrou em clãs endogâmicos de gente alva dos olhos azuis em con-
fins parecidos com lugares refúgios. Não por acaso, padre Lira repete no preâmbulo de seu livro A presença dos judeus em Sobral e circunvizinhanças e a dinamização da economia sobralense em função do capital judaico, que “Sobral nasceu de um autode-fé”. Palavras copiadas dos diários de campo do general Wicar de Paula Pessoa, um estudioso da etnia cearense. Teria sido, mesmo, forte a influência de uma “célula judaica” no cotidianos costurados entre Sobral, Meruoca, Acaraú, Coreaú, Camocim, Reriutaba, Ibiapaba e outros pontos do centro-norte cearense? O também historiador e padre Francisco Sadoc de Araújo, ex-reitor da UVA e autor dos volumes Cronologia Sobralense minimiza a atuação dos judeus corridos para a região e as perseguições da Inquisição portuguesa na região da Caiçara. Em Sobral, seus estudos in-
dicam a existência do túmulo do judeu Samuel Weil, e do caso do cristão-novo, nãojudeu José Luis Pestana ou Polinardo Caetano César Ataíde, condenado em 1780 a seis anos de degredo em Angola por bigamia. “Não vou botar um judeu onde não vejo. Sou descendente deles porque vim da Branca Dias. Vocês também são”, diz padre Sadoc, que pesquisou no Arquivo Ultramarino, em Lisboa. Enveredado por outra linha da pesquisa histórica, padre Lira elenca pelo menos sete motivos para indiciar a presença judaica. Depois da expulsão dos holandeses (1654) de Recife, muitos judeus que não quiseram buscar asilo nos EUA, Barbados, Holanda ou Inglaterra, preferiram o Interior do Ceará. Dessa maneira, conta o padre e os pesquisadores Egon e Frieda Wolff, os tangidos vieram para Sobral e circunvizinhanças atraídos por alguns fatores.
Sobral possuía um eficiente porto para o escoamento de produtos. Principalmente charque e farinha, o que a fazia ter ligações com comerciantes de Salvador, Rio de Janeiro e Recife – lugar de forte presença judaica. Em Camocim, semanalmente, atracavam navios da linha norte-sul do Brasil e, quinzenalmente, naus inglesas, francesas e portuguesas. Sobral está localizada entre as bacias do Acaraú, Coreaú e Aracatiaçu. Rios, que na época eram as estradas naturais para circulação de gente e bens. Também estava próximo à próspera serra da Meruoca – para onde teriam sido plantadas as primeiras mudas de café no Ceará – e o planalto da Ibiapina. Lugar de grande produção de rapadura e outros produtos de fácil comércio. “A topografia da região (centro-norte) era como um oásis para os judeus que deixaram o Recife”, escreveu o historiador católico.
Para iniciar uma investigação e saber se seu sobrenome tem origem judaica acesse http://anoussitas.blogspot.com. Corresponda-se com Departamento Anussim da ONG israelita Shavei Israel: www.shavei.org e salgado@shavei.org
É certo que os judeus “forçados” deixaram costumes na casa e na rua onde conviveram. Muitas vezes às escondidas, mesmo assim, vazaram hábitos e jeito de se comportar em público ou no ambiente privado. No sertão cearense, no Nordeste, e em alguns cantos do Brasil, a influência ainda carece de investigação. Segundo a pesquisadora Eneida Beraldi Ribeiro, do Laboratório de Estudos Sobre a Intolerância da Universidade de São Paulo (Lei/USP), um olhar antropológico vem sendo construído. De acordo com Eneida Ribeiro, doutora do grupo de pesquisa da historiadora Anita Novisnky, foi em especial a partir da escritora Maria de Lourdes Ramalho, também estudiosa dos assuntos judaicos, que se passou a observar não apenas “continuidades, mas como elas foram apreendidas e adaptadas a um meio que as condenava e perseguia”. Para se aferir a origem de algum costume, há de se voltar à ortodoxia e analisar particularidades. A maioria deles é realmente judaico, mas muitos, sofreram adaptações e influências do catolicismo. “O sincretismo religioso foi marcante no Brasil”. O jornalista Asher BemShlomo, presidente do Sindicato Israelita das Comunidades Anoussitas, descreve costumes da família de sua esposa – uma bnei anussim (descendente dos judeus “forçados”) alagoana - semelhantes a alguns observados em Sobral, Reriutaba, Icó, Campina Grande e Rio Grande do Norte. A endogamia, por exemplo, é traço presente em Cabaceira (Reriutaba), Bonfim (Sobral) e Araquém (Coreaú). Registro feito pelo O POVO e nos escritos do padre João Mendes Lira.
Fotopintura mostra Francisco Alves Farrapo, o Chico Farrapo, o pai de seu Argentino e dona Maria, montado no cavalo. O rosto é de um irmão, Antero, que morreu em 1957. Ambos moravam no Bonfim. FOTOS DEIVYSON TEIXEIRA
O azulado dos olhos de Rogildo, seu Argentino e de dona Maria ressalta facilmente na foto ao lado. Na parede, mais registros familiares de outros descendentes da “raça” dos Farrapos do Bonfim.
Cláudio Ribeiro Desenho da capa de uma publicação de 1596, de escritos religiosos da época da Inquisição em Lisboa. Do acervo do pesquisador Antônio Lourenço Caminha, arquivado na Biblioteca Nacional de Portugal.
Colher holandesa (ao lado) encontrada numa das propriedades onde está o distrito de Bonfim. Diz a história que, com a expulsão holandesa de Pernambuco, no século XVIII, os judeus fugiram para o Ceará Grande.
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íris clara, azulzíssima em muitos deles, é a digital do povo Farrapo. Também é da identidade a pele branca avermelhada, carimbada pelo sol forte que não cessa em Sobral. Isso mais entre os que vivem na zona rural. Gostam de exaltar o sobrenome. É forte. Farrapo não é apelido. Não são uma etnia, mas são tratados assim. São “da raça dos Farrapos”, como nos disse quem os indicou a procurá-los. Os Farrapos têm história a ser contada. Praticaram a endogamia por muito tempo. Casamentos em família, entre primos, mais gente do olho azul de céu que foi nascendo e esticando a linhagem. Sempre gostaram de negociar, trocar coisa velha. São um pouco reclusos. Vivem sob reminiscências de judaísmo. Há estudo disso, mas muito ainda a ser (re)descoberto. Os Farrapos são citados, por exemplo, no livro do padre João Mendes Lira, Presença dos Judeus em Sobral e Circunvizinhanças e a Dinamização da Economia Sobralense em Função do Capital Judaico (Editora Companhia Brasileira de Artes Gráficas - 1988). A obra nasceu de uma palestra do religioso, já falecido,
que foi escriba do ex-bispo sobralense dom José Tupinambá da Frota. Foi a fala dele num seminário no Rio de Janeiro, em 1988, quando o Estado de Israel completou 40 anos de fundação. A pesquisa genealógica do padre Lira é sempre lembrada em apurações sobre o nicho judaico de três séculos atrás investigado ali. Não é correto dizer que os Farrapos são judeus, mas é errado desprezar esses rastros. Muitos dos próprios nem sabem, mas diz-se que essa gente toda descende de um português chamado Manuel da Costa Farrapo. Está no livro Cronologia Sobralense – Volume II (Imprensa Universitária - 1985), do padre Sadoc de Araújo, 78, reitor por 22 anos da Universidade Vale do Acaraú (UVA) em Sobral e pesquisador há mais de 50 sobre a ocupação da região.
Era o tal Manuel um senhor saído da Ilha dos Açores que um dia chegou à Ribeira do Acaraú. Havia a estrada de ferro Sobral-Camocim. Em Camocim ficava o principal porto da região Norte do Ceará Grande, nos anos de Brasil colônia. E So-bral detinha o principal cenntro comercial. Pelos trilhos hos transitava grande parte dessas mercadorias. Então, estimulava também a chegada ada de estrangeiros. O portuga veio, por volta ltta
de 1720, e abancou-se na localidade, então chamada Várzea do Pinto. Hoje é onde fica o distrito de Bonfim, a cerca de 15 quilômetros de Sobral. É lá que está “a raça” Farrapo, seus descendentes. Há mais espalhados, claro, já na mistura com outros sobrenomes. Há núcleos de Muniz em Mucambo, Coreaú, Reriutaba, Varjota, cidades vizinhas. Mesma trilha. “Quem daqui qui da região é Muniz é Farrapo”, ensina naa o funcionário io público José Elder Alvess Farrapo, 47. Tem a lógica ca dele. O principal argumento umento é o fato de ser filho ilho de Argentino Alvess Farrapo, 83, hoje o Farrapo po mais antigo do Bonfim. m. E de acompanhar por onde nde o nome da família tem em se espalhado. espalhado d .É umaa história aberta.
Argentino Alves Farrapo A crê Deus e em Nossa cr rê “em D Senhora”. Já começa a conassim. Nos seus 83 versa assim ex-rendeiro de palha anos, o ex-r carnaúba ouviu toda hisde carnaúb que ali andaram jutória de q antes deles. “Esta nossa deus ante família é daqui e de muitas partes”, descreve. partes” Ele próprio abriu descendência considerável: 12 filhos, dênci 25 bisnetos e um ta49 netos, n taraneto. Áquila, de dois anos, tara não tem o mesmo olho azul nã céu de muitos. Entrou na miscé ttura racial, mas a pele é da mesma alvura. Na frente da casa da irmã Maria Alves Muniz, de 77, vários olhos azuis se juntam, a pedido, para uma foto. “Venha ver o banco aqui na sala. Tem mais de 200 anos”. É um senhor assento de jatobá de lei. “Se bater um prego aqui, ele entorta”, diz Elder, o
Farrapo-guia do O POVO. Nas janelas, portas e alpendres, vão aparecendo mais azuis encabulados. São 18 casas na área deles, praticamente todos Farrapos. Dona Maria, pele enrugada, corpo miúdo no vestido e pés descalços e grossos, tem a parede de taipa empoeirada protegida por São Jorge, São Francisco, Nossa Senhora de Fátima. Em 2009, a chuvarada encobriu todo o Bonfim, mas a casa dela, no alto, se safou. No miolo do distrito, a capelinha de São José tem no piso o túmulo de Trajano Rodrigues de Souza e de Maria Alves Bonfim. Dizem lá que ele doou a terra, por volta de 1950, para que erguessem a igreja e parte das casas. Não sabem se ele era judeu. Perto dali, há uma Estrela de Davi, de seis pontas, talhada numa pedra. Já apagada pelo tempo.
Reprodução da obra Circuncisão de Jesus, de Giacomo Maria Giovannini, de 1690. Do acervo da Biblioteca Nacional de Portugal. Em hebreu, circuncisão significa berit milá. Berit é pacto.
FOTOS DEIVYSON TEIXEIRA
Samuel e a medalha do avô
Cláudio Ribeiro claudioribeiro@opovo.com.br
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jazigo 72 do Cemitério São José recebe uma rosa vermelha sempre nos dias de Finados. Alguém se aproxima, desconhecido como muitos que visitam o local na data, deixa a flor, reza e vai embora. Lembrança singular no sentido estrito. A única, simples. Afora pesquisadores ou estes repórteres, foi só o anônimo acima quem os coveiros viram mais recentemente com interesse no túmulo de Samuel Weil, que jaz na única sepultura judaica em Sobral. No mármore da lápide, escritos em francês e hebraico: “Ao meu querido e falecido marido. Ao nosso amado pai. Sua viúva e seus filhos”. Há quem o chame de “Samuel Velho” (a pronúncia é váil). É dado seu nascimento em 27 de julho de 1837, em Quatzenheim, na Alsácia, região da França na fronteira com Alemanha e Suíça. Morreu nesta capitania do Ceará Grande em 28 de outubro de 1901. Foi enterrado no dia seguinte. Pela soma dos anos, teriam sido 64 de vida. Padre João Mendes Lira, já falecido, historiador, pesquisador da presença de judeus em Sobral e cidades vizinhas, disse que Samuel morreu, vitimado por
Guardara uma partícula consagrada para uso de alguns actos supersticiosos”. Está no sumário do processo 10.510, do Tribunal do Santo Ofício, que tornou ré da Inquisição católica, na vila de Sobral do Ceará Grande, entre 1787 a 1790, a mestiça Francisca Rodrigues de Sá. Dos 21 processos localizados pelo O POVO na Torre do Tombo, em Lisboa, foi o único acusando uma mulher. A denúncia foi que Francisca, moradora na Serra da Beruoca (hoje Meruoca), guardava uma espécie de amuleto, “um
uma congestão, só aos 79. Cita registro no livro de óbitos da época, assento da morte assinado pelo então monsenhor Diogo de Sousa Lima. O coordenador de Serviços e Equipamentos Urbanos de Sobral, José Prado, que administra o cemitério municipal, disse ao O POVO que hoje não há mais documentação alguma sobre o jazigo 72. “Os papéis se perderam com o tempo”, confirmou. O que está grafado na pedra é a principal informação.
Samuel Weil pode ter chegado a Sobral à procura do mesmo “mundo novo” que outros judeus e hebraicos imaginavam ter achado na região norte cearense. O Vale do Acaraú como terra prometida. O general Wicar de Paula Pessoa, estudioso da etnia cearense, sobralense, foi apontado como dono da frase: “Sobral nasceu de um auto-de-fé”. Eram as procissões de castigos aos hereges condenados pela Inquisição. Havia a referência histórica de, dois séculos antes, quando os holandeses foram expulsos de Pernambuco. Judeus que moravam em Recife e Olinda, e que tinham a permissão daqueles colonizadores. Perdida a permissão com o pós-guerra no solo brasileiro, ganharam o olhar inquisidor do Santo Ofício. Fugiram.
patuá”, que, segundo o processo, ela o considerava protetor de suas ações. Era “uma bolinha encarnada enfiada em um cordão de fio de algodão” que ela usava no pescoço. Por causa disso, respondeu por sacrilégio. Francisca chegou a ficar presa em Sobral, Olinda e em Lisboa. O tal amuleto foi apreendido e anexada aos autos. No processo, não consta arquivada a sentença definida contra a ré. Francisca morreu em 9 de julho de 1789. Foi sepultada em hábito branco, para livramento da alma.
Há mais histórias ao redor do mesmo túmulo. Noutros tempos de Sobral, houve preconceito aos judeus de lá. Inclusive a Samuel Weil já morto. Conta o pesquisador Edvar Pereira Moura, 69, voluntário do Museu Dom José, que o judeu esteve sepultado “fora do cemitério, mas dom José (Tupinambá da Frota, então bispo local) mandou botar pra dentro”. Teria sido isso pelos idos de 1930. Padre Lira, em seus estudos, descreve: “Quando o Bispo de Fortaleza, D. Joaquim José Vieira, soube que no cemitério local fora sepultado um judeu, fez um decreto interditando o referido
cemitério. Infelizmente a este tempo havia esta discriminação religiosa”. O termo “Galinha d´água” é bastante comum na região para apontar alguns mais mão fechada, que gastam pouco (outro traço judaico). Moura diz que a expressão teria nascido das viagens dos forasteiros mercadores que subiam a serra da Ibiapaba, vindos do porto de Camocim, com mantimentos no lombo de burros. Como acordavam cedo da madrugada, falavam muito e gritando. Quem era cearense não entendia nada. Pelo som, apelidaram de galinha d´água. Aqueles seriam diálogos hebreus. Carimbo real português, de 10 réis, presente num dos documentos da Inquisição de Lisboa. O tino para o comércio e negócios era uma das marcas dos judeus. Usaram essa habilidade para se estabelecer no Brasil.
O cemitério São José, onde está o túmulo de Samuel Weil (foto ao lado), tinha cerca de arame. Antes dele, os corpos eram sepultados nas igrejas. Outros judeus moradores de Sobral teriam comparecido ao enterro de Samuel, em 1901.
Samuel Levy Pontes Braga descobriu-se judeu aos 13 anos. Hoje ainda tem só 21. Soube do que é por influência de um primo de Brasília, William Alves Beserra, que viajou a Sobral à época a fim de estudar traços judaicos ancestrais da família. Eles são Muniz Farrapo de origem. A pesquisa era um trabalho acadêmico, mas, daquela conversa, aparentemente despretensiosa, passou a entender seu rumo. O papo com o primo tem sido a influência, desde então, dos dias de Samuel. A percepção do menino colou de imediato. Estudando o judaísmo, reconheceu vários costumes de casa, daquelas regras que os mais velhos nos passam na infância, que nunca sabemos a razão de fazermos ou vermos. A vó não ia a igrejas católicas. Não foi nem ao casamento dos filhos e netos. Os mais novos só eram batizados, não recebiam outro sacramento. Nada de carne de porco. O vô Romeu não gostava de cruz e tinha uma estrela esculpida na porta de casa. Foi o vô que lhe deu uma medalha da Estrela de David. Samuel usa sempre no pescoço. E adota o quipá. O pai também usava a boina judia. “Quando era pequeno, ele via pessoas da família colocarem pedras no túmulo dos parentes”, conta. Chegou a seguir ritos na mocidade, hoje é ateu. A mãe é católica.
Seu nome Samuel Levy homenageia um rabino. Estudante de Direito, segue e estuda as cerimônias judaizantes. “Não vivo uma vida ortodoxa. No que posso, vivo o judaísmo reformista. Mas respeito os ortodoxos”. Desde 2008, recebe a Morashá, uma publicação para judeus do Instituto Morashá de Cultura. Para ter acesso ao material, precisou provar a descendência e a prática do judaísmo. Semanalmente, pratica o Shabat (um dia de reserva espiritual) na casa do amigo Irelândio Oliveira, auditor fiscal, e a família dele. Sempre antes de dormir, lê o Tanah (Antigo Testamento), onde está a história do povo hebreu.
Mãos juntas na forma da benção sacerdotal, com signos cabalísticos e duas letras do Tetragrama, século XVIII(imagem ao lado). Fonte: Dicionário Judaico, de Alan Unterman. FOTOS DEIVYSON TEIXEIRA
Seu Belin, 81, é casado com a prima Antonia Ximenes Furtado, 70, com quem teve 15 filhos. Ele é um dos 11 irmãos de dona Maria Melo que teve 12 filhos com Francisco Furtado (foto ao lado).
Dos 11 irmãos de Belin estão vivos Maria Melo, 90, e Raimunda “Inocente”, 80 anos. Ela nasceu com problemas psicológicos.
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Cláudio Ribeiro claudioribeiro@opovo.com.br Enviados à Região Norte do Ceará
A rua Mamede Aquino, perto da estação ferroviária de Reriutaba, é mais conhecida por rua dos Cabaceiras por causa de seus moradores.
abaceiras deixou de ser o fim do mundo há uns poucos de tempo. Ainda em fase de acabamento, o governo estadual resolveu dar uma aparada na mata branca e asfaltou um velho caminho de poeira e piçarra. O que antes era ruim, até para os cascos dos animais, agora emenda destinos entre Pacujá e Reriutaba. Municípios encravados num pedaço calorento da região Norte do Ceará. A rodovia, vangloria-se quem nasceu no distrito situado em uma das ribanceiras da estrada nova, está uma pista de aeroporto de tão boa que está. Sem contar que tornou a vida mais ligeira e perto do que é novidade longe dali. Antigamente, testemunha a bem aparentada Maria Lopes de Melo, 90 anos de sertão, eram 11 dias pra ir e voltar, a pé, de Cabeceiras ao Canindé pagar as promessas das graças concedidas por São Francisco. Uma tropa de dez pessoas do único clã existente nas Cabaceiras caminhava, principalmente à noite, para escapar do sol dos começos de outubro. Mês do mormaço e do aniversário do santo. Dois jumentos serviam para carregar mantimentos e comia-se nos in-
tervalos das jornadas em alpendres de casas que ofereciam guarida. Foi na véspera dos festejos de São Francisco, mas na sede em Reriutaba, num 3 de outubro do fim da década de 1930, que os olhos azuis de dona Maria Melo escolheram os olhos também claros do branco Francisco Furtado, 91 anos. Em 1944 estavam casados e, nos intervalos dos 67 anos juntos, vieram 12 rebentos. A história bonita do casal Francisco Furtado, agricultor e comboeiro aposentado, e da primeira costureira das Cabaceiras é um dos fios do novelo do povo que tem fama de descender de judeus “forçados” que se esconderam por ali no Ceará Grande colonial.
Lá é lugar de um tronco familiar só e há um vestígio ainda hoje anotado. A endogamia. Um traço dos costumes judaicos perseguido pela Inquisição. Houve um tempo que só havia casamentos em família nas Cabaceiras. Primo só se unia com prima. Não interessava o grau. Tia casava com sobrinho. Sangue do mesmo sangue. “Isso era quando o mundo era menos. Hoje se misturou tudo”, costura Maria Melo, prima legítima de Francisco Furtado. Os dois, filhos de pais com parentesco.
Comerciantes prósperos de Reriutaba, Hélio e Cléssia, com os filhos Elam e Helena Rita (foto acima). A garota leva o nome das duas avós.
A existência de uma raiz judaica na origem das famílias do distrito de Cabaceiras, distante 12 quilômetros da sede Reriutaba, teria sido pesquisado pelo pároco monsenhor Ataíde Vasconcelos. O religioso, já falecido, não deixou, no entanto, nenhum escrito sobre suas descobertas etnográficas. Mas não fez silêncio. O ex-vereador Clerton Furtado, 37, conta que desde menino escuta essa história. Católico por tradição de família, ele explica que a endogamia seria apenas um dos traços dessa suposta herança. O tino para o comércio é outra marca forte dos “Cabaceiras”. O comércio de Reriutaba, diz Clerton, está “praticamen-
te” nas mãos das famílias que se originaram do distrito supostamente fundado por um judeu vindo de Portugal que ninguém sabe nominar. Não há comprovação científica, mas a principal panificadora (Joaquim Morais), o mais importante magazine de variedades (Loja do Povo do seu Chaguinha), a Reriusati Celulares, de Clerton Furtado, a única escola particular e dezenas de outras lojas são do povo que veio de lá. Os primos Hélio Morais de Medeiros, 37, e Cléssia Rodrigues Furtado, 34, são casados e proprietários do Mercantil HC. “A avó do Hélio é sobrinha da minha avó. O comércio vem dos nossos avôs”, diz. (DT/CR)
Os Cabaceiras, confidencia Clerton Furtado, têm fama de reservados, bons de contas, mãosde-vaca e sabem acumular patrimônio. Bem semelhante aos judeus.
FOTOS DEIVYSON TEIXEIRA
A maior parte dos Cabaceiras que enveredou pelo comércio começou nos comboios de jumentos. Segundo Clerton Furtado, levavam manga para Guaraciaba do Norte e traziam rapadura e outros gêneros para vender.
Ao lado, seu Antônio Lopes de Sousa mostra a pedra com inscrições supostamente indígenas, que fica no quintal de sua casa, na localidade de Cabaceiras, em Reriutaba.
Demitri Túlio demitri@opovo.com.br
Cláudio Ribeiro claudioribeiro@opovo.com.br Enviados à Região Norte do Ceará
é Chico é pouco conhecido por seu nome de batismo cristão: José Francisco de Souza. Aos 73, é o homem mais velho do povoado onde estão 17 famílias que não migraram das Cabaceiras de Cima para Reriutaba. É casado com a prima Maria do Carmo de Souza, 71. Feito seu pai, Francisco Joaquim de Souza, falecido há quatro anos aos 103 de idade, não sabe com precisão a história do surgimento do lugar onde nasceu. O pai Joaquim, católico que também vivia da “lavra”, contava que o bisavô de Zé Chico, quando apeou naquele cafundó, ouviu dizer que um português, do nada, havia chegado e se engraçado com uma índia. Estaria aí, talvez, o começo da história que não tem registro. Seria o estrangeiro que deu origem ao núcleo judaico apontado por monsenhor Ataíde Vasconcelos, mapeado pelo padre João Mendes Lira? “Vai saber? Isso vem lá detrás, mas certeza, documento, não”, entra na conversa o sobrinho
Edmundo Alves, 45. O território de Cabaceiras, que estaria entre os lugares onde os cripto-judeus sentaram praça, a exemplo de Sobral, Várzea do Pinto (Bonfim), Groaíras, Cariré, Jaibaras, São Vicente e outros, também era terra de silêncio.
De acordo com o padre Lira, “embora estivessem fora do alcance do Santo Ofício, jamais comunicaram a seus filhos onde nasceram, suas origens judaicas, nomes verdadeiros e até suas práticas religiosas”. Às vezes, na hora da morte, revelavam alguma coisa e pediam que a história não fosse pra frente. Está no livro A Presença dos Judeus em Sobral e circunvizinhanças e a dinamização da economia sobralense em função do capital judaico. Da banda indígena há mais pistas. A começar pelo significado da palavra Reriutaba ou aldeia dos rerius. Pelo Dicionário Toponímico, Histórico e Geográfico do Nordeste, de Marlio Fábio Pelose Falcão, aponta a característica especial dos índios que “bebiam água em conchas de ostras”. E há outro indício tribal in-
dicado no alpendre da casa de seu Zé Chico. Os caboclos e caboclas brancas dos olhos claros de lá, que não se reconhecem descendentes de índios e rejeitam o sangue negro do escravo, revelam a existência de uma pedra com escrituras “estranhas”. No quintal da terra de outros parentes, perto dali, onde moram os pais do ex-marido e primo da filha loira Luiza de Zé Chico, uma rocha grande está cheia de prováveis escritos rupestres. Uma “escada”, uns desenhos vermelhos. Virou lenda por lá e no Rio de Janeiro, lugar para onde migram muitos Cabaceiras. “Já vei gente inteligente aqui, da universidade, mas nunca voltaram pra dizer o que era. Isso é escrita de outros tempos”, arrisca Antonio Raimundo de Souza, o dono da pedra. Na mesma propriedade, no serrote Muniz, há três cavernas. A maior delas com três salões povoados por abelhas e um mito. O da imagem um carneiro de ouro que aparece e cega os olhos de quem tem a ganância de fitálo. “Sempre a gente via um clarão forte. Quando menino eu tinha muito medo. Brilhava muito. Diziam que era o sol, mas a luz só via de noite”, conta seu Raimundo.
O município de Reriutaba está localizado a 292,2 km de Fortaleza, na zona Norte do Ceará. Apesar da existência de pedras com prováveis escrituras rupestres, não tem patrimônio tombado.
Seu Zé Chico, que casou com a prima Maria do Carmo e teve nove filhos. Na foto ao lado, com as filhas, Gorete, Luzaneide e Rosa.
Na sede do município de Reriutaba, o ex-vereador Clerton Furtado, 37, havia alertado para a ocorrência de um fato que ele observa há tempos entre as famílias das Cabaceiras. Diz que não é incomum encontrar “pessoas com desvios psicológicos”. E levanta a hipótese: “Talvez, por causa da endogamia?”, questiona. Em Reriutaba, na casa de Francisco Furtado e Maria Lopes Melo, a irmã de dona Maria é chamada de Raimunda “inocente”. Aos 80 anos, o sobrinho-neto Hélio Furtado avisa que ela ainda é
uma “menina”. “Em toda família tem gente assim. Não é porque cruzou o sangue da mesma família, não”, retruca seu Zé Chico. Nas Cabaceiras de Cima, um moço forte, com modos de criança em corpo de adulto, fez poses para a câmara fotográfica e depois correu. Mais adiante, vizinho a pedra das escrituras rupestres, o resmungo indecifrável de uma moça de 22 anos vinha de um quarto fechado. “Não é judiação ou cárcere privado. É falta de informação para lidar com o problema e governo”, explicou Clerton Furtado.
Alguns comerciantes de Cabaceiras, como seu Chaguinha, 78, da Loja do Povo, migraram para o Rio de Janeiro. Ele foi com 13 anos e trabalhou até a idade de 31. Voltou e montou negócio.
No Seridó paraibano, em fazendas antigas, é possível encontrar resquícios da presença judaica, como a Estrela de David nas portas.
IGOR DE MELO
Em Icó, o antigo sobrado de Frutuoso Dias é hoje a casa paroquial, localizada na rua Doutor Inácio Dias. Já no sobrado do Canela Preta funciona o Núcleo de Música da cidade.
Luiz Henrique Campos lhcampos@opovo.com.br Enviado à Paraíba e ao Rio Grande do Norte
epois da Bahia e de Pernambuco, a Paraíba foi o estado do Nordeste que mais teve pessoas perseguidas pela Inquisição no Brasil. Durante quase dois séculos (1595 a 1761), 65 pessoas tiveram seus nomes denunciados ou foram alvo de investigação pelo Tribunal do Santo Ofício. As primeiras 16 investigações aconteceram ainda no primeiro século de colonização, quando em 1595 a capitania recebeu a visitação do Santo Ofício. Dos primeiros 16 denunciados, os documentos oficiais da época não apontam penas mais duras, com as acusações se voltando a crimes de heresias, bigamia e homossexualismo. Mas além de ter sido um dos três estados que recebeu a visitação do Santo Ofício, a passagem da Inquisição pela Paraíba tem uma peculiaridade, que foi a chamada devassa, quando entre os anos de 1729 e 1761, 49 pessoas foram presas acusadas de judaísmo.
Duas delas, Guiomar Nunes e Fernando Henrique Alvares, foram condenados à morte. Para entender, porém, a presença da Inquisição na Paraíba, é preciso que se retorne ao seu processo de colonização. De acordo com Fernanda Mayer Lustosa, mestre em História Social, em sua dissertação de mestrado Raízes Judaicas na Paraíba Colonial, devido a problemas com invasores franceses e ataques indígenas, a Paraíba foi uma capitania tardiamente colonizada. Ao mesmo tempo, durante o período do reinado de Dom João III (1521 a 1577), Portugal imprimiu uma política antiemigratória em relação aos cristãos novos, com a saída do país só sendo possível por meio de fugas. Essa condição imposta aos marranos fez com que vários deles deixassem Portugal e muitos viessem se fixar no Brasil, principalmente na Bahia, em Pernambuco e na Paraíba. Como a Holanda era tolerante com os cristãos-novos, a invasão holandesa no Brasil acabou aceitando, com pequenas restrições, a presença judaica no País. Durante o governo de Maurício de Nas-
sau, por exemplo, a população judaica chegou a ser acrescida com a chegada de navios trazendo cristãos-novos. No entanto, segundo a historiadora Anita Novinsky, com a retomada portuguesa no Brasil, em 1645, a emigração judaica foi interrompida e a população de 1.450 judeus professos baixou para cerca de 720 em 1648. Como consequência, ressalta ainda Novinsky, “após a expulsão dos holandeses nem todos os judeus deixaram o Brasil e alguns encontraram refúgio nas distantes terras do Rio Grande do Norte, como criadores de gado. Outros foram para o estado da Paraíba”.
O retorno de Portugal ao controle da colônia, todavia, não foi motivo para que os cristãos-novos deixassem de professar clandestinamente seus preceitos judaicos. Na Paraíba da primeira metade do século XVIII, a comunidade cristã-nova, porém, segundo Fernanda Lustosa, era composta por poucas famílias que moravam em sítios próximos
e se mantinham unidas por laços de parentesco. Comum entre eles também a decadência econômica que começava a se acentuar, com alguns tendo que desbravar o sertão na lida com o gado. A aproximação entre essas famílias e o conhecimento mútuo entre elas fizeram com que as denúncias da prática de judaísmo que originaram a devassa partissem dos próprios cristãos-novos contra eles mesmos. Para a historiadora social Fernanda Lustosa, no entanto, há duas causas para a eclosão das denúncias: os conflitos no interior do próprio grupo cristão-novo e as tensões socioeconômicas na região. Ela explica que “embora na colônia o preconceito racial tenha sido mais brando do que em Portugal, encontramos manifestações de antissemitismo em membros da região interrogados pelo Santo Ofício”. Na avaliação de Fernanda, “o preconceito foi herdado após a conversão forçada. O converso era estigmatizado, o que resultou na perseguição inquisitorial dos que tinham a fama de serem cristãos-novos”.
A devassa na Paraíba foi responsável pela fuga de muitos cristãos-novos que passaram a ocupar outras regiões do Nordeste e viver de forma clandestina, dificultando o registro histórico até hoje.
A dificuldade relatada por Teófilo Mora em Icó para se confirmar a origem judaica, é sentida também na Paraíba. O principal motivo é que a clandestinidade impediu a criação de documentos oficiais sobre essa história.
Casarões da história em Icó
Desde criança chamava a atenção do comerciante Teófilo Miguel Mota Nicolau os costumes que eram adotados pela família na cidade de Icó. Costumes que perduram até hoje, como varrer a casa da porta para dentro para não tirar a prosperidade. Aquilo intrigava o jovem que quando adulto passou a estudar a origem de seus antepassados, chegando aos Sarmento da Paraíba. A curiosidade o levou também a descobrir sua ancestralidade judaica. “Minha avô tinha a história de olhar as estrelas, de abençoar os filhos com a mão na cabeça;”, relembra Teófilo, que virou pesquisador por hobby. A descoberta das origens aguçou seu interesse pela pesquisa sobre os costumes dos icoenses, descobrindo, pelos sobrenomes, a ligação de muitas famílias com os judeus. Na cidade, porém, poucos consideram essa possibilidade, como diz Teófilo, admitindo que até entre seus familiares o assunto é tratado com reserva. “Ninguém aqui assume que esses são costumes judaicos ou descendentes. Há um preconceito grande até”. Apesar de ser uma cidade histórica, não é de se estranhar a reação negativa sobre a ascendência judaica em Icó. Não existem estudos conclusivos sobre o tema, até porque a presença judaica na região se deu de forma clandestina. Mesmo assim, segundo Teófilo, um bom exemplo seria o sobrenome Klein, de origem judaica, do qual surgiram os ramos das famílias Teixeira Mendes (CanelaPreta), Dias, Correia Lima, Monte, entre outras. Famílias que se tornaram tradicionais e fazem parte da história do município. Infelizmente, da mesma forma que chegaram à cidade, seus segredos parecem sepultados no secular cemitério de Icó ou nas tumbas de suas igrejas.
Há duas versões para o nome Venha Ver. Uma é a fusão da palavra “vem” (do verbo vir) com o termo hebraico “chaver” (pronuncia-se ráver), que significa amigo. Venha Ver seria então a corruptela de “Vem, Chaver”.
Dona Cabôca (foto abaixo) é uma das moradoras mais antigas e é sempre indicada para contar as histórias da cidade aos visitantes.
FOTOS IGOR DE MELO
Luiz Henrique Campos lhcampos@opovo.com.br Enviado à Paraíba e ao Rio Grande do Norte
ão é tarefa das mais fáceis chegar à cidade de Venha Ver, no Rio Grande do Norte. Localizada na serra de São Miguel, Oeste potiguar, o município emancipado em 1992 fica na tríplice fronteira entre os estados do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Para encontrar o caminho, é preciso paciência e muitas perguntas durante o trajeto. Com 3.584 habitantes, o município é também o ponto mais alto do Rio Grande do Norte (868 metros do nível do mar) e o último trecho de estrada na serra para acesso de carros. Através de veredas na mata, porém, é possível caminhar e estar no Ceará ou na Paraíba em poucos minutos.
A versão mais difundida na população diz que a filha de um rico senhor da região namorava um escravo às escondidas. Uma pessoa flagrou o casal e chamou o pai para presenciar o fato, dizendo-lhe: venha ver.
Miguelina Aquino, 30, se orgulha das tradições mantidas em Venha Ver. Na visita de O POVO, pediu para ser fotografada em frente ao cemitério, afirmando querer ser enterrada de acordo com os costumes judaicos.
Os mais espirituosos da região dizem que o local é tão escondido que nem se perdendo é possível chegar a cidade. Só chega mesmo a Venha Ver quem conhece o lugar. Esse isolamento, todavia, tem suas vantagens. Segundo o rabino Jacques Cukierkorn, em sua tese de rabinato (equivalente a mestrado) sobre a ascendência judaica na população do Rio Grande do Norte, o isolamento é um dos responsáveis pela manutenção das tradições de origem judaica no município. Tradição que tem levado cada vez mais pesquisadores a visitaram Venha Ver para estudar esses costumes. Na população, a “descendência do pessoal da judeia”, como o assunto é tratado nas ruas, é encarado de forma natural, apesar de muitos não fazerem ligação dos aspectos da tradição com os descendentes de cristãos-novos — judeus convertidos à fé cristã, que iniciaram o povoamento da região no começo do século XIX. Aos que chegam e procuram conhecer o que tornou Venha Ver famosa, a primeira indicação é uma conversa com Maria Bernarda de Aquino, 82, a dona Cabô-
ca. Espirituosa e divertida, vai desfiando a história com sua memória prodigiosa. Começa falando da infância e da origem do apelido que a faz conhecida na cidade. Conta que antes de nascer, sua mãe passou cinco dias sofrendo. Quando nasceu, de tão grande o bebê, o pai disse: “Eita, cabôca!”. E assim ficou. A causa do apelido, todavia, é um dos poucos fatos antigos que sabe explicar o porquê. Na cidade também, dos costumes mantidos até hoje, a explicação mais ouvida é de que era assim desde há muito tempo.
Desses costumes, um deles é não comer carne de porco. “Deus me livre”, reforça Cabôca ao ser perguntada. Com relação ao fato de enterrar os mortos com mortalha, na terra limpa, e não em caixão, Cabôca afirma que ainda se mantém, apesar de as pessoas já optarem pela forma convencional. “Eu mesma não quero me enterrar da forma antiga”, confidencia. Em Venha Ver, algumas famílias envolvem seus cadáveres em mortalhas para serem conduzidos até a sepultura. O uso de caixão só foi introduzido na cidade há poucos anos. Cabôca também afirma que na Semana Santa não varre a casa nem come carne. O trato da carne em Venha Ver é feito de forma bem peculiar. Após o abate do animal os pedaços são pendu-
rados com uma corda sobre um tronco de árvore, para que todo o sangue escorra. Depois, a carne é salgada. Esse costume, segundo Cukierkorn, faz parte das regras da culinária “kasher”, usual entre os judeus ortodoxos. Não é preciso esticar a conversa com dona Cabôca para conhecer mais dos costumes judaicos em Venha Ver. Na cidade pequena e pacata, onde todos se conhecem e sabem da vida dos outros, alguns momentos de conversa com as pessoas na rua já apontam para outros desses hábitos. A fixação de cruzes em formato hexagonal na entrada das casas é um deles. Na tese de rabinato de Cukierkorn, as cruzes que se encontram em de Venha-Ver têm origem na mezuzá — pequena caixinha com uma reza que os judeus fixam nos batentes das portas. O formato hexagonal refere-se à Estrela de David, símbolo da fé judaica. Na casa de dona Cabôca as cruzes nas portas são uma proteção, explica ela, contra o mal, a ventania e os raios. “Também jogo sal no terreiro para afastar a ventania. Diminui na hora”.
Luís Cesário mostra na mata onde aconteciam as penitências Luis Cesário de Sousa, 83, mora em Miones, na Paraíba. Distante poucos metros de Venha Ver, parte da comunidade fica no estado paraibano e outra no Rio Grande do Norte. Se na zona urbana a indicação para conhecer a história do lugar é dona Cabôca, na zona rural a palavra é dele. Morador dali desde a década de 40 do século passado, faz questão de levar os visitantes ao que define como uma antiga casa de oração de penitentes nas brenhas da serra. Para chegar ao local, é preciso caminhar cerca de 30 minutos em uma subida leve por dentro da mata. É lá, diz ele, que, quando jovem, acompanhou rituais de penitência com chicotadas. Diz que ali estão en-
terrados corpos de muitas crianças. O ponto hoje é demarcado por um cruzeiro onde é possível ver uma cruz grande enterrada em um tronco de madeira. “Eles deixavam o cruzeiro bonito, espalhavam flores quando tinha as orações e ficavam se chicoteando. Ficavam com o corpo cheio de sangue”. Cesário diz ainda que, em virtude dos rituais de penitência, o cruzeiro também ficava manchado. “Isso acontecia sempre aos sábados. Começava à noite, por volta das 20 horas e ia até uma hora da madrugada”, relata. A história dos penitentes é conhecida pelos mais antigos como uma tradição, mas ninguém sabe explicar a origem daqueles fatos.
Instrumento de tortura. De confecção simples, é feito de uma corda e uma roldana. O método cruel de maltratar causa deslocamento dos ombros pelo movimento de içar violentamente a vítima
Cândido Pinheiro Koren de Lima Médico e pesquisador
orria o 1593. Estava sendo um bom ano. As chuvas foram boas para água e pasto. Passado julho a cana começava a ser cortada. Safra boa de açúcar e de cachaça. A brisa do fim da tarde acariciava os pensamentos da velha senhora. Achava-se realizada. Seria bem melhor se o marido ainda fosse vivo e a única filha cá estivesse. O marido falecera já há um bom tempo deixando-lhe o engenho. A filha casara-se com pessoa de muita influência em Portugal e com ele mudou-se para lá. O casal de netos já crescidos era a alegria de sua alma. Sentia por eles que sua vida fizera algum sentido. O pensamento entristecido, no entanto, trazia-lhes lembranças que insultavam o presente. Fora uma luta árdua e longa. Nascera pelas portas do fundo da vida. Era filha de um judeu fugitivo do Santo Ofício e da amante dele. Era uma bastarda meio-judia. Lembravase bem do pai. Parecia que o velho teimoso Diogo Fernandes estava era ali, na sua frente. Ele havia nascido no Porto. Converso à força nunca deixou de ser judeu. Quando sentiu que o Santo Ofício andava em seu encalço fugiu para Pernambuco, deixando em Viana a mulher legítima Branca Dias com uma penca de filhos. Uma criança, inclusive, débil mental e alcorcovada. Enquanto seu pai fugia, a mulher legítima, moradora de Viana da Foz do Lima, fora presa pelo Santo Ofício juntamente com a sogra e a cunhada. Ele antecipouse. Chegou a Pernambuco em 1538 no início da colonização da capitania. Trouxe com ele uma criada cristãvelha, Madalena Gonçalves, aliás, criada e manceba. Ela nascera logo após chegarem, em 1539. Apesar de pobre, a infância fora boa, mesmo com o pai sempre temendo a ação do Santo Ofício. Diogo Fernandes logo que chegou fez amizades com os donos da capitania. Com Duarte Coelho, sob influência de Jerônimo de Albuquerque consegue sesmaria. Briolanja, este é o nome da velha senhora, quando completou 11 anos, assistiu à chegada de Branca Dias, a judia, a mulher oficial de Diogo Fernandes, agora solta e sambenitada pelo Santo Ofício. Chegou a Per-
nambuco trazendo uma reca de filhos. Assumiu o lar e o marido. Foi a última vez que viu sua mãe Madalena Gonçalves. Morou com Branca Dias por cinco anos, até completar os 16. Bem tratada pela madrasta, com ela aprendeu a fibra, a prática da lei mosaica e o fazer em lar. Ela e as meio-irmãs ajudavam nas tarefas de casa. Em troca recebia sustento e fé. Antes de morrer, Branca Dias juntara-a com as filhas e fê-las jurar que jamais se apartariam da lei contida no Velho Testamento. Sentia que houvera, de portas adentro, cumprido com a promessa. Sinta-se feliz por isto também.
Casou nova, aos 16 anos (1555). O pai arranjou para ela um casamento com um homem bom, André Gonçalves Pinto, que era carpinteiro de engenho, que ela dizia ser cristão-velho. Ela e o marido conseguiram com grande sacrifício terras em Jaboatão, e nelas com as próprias mãos fizeram grande plantação de canas e lá ergueram o belíssimo engenho Sicupema1. Ouvia o cantar das moendas. Admirava o novelo da fumaça das chaminés. Ano após ano foram testemunhas de safras esplendorosas. A tristeza dos que se foram vemlhe a mente, perturba-lhe. O pai foi o segundo a ir. Falecera no distante 1565. Deu-lhe uma doença súbita que tiroulhe a voz e morreu-lhe uma banda do corpo. Naquela ocasião, Brites de Albuquerque, a capitoa, irmã de Jerônimo o “torto”, viúva de Duarte Coelho, e sua velha amiga, sentindo que a morte rondava-lhe foi visitá-lo. Uma última tentativa de trazê-lo para o grêmio católico. Trouxe com ela um crucifixo para que ele ali se rendesse. O velho Diogo, sem poder falar, tomado de toda ira que podia ter, sem poder moverse, agita lateral e violentamente a cabeça, fechando os olhos para não ver o crucifixo. Nega a conversão final. A madrasta foi-se antes de 1574, deixando-lhe grande vazio. Ela então com 35 anos, bem situada, tinha uma filha única, beirando 18 anos. A menina e o marido consolaram-na. O marido, conhecedor das artes do açúcar e da cachaça, fez o Sicupema crescer. Quando a filha resolveu casar escolheram partido. Ainda sobressaltada com as histórias que falavam de sofrimentos milenares resolveram entroncá-la com um cristão-velho. Que-
riam fugir do destino. Agora ricos, tudo parecia possível. Por esta época apareceram em Pernambuco uns moços do Reino, da família dos Alpoins. Eram Cristóvão, Antônio e João. O primeiro era tio do segundo e primo em primeiro grau do terceiro. Cristóvão de Alpoim foi vereador em Olinda e como autoridade, em 1593, participou das cerimônias da instalação do certame terrorista do Santo Ofício. Casou com a rica Beatriz Froes, filha de Diogo Gonçalves, auditor da gente de guerra na capitania e senhor de engenhos e terras. Antônio de Alpoim cavaleiro da Casa Real, também serviu em Pernambuco, onde foi juiz, provedor da capitania e capitão de Pernambuco e de Itamaracá. Diante de tais parentes, foi grande a satisfação quando João de Alpoim apresentou-se como pretendente de Brites Pinto, filha única e rica senhora de engenho. O único defeito aparente do moço residia no fato de ele ser filho terceiro, e como tal nada herdaria. Possuía, no entanto, a fama de cristãovelho inteiro e um passado familiar glorioso de serviço ao Estado, coisas que muito entusiasmavam a família da noiva. Diante da riqueza do Sicupema, João de Alpoim fez vista grossa à origem bastarda e judia da noiva.
O casamento fez-se em Olinda. Foi uma festa enorme. As pompas cobriram a Sé, próximo de onde morara Branca Dias, Diogo Fernandes e Briolanja. Foram assunto e cochichos de toda capitania. Logo após o casamento os noivos foram morar em Portugal, sustentados pelo açúcar e cachaça do Sicupema. Tiveram dois filhos, Bernardo de Alpoim e Isabel. Eram a alegria da avó e razão da remessa continuada de afagos e dinheiro, que sustentava as farras do pseudo-cristãovelho. A velha solitária sentia-se assim em paz, premiada. Possuía uma família, ligada a governança cristã-velha e à própria história de Portugal. Parecia-lhes que agora eram inatingíveis. As histórias de sofrimentos milenares dos seus, no entanto não lhe saíam do pensamento. Naquele mesmo ano de 1593 chegou o visitador do Santo Ofício a Pernambuco. A colheita da cana, ainda estava ao meio quando, em 21 de setembro, foi instalado o certame em Olinda. Um
primo do genro até participou da cerimônia de início. Sabedor dos pendores religiosos da velha senhora, veio visitá-la. Acreditava ela, no entanto, que seu crer e ser estavam muito longe da superfície e protegidos na geografia e laços familiares. Nada disto funcionou. O Santo Ofício prendera Brites Fernandes. Lembraram-se dela? Era a alcorcovada, débil mental, que não tinha responsabilidade sobre si, filha de Branca Dias e Diogo Fernandes, meia-irmã da velha senhora. Como toda criança, era de uma honestidade e uma incapacidade para esconder. Era tudo que o Santo Ofício queria. Denunciou a mãe e o pai, já falecidos, as irmãs vivas e mortas, e as sobrinhas-netas. A meia-irmã Briolanja Fernandes não escapou. O processo aberto contra a velha e solitária senhora, teve como base principal as denúncias de Brites Fernandes. Assim, em 1599, aos 60 anos, deu entrada nos cárceres do Santo Ofício em Lisboa. Era uma senhora baixinha, gorda e, precocemente, envelhecida. A princípio negou toda a culpa de judaísmo. No segundo depoimento, no entanto, inicia sua confissão e delação de familiares. Arrependeu-se. No dia seguinte pediu mesa. Negou novamente qualquer culpa de judaísmo e disse que desconsiderassem as denúncias, principalmente contra parentes. O passo seguinte foi a tortura, que ela sabia vir, mas, subira-lhe o sangue teimoso do pai. Resolvera resistir. Na primeira sessão, retiraram toda roupa diante dos olhos de tantos inquisidores e seus oficiais. Colocaramna no polé, puseram-lhe as mãos para trás e amarraramna pelos pulsos, local da primeira correia que foram seguidas de todas as outras. Apertaram progressivamente as correias, que distendiamlhe os tendões, abriam-lhe as juntas e quebravam-lhe os ossos. Gritava, chorava, berrava, que não tinha culpas, que não conhecia ninguém que praticasse judaísmo. As lágrimas, a baba, e a secreção do nariz faziam o trajeto do sofrimento. Desciam pelos peitos flácidos e envelhecidos e pela pança intumescida pela banha, que lhe descia como avental pelas vergonhas e encobria parte das coxas pequenas e gordas. No dia seguinte foi apresentada ao calabre. Levantaram-lhe pela roldana, até o teto, fazendo com que a corda a elevasse, nua, puxando-a apenas pelos pulsos amarradas às costas. Quando estava
no alto, levantada, puxandoa apenas pelos punhos atados as costas, soltaram-na, e deixaram-na cair em queda livre até próximo o solo, quando então retesaram abruptamente o cordel amarrado aos pulsos nas costas, fazendo com que ele sustentasse a queda do corpo, velho e multiplicado o peso pela força da gravidade. Ela não suportou. Desfaleceu de dor e quase a morrer, a velha gorda continuou negando qualquer culpa. O médico, diante do risco de morte, suspendeu o tormento.
Em 10 de abril de 1603 os inquisidores decidem que as sessões já haviam purgadolhe as culpas. Decidiram que ela sairia no auto-de-fé, sambenitada e com vela acesa na mão, que nele faça abjuração de suspeita na fé, que tenha cárcere para instrução, e, além de penas espirituais, pagamento das despesas dos senhores inquisidores, cirurgiões e demais ministros, e bem como a “hospedagem” da ré em Estaus. Saiu no auto-de-fé de 3 de agosto com as duas meias-irmãs e as sobrinhas que lá estavam detidas. Os bens que sobraram, sustento da família em Pernambuco e Portugal, foram levados a leilão. Em 6 de setembro de 1603, ainda estava nas escolas gerais aprendendo a ser católica. Ensinavamlhe o que significava o amar a Deus e ao próximo. Decidiram então soltá-la com a recomendação espiritual severa e obrigação de não se ausentar do Reino. Obrigavam-na ao uso do sambenito. Pobre e sem nada mais possuir, nem esmola podia pedir. O sambenito identificava-a como objeto de repulsa e impedia que alguém a ajudasse. Nesta altura, o genro já havia abandonado a filha única e netos. Esta temerosa do Santo Ofício, e sem nada para o sustento resolveu ser freira. A mãe, Briolanja, acompanhou-a no convento. A neta Isabel, pelo mesmo motivo resolve ser freira, com a mãe e a avó. O neto restante, Bernardo de Alpoim, decidiu ausentar-se da vida sem deixar rastro genealógico que lhe lembrasse. Foi assim, pela porta do sofrimento e sem deixar descendência, que a velha senhora e sua família deixaram a vida. Tudo por amar a Deus e ao próximo. Cândido Pinheiro Koren de Lima é médico e pesquisador da cultura judaica no Nordeste
Instrumento de tortura feito com corda grossa, amarrada a um cabo, no qual a pessoa é içada.
Parece ser o engenho Soupoupema, citado por José Antônio Gonsalves de Mello, em A Economia Açucareira. No período holandês pertencia a Johan Von Blijenburch e Jacob Dassenie e produzia 2.500 arrobas de açúcar.
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Cláudio Ribeiro
Cascavel foi emancipada em 1833, virou cidade em 1883. Pertencia a Aquiraz. Já se chamou Vila de Nossa Senhora da Conceição de Cascavel. Antes ainda, era São Bento. Quiseram chamá-la de Paranaguaçu, Visconde do Rio Branco e Pirangi. Rejeitaram.
BANCO DE DADOS
claudioribeiro@opovo.com.br
Demitri Túlio demitri@opovo.com.br
advogado Marcoss Araújo, 48, aindaa tenta descobrir a nhistória não cons, tada de sua família. Bisavós, eavôs, tios, senhoras e sennhores outros de sua ascendência guardaram segredoss rpor tantas secas e invernos, tão bem, que algunss npermanecem. Mesmo dentro de casa. É pelos hábitoss de hoje que ele segue pistass u e investiga o que se passou nas outras gerações. nSó mais recentemente entendeu porque não comiaa e peixe que fosse coberto de ucouro, como raias e cangu0 los. Só provou raia aos 20 anos, depois disso não lemmbra. Carne de porco também m não era posta à mesa. Nass festas familiares, homens fiicavam sempre de um lado e mulheres noutro canto. Morrtos da família sempre eram m banhados. Cumpriam ritos, s, não sabiam explicar, mas tiinham que fazer. Marcos soube que o avô ô lia a Bíblia escondido, em m cima das árvores em Casscavel. Também não aceitavaa ir aos casamentos católicoss dos próprios filhos. “Só foi oi a um”, diz, e por insistênncia. E nem era ateu. Décaadas atrás, um dia o marido de e uma tia, então agregado à faamília, se surpreendeu ao verr que sobrinhos que mergulhaavam em brincadeiras num riiacho perto de casa eram cirrcuncidados. Só aí soube pelaa mulher de confidências daaquela família. Mesmo sob tantos traços judaicos, Marcos, o pai Luis, a mãe Olívia, o irmão Olavo, todos hoje são evangélicos. “Aqui em casa ninguém é judeu”. Num quarto da casa, fotopinturas dos parentes mais antigos. Avós e bisavós paternos e maternos emoldurados e cheios de histórias que vão se revelando aos poucos. Ele até desconfia que os dois lados seguissem o judaísmo. Mas ainda não está seguro, segue apurando. A família tem a referência no Ceará contada a partir do sítio Batateiras, em Cascavel. O bisavô de Marcos foi José Irineu Filho, o primeiro prefeito da cidade emancipada. Irineu, cego de catarata desde os 20 anos, antes teve o sobrenome Ferreira. Era regra entre judeus escondidos mudar alcunhas e registros de família para que não fossem encontrados por perseguidores. Abolicionista, antes da Lei Áurea já havia alforriado seus escravos. Não batia nem vendia nenhum. Dona Olívia, 73, mãe de Marcos, também cita o hábito de lavar as mãos constantemente. “É um costume, não sei dizer por quê”. Tipicamente judeu, o filho admite. Casamento entre familiares,
Ariano Suassuna tem na cabeça a história de Bento Teixeira, poeta português que um dia caiu na teia da Inquisição em Olinda, no século XVI, e nunca mais ficou livre. O POVO foi saber se a Inquisição no Brasil já o inspirou em algum personagem. Ariano brincou, chamando os repórteres de “inquisidores”. (Ana Mary C.Cavalcante/CR/DT)
Na Torre do Tombo, o processo 5.206 do Tribunal do Santo Ofício conta a história de Bento Teixeira. Viúvo, 35 anos, mestre de gramática. Cristão novo, filho de cristãos novos – pai lavrador, mãe do lar. Acusado de judaísmo, foi preso em 20 de agosto de 1595.
TALITA ROCHA
Alguns costumes judaicos anotados por Asher BemShlomo na família de sua esposa Cissa. Uma bnei anussim alagoana pertencente aos troncos Henrique, Soares e Silva.
Dona Olívia e Marcos há vários, eles citam. Curiosamente, foi Marcos, que hoje busca saber caminhos anteriores de sua família, que levou a mãe para frequentar a Igreja Presbiteriana. A casa onde ela mora, na rua Odete Pacheco (nome da mãe dela), era a casa grande do sítio Santa Anastácia. Já dura para a sexta geração, uns 200 anos com eles – calculam. Foi uma das propriedades que mais cederam terreno para a origem do bairro Monte Castelo. O avô do bisavô Irineu foi João Lopes, que dá nome ao açude existente no bairro Ellery, zona oeste da Capital.
1. Preserva-se o casamento entre primos. Casam cedo, têm muitos filhos. Ela tem uma tia que tem 22. A sogra vem de uma família de 11 irmãos. 2. A mãe dela aprendeu da avó que se deve cortar a veia do pescoço da galinha, do boi e de qualquer outro animal que não seja considerado reimoso, para que saia todo o sangue. 3. A avó dela sempre usou lenço sobre a cabeça. É costume das mulheres judias. 4. O avô, até hoje, sempre cobriu a cabeça com um chapéu. Só tira para dormir. 5. Ele sempre lava as mãos antes de comer, e as pontas dos dedos depois de
comer (um típico costume sefaradita). Ele também reza antes e depois da refeição. Oração típica em português, preservada pelos marranos. 6. Varre-se a casa da sala para a cozinha. 7. Proíbe-se contar estrelas. 8. A sogra ensinou que não se pode beber leite após comer carne. Quem mistura carne com leite pode morrer por indigestão. 9. Quando a esposa de Asher o conheceu, ficou surpresa ao vê-lo jogar fora um ovo com uma linha de sangue. Ela disse que a mãe dela também sempre guardou este costume. 10. A mãe da esposa de Asher, que era agricultora, deixava a terra descansar a cada sete anos. 11. Guarda-se dentro da família da esposa de Asher o costume do irmão se casar com a cunhada viúva.
O auto-de-fé de Bento Teixeira saiu três anos depois. Perdeu bens, foi aos cárceres, usou hábito perpétuo, recebeu penas espirituais. Morreu “da peste”, em Lisboa, em julho de 1600. Antes, mandou cartas aos inquisidores reclamando das condições da prisão.
O POVO - Na pesquisa que faz para construir seus personagens, o senhor, alguma vez, cruzou com a Inquisição? Ariano - Sim. Eu li as denunciações e as confissões da Inquisição, no século XVI. Porque existe o personagem foi uma pessoa real e, pra mim, é um personagem por quem tenho grande admiração e fascínio. É o poeta Bento Teixeira. O autor da primeira epopeia escrita no Brasil. Foi escrita no século XVI, publicada depois. Era um cristão-novo do Porto e foi preso pela Inquisição, em Olinda. Morou em Olinda, em Igaraçu e no Cabo de Santo Agostinho, três cidades de Pernambuco. Foi preso quando morava em Olinda. Chegou um visitador do Santo Ofício às partes do Estado Brasil, que era um tipo menor de inquisidor. Chamava-se Heitor Furtado de Mendonça. Então, Heitor prendeu Bento Teixeira e remeteu para Lisboa, onde ele foi encarcerado e onde morreu dos maus tratos sofridos nos cárceres da Inquisição. Agora, veja como são as coisas: Bento Teixeira matou a mulher. Ela era cristã-velha e, segundo ele, lá no processo, tratava o poeta com grande desprezo. E terminou traindo - Bento Teixeira foi traído pela mulher e ele a matou. Agora, o Inquisidor não deu a menor importância a isso. Um fato fundamental pra condenação de Bento Teixeira foi o seguinte: ele ia passando um dia, numa rua, e um camarada estava tocando viola e cantando umas quadras que diziam: “Uno, solo e trino/ Trino, solo e uno/ no es otro alguno/ sino el Diós divino”. Aí, ele disse: “Isso não está bem”. Foi só o que ele disse. Porque, não sei se você sabe, mas os judeus assacam contra o cristianismo, que o cristianismo foi um pé atrás. Depois que os judeus revelaram a unidade de Deus, aquilo é uma volta à idolatria, ao politeísmo. Repare, como ele diz: “Uno, solo e trino/ trino, solo e uno/ no es otro alguno/ sino el Diós divino”... Aí, Bento Teixeira ainda se defendeu: “Não, eu estava falando que está mal cantado”. Mas o visitador não caiu na conversa dele, não, coitado. Prendeu e ele morreu tuberculoso dos maus tratos, no começo do século XVI. Pronto. O que eu sei sobre a Inquisição é isso!
ARTE SOBRE FOTO MIGUEL AUN
Jane Amélia Soares é médica, psicoterapeuta e pianista. Tem formação em ortopsiquiatria humanística. Para contato: angelica@sidiapa.com.br
“miraculosas”, mas acabam é por anular a riqueza que possuímos de sermos capazes de pensar.
Demitri Túlio demitri@opovo.com.br
pós quase dois séculos do fim da Inquisição Portuguesa (1536-1821), as permanências simbólicas de alguns comportamentos humanos, atualizados nos cotidianos até aqui, ainda servem para sambenitar. A calúnia e o ouvir dizer, exemplos de recorrências do Santo Ofício, excluem agora se utilizando da velocidade da web para atear fogo e degredar. Para a médica e psicoterapeuta mineira Jane Amélia Soares, uma das autoras do livro Antropologia da Alegoria da Calúnia, falta-nos o hábito de verificar e conferir para que se dissipe a difamação e os tempos de temor. Confira a seguir a conversa, por email, com Jane Amélia. O POVO - Com relação ao tempo da Inquisição, quais permanências dos comportamentos ligadas às mentalidades você identifica ainda hoje? Jane Amélia - Vivemos em tempos de grande instabilidade, a modernidade líquida, o que gera um sentimento geral de insegurança e temor, tal como ocorria na época em que foi instalada a Inquisição. Naquele tempo, a delação era incentivada, o que caracterizava uma vigilância e controle de todos sobre todos. Hoje, o temor da instabilidade alimenta uma ansiedade pela sobrevivência que faz com que as pessoas lutem por posições se tornando rivais e inimigas. Instaura-se um clima de desconfiança generalizada em uma sociedade baseada em controle: os panópticos estão em todos os lugares, tão “normais” que se tornaram até formas de entretenimento através dos reality shows. As câmaras estão espalhadas tornando indistintas as fronteiras entre os espaços públicos e privados. A internet potencializa este processo de invasão da privacidade pessoal em que todos podem ter informações a nosso respeito, como ocorre, por exemplo, nos sites de relacionamentos. Vigiamos e nos sentimos vigiados o tempo inteiro. É o clima paranoico sendo tratado como normalidade. Com o alcance das novas mídias, qualquer delação ou calúnia podem adquirir dimensões incontroláveis e destruir reputações. Enquanto na Inquisição a pessoa era estigmatizada, “sambenitada” ou queimada literalmente na fo-
gueira, hoje ela é destruída em sua dignidade pelo processo de difamação e calúnia. A Inquisição surgiu da concentração dos poderes político e religioso, servindo como instrumento para garantir sua consolidação e manutenção, agindo com atitudes arbitrárias submetidas aos interesses daqueles que a promoviam. Atualmente, o Estado de exceção, onde a lei fica suspensa em razão de algum interesse, proclamado em sua maioria de forma indiscriminada, repete a arbitrariedade e violência da Inquisição. Podemos citar o nazismo e os campos de concentração como uma atualização tecnológica das antigas fogueiras do tempo de caça às bruxas. Em âmbito mundial, xenofobias, fanatismos, terrorismos e fundamentalismos são as novas “ações inquisitivas”.
OP - Por que o ciclo do ouvir dizer e consolidar uma calúnia, tão presente na época do Santo Ofício, ainda encontra terreno fértil? Jane Amélia - Na época do Santo Ofício, os rumores se propagavam com facilidade, alimentados pelo temor e ignorância do povo, que reproduzia como uma caixa de ressonância quaisquer absurdos que ouvisse dizer. Hoje, não temos o hábito de verificar e conferir a respeito das coisas que nos chegam, pois confundimos conferência com desconfiança. São Tomé, aquele que quis ver para crer, tocar nas chagas de Cristo para certificar-se de que estava em sua real presença, não encontra muitos devotos em nosso tempo, por falta de compreensão de sua atitude. A sua confiança na relação amorosa e amiga com Cristo é que o mobilizou em direção a verificação da veracidade da aparição. Diferentemente de São Tomé, vivemos em um mundo de produção de aparências e nos contentamos com a superficialidade. Portanto, muitas vezes nos basta ouvir dizer sobre algo para nos considerarmos competentes a formar julgamentos. Somos, muitas vezes, opiniáticos. Nessa superficialidade ficamos privados do pensamento crítico e nos deixamos guiar por rumores e boatos, numa atitude crédula. Colabora para esta situação, o excesso de informação a que somos submeti-
dos atualmente, desvinculado dos processos de reflexão e síntese. Nosso conhecimento tende a ficar raso, com pouca fundamentação.
OP - A autoinquisição, manifestação presente em nossos dias, tem a ver com a herança do tempo do Santo Ofício? Jane Amélia - A autoinquisição é um processo de introjeção de um olhar opressor e acusador. A pessoa se avalia com excessiva severidade e rigor, não admitindo em si as fragilidades e os erros próprios da condição humana. Julga e condena a si mesma de maneira definitiva, como se não houvesse chances de transformação ou mudança, sempre suspeitando de si mesma. Herdamos e continuamos uma mesma cultura religiosa que acontecia na época do Santo Ofício, que valoriza o sacrifício e flagelo da consciência através da culpa para ganhar o reino dos céus. OP - Qual a saída para enfrentar a autoinquisição? Jane Amélia - Como a autoinquisição é um processo que ocorre em nossa consciência, ampliá-la é o primeiro passo para sair deste estado de alienação, cegueira e sofrimento – que são impeditivos de um pensamento crítico e qualificado. Ampliamos nossa consciência quando buscamos aprimorar nosso autoconhecimento, ressimbolizando e ressignificando nossas experiências continuamente, valorizando nossos erros como processo de aprendizagem. Saber de nossas potências, tanto quanto de nossos limites, assumindo-nos como autores de nossas ações é apropriarmo-nos de nós mesmos, livres da dependência de aprovação do outro (quando estamos querendo aprovação do outro, já estamos susceptíveis à autoinquisição). O autoconhecimento aumenta a possibilidade de nos estimarmos, abrindo espaço para a consciência delicada. Aceitarmonos, como natureza humana complexa, que abarca em si o ‘bom” e o “mau” (o bem e o mal), inacabada e imperfeita, faz parte deste caminho: que perdura o tempo de nossa vida. No contraponto da consciência escrupulosa, martirizada, que vê dever e pecado onde não há, a consciência delicada se manifesta considerando a realidade por vá-
rios aspectos e colocando-se como presença para o outro, empaticamente, com espontaneidade e folga. Libertarmonos da autoinquisição, a fim de exercermos autonomia, independência e liberdade, implica uma atitude responsiva diante a vida, em que o responder por nossas ações não seja encarado como expormonos a um julgamento pesado e atemorizante, mas um processo de aprimoramento contínuo e vital ao ser humano. OP - As religiões de modo geral reforçam a credulidade e por consequência a autoinquisição? Jane Amélia - Não podemos dizer que são as religiões que reforçam a credulidade e autoinquisição, mas, sem dúvida, este é terreno fértil para que se proliferem estas práticas. Isto ocorre quando as religiões da obediência, para afirmarem seu poder, oferecem a salvação, ao mesmo tempo que impõe temor. São formadas por seguidores submissos, e não por pessoas autônomas, críticas e questionadoras. A credulidade se forma a partir da passividade exercida através de uma escuta pouca qualificada, que não verifica os fatos: a pessoa, por exemplo, “ouve dizer” alguma coisa, e já acredita sem buscar os fundamentos, sem contextualizar, sem levar em conta os aspectos que podem influenciar numa “verdade”. Mas o pior é que a credulidade anda de mãos dadas com a ignorância, maledicências, com uma inocência de conveniência... todas atitudes de um ciclo que pode culminar com a exclusão de uma pessoa do grupo social, como ocorre nas calúnias, tão usuais em nossos tempos e mídias. Quando introjetamos crenças sem questionamentos, podemos tanto nos tornar crédulos quanto autoinquisitivos, nos vigiando e punindo todo o tempo. Nas duas hipóteses, estamos praticando a limitação de nossa capacidade de pensamento; mas, se somos feitos à imagem e semelhança divina, não seria o pensar também um dom de Deus que merece ser cultivado e trabalhado? Extrair da religião apenas suas crenças é que nos leva a engessar nossa espiritualidade em certezas. E, neste mundo de tanta instabilidade, muitas vezes esta é a “saída rápida” – paliativa – para os nossos problemas; soluções “mágicas” ou
O livro Antropologia da Alegoria da Calúnia foi organizado pelo médico e antropólogo Ely Bonini Garcia, da consultoria SidApa. Há artigos também de Nello Rangel, psicólogo e artista plástico, e do crítico de arte Márcio Sampaio.
Antropologia da Alegoria da Calúnia aborda a ação de caluniar pelo universo simbólico do quadro Alegoria da Calúnia, da pintora mineira Irma Renault.
A obra alerta para a forma destrutiva de atingir e excluir pessoas de um convívio. O livro denuncia como isso se dá no contexto de uma “normalidade insana”.
OP - Quando o papa Bento XVI afirma que as denúncias de pedofilia são coisa do “diabo tentar expulsar Deus da terra”, isso é uma forma de “sambenitar” a culpa e desviar olhares? Jane Amélia - O que considero mais importante nessa declaração do papa é que ela nos leva a perguntar sobre as concepções da figura do diabo ao longo da história - particularmente no cristianismo - e assim propicia a oportunidade de repensarmos o significado desta figura que personifica o mal. O diabo na tradução grega, diábolos, significa “caluniador”. Encontramos esse mesmo universo de significação na representação feita pelo pintor Apeles no século IV a.C., em seu quadro A Calúnia, onde são revelados os elementos constitutivos do diábolos, através da figura central da calúnia e alegorias que a acompanham: má-fé, credulidade, ignorância, verdade-por-ouvir-dizer, desconfiança, sarcasmo, inocência, hipocrisia, inveja, remorso, culpa, artifício e maledicência. Ou seja, elementos humanos presentes na vida de todos. A compreensão deste diábolos permite identificarmos o mal em nós mesmos para, assim, podermos escolher a direção contrária. “Aquele homem não podia ser bom, ele ainda nem conhecia sua maldade” (João Guimarães Rosa). Já a concepção de diabo que predomina diz respeito ao mal absoluto, inumano, incontrolável, sem remédio, sem qualquer perspectiva de mudança. Frente a esse mal total, tão desprovido de humanidade, afastamonos com horror da possibilidade de admiti-lo em nós. Ficamos vulneráveis e sentimos necessidade de mascarar nossos defeitos, o que nos leva, paradoxalmente, a comportamentos de dissimulação, má-fé, falsidade e farsa. Instaura-se um ambiente de hostilidade, onde todos passam a ser suspeitos e perigosos, com o temor permeando as relações. Este é o contexto propício à diabolização de pessoas incômodas ou rivais, às quais é atribuída a responsabilidade do mal e o encargo de afastá-lo ao eliminá-las de nossa convivência. São os bodes expiatórios. Do temor também surge a superstição, estado de servidão suprema do homem. A relevância deste tema será tratada em um próximo livro que estou desenvolvendo com um grupo de profissionais multidisciplinares e que será lançado em breve. Por fim, a questão do diabo, tocada pelo papa, trouxe à luz a urgente problemática da necessidade do diálogo entre as religiões, indispensável para a paz. Com o desenvolvimento da ciência e das mentalidades de modo geral, temos hoje condições de refazer a compreensão de assuntos que angustiam o homem, pertinentes às religiões.