Alan Neto se despede aos 83 anos. Icônico jornalista do O POVO marcou história no rádio, no jornal e na TV, com irreverência, estilo polêmico e muitas bombas de mil megatons
O trem parou na estação, o maquinista desceu e acenou ao público antes de partir, no ar o dedo ainda rodopiando, gesto pelo qual era reconhecido em todos os cantos. Aos 83 anos, Manoel Simplício de Barros
Neto faleceu ontem, 3, em Fortaleza, mas Alan Neto, persona que acabaria adotando, segue viagem na locomotiva da memória e nos trilhos do coração de seus familiares, amigos, leitores e admiradores.
“Não para, não para, não para”, Alan costumava bradar ao vivo. Voz trovejante, o príncipe do rádio e rei da audiência explorava o timbre encorpado e a altura (tinha 1,84m), preenchendo o centro do palco onde comboiavaotimedoprograma, conduzindo o espetáculo. Alan Neto teatralizou o esporte e futebolizou a política.
Dentro de campo e dos gramados, inventou uma gramática própria, arejando o comentário repleto de azedume e seriedade das mesas-redondas de então.
O dedo do “Trem Bala” sempre em riste, na velocidade da imagem o desejo de Alan de que o ritmo vertiginoso fosse um ingrediente da atração radiofônica e televisiva. Era risonho, galhofeiroedebochado,regente de uma modalidade cênica que não distinguia fronteiras para o jornalismo e o entretenimento, movendo-se nesse espaço que, para ele, funcionava como um tablado onde se apresentava o personagem cujo nome era a composição do astro do cinema francês Alan Delon com o Neto enraizado no Ceará, demarcandoaherançadoavô,aquemera muito ligado.
Desde cedo, portanto, tinha essa noção muito evidente da interpretação, do ato de entreter mesmo quando falasse a sério das crises sucessivas que marcaram o futebol cearense e outras coberturas das quais
participou no curso de sua longeva carreira multiplataforma — do rádio para a TV e da TV paraainternet,semjamaisdeixar nenhuma delas.
“Ficar fazendo média?! Não aqui no Trem Bala”, sapecou na reestreia do programa no O POVO, em 18 de setembro de 2023. Vestindo aquela camisa azul-berrante de mangas compridas de galalau, secundado por Sérgio Ponte e grande elenco, Alan parecia debutar no programa, mas já contabilizava boas décadas desde a estreia na Rádio Iracema, onde deu as primeiras caneladas como repórter esportivo antes de passar a outras frequências — e onde conheceria o amor da sua vida, Ivanilde. Nascido em Senador Pompeu, em 27 de novembro de 1940, mas criado na pequena Umarizeiras, um distrito de Maranguape com menos de 2 mil habitantes, Manoel Simplício só se tornaria Alan Neto aos 15 anos, quando um primo, recém-saído do cinema,
calhou de sugerir que empregasse o momentoso nome. Ora, de Manoel a Alan foi um salto — ou um giro, para continuar falando a língua do maquinista. Com a ajuda de outro primo (o radialista Armando Vasconcelos), logo se empregou. No batente, cobria de tudo: do vôlei ao futebol de salão, do basquete à natação. Ali, na Rádio Iracema, começou de fato a trajetória de Alan, que depois chegaria ao O POVO, com uma passagempelo“DiáriodoNordeste”.
O “Trem Bala” se consolidou, primeiro na rádio e apenas depois na televisão, onde manteve suas características medulares: totalirreverência,explícitacontrovérsia e aberto despudor. Há quem diga que o tom era excessivamente “moleque”, mas Alan tinha audiência fiel e numerosa que pensava o contrário. Não satisfeito com o êxito no rádio e na TV, o maquinista pôs-se a escrever. O assunto, porém, passava longe dos esportes — era política. Tambémno O POVO,assinoucoluna
semanal, primeiro como “Confidencialmente”, depois como “Confidencial” e, na sequência de nova mudança, “Alan Neto”. É porque já dispensava adjetivos ou outros penduricalhos: o nome lhe bastava.
Ainda no ano passado, sem disfarçar a emoção que lhe arranhava a voz, alegrou-se com o seu retorno ao O POVO após uma temporada apresentando-se na TVC. “O Trem Bala está de volta a sua casa materna. Toda volta tem um significado todo especial, está na
bíblia. Leia lá, o filho pródigo. Todos nós somos filhos pródigos que voltam, é um começar de novo”, discursou, o olhar fixado na câmera postada a sua frente, os movimentos mais contidos, sem tantas mesuras e tiques. Antes de prosseguir, Alan acrescentou: “Nossa casa sempre foi essa aqui”. Mesmo que o trem retome a sua viagem, já que o mundo não para de girar, o lugar do maquinista estará sempre vago para o Manoel Simplício que se tornou Alan.
O dom da palavra
bordões marCam CrôniCa esPortiva Cearense
Ícone do jornalismo do O POVO, Alan Neto brilhou e teve notoriedade no rádio, no jornal e na internet pela utilização de bordões no programa Trem Bala, que viralizaram nas redes sociais. Desde 2011, quando o programa passou a ser exibido no Canal FDR (à época TV O POVO) até 2017, retornando à casa em setembro de 2023, o apresentador ministrava a locomotiva com peculiaridades na hora de chamar a atenção da audiência. “Olha o deeeedo do Trem Bala! E gira, gira, gira...”: Bordão mais conhecido do icônico jornalista, o “dedo do Trem Bala” era utilizado para destacar ainda mais alguma forte
pontuação feita pelos colegas de bancada.
“Não para nem a pau e nem a bala”: Alan Neto adorava destacar o fervor que tinha em conduzir o Trem Bala, que só parava de maneira breve durante o período de festas de fim de ano.
A bomba de mil megatons: o jornalista gostava de notícias impactantes durante o programae,semprequeofutebolcearense o brindava com uma boa pauta, ele destacava que o programa seria bombástico citando que estariam comentando uma “bomba de mil megatons”.
Alan também cunhou frases como “se o futebol cearense não existisse teria que ser inventado” e “isso é uma pândega”.
(Iara Costa)
A entrevista com o Rei Pelé
o Furo de mil meGatons e o auGe da Carreira de alan neto
Recebi com muita tristeza a morte do jornalista Alan Neto, que deixou um legado de 60 anos de carreira
Elmano dE FrEitas, governador do Ceará
Alan escreveu uma história de paixão pelo esporte, com irreverência e um jeito muito próprio de se comunicar
José sarto, prefeito de Fortaleza
edmundo sousa, em 28/05/1982
Referência no jornalismo cearense, Alan Neto morreu ontem após complicações devidoaumapneumonia.Emquase 60 anos de carreira, o jornalista viveu o auge da trajetória como repórter no encontro com Pelé, em 1970, antes da Copa do MundodoMéxico,noSavanahHotel, no Centro de Fortaleza.
O resultado foi o furo mundial que sacudiu o futebol. Pelé revelou a Alan que a Copa do México seria a despedida do jogador da seleção brasileira.
“Eu estava começando no jornal. O Seu Costa (José Raimundo Costa, 1920–2004, então editor do O POVO), meu pai no jornalismo, me disse: ‘Eu tenho um desafio pra ti. O Pelé está vindo aí. Eu quero uma matéria exclusiva. Dou primeira página’. Eu estava começando!”, contou Alan.
Pelé estava em Fortaleza comadelegaçãodoSantospara uma partida. Seu Costa, então, reservou quarto no Savanah Hotel para o jovem repórter e o irmão dele, o também jornalista Sérgio Ponte. O encontro aconteceu no horário marcado, na manhã seguinte. “Quando nos encontramos, eu já falei: ‘Se eu não levarumaexclusivasuanãovou progredir’. Ele disse: ‘Vamos lá: eutenhoumfuropravocê.Prepara o gravador’. Eu tremia pra caramba”, diz Alan. “E ele continuou. ‘Pode anunciar que será minha última Copa como jogador da seleção’. Eu fiquei sem acreditar. Com 30 anos, ele ainda poderia disputar mais uma Copa. ‘Eu encerro nesta e vamos ser Tri no México’. Ele queria sair por cima”, conta. (Lucas Mota)
Vai fazer muita falta, vai deixar muita tristeza naqueles que são apaixonados por futebol, principalmente
João paulo silva, presidente do Ceará
Vai deixar saudade, vai fazer falta, mas fica o legado de um grande comunicador, de uma mente brilhante marcElo paz, Ceo da saF do Fortaleza
Clubes de futebol, autoridades cearenses e entidades lamentam morte de Alan Neto e prestam homenagens ao ícone da comunicação
O Ferroviário, time do coração do jornalista, lamentou a morte de “um dos maiores nomes da imprensa esportiva de nosso estado”. O Ceará destacou que Alan “construiu uma das mais belas histórias do jornalismo esportivo cearense”, “com uma comunicação disruptiva e vanguardista”. Já o Fortaleza ressaltou que o maquinista do Trem Bala “se tornou uma referência com suas crônicas e diversas contribuições para comunicação esportiva cearense”. mateus moura mateus.moura@opovo.com.br
AFederaçãoCearensedeFutebol (FCF) decretou três dias de luto: “O nome de Alan Neto se entrelaça com os variados momentos do futebol do nosso estado”, apontou a entidade.
O ex-governador e atual
Ministro da Educação, Camilo Santana (PT-CE), lamentou. “O jornalismo cearense está de luto! Alan Neto marcou época com seu jeito criativo e irreverente. Na rádio e na TV criou e dirigiu o histórico programa Trem Bala. Também atuou por seis décadas no jornalismo impresso, principalmente nas páginas do O POVO. Meus sentimentos de pesar a toda família, amigos e fãs. Que Deus conforte o coração de todos neste momento de profunda tristeza.”
O governador do Estado do Ceará, Elmano Freitas (PTCE), também se manifestou sobre o falecimento de Alan Neto. “O jornalismo cearense se despede de um ícone! Recebi com muita tristeza a morte do
jornalista Alan Neto, que deixou um legado de 60 anos de carreira atuando em jornal, rádio, televisão e internet”, disse. “Apaixonado por futebol, tornou-se uma referência no jornalismo esportivo do Ceará, ao apresentar, com o seu jeito performático e criativo, o programa Trem Bala, eternizando vários bordões. Nos anos 70 realizou uma entrevista histórica com o Rei Pelé, que rendeu declaração exclusiva sobre a aposentadoria do maior atleta de todos os tempos da Seleção Brasileira. Meus sentimentos de pesar à família, amigos e fãs de Alan Neto”, pronunciou-se Elmano. O prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT-CE), disse que “o jornalismo hoje se despede de um ícone. Alan Neto, o famoso maquinista do futebol cearense, nos deixou. Alan escreveu uma história de paixão pelo esporte, com irreverência e um jeito muito próprio de se comunicar”.
“Transitou pelo jornal impresso, pelo rádio, TV e internet, destacando-se também nos comentários sobre a cidade e os seus desdobramentos políticos. Lamento muito a sua partida e dedico minha solidariedade a amigos, familiares, fãs e colegas de redação do jornalista. Que Deus traga conforto neste momento de dor e pesar””, concluiu Sarto. A Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), representadapelopresidenteRicardo Cavalcante, também se pronunciou. “A Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), lamenta profundamente o falecimento do jornalista Manoel Simplício de Barros Neto, nosso querido Alan Neto. Prestamos nossa homenagem a este amigo e grande profissional, com brilhantes 60 anos de carreira, sendo referência no jornalismo esportivo do país. Aos familiares e amigos, nossas condolências neste momento tão difícil”.