EDUCAÇÃO INCLUSIVA
APRENDENDO COM AS DIFERENÇAS
IMAGINÁRIOS E RESISTÊNCIA
O povos indígenas no Ceará celebram o fortalecimento das escolas indígenas e seguem na luta por direitos e reconhecimento identitário
Imaginários e resistência
Cerca de 16 povos indígenas reconhecidos residem no Ceará, e a luta pelos seus direitos está mais viva do que nunca. A questão envolvendo a identidade indígena adquire uma dimensão de disputa não somente por território ou bens palpáveis, mas também por imaginários. Ou seja, uma luta que ocorre também na esfera do “soft power”, com forte influência cultural. “Há uma visão estereotipada sobre o que é ser indígena, como se houvesse um único modo de existir. Além disso, o avanço sobre os territórios e o desmonte de políticas públicas são ameaças constantes”, acrescenta o ativista Rodrigo Tremembé, nascido e residente na Aldeia Córrego João Pereira, em Itarema.
Grande parte da responsabilidade desse imaginário
estereotipado recai sobre a mídia, que constrói e reforça ideias genéricas que são continuamente reproduzidas mesmo em espaços formais de educação, como em escolas.
A educação escolar indígena atende, hoje, a 14 povos indígenas no Ceará. São 43 escolas e 20 extensões de ensino distribuídas em 18 municípios pelo Estado, que ofertam da educação infantil ao ensino médio.
Neste caderno Educação Inclusiva – especial povos indígenas olhamos para esses pilares como estratégia para fortalecer o letramento necessário que dissolve preconceitos. Boa leitura!
EXPEDIENTE
FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA
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PROJETO EDUCAÇÃO INCLUSIVA
CONCEPÇÃO E COORDENAÇÃO GERAL: Valéria Xavier | ESTRATÉGIA E RELACIONAMENTO: Adryana Joca e Dayvison Álvares | CURADORA DE CONTEÚDO: Leila Paiva | ANALISTA DE PROJETOS: Damaris Magalhães | ANALISTA DE OPERAÇÕES: Alexandra Carvalho | ANALISTA DE MARKETING: Álvaro Guimarães
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PATROCÍNIO
REALIZAÇÃO
Rodrigo Tremembé em foto do Porto Iracema das Artes
Assista aos programas de TV e lives
No canal FDR e no Facebook da FDR fdr.org.br/educacaoinclusiva
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O FORTALECIMENTO INDÍGENA POR MEIO DA EDUCAÇÃO
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EDUCAÇÃO E JUVENTUDE INDÍGENA
DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS JÁ!
8 O QUE SIGNIFICA ‘SER INDÍGENA” NO MUNDO CONTEMPORÂNEO
Confira os próximos cadernos!
Educação inclusiva - pessoas LGBTQIAPN+
Dia 26 de dezembro
Educação inclusiva - pessoas pretas
Dia 27 de dezembro
Educação inclusiva - pessoas com deficiência
Dia 28 de dezembro
O fortalecimento indígena
por meio da educação
NO CEARÁ, ESCOLAS INDÍGENAS E CURSOS
SUPERIORES VOLTADOS PARA ESSA POPULAÇÃO
PERMITEM QUE OS POVOS SE APROPRIEM DA PRÓPRIA
CULTURA E REIVINDIQUEM CADA VEZ MAIS ESPAÇOS
Letícia do Vale leticiadovale@opovodigital.com
A Educação Escolar Indígena é assegurada na Constituição Federal Brasileira de 1988, por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), que garante às comunidades o direito à educação diferenciada, específica e bilíngue. A modalidade resguarda aos indígenas a recuperação de memórias históricas, reafirmação de suas identidades étnicas e valorização de suas línguas e ciências, sem esquecer das informações e conhecimentos técnicos e científicos que compõem o currículo base da educação convencional.
De acordo com a coordenadora da equipe de educação escolar indígena, parte da Coordenadoria de Educação Escolar Indígena, Quilombola e do Campo (Cociq), da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc), Bernardete Pitaguary, a educação escolar indígena atende, hoje, a 14 povos indígenas no Ceará. São 43 escolas e 20 extensões de ensino distribuídas em 18 municípios pelo Estado, que ofertam da educação infantil ao ensino médio.
Antes de responsabilidade da Fundação Nacional dos Povos
Indígenas (Funai), a educação escolar indígena passou a ser ofertada pelos estados e municípios a partir da criação da LDB, em 1996. No Ceará, as primeiras experiências da modalidade surgiram no final dos anos 90, organizadas pelos povos nativos ainda de forma improvisada, debaixo de árvores ou em pequenos galpões e casas de taipa. Nos anos 2000, surgem as primeiras escolas estruturadas pelo poder público.
Segundo Bernardete, a criação da modalidade foi necessária devido ao preconceito sofrido pelos indígenas nas instituições convencionais, seja pelo modo de vestir, pensar ou pelas crenças expressadas pelos povos. Além disso, esses alunos enfrentavam longas caminhadas para chegar até uma escola convencional, que não abrangia a parte cultural necessária para essa população.
Hoje, com aulas de português, matemática, história e geografia, mas também de espiritualidade, expressão corporal, arte e cultura, os alunos das escolas indígenas recebem um ensino intercultural. A coordenadora da Escola Indígena Tapeba Amélia Domingos e professora do curso de Licenciatura intercultural da Unilab, Kátia Morais, indígina da etnia Tapeba, exemplifica a metodologia.
“A receita é um gênero textual da língua portuguesa. Eu posso trabalhar essa estrutura levando a receita do mocoró, uma bebida sagrada. Ainda dentro desse conteúdo, posso trabalhar matemática, conversar com meus alunos sobre quantos litros de suco de caju eu preciso para fazer o mocororó. Dentro da ciência, eu posso trabalhar o processo de fermentação do açúcar do caju. Na geografia, eu trabalho o solo do cajueiro, a estação que se tem o caju, o clima favorável. E, na história, qual a importância histórica daquela bebida para aquele povo”, descreve.
Atualmente, essas escolas exercem papel crucial nos territórios indígenas, constituindo espaços de socialização de saberes e fortalecimento de identidades. “Hoje, nós temos indígenas ocupando
ENSINO SUPERIOR INDÍGENA
HOJE, SÃO 146
PROFESSORES
EFETIVOS E 656
PROFESSORES
INDÍGENAS
COM CONTRATO
TEMPORÁRIO
espaços importantes na definição de políticas públicas. São pessoas que foram fortalecidas dentro dos seus territórios, e as escolas têm muito disso, de fortalecer os indígenas. Então, nós temos lideranças jovens que estão se destacando, alunos que têm alcançado vagas nas universidades públicas. Nossos estudantes podem permanecer nos territórios, mas podem alçar outros voos também”, destaca Bernardete.
Este ano, foi realizado o primeiro concurso para professores das escolas indígenas da rede estadual do Ceará, com 200 vagas. Segundo ela, até agosto de 2024, a maioria dos professores dessas instituições tinham vínculos precários, com contratos de um ano que precisavam ser renovados. Hoje, são 146 professores efetivos e 656 professores indígenas com contrato temporário lotados nas 43 escolas indígenas da rede estadual.
No Ceará, são ofertadas cinco licenciaturas interculturais reservadas aos povos indígenas e sua cultura, com questões voltadas para identidade, pertencimento, território, pedagogia e metodologias de ensino. São elas: Licenciatura Intercultural Indígena Pitakajá e Licenciatura Intercultural Indígena Kuaba, na Universidade Federal do Ceará (UFC), Licenciatura Intercultural Indígena, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Cuiambá Pedagogia Intercultural Indígena Magistério Tremembé, na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), e Licenciatura Intercultural Específica Tabajara em Ciências Humanas, na Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Tesoureiro da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (Oprince) e vice-coordenador da Associação dos Professores Indígenas Tapeba (Aproint), Cléber Tapeba é graduado em Licenciatura intercultural indígena pela UFC e mestre em antropologia pela UFC e Unilab. Atuando como um dos coordenadores locais da Licenciatura intercultural indígena na Unilab, ele acredita que os cursos demonstram uma evolução na educação nativa.
“Os cursos de licenciatura permitem que os professores sejam não só educadores, mas também pesquisadores. Pesquisar a própria cultura e se apropriar do conhecimento, evitando que nós nos tornemos apenas objeto de pesquisa. A gente coloca a cara no sol e busca construir o nosso espaço à sombra. O objetivo é fazer com que os outros possam estar sempre buscando o melhor para a sua etnia”, declara.
De acordo com Cleber, em alguns desses cursos o número de inscritos chega a ser três ou quatro vezes maior que o número de vagas. Ele também relembra a Lei federal nº 12.711, de 2012, que reserva determinada porcentagem das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção, no mínimo, igual à presença desses grupos na população total da unidade da Federação onde fica a instituição.
“Nós não precisamos só de professores formados, nós precisamos de dentistas, advogados, psicólogos, porque nós precisamos que todos os espaços sejam ocupados por nós mesmos”, destaca.
EDUCAÇÃO INDÍGENA PARA QUEM NÃO É INDÍGENA
Apesar das escolas indígenas terem surgido como uma alternativa ao preconceito sofrido pela população nativa no acesso à educação, isso não significa que o problema esteja solucionado. Para Kátia Morais, é necessário um processo de conscientização a partir do Governo para cobrar e fiscalizar que as demais escolas do País e do Estado trabalhem a cultura indígena.
Em 2008, a Lei federal nº 11.645 tornou obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas públicas e privadas de ensino fundamental e médio.
“Enquanto indígena, eu acredito que termos a nossa escola com os nossos fundamentos é o melhor. Agora, sobre esse ensino ser aplicado em outras escolas, seria um avanço, até para quebrar a questão de que os povos indígenas são uma população única, ou que não existe indígena no Ceará. Seria bom para que os alunos pudessem ter uma visão maior do indígena brasileiro e cearense, da questão que nós evoluímos também”, destaca.
Outra reivindicação da professora é a criação do cargo de professor indígena. “Toda política pública que vem, vem para o professor da rede estadual, mas não existe uma política pública específica para o professor indígena, porque não existe o professor indígena”, lamenta.
Educação e A
Juventude Indígena
FORMAÇÃO DIFERENCIADA
DE JOVENS EM COMUNIDADES INDÍGENAS NO CEARÁ COMO PROCESSO DE REPARAÇÃO HISTÓRICA, VALORIZAÇÃO DE SABERES ANCESTRAIS E PRESERVAÇÃO DE IDENTIDADES
A professora indígena, Kátia Morais, aponta os desafios e os caminhos da formação de jovens no contexto dos povos indígenas. Ela é professora da Unilab e coordenadora pedagógica da Escola Indígena Tapeba Amélia Domingos. Confira! (Entrevista Camilla Lima)
Kátia Morais é professora da Unilab e coordenadora pedagógica da Escola Indígena Tapeba Amélia Domingos
O POVO - Como a educação pode respeitar e valorizar os sabores e as culturas dos Povos Indígenas?
Kátia Morais – Quando a gente fala de educação escolar indígena ela já é uma educação carregada de todo um saber ancestral. Por que existe alguns princípios dentro da educação e um deles é a interculturalidade. Essa interculturalidade permite que a gente possa agregar o que é comum a todo ensino, que está na base comum curricular, àquilo que é nosso, que vem da minha etnia, que vem da minha comunidade, que vem dos meus ancestrais, das minhas lideranças, aquilo que é necessário para que o nosso aluno indígena ele cresça. Tanto no conhecimento que é comum pra todos, das escolas convencionais, mas também na questão da sua identidade cultural, para que ele possa chegar lá fora e dizer: eu sou indígena, pertenço a uma comunidade, eu me reconheço, as minhas tradicões, a minha espiritualidade, o meu artesanato, a minha culinária está presente em tudo na minha vida, até na educação.
OP - A educação, na perspectiva do ambiente escolar dentro das comunidades indígenas, mudou muito nesses últimos anos?
Kátia – Mudou bastante. As primeiras escolas, elas surgem num contexto de preconceito. Existia uma lei que dizia que não havia indígenas no Ceará. Então, quando o menino chegava em uma escola convencional, que ele de alguma maneira se afirmava com um colar, com um cabelo mais longo ou com algum outro adereço, alguém dizia: você não é indígena. Você não é um índio. Índio não existe aqui. E eles chegavam em casa e retratavam isso pra família. E o que que acontecia, muitas vezes o aluno não queria retornar pra escola. Por que ele tinha um cabelo longo e alguém zombava do cabelo, ele usava um colar, porque ele fazia um grafismo, uma pintura na pele e alguém falava. Então, a comunidade se reuniu e disse: vamos criar uma escola nossa. As primeiras escolas eram embaixo de árvores, depois elas foram para galpões abertos, depois para algumas casas de taipa, até que o poder público, hoje em dia a Seduc, olhou pra aquilo, e através de muita luta das comunidades e dos povos indo atrás desses direitos, começaram a construir as escolas estaduais, hoje são 43 escolas espalhadas pelo Estado do Ceará contemplando diversas etnias.
OP - Que outras pautas passaram a ser prioridade a partir das discussões da educação indígena?
Kátia – Quando começa a ideia de escola, a ideia de educação começa a se transformar. As pessoas começam a ter mais consciência em relação aos seus direitos. Então, se eu tenho uma escola, por que eu não posso ter uma saúde específica, uma saúde que atenda as necessidades da minha comunidade? Normalmente, as comunidades indígenas, elas são comunidades bem isoladas das áreas urbanas, temos em áreas urbanas também, mas a maior parte é isolada porque já vem dessa fuga, eu vou fugir da cidade, vou
QUANDO
COMEÇA
A IDEIA DE
A
me isolar por causa da perseguição. Então, era muito difícil acessar outras escolas e até a questão da saúde era difícil, aí começou uma luta pela saúde. E começa todo um movimento por outras demandas que tem na comunidade. Então, a luta nasce com a educação e hoje a educação indígena fortalece essa luta. Por que a grande parte dos militantes da política indígena são pessoas que estão dentro de escolas indígenas. Por que, querendo ou não, o movimento educa.
OP - Os alunos indígenas se reconheciam dentro do contexto da escola convencional e como o apagamento dos povos aqui no Nordeste refletiu nos desafios de adaptação desses estudantes?
Kátia – Nós temos o caso de um aluno que no dia 19 de abril, que é aquela data que era chamada de o Dia do índio, que hoje é Dia dos Povos Indígenas, aí a professora como atividade pediu: cole no seu caderno a imagem do índio, usou a expressão do índio. O menino vai e cola a foto da família. Quando ele entrega a
professora recusa a atividade e diz: não, eu quero do índio de verdade, vocês não são índios. Então, a gente tem diversos relatos como esse por que realmente existiu esse apagamento no Ceará, mas geograficamente as pessoas não conseguem visualizar porque diz que o indígena é o que está na Amazônia, no Amapá, mas nós fomos os primeiros povos a ter contato com os europeus, eles chegam no Nordeste Brasileiro. Então, é claro que houve um massacre muito maior do nosso povo, do que os povos que estão mais distantes, né? O nosso contato foi maior, a miscigenação foi maior e aqui é área portuária então era área de entrada e saída dos europeus e as pessoas não conseguem enxergar essa questão geográfica e histórica. E não é estudado.
OP - Quais as principais diferenças entre a escola convencional e a indígena, e quais os desafios que essa educação enfrenta?
Kátia – A escola começou embaixo de cajueiros, mas hoje já temos os prédios escolares, mas a gente não se delimita àquele espaço. Todo o espaço da comunidade, da aldeia, é espaço de educação. Então, hoje eu posso programar uma aula dentro do território sagrado. Eu levo os alunos lá e eu ministro a minha aula lá. A escola ela não está delimitada àquele espaço físico, todas as áreas da comunidade podem ser utilizadas como áreas de ensino: uma área de plantio, uma casa de mandioca, a casa de uma liderança, onde ela pode relatar um fato histórico que ela presenciou. E dentro dos nossos conteúdos, a gente procura fazer um intercultural, onde numa pintura indígena eu posso trabalhar sobre a fabricação da tinta, pra isso eu vou falar dos ingredientes como o jenipapo, vou seguir uma receita. E uma receita é o que? Um gênero textual da língua portuguesa. Quando eu trabalho aquela tinta, ela passa por um processo químico, onde eu posso explicar pros alunos como é aquela pigmentação, e quando eu desenho aqueles grafismos no meu aluno eu utilizo, normalmente, retas, semi-retas, formas geométricas, e eu posso trabalhar dentro da matemática. A interculturalidade é quando eu pego o conteúdo que é comum e eu consigo colocar a cultura dentro dele. O intercultural é algo muito fácil pra gente aplicar para os meninos e está aí a grande diferença porque a gente aproxima cada vez mais ele da cultura. Dá trabalho, mas é gratificante porque a gente forma estudantes, que saem de dentro de sua comunidade, que se formam e que retornam de novo para a comunidade para ajudar. Hoje a gente tem o Weibe Tabeba, que é Secretário de Saúde, temos advogados, temos o Jorge Tabajara, que é vice-secretário da Sepince (Secretaria dos Povos Indígenas) aqui no Ceará e tudo isso são pessoas que saíram dessa comunidade, que passaram por essa educação e que trazem retorno hoje.
terras indígenas já! Demarcação das
TER DIREITO AO TERRITÓRIO É O PONTO DE PARTIDA PARA A VERDADEIRA EFETIVAÇÃO DE TODAS AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM PROL DOS POVOS INDÍGENAS, E O CEARÁ JÁ ENTENDEU ISSO
Em 1863, o então presidente da Província do Ceará, José Bento da Cunha Figueiredo, declarava ao governo imperial que a população indígena do Estado estava extinta. Apesar do massacre sofrido por essa população ao longo dos anos, essa afirmação segue longe de ser verdadeira. Atualmente, cerca de 16 povos indígenas reconhecidos residem no Ceará, e a luta pelos seus direitos está mais viva do que nunca.
“Para que você tente estabelecer o mínimo possível de igualdade no País, é necessário olhar para aqueles que foram historicamente colocados em situação de vulnerabilidade e dar um atendimento diferenciado, dar mais para quem tem menos. Essas políticas diferenciadas são resultado de derramamento de sangue e batalhas enfrentadas pelos nossos ancestrais e organizações indígenas regionais e nacionais”, defende o representante da Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará (Sepince), Jorge Tabajara.
Criada em 2023, a pasta tem sido responsável por desenvolver ações fundamentais na manutenção dos direitos indígenas, desenvolvendo políticas transversais com outras secretarias e o movimento indígena do Estado. Uma dessas medidas é o empenho pela demarcação dos territórios indígenas, questão considerada por Jorge como o principal direito a ser conquistado.
Em novembro de 2023, o Estado assinou um acordo de cooperação técnica para futura demarcação de quatro terras indígenas do Ceará: Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz; Tapeba, em Caucaia; Pitaguary, em Pacatuba e Maracanaú; e Tremembé de Queimadas, em Acaraú. O acordo foi assinado por meio do
PARA QUE VOCÊ TENTE ESTABELECER O MÍNIMO POSSÍVEL DE IGUALDADE NO PAÍS, É NECESSÁRIO
OLHAR PARA AQUELES
QUE FORAM HISTORICAMENTE COLOCADOS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE E DAR UM ATENDIMENTO DIFERENCIADO
Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), vinculado à Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA), conjuntamente com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
“Isso é um avanço importantíssimo porque, a partir da conclusão da demarcação física desses territórios, nós já começamos a dialogar com o Governo Federal para que tão logo essas quatro terras sejam homologadas pelo presidente. A maior forma de proteger os direitos indígenas é demarcando territórios porque, quando se demarca, você abre portas para a implantação de diversas outras políticas de proteção”, aponta o secretário.
Nesse acordo de cooperação, o Estado contribui com equipes para a realização de levantamentos georreferenciados e identificação dos territórios, como explica o advogado e presidente da Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Estado do Ceará (OAB-CE), Alexandre Fonseca.
Segundo ele, as legislações nacional e estadual são favoráveis a esse grupo, mas ainda é necessário que os órgãos a frente do cumprimento dessas medidas estejam melhor estruturados para garantir, de fato, a execução da Constituição.
“Nós precisamos estar unidos na garantia dos direitos dos povos indígenas. A demarcação de terras não ameaça as propriedades consolidadas. Na verdade, garantir esse direito é garantir o nosso direito a uma sociedade com um meio ambiente equilibrado. Não há como se falar em sustentabilidade sem a garantia dos territórios dos povos indígenas do Brasil e do Ceará”, aponta.
FORTALEZA - CE, 23 DE DEZEMBRO DE 2024
OS DIREITOS INDÍGENAS
AO LONGO DO TEMPO
De acordo com o advogado, presidente da Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas da OAB-CE e coordenador jurídico da Sepince, Alexandre Fonseca, na América Latina, os primeiros registros sobre os direitos indígenas surgiram no século XIV, na Escola de Salamanca. Na época, os teólogos jusnaturalistas Bartolomé de las Casas, Francisco de Vitória e Francisco Suaréz advogaram perante a Coroa portuguesa o reconhecimento de direitos desses povos, considerando necessária a conversão dos nativos ao catolicismo. Confira, a seguir, alguns marcos da história dos direitos indígenas no Brasil e no Ceará:
1611
Surge, no Brasil, o primeiro instrumento jurídico, através do Alvará Régio de 1º de abril, resguardando os direitos indígenas sobre a posse das terras, por esses povos serem os primeiros donos.
1741
No período colonial, a Bula “Immensa Pastorum”, dirigida aos bispos que estavam no Brasil e nas Índias Ocidentais, ditava que ninguém poderia possuir indígenas como escravos ou mantê-los em cativeiro.
1831
Lei nº 37.627, do Brasil Império, revoga as Cartas Régias que mandaram fazer guerra e pôr em servidão os índios.
OBSERVAÇÃO
Mesmo com a medida, os direitos dos nativos continuavam sob ataque. Neste período, os povos originários passam a ter suas vidas tuteladas pelo Estado, que os enxergava como incapazes. Com a Lei de Terras, em 1850, os indígenas são colocados como meros ocupantes, sem direitos sobre a propriedade. Historicamente, a Constituição brasileira de 1988 representa o grande divisor de águas nos direitos dos povos originários do País.
1973
Lei federal nº 6.001 dispõe sobre o Estatuto do Índio (terminologia antiga), com o propósito “de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.
1988
Cria-se o capítulo VIII da Constituição Federal, exclusivamente direcionado aos direitos dos povos indígenas. Nele, o Art. 231 reconhece a esse grupo “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcálas, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
1989
Artigo 287 da Constituição do Ceará prevê que o Estado “respeitará e fará respeitar os direitos, bens materiais, crenças, tradições e garantias reconhecidas aos índios pela Constituição da República”.
1999
Lei federal nº 9.836 institui o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.
2004
Decreto federal nº 5.051 promulga a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais.
2007
Decreto federal nº 6.177 promulga a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, assinada em Paris, em 20 de outubro de 2005.
2008
Lei federal nº 11.465, de 11 de março de 2008, inclui a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira e Indígena” no currículo oficial da rede de ensino.
2009
Decreto federal nº 6.861, de 27 de maio de 2009, dispõe sobre a Educação Escolar Indígena, define sua organização em territórios etnoeducacionais e dá outras providências.
2012
Lei federal nº 12.711 reserva, no mínimo 50%, das vagas das instituições federais de ensino superior e técnico para estudantes de escolas públicas, que são preenchidas por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.
2020
Lei estadual nº 17.165, de 2 de janeiro de 2020, reconhece a existência, contribuição e os direitos dos povos indígenas para a formação da sociedade cearense.
2023
É criado o Ministério dos Povos Indígenas, órgão da administração federal, em janeiro de 2023.
2023
Lei estadual n° 18.310, de 17 de fevereiro de 2023, altera a Lei n° 16.710, de 21 de dezembro de 2018, criando a Secretaria dos Povos Indígenas do Ceará (Sepince).
2024
Lei estadual nº 18.693, de 15 de fevereiro de 2024, institui o Conselho Estadual de Povos Indígenas (Cepin) cuja finalidade é viabilizar e assegurar a participação dos povos indígenas nos processos de deliberação, implementação e fiscalização de suas políticas públicas no Ceará.
O DIREITO DE SER INDÍGENA
A efetivação de políticas públicas para os povos indígenas passa pelo direito e necessidade de se autoafirmar como pessoa indígena. No entanto, em um processo histórico atravessado por um genocídio cultural e social, e levando em consideração as diferenças presentes em um País continental, o que é ser indígena?
Para o tesoureiro da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (Oprince) e vice-coordenador da Associação dos Professores Indígenas Tapeba (Aproint), Cléber Tapeba, indígena é aquele que vive a sua cultura. De pele clara, cabelos encaracolados e olhos arredondados, ele foge dos estereótipos indígenas comumente apresentados na mídia.
“São 524 anos de extermínio. Todo esse apagamento histórico e secular faz com que a gente tenha uma mistura de genes. Esse fenótipo mais conhecido da população indígena, cabelo lisinho, olho puxado, pele escurecida, é mais comum para quem está no norte do País, onde demorou um pouco mais para que a invasão chegasse. Ser indígena não é só uma característica fenotípica, mas sim um pertencimento”, declara.
Na visão do advogado Alexandre Fonseca, se desprender desses preconceitos é fundamental para garantir, efetivamente, os direitos dos povos originários. “O nosso País é continental, então o indígena da Amazônia não vai ser parecido com o cearense. Tivemos colonização tanto holandesa como francesa em vários locais. Se você pegar a população serrana, ela vai ser diferente da litorânea. Há, também, populações indígenas dentro de quilombos”, indica.
Segundo ele, para o cumprimento de cotas, por exemplo, é garantido ao indivíduo, nacionalmente, o direito de se autodeclarar como indígena. No entanto, esse reconhecimento deve vir acompanhado da compreensão dos costumes, tradições e ligação étnica com a cultura indicada.
“Você precisa ter uma raiz tradicional que lhe traz essa garantia de que você realmente é indígena. É comumm que as pessoas solicitem uma declaração das lideranças dos povos. Geralmente se exige três assinaturas, mas cada povo se organiza da forma como ele se entende”, explica.
O PROBLEMA DO MARCO
TEMPORAL
O marco temporal é uma tese jurídica que define que os povos indígenas só podem reivindicar terras que estivessem ocupando fisicamente ou que estivessem em disputa judicial ou conflito fundiário até o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Levando em consideração que a ideia ignora as remoções forçadas desses grupos ao longo da história, em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou essa tese. No entanto, em outubro do mesmo ano, o Congresso aprovou a Lei nº 14.701, que incorpora o marco temporal. Atualmente, a constitucionalidade
POVOS INDÍGENAS NO CEARÁ
Tapeba; Anacé; Jenipapo-Kanindé; Tremembé; Pitaguary; Potyguara; Tabajara; Tubiba-Tapuia;
Gavião; Tupinambá; Kariri; Kalabaça; Tapuya Kariri; Kanindé; Karão Jaguaribara; Issú-Kariri.
Em 2023, o Governo do Ceará faz acordo de demarcação de terras indígenas na Caucaia
O que significa “ser indígena” no mundo contemporâneo?
DEFINIÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA É MÚLTIPLA,
COMPLEXA E DIALOGA COM VIOLAÇÕES HISTÓRICAS
Lucas Casemiro lucascasemiro@opovo.com.br
O que significa ser indígena? Para Rodrigo Tremembé, estilista, arte-educador, artista visual e ativista pelos direitos dos povos originários, “é saber que pertenço a uma linha de resistência que começou muito antes de mim e que segue viva, nos rituais e na nossa conexão com a natureza. É ser parte de um povo que transforma desafios em aprendizado e que resiste para existir”, reflete.
A resposta para a questão, entretanto, pode ser múltipla. Isso porque envolve o conceito de identidade, complexo por si mesmo, e que mescla valores e crenças, histórico de vida e outras experiências individuais. Quando se fala na identidade indígena, soma-se a isso uma série de tensões outras e que produzem e perpetuam violências.
Emmanuel Furtado Filho, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará
(UFC), explica que o conceito de identidade se desenvolve com base em relações com o mundo, influenciada pelo contexto sociocultural, “surgindo do equilíbrio entre o que somos individualmente e o que o mundo ao nosso redor nos influencia a ser”.
“No caso das identidades indígenas, a fluidez se acentua, pois envolve não apenas a autorrepresentação, mas também as definições impostas por estruturas coloniais, jurídicas e políticas que muitas vezes não captam devidamente a riqueza e complexidade das práticas e cosmologias desses povos”, esclarece.
Nesses moldes, a saga em busca da identidade indígena é uma luta desafiadora. “É um processo conflituoso, é um processo, às vezes, de desafios, que não está claro, mas é preciso ir construindo, porque a identidade é também um processo em construção”, afirma Thiago Halley Anacé, coordenador regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
DIREITO À IDENTIDADE E REPARAÇÃO HISTÓRICA
Mas qual a relevância desse debate? A conquista do direito à identidade dos povos indígenas – responde o coordenador da Funai, Thiago Anacé. Em sua visão, esse é o principal direito a ser garantido, pois dele derivam todas as demais reivindicações, como por território, saúde e educação.
“O ‘ser indígena’ diz respeito a essas reelaborações da identidade, essa reelaboração da própria relação com o território, na relação com o sistema, na relação também com o próprio Estado”, explica.
Ele frisa que a luta atual pela demarcação de terras e por políticas diferenciadas em saúde e educação não representa simples concessões de direitos ou privilégios, mas sim reparações históricas, e que é necessário o esforço de entendê-las e de sempre contextualizá-las.
É que a violência sofrida pelos povos indígenas no Brasil deixou marcas em seus territórios, em seus corpos e também em suas identidades. O processo de colonização foi marcado por massacres, deslocamentos forçados e políticas que tentaram apagar culturas e identidades.
"No Ceará, havia inspeções financiadas pelo Estado, onde pessoas eram pagas para matar indígenas. Isso mostra a dimensão da violência histórica que esses povos enfrentaram", relata Thiago Anacé.