ID: 66364996
06-10-2016
Tiragem: 33068
Pág: 16
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 28,74 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 2
Alunos sobremedicados: ‘Não podemos ficar de braços cruzados’ Telmo Mourinho Baptista O bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses defende que é necessário saber-se o que justifica os níveis de prescrição alarmantes de medicamentos para fazer face à hiperactividade e défice de atenção dos alunos Entrevista Clara Viana Telmo Mourinho Baptista considera que compete à autoridade de saúde pôr cobro à teia de pressões, envolvendo professores, pais e médicos, que funciona como pano de fundo da prescrição de medicamentos a crianças e jovens. “Toda a gente quer pacificar os jovens todos”, comenta. O Conselho Nacional de Educação alertou recentemente para os riscos de se estar a sobremedicar crianças e jovens, com medicamentos dos quais se desconhecem os efeitos a longo prazo, remetendo para o relatório da Direcção-Geral da Saúde em que se dá conta de que, em 2014, as crianças portuguesas até aos 14 anos estavam a consumir mais de cinco milhões de doses de metilfenidato (ritalina e concerta) para combater situações de hiperactividade e défice de atenção. O que é que um número como este nos diz? Temos de nos perguntar se essa é a primeira intervenção que se deve ter. Há recomendações internacionais, inclusive do Colégio Americano de Pediatria, apontando que a intervenção por excelência no primeiro momento deve ser psicológica. A recomendação existe, o problema é que não estamos sequer a dar ouvidos ao que se preconiza, porque provavelmente torna-se mais fácil prescrever um comprimido, embora não se saiba exactamente quais são as consequências de longo prazo. Nesse sentido, o alerta do Conselho Nacional de Educação faz todo o sentido. São números impressionantes e face a eles não podemos ficar de braços cruzados.
Mas de quem é a responsabilidade para esta explosão de medicação? Os professores dizem que são pressionados pelos pais, estes dizem que são pressionados pelos professores, os médicos referem que os pais insistem com eles para medicarem os filhos para que estes tenham bons resultados escolares... É um facto que existem todas essas pressões, mas em Portugal há uma autoridade de saúde que tem o dever de emanar recomendações sobre estas intervenções, com base na investigação e nas recomendações internacionais que já existem. Claro que, a partir do momento em que toda gente quer pacificar os jovens, todos entramos na situação que descreveu. Mas para isso é que existem autoridades de saúde,
Há sobrediagnóstico? Há incentivo ao consumo? São questões para as quais temos de ter resposta É mais fácil prescrever um comprimido, embora não se saiba exactamente quais são as consequências de longo prazo
para dizerem o que deve e o que não deve ser feito. Temos de ter estratégias diferenciadas com vista a informar os professores, os pais, a fornecer guidelines aos médicos. Recentemente, um professor disse-me que quando olha para adolescentes que estão a ser medicados há anos com ritalina se lembra do que os electrochoques faziam aos internados no filme de Milos Forman, Voando sobre Um Ninho de Cucos. É abusiva esta visão? Não sei. Não conheço essa realidade tão de perto. Mas quando temos um alerta de consumo, temos de reflectir sobre o que ele significa. Por que é que está a acontecer? Há sobrediagnóstico? Há incentivo ao consumo? Há utilização não regulada da medicação? São questões para as quais temos de ter resposta. Ficou-se a saber também recentemente que os jovens portugueses são dos que mais consomem tranquilizantes e sedativos entre os europeus, e que estes são receitados por médicos. Sem medicar, o que é que os psicólogos podem fazer face às crises de ansiedade dos alunos, que são muito frequentes, por exemplo, na altura dos exames? Há imensas estratégias de intervenção para o controlo da ansiedade num curto espaço de tempo. Até há formatos grupais, com a constituição de grupos com os alunos que têm esses problemas de ansiedade face aos exames e onde se dão estratégias que são também treinadas em grupo. Isso pode ser feito nas escolas, nos centros de saúde, nas organizações. Existem estratégias de relaxamento, estratégias cognitivas, de modo a que se seja capaz de diminuir os
ID: 66364996
06-10-2016
Tiragem: 33068
Pág: 17
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 31,00 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 2 de 2
700 553 é o número aproximado de psicólogos que actualmente existem nas escolas, o que representa um rácio de um profissional para 1700 alunos ENRIC VIVES-RUBIO
pensamentos perturbadores geradores da ansiedade, como, por exemplo, um aluno estar sempre a pensar que não vai conseguir passar naquele exame ou ter bons resultados nos testes. O problema da ansiedade por causa dos exames tem que ver com o excesso, porque alguma ansiedade até é necessária, é focalizadora. O problema é que na maior parte dos casos se excedeu tanto este nível que começa a ser um problema. Temos pessoas formadas para lidar isso. O problema coloca-se ao nível da intervenção precoce? Uma parte fundamental deste processo é a triagem. Apurar se, para uma determinada situação, só é preciso uma intervenção curta, focalizada, e se para outra é necessária uma intervenção mais diferenciada, que se calhar exige psicoterapia. Mas na maior parte das situações nem será esse o caso. Se fizermos prevenção a tempo e horas, se calhar não vamos ter muitas destas situações que entretanto se agravaram. Uma condição que apareceu num determinado momento com o passar do tempo torna-se crónica porque não foi resolvida. Portanto, perdeu-se uma oportunidade de ouro. O mesmo acontece, por exemplo, com o diagnóstico de crianças com queixas de mau comportamento, que muitas vezes é consequência de outros défices. Se uma criança estiver alheada da escola porque não se consegue concentrar, então obviamente que o seu grau de motivação desaparece e começa a fazer outras coisas na sala de aula. E ainda há outras situações a montante, que exigem uma maior coordenação com a saúde escolar. Existem situações de dificuldade de aprendizagens que, por exemplo, têm que ver com problemas de audição. E o que acontece quando estes não são despistados? A criança está no fundo da sala, quase não ouve o que o professor diz, começa a alhear-se, a desmotivar-se, e tudo isto poderia ser evitado. cviana@publico.pt
psicólogos estão colocados nas s unidades do Serviço Nacional de Saúde, o que perfaz um rácio o de um especialista para cerca de 18 mil utentes
Com mais psicólogos nas escolas poupa-se “muito sofrimento” Telmo Mourinho Baptista não tem dúvidas de que o trabalho dos psicólogos nas escolas pode contribuir para um melhor sucesso escolar. Diz que há 500 profissionais destes a menos nas escolas tendo em conta as necessidades actuais. Muitos pais que têm filhos a estudar não sabem exactamente o que fazem os psicólogos nas escolas e muitas vezes há a ideia de que estes se limitam aos testes psicotécnicos. Qual é, então, o papel de um psicólogo na escola? Por vezes há, de facto, uma concepção demasiado limitada desse papel, porque o primeiro contacto é geralmente feito por altura das provas de orientação vocacional. Mas um psicólogo faz muito mais do que isso. Tudo aquilo que tem que ver com uma melhor adaptação e a promoção do sucesso escolar tem o contributo dos psicólogos, desde logo na detecção de problemas que impedem uma boa aprendizagem: hiperactividade, perturbação do comportamento, etc. Não só a nível individual, mas no colectivo da escola. Por exemplo, as questões do bullying não são só individuais, são colectivas, e merecem uma atenção muito especial até pelo impacto de longo prazo que têm. Há um estudo que mostra que 40 anos depois continua a sofrerse as consequências. É um longo estudo, que foi feito em Inglaterra, com mais de oito mil pessoas, que mostra que as pessoas que foram alvo desta forma de assédio sistemático nas escolas têm piores resultados na sua própria vida, têm mais problemas com a lei, mais problemas de saúde mental, por exemplo. Temos contributos a dar na promoção do sucesso escolar, na diminuição do abandono — há muitos factores de abandono que
têm que ver com dificuldades psicológicas — e na promoção de competências sociais e pessoais. Essas competências devem ser trabalhadas com os alunos em que circunstâncias? Em alturas mais difíceis, como quando se entra para a escola ou nas mudanças de ciclo, com a passagem para mais professores, para certo tipo de disciplinas, de modo que esta transição se faça com muito mais suavidade, para que não haja tanto choque nem tanta dificuldade de adaptação. E sabe-se hoje que essas competências são também muito protectivas em termos de saúde mental. Uma pessoa que consegue ter boas competências de comunicação, negociação, mediação, tem mais capacidade de estar no mundo de uma forma mais adequada na expressão das suas necessidades, dos seus desejos, das suas competências. Constituem um conjunto de estratégias pessoais que são facilitadoras do estar no mundo. Uma presença mais efectiva de psicólogos nas escolas poderia reduzir o grau de insucesso escolar, com todos os problemas que este acarreta? Tenho a certeza absoluta de que sim. Não estou a dizer que tudo é só intervenção psicológica, são precisas muitas outras coisas.
Há um estudo que mostra que 40 anos depois continua a sofrer-se as consequências do bullying
Mas tem um papel central desde logo no diagnóstico de situações. Quanto mais precocemente forem detectadas, mais fácil é fazer intervenções e também menos custosas são. E poupam muito sofrimento. Muitas vezes, temos situações de perturbação que não são detectadas, em que a criança acumula dificuldades e insucesso e se desmotiva. Ao desmotivar-se, ou tem insucesso ou abandona a escola. Muitas vezes, isso não é detectado ou é detectado muito tarde. Temos de estar atentos às necessidades da escola, não só dos alunos, mas de toda a comunidade, para que se perceba o que está em causa e se intervenha. O bullying, por exemplo, tem um início, só que frequentemente não se intervém, mesmo sendo uma acção sistemática, como é, e que por isso tem tantas consequências. Portanto, naquilo que são alguns problemas de perturbação psicológica, de comportamento, tendo psicólogos na escola em número suficiente teríamos condições para contribuir claramente para o sucesso escolar. O que é um número suficiente de psicólogos? Há dias referiu que faltam 500 nas escolas para reduzir o rácio psicólogo/aluno actualmente existente. Como se faz essa contabilidade? Temos recomendações internacionais e fazemos cálculos em função disso. Temos cerca de 700 psicólogos nas escolas, quando se fala que estão em falta 500 tem de ser com base numa análise das necessidades. Haverá zonas e locais que precisarão de mais psicólogos do que outras. O rácio é uma só medida genérica para se entender que estamos longe de ter uma situação normal nesta área [o número de psicólogos por alunos é actualmente de 1/1700 alunos, quando o rácio recomendado é de 1/1000].