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A cidade como terreno comum: limiares urbanos

A CIDADE COMO TERRENO COMUM: LIMIARES URBANOS E A INVENÇÃO DE NOVOS HORIZONTES DO POSSÍVEL

JOANA BRAGA

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Stavros Stavrides tem vindo a tecer uma singular trama teórica em torno da experiência metropolitana, tendo como cerne o papel do espaço urbano na potencial transformação emancipatória da sociedade. Muito influenciada pelas teses de Foucault (2004, 2013, 2018) sobre o poder, a obra de Stavrides reafirma a relação essencial e recíproca entre espaço e poder. As cidades, sistemas estruturados de lugares estáveis e fluxos regulares, contribuem decisivamente para a modelação das formas de organização social e política vigentes, ao mesmo tempo que a articulação das relações de poder correspondentes a essas formas de racionalidade governamental se traduz espacialmente, condicionando a vida urbana. Contudo, a cidade não é uma ordem espacial consumada, defende Stavrides, seguindo a linha da geografia crítica iniciada por Lefebvre (1974). A cidade não é um espaço totalmente regulado, mas um sistema aberto de espacialidades. As cidades, mostra-nos Stavrides, são sistemas de relações espaciais em mutação continuada, investidas e mobilizadas também pelas práticas quotidianas dos seus habitantes. As dinâmicas urbanas podem exceder as formas de regulação e controlo que as procuram sujeitar, levando à emergência de práticas espaciais de liberdade. A obra de Stavrides recupera, na contemporaneidade,

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a urgência do direito à cidade a que nos instou Lefebvre (2012) nos anos 70 do século xx, o direito de, cooperando, produzirmos as cidades que habitamos como obras colectivas.

Stavros Stavrides tem uma militância política activa, tomando parte em lutas e experiências colectivas não apenas na cidade em que habita, Atenas, mas aliando-se também a outros movimentos que experimentam, no presente, a possibilidade de um mundo diferente, como a insurreição zapatista. A sua investigação caracteriza-se por uma abordagem imanente que procura aprender com estas experiências e práticas colectivas e com a forma como podem prefigurar e actualizar transformações espaciais, sociais e políticas, posicionando-se no «limiar que separa e liga ao mesmo tempo acção e crítica, práxis e teoria, experiência e representação, participação e distanciamento», como escreve na Introdução (p. 56). A sua obra, portanto, apresentando estes exemplos concretos e elaborando uma tessitura argumentativa e teórica deles, visa intervir no real e transformá-lo, assim «apoia[ndo] […] aspirações e sonhos comuns» (ibid.).

Arquitecto, professor universitário, investigador e activista, a sua produção teórica excede as fronteiras da ar quitectura e do urbanismo. Elaborando uma urdidura disciplinar que se estende à geografia crítica, à antropologia, à sociologia e à filosofia, o pensamento de Stavrides articula a exploração das potencialidades do espaço urbano nos processos de transformação social com uma análise dos processos de subjectivação política e das mudanças na esfera dos valores, contextualizando historicamente a sua

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argumentação. Para Stavrides, a emancipação é um processo que consiste em desafiar a distribuição estabelecida de papéis sociais, em questionar as competências atribuídas a cada um e em tomar a igualdade como pressuposto e promessa. O caminho em direcção à emancipação tem assim de gerar transformações dinâmicas em vez de instituir redutos «libertados». O seu estudo estende-se então além da análise de espaços e tempos concretos, aventurando-se na identificação de características espaciais particulares capazes de estimular a invenção, a experimentação e o teste de novas formas de solidariedade e partilha e de, assim, apoiar um terreno comum construído das diferenças de quem os habita. A forma como este autor reclama a pertinência da imagem do limiar, recuperando-a do pensamento de Walter Benjamin e da sua utilização na antropologia simbólica, para a propor como qualidade espaciotemporal dos acontecimentos e das experiências que abrem possibilidades de mudança nos contextos urbanizados da actualidade é um contributo verdadeiramente singular para a teoria urbana contemporânea, apresentado em Hacia la Ciudad de Umbrales e desenvolvido na presente obra.

ESPAÇOS OUTROS: LIMIARES URBANOS E HETEROTOPIAS

O espaço urbano, descontínuo e diferenciado, é marcado por fracturas e usos conflituais, ao mesmo tempo que possibilita a expressão e a actuação de subjectividades e identidades discordantes. Stavrides reclama a figura do limiar

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para explorar a descontinuidade espaciotemporal como terreno de encontro com a alteridade, entendida, não enquanto essência, mas conceito relativo. O limiar é o ponto em que dois mundos diferentes se encontram. «Existindo apenas para ser atravessado, real ou virtualmente, o limiar não se constitui como uma fronteira definidora que mantém de fora a alteridade hostil. É, pelo contrário, um artefacto social complexo que produz, através de práticas distintas de atravessamento, diferentes relações entre a similaridade e a alteridade» (Stavrides, 2016: 22). Ao mesmo tempo unindo e separando, os limiares, zonas intermédias, assinalam as diferenças e activam zonas de comparação entre elas, possibilitando a comunicação e o encontro com o que é Outro, com a alteridade.

No pensamento de Walter Benjamin, Stavrides encontra o limiar como imagem associada ao entendimento da descontinuidade do espaço e do tempo. Nas teses «Sobre o Conceito da História», Benjamin afirma a necessidade de «forçar uma determinada época a sair do fluxo homogéneo da História» para criar uma «oportunidade revolucionária na luta pelo passado reprimido» (Benjamin, 2017: 19). Propõe assim a interrupção do fluxo do tempo e a criação de limiares que permitem ligar a actualidade a fragmentos do passado que lhe são distantes. O passado é então um tempo repleto de possibilidades divergentes e polarizadas, e o Agora, apenas um dos múltiplos futuros inscritos nesse passado. No caso do espaço, Benjamin afirma a importância de atender a espaços e acontecimentos considerados marginais que fissuram a experiência metropolitana. São esses limiares, aparentemente distantes do coração da vida

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metropolitana, que iluminam a sua complexidade e polarização, coberta pelos véus que o capitalismo lança sobre o real (Benjamin, 2019).

Na antropologia, Stavrides encontra o limiar enquanto ferramenta conceptual que tornou compreensível a lógica das transições rituais, convocada inicialmente por Van Gennep (1969) e mais tarde por Turner (1969). Este mostrou como, nesse intervalo de transição em que os iniciados vivem a passagem entre estados sociais (da adolescência à idade adulta, por exemplo), se abre um mundo de potencialidades de subjectivação afirmadoras da busca de uma alteridade que é simultaneamente presságio da destruição da ordem social estabelecida e esperança da sua reconfiguração futura. Descobrir e criar espaços e tempos pautados pela qualidade do que é limiar é algo fundamental «a qualquer tentativa de ir além das taxonomias e valores sociais existentes», defende Stavrides (2016: 60). O limiar prolonga e dá sentido aos actos de passagem, atribuindo-lhes a potencial produção de mudanças. A sabedoria oculta na experiência liminar reside no reconhecimento de que só é possível relacionarmo-nos com o que é outro se abrirmos as fronteiras da identidade, criando zonas intermédias de subjectivação («in-between») em que a dúvida e a ambivalência são bem vindas, em que os valores são questionados e debatidos.

Vislumbrando na figura da heterotopia proposta por Foucault (1994, 2009) uma qualidade semelhante à do limiar, Stavrides desenvolve uma interpretação singular da mesma, com a qual traduz a decisiva relevância do limiar no campo das experimentações e lutas urbanas.

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As heterotopias apresentadas por Foucault são lugares reais muito diversos com a capacidade de reflectir todo o espaço social de um modo particular, como se de um espelho deformador se tratasse, potenciando a sua contestação e problematização. A imagem da heterotopia não só se liga a configurações espaciais perturbadoramente inconsistentes, como pode associar-se a formas temporais também em ruptura com o tempo comum. Formada quando fragmentos heterotópicos do espaço e do tempo se justapõem num único lugar, a heterotopia associa-se à abertura de linhas de fractura nos regimes de classificação espaciotemporais. Stavrides recupera esta figura foucaultiana sublinhando a sua positividade e repropõe-na enquanto limiar em direcção à alteridade radical – por outras palavras, enquanto rasgo no existente que permite a emergência do que é diferente, do que é outro, do que põe em perigo a estabilidade mas pode abrir mudanças auspiciosas. Para este autor, as heterotopias são «limiares temporários que guiam em direcção ao futuro como alteridade. No entanto, estes limiares, estas heterotopias, estão sujeitos às inconsistências e tramas da mudança social. Neles, a alteridade radical própria da emancipação humana é confrontada, abordada e experimentada» (Stavrides, 2016: 28).

É este o argumento central de Towards a City of Thresholds, a afirmação de que «os espaços heterotópicos assinalam limiares no espaço e no tempo onde a ordem dominante e as formas de controlo são questionadas» (Stavrides, 2016: 27-28). Nos espaços e tempos com características liminares, tomam forma fragmentos de uma vida diferente. «Quando as pessoas percebem colectivamente

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que as suas acções começam a diferir dos seus hábitos colectivos correntes, a comparação torna-se libertadora» (Stavrides, 2016: 16). Por isso, a criação e o uso social dos limiares abrem uma espacialidade de emancipação.

ESPAÇO COMUM

Na presente obra, Stavrides continua a análise e produção em torno do problema do espaço urbano, sublinhando o seu papel na estruturação da ordem social e política, mas também, sobretudo, a sua implicação decisiva na abertura de possibilidades de a destabilizar pela emergência de lugares e momentos de ruptura capazes de abrir o horizonte do possível. A grande diferença no discurso teórico de Stavrides resulta da integração de uma linguagem muito politizada, associada a uma crítica explícita do capitalismo e da racionalidade neoliberal que governa as cidades contemporâneas, e à exigência da formação de uma racionalidade alternativa, o «comum». Muito influenciado pela «teoria do comum» elaborada por Hardt e Negri (2001, 2005, 2009), pelo pensamento de John Holloway (2002, 2010) e Peter Linebaugh (2008, 2014) e pelas investigações situadas de Raúl Zibechi (2007, 2010, 2012) e Gustavo Esteva (1995, 2010, 2013), Stavrides desenvolve neste livro uma problematização dúplice do espaço das cidades, a um tempo entendendo-o como meio tornado comum pelas práticas colectivas e, em simultâneo, como elemento formativo dessas práticas colectivas que instituem o comum. Como afirma Massimo de Angelis no prefácio à edição inglesa,

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incluído nesta edição, «[e]ste é o primeiro livro teórico do seu género» (p. 40), desafiando-nos a pensar as cidades como mundos comuns em formação.

Encontramos neste livro um olhar sintonizado com a emergência, em geografias várias, de uma multiplicidade de espaços e práticas dissidentes que, na sua diversidade, partilham a experimentação de formas de fazer e pensar colaborativas e de modos de habitar em conjunto um espaço concreto; o autor não se detém apenas em momentos de ruptura como os que, há alguns anos, transformaram temporariamente praças e outros espaços públicos em arenas de experimentação de uma vida comum, reconfigurando a paisagem política das cidades, detém-se também em experiências menores e imperfeitas, fundadas na cooperação no espaço e por meio do espaço, que alteram o quotidiano de quem nelas toma parte e abrem brechas no tecido urbano. Da análise destas experiências que, de alguma forma, fissuram a paisagem do existente, Stavrides constrói um discurso que problematiza não só o uso real e potencial das configurações físicas dos espaços existentes, mas também a forma como o espaço é criado por meio de práticas de habitação e práticas de projecção (memória e imaginação).

A dimensão espacial é central para qualquer tentativa de abrir brechas ou rupturas na lógica normativa geral que subordina não só a esfera produtiva, mas instituições, actividades, temporalidades e ritmos quotidianos, adequando-os aos objectivos e tempos da acumulação capitalista, e reduz os laços sociais e a formação de subjectividades a uma busca do «sempre mais», incitada pela concorrência

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generalizada entre sujeitos. Entendendo o espaço não como mero recipiente mas elemento formativo das práticas sociais, na esteira da dialéctica espacial de Lefebvre (1974), Stavrides sublinha a forma como aquele, enquanto meio que configura o quotidiano, a imaginação e as visões do mundo, não apenas dá forma ao mundo social existente mas também a mundos sociais potencialmente possíveis, mundos que podem inspirar a acção colectiva e expressar sonhos comuns. O espaço é então elemento e meio fulcral para a construção do «comum», para a emergência e sustentação dos «comuns» e, em particular, para o encorajamento e a conformação de actos de «tornar comum», noções que o autor nos apresenta como princípios capazes de reinventar o existente e imaginar um futuro além do capitalismo. «Da perspectiva da reapropriação da cidade, os espaços comuns são nós espaciais através dos quais a metrópole se torna de novo o lugar da política, se por “política” podemos descrever um processo aberto no qual são questionadas e potencialmente transformadas as formas dominantes de viver em conjunto» (p. 113).

O espaço comum de que nos fala Stavrides é espaço partilhado. É um tipo de «espacialidade que pode emergir da partilha» e não um «recipiente que dará forma à comunidade que se deseja» (p. 192). Não poderemos, portanto, identificar este tipo de espacialidade mediante uma forma e uma materialidade que lhe correspondam nem tão-pouco ligá-lo a uma comunidade predefinida; a sua condição comum está vinculada aos fios relacionais tecidos no seu habitar, às relações entre todos e cada um dos seus utilizadores e à relação que estes estabelecem com o próprio lugar

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que habitam em conjunto. «[O] espaço comum é essencialmente incomensurável com o público e o privado», diz-nos o autor (p. 368). Não é definido pela instituição da propriedade, mas pela forma como nele, e através dele, se institui a cooperação entre os que o habitam, que definem em conjunto as regras da sua utilização e habitação e ensaiam nele, e por meio dele, a possibilidade de uma vida comum fundada em práticas de partilha.

A EMERGÊNCIA DO «COMUM»

A exigência do «comum», longe de ser pura invenção conceptual, emergiu de insurreições democráticas e movimentos de resistência que, um pouco por todo o mundo, desde os anos 90 e com maior intensidade no novo milénio, têm vindo a opor-se e a contestar a expansão da apropriação privada e do princípio de concorrência a todas as esferas da sociedade, da cultura e da vida. A tumultuosa abertura de espaços de acção e palavra na América Latina – iniciada simbolicamente com a insurreição dos zapatistas em 1994, continuando com as lutas dos camponeses sem-terra e as lutas urbanas dos sem-tecto no Brasil, as mobilizações dos piqueteros argentinos, as guerras contra a privatização da água e do gás na Bolívia encabeçadas pelas comunidades aimarás ou as insurreições indígenas no Equador – a que o autor se refere em vários momentos deste livro veio interromper a geografia política dessa região. Estas lutas, muito diversas, têm em comum a busca e experimentação de novas formas de vida fundadas na cooperação,

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reapropriando criticamente conceitos indígenas como buen vivir ou comunalidad. É necessário enumerar também os movimentos de globalização alternativa e os Fóruns Sociais Mundiais, expressão da recomposição de um movimento anticapitalista com dimensões globais que se constituiu como um momento de aliança entre mobilizações aparentemente díspares – as de pendor ecologista, movimentos sociais tradicionais, movimentos pelo direito à habitação, movimentos de agricultores e contestações específicas das políticas neoliberais, entre outras. Esta aliança de alianças fundou-se na exigência de defesa e promoção dos «comuns», termo que, para estes movimentos, abarcava referentes tão variados quanto os espaços urbanos, a terra agrícola, os recursos naturais e também o conhecimento, a linguagem e mesmo formas relacionais e criativas, todas sob a ameaça da apropriação capitalista. Num período mais recente, teve lugar o que o autor designa por «uma série de fenómenos que irromperam quase inesperadamente por todo o mundo, de 2011 em diante», questionando se «[t]erá sido um movimento de praças ocupadas, um conjunto de actos colectivos de desobediência civil de âmbito mundial, uma série de insurreições consecutivas contra regimes não democráticos ou simplesmente mobilizações de massas contra políticas económicas injustas» (p. 241). Trata-se por um lado da Primavera Árabe, conjunto de revoltas populares que irrompeu a partir do final de 2010 por todo o Norte de África e Médio Oriente, concretizada na ocupação prolongada de praças e outros espaços públicos, e que se assumiu quer como confronto ao autoritarismo dos regimes políticos em vigor, quer como

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