Excerto DA MISÉRIA SIMBÓLICA, VOL. I, Bernard Stiegler

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BERNARD STIEGLER

DA MISÉRIA SIMBÓLICA I. A ERA HIPERINDUSTRIAL

TRADUÇÃO LUÍS LIMA

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obra publicada com o seguinte apoio

Centro Nacional do Livro — ministério da cultura francês ouvrage publié avec le soutien suivant

Centre national du livre — ministère français chargé de la culture

T Í T ULO ORIGINAL

De la misère symbolique / 1. L’époque hyperindustrielle AU TOR

Bernard Stiegler T R ADUÇ ÃO

Luís Lima RE VISÃO

Nuno Quintas C ONCEPÇ ÃO GR ÁFIC A

Rui Silva | www.alfaiataria.org PAGINAÇ ÃO

Rita Lynce IMPRESSÃO

Guide – Artes Gráficas C OP YRIGH T

© 2004 Éditions Galilée © 2018 Orfeu Negro 1.ª EDI Ç ÃO

Lisboa, Março 2018 DL 000000/18 ISBN 978-989-8868-18-3 ORFEU NEGRO

Rua Silva Carvalho, n.º 152 – 2.º 1250­‑257 Lisboa | Portugal | +351 21 3244170 info@orfeunegro.org | www.orfeunegro.org

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A Jean-François Peyret

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Há uma noite na noite. joë bousquet

Tal aventura deixa alguns indiferentes, porque imaginam, de modo mais ou menos raro ou sublime, no prazer experimentado pelas pessoas, que a situação se mantém quanto àquilo que, unicamente, é precioso e elevado, imensuravelmente, e conhecido pelo nome de Poesia, sendo que esta permanecerá sempre excluída e o estremecimento dos seus voos para fora das páginas é parodiado, sem mais, pela envergadura, entre as nossas mãos, da folha apressada ou ampla do jornal. A julgar pela extraordinária sobreprodução actual, em que a Imprensa inteligentemente cede o seu meio, prevalece, todavia, a noção de algo bastante decisivo, e em elaboração… stéphane mallarmé

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PREÂMBULO

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Esta obra é a prossecução das minhas reflexões sobre a destruição do narcisismo primordial, que resultou da canalização da libido dos consumidores para os objectos de consumo, cuja análise iniciei em Aimer, s’aimer, nous aimer: Du 11 septembre au 21 avril. A nossa época caracteriza­‑se por uma tomada de controlo do simbólico pela tecnologia industrial, onde a estética se tornou simultaneamente arma e palco da guerra económica. O resultado é uma miséria em que o condicionamento substitui a experiência. Esta miséria é uma vergonha, por vezes sentida pelo filósofo como «um dos motivos mais poderosos da filosofia, o que faz forçosamente dela uma filosofia política»1. A «vergonha de ser um homem»2 é hoje suscitada, desde logo, pela miséria simbólica tal como engendrada pelas «sociedades de controlo». Nesta perspectiva, pelo menos, este livro em dois volumes é um comentário ao «Post­ ‑scriptum sur les sociétés de contrôle» de Gilles Deleuze. Para compreender as tendências históricas que conduziram à especificidade do tempo presente, tenta esboçar os conceitos de organologia geral e de genealogia da estética. O primeiro capítulo, que introduz esta ideia, retoma e desenvolve um artigo publicado originalmente no jornal Le Monde.

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O segundo capítulo desenvolve a questão dos objectos temporais industriais, que são o cinema e a canção gravada, pela análise de um filme de Alain Resnais: É sempre a Mesma Cantiga. O terceiro capítulo aprofunda a questão da perda de individuação, ao tentar esboçar uma pequena história da individuação psíquica e colectiva ocidental pela retoma do conceito de gramatização proposto por Sylvain Auroux. O processo de gramatização, típico da individuação ocidental e da guerra para o controlo dos símbolos na qual consiste, conhece diversas épocas, correspondendo a última à digitalização. Esta é a infra­‑estrutura tecnológica das sociedades de controlo cujo alcance é analisado através de uma «alegoria do formigueiro» que extrapola a tendência para a hipersincronização levada a cabo pelas redes e como particularização do singular (bem como a sua negação), isto é, como decomposição do diacrónico e do sincrónico. Este capítulo é o núcleo da obra. O quarto capítulo, inspirado num filme de Bertrand Bonello, Tiresia, tenta mostrar por que razão o cinema ocupa um lugar tão particular na guerra do tempo que causa a miséria simbólica contemporânea: ao mesmo tempo tecnologia industrial e arte, o cinema é a experiência estética que pode combater o condicionamento estético no seu próprio terreno. Um posfácio regressa à situação de miséria simbólica de um ponto de vista propriamente político, a respeito da tripla questão levantada nas eleições presidenciais francesas de 21 de Abril de 2002, do conflito como motor de toda a vida política e da filia de hoje.

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NOTAS 1

Como escreveu Gilles Deleuze em Pourparlers, Minuit, 1990, p. 233 [Conversações, trad. port. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Fim de Século, 2003]. Comento este pormenor na p. 34.

2

Id., ibid., p. 233 [Conversações, op. cit.].

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DA MISÉRIA SIMBÓLICA, DO CONTROLO DOS AFECTOS E DA VERGONHA QUE ISTO CONSTITUI

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Não é caso para temer ou esperar, mas sim para procurar novas armas. gilles deleuze

ESTÉTICA E POLÍTICA1

A questão política é uma questão estética e, reciprocamente, a questão estética é uma questão política. Utilizo aqui o termo estética no sentido mais lato, em que a aisthesis é a sensação e onde a questão estética é, pois, a do sentir e da sensibilidade em geral. Defendo que é preciso submeter a questão estética a novas provações, na sua relação com a questão política, para convidar o mundo artístico a resgatar uma compreensão política do seu papel. O abandono do pensamento político pelo mundo da arte é uma catástrofe. Reciprocamente, a entrega da questão estética pela esfera política às indústrias culturais, e à esfera mercantil em geral, é em si mesma catastrófica.2 Como é evidente, não quero com isto dizer que os artistas devem ser «alinhados». Quero dizer que o seu trabalho está originariamente implicado na questão da sensibilidade do outro. Ora, a questão política é essencialmente a questão da relação

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com o outro num sentir conjunto, na acepção de uma sim­ ‑patia. O problema do político consiste em saber como estar juntos, como viver juntos e suportar­‑se como conjunto através e a partir das nossas singularidades (mais profundamente ainda do que das nossas «diferenças») e além dos nossos conflitos de interesses. A política é a arte de garantir uma unidade da cidade no seu desejo de futuro comum, a sua in­ ‑dividuação, a sua singularidade como devir­‑um. Ora, esse desejo supõe um fundo estético comum. Estar­‑junto é ser um conjunto sensível. Uma comunidade política é então a comunidade de um sentir. Se não somos capazes de gostar das coisas juntos (paisagens, cidades, objectos, obras, línguas, etc.), não podemos amar­‑nos. É este o sentido da filia em Aristóteles. Amar­‑se é amar em conjunto coisas além de si. A questão «cultural», constituída pela arte de forma essencial, está mais do que nunca no âmago da economia, da indústria e da política: a comunidade sensível é hoje inteiramente tecida pelas tecnologias do que Deleuze designou por «sociedades de controlo»3. E o essencial da luta económica internacional é levada a cabo nesta frente. Jacques Rancière lembrou, justamente, que a «politicidade» é sensível, ou seja, que a questão política é de antemão estética.4 Mas, estranhamente, ignorou que, na época industrial matracada pelo marketing, a sensibilidade se transformou no palco de uma verdadeira guerra, cujas armas são tecnologias e cujas vítimas são as singularidades, individuais ou colectivas («culturais»), ao ponto de se ter desenvolvido uma imensa miséria simbólica. Hoje, nas sociedades de modulação que são as sociedades de controlo5, as armas estéticas tornaram­‑se essenciais

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(aquilo que Jeremy Rifkin designa por «capitalismo cultural»): trata­‑se de controlar essas tecnologias da aisthesis que são, por exemplo, o audiovisual ou o digital, e, graças a este domínio das tecnologias, trata­‑se de controlar os tem­ pos de consciência e de inconsciente dos corpos e das almas que os habitam, ao modular através do controlo dos fluxos esses tempos de consciência e de vida. É também assim que se desenvolve o conceito de lifetime value (como valor economi­ camente calculável do tempo de vida de um indivíduo, isto é, como des­‑singularização e desindividuação do seu valor intrínseco) recentemente fabricado pelo marketing. Ao romper com a tradição, Manet forma a extremidade de um sentir que não é partilhado por todos – daí os conflitos estéticos que se multiplicam a partir do século xix. Mas estes conflitos, que se produzem sobre o fundo de uma colossal transformação industrial da sociedade, tecem um processo de construção da simpatia que caracteriza a estética humana, uma criatividade que transforma o mundo com vista à edificação de uma nova sensibilidade comum, formando o nós interrogativo de uma comunidade estética por vir. É o que se pode apelidar de experiência estética, tal como a arte faz – assim como se fala de experiência científica: para descobrir a alteridade do sentir, o seu devir portador de futuro. Ora, creio que nos nossos dias a ambição estética a este respeito desabou amplamente. Porque uma grande parte da população está hoje privada de qualquer experiência estética, estando inteiramente submissa ao condicionamento estético em que o marketing consiste e que se tornou hegemónico para a imensa maioria da população mundial – enquanto a outra parte da população, aquela que ainda

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experiencia, fez o luto pela perda daqueles que se afundaram neste condicionamento. Esta questão assaltou­‑me de forma evidente na sequência do 21 de Abril de 2002. Nesse dia compreendi, com uma clareza assustadora, que as pessoas que então votaram em Jean­‑Marie Le Pen são pessoas com as quais eu não sinto, como se não partilhássemos nenhuma experiência estética comum. Afigurou­‑se­‑me que estes homens, estas mulheres, estes jovens não sentem o que se está a passar e, nesta medida, já não se sentem pertencer à sociedade; estão fechados numa zona (comercial, industrial, de «disposições» diversas, senão mesmo rural, etc.) que já não é um mundo, porque despegou esteticamente. O 21 de Abril foi uma catástrofe político­‑estética. Essas pessoas que estão numa situação de grande miséria simbólica execram o devir da sociedade moderna e, desde logo, a sua estética – quando esta não é industrial. Porque o condiciona­ mento estético, que constitui o essencial do fechamento nas zonas, acaba por substituir a experiência estética para a tornar impossível. É preciso ter noção de que a arte contemporânea, a música contemporânea, o espectáculo e as «intermitências» do espectáculo contemporâneo, a literatura contemporânea, a filosofia contemporânea e a ciência contemporânea fazem sofrer o gueto formado por essas zonas. Esta miséria não afecta apenas as classes sociais pobres. A rede televisiva, em particular, tece como que uma lepra dessas zonas por toda a parte, concretizando os termos de Nietzsche: «O deserto cresce.» Todavia, nem todos estão igualmente expostos à doença: largas faixas da população

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vivem em espaços urbanos desprovidos de qualquer urbanidade, enquanto uma minúscula minoria pode desfrutar de um meio de vida digno desse nome. Não se deve crer que os novos miseráveis são abomináveis bárbaros. São antes o próprio seio da sociedade dos consumidores. Eles são a «civilização». Mas, paradoxalmente, o seu seio tornou­‑se um gueto. Ora, esse gueto está humilhado e ofendido por este devir. Nós, as pessoas tidas por cultivadas, cientistas, artistas, filósofos, clarividentes e informados, devemos ter em conta que a imensa maioria da sociedade vive nessa miséria simbólica feita de humilhação e ofensa. Tais são as devastações provocadas pela guerra estética em que se converteu o reino hegemónico do mercado. A imensa maioria da sociedade vive em zonas esteticamente sinistradas, onde não se pode viver e amar porque se está esteticamente alienado. Conheço bem esse mundo: eu venho de lá. E sei que é portador de insuspeitas energias. Mas, se forem deixadas ao abandono, tais energias tornar­‑se­‑ão essencialmente destruidoras. No século xx, instalou­‑se uma nova estética funcio­ nalizante da dimensão afectiva e estética do indivíduo para fazer dele um consumidor. Houve outras funcionalizações: algumas tiveram como objectivo fazer dele um crente, outras, um admirador do poder, outras ainda, um livre­‑pensador explorando o ilimitado que ecoa no seu corpo no encontro sensível entre o mundo e o devir. Não se trata de condenar, longe disso, o destino industrial e tecnológico da humanidade. Em contrapartida, trata­ ‑se de reinventar esse destino e, para isso, adquirir uma

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compreensão da situação que conduziu ao condicionamento estético e que, se não for ultrapassada, conduzirá à ruína do próprio consumo e ao nojo generalizado. Podem distinguir­‑se pelo menos duas estéticas, a dos psicofisiólogos, que estudam os órgãos dos sentidos, e a da história da arte, das formas artefactuais, símbolos e obras. Enquanto a estética psicofisiológica revela ser estável, a estética dos artefactos não pára de evoluir ao longo do tempo. Ora, a estabilidade dos órgãos dos sentidos é uma ilusão na medida em que estão sujeitos a um processo incessante de desfuncionalizações e refuncionalizações, ligado precisamente à evolução dos artefactos. A história estética da humanidade consiste numa série de desajustes sucessivos em três grandes organizações que formam a potência estética do Homem: o corpo e a sua organização fisiológica; os órgãos artificiais (técnicos, objectos, ferramentas, instrumentos, obras de arte); e as organizações sociais, resultantes da articulação dos artefactos e dos corpos. Falta imaginar uma organologia geral que se debruce sobre a história conjunta destas três dimensões da estética humana e das tensões, das invenções e dos potenciais daí resultantes. São as considerações prévias desse projecto que tento aqui esboçar. Só por via dessa abordagem genealógica será possível compreender a evolução estética que conduz à miséria simbólica contemporânea – na qual, há que esperá­‑lo e afirmá­ ‑lo, uma força nova deve estar escondida, tanto na imensa abertura de possíveis que a ciência e a tecnologia comportam quanto no afecto do próprio sofrimento.

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O que aconteceu no século xx relativamente ao afecto? Durante a década de 1940, para absorver uma sobreprodução de bens de que ninguém precisava, a indústria norte­ ‑americana accionou técnicas de marketing (imaginadas desde os anos trinta por Edward Barnay, um sobrinho de Freud) que não cessariam de se intensificar ao longo do século, incidindo a mais­‑valia do investimento nas economias de escala carentes de mercados de massas sempre mais amplos. Para conquistar esses mercados de massas, a indústria desenvolveu uma estética que apela em particular aos media audiovisuais, os quais, ao refuncionalizarem a dimensão estética do indivíduo segundo os interesses do desenvolvimento industrial, o levam a adoptar comportamentos de consumo. Daí resulta uma miséria simbólica que é também uma miséria libidinal e afectiva e que conduz à perda do que chamo narcisismo primordial 6: os indivíduos são privados da sua capacidade de apego estético a singularidades, a objectos singulares. No século xvii, Locke pressentiu que eu sou singular atra­ vés da singularidade dos objectos com os quais estou em relação. Eu sou a relação com os meus objectos na medida em que esta é singular. Ora, a relação com os objectos industriais que, aliás, são padronizados, «perfila­‑se» e categoriza­‑se doravante em particularismos que constituem para o marketing segmentos de mercado na medida em que transformam o singular em particular – constituindo o leito dos comunitarismos de todo o género. Porque a particularização do singular é a sua anulação, a sua liquidação propriamente dita no fluxo das mercadorias­‑fetiche.7

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Por outro lado, as técnicas audiovisuais do marketing levaram a que, progressivamente, o meu passado vivido através de todas essas imagens e esses sons que eu vejo e escuto tenda a tornar­‑se o mesmo que o dos meus vizinhos. A diversificação dos canais é também uma particularização dos alvos – razão pela qual todos tendem a fazer o mesmo. À medida que o meu passado é cada vez menos diferente do dos outros porque o meu passado se constitui cada vez mais nas imagens e nos sons que os media despejam na minha consciência – mas também nos objectos e nas relações com os objectos que essas imagens me obrigam a consumir –, o passado acaba por perder a sua singularidade, ou seja, eu perco­‑me enquanto singularidade. Uma vez que já não tenho singularidade, já não me amo: só se pode gostar de si próprio a partir do saber íntimo que se tem da respectiva singularidade, e é por isso que «a comunidade consiste originariamente na intimidade da ligação de si a si»8. Quanto à arte, é a experiência e a sus­ tentação dessa singularidade sensível como convite à actividade simbólica, à produção e ao encontro de marcas no tempo colectivo. Eis por que razão a questão estética, a questão política e a questão industrial são uma só.

O SIMBÓLICO NA ERA DO CONSUMO: UMA GRANDE MISÉRIA MUNDIAL

A hominização enquanto prossecução da vida por outros meios que não a vida é o aparecimento de uma forma de

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