Excerto PROBLEMAS DE GÉNERO, de Judith Butler

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Judith Butler — Problemas de Género — Feminismo e subversão da identidade — Tradução Nuno Quintas

Prefácio João Manuel de Oliveira

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A PUBLICAÇÃO DESTA OBRA BENEFICIOU DE UMA PARCERIA COM HANGAR – CENTRO DE INVESTIGAÇÃO ARTÍSTICA

TÍTULO ORIGINAL Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity AUTORa Judith Butler TRADUÇÃO Nuno Quintas PREFÁCIO E REVISÃO CIENTÍFICA João Manuel de Oliveira REVISÃO João Berhan CONCEPÇÃO GRÁFICA Rui Silva | www.alfaiataria.org ILUSTRAÇÃO DE CAPA Dayana Lucas PAGINAÇÃO Rita Lynce IMPRESSÃO Guide – Artes Gráficas COPYRIGHT © 1990, 1999, 2006, Routledge, 2007 © 2017 Orfeu Negro Todos os direitos reservados. Tradução a partir da língua inglesa, publicada por acordo com Routledge, afiliada de Taylor & Francis Group LLC. 1.ª EDIÇÃO Lisboa, Setembro 2017 DL xxxxxx/17 ISBN 978-989-8868-09-1 ORFEU NEGRO Rua Silva Carvalho, n.º 152 – 2.º 1250-257 Lisboa | Portugal | +351 21 3244170 info@orfeunegro.org | www.orfeunegro.org

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Há dez anos, terminei o manuscrito de Problemas de Género e enviei-o à Routledge para publicação. Não sabia que o texto teria um público tão alargado como tem tido, que constituiria uma «intervenção» provocadora sobre a teoria feminista ou que seria citado como um dos textos fundadores da teoria queer. A vida do texto excedeu as minhas intenções, e isso resultará certamente, em parte, do contexto dinâmico da sua recepção. Quando o escrevi, concebi-me como que numa relação combativa e antagónica com certas formas de feminismo, mesmo que entendesse o texto como parte do próprio feminismo. Escrevia na tradição da crítica imanente que visa levar a uma apreciação crítica do vocabulário elementar do movimento de pensamento a que pertence. Era e continua a ser preciso esse modo de crítica, bem como distinguir a autocrítica que promete uma vida mais democrática e inclusiva para o movimento da crítica que procura miná-lo por completo. Claro que é sempre possível interpretar erradamente a primeira como sendo a segunda, mas tinha a esperança de que isso não acontecesse em Problemas de Género. Em 1989, preocupava-me muito criticar um pressuposto heteronormativo arraigado na teoria literária feminista. Procurei refutar as posições que supunham os limites e a propriedade do género e restringiam o significado de género a noções adquiridas de masculinidade e feminilidade. A minha posição era, e continua a ser, a de que qualquer teoria feminista que restrinja o

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significado de género nos pressupostos da sua própria prática estabelece normas de género excludentes dentro do feminismo, amiúde com consequências homofóbicas. Parecia-me, e continua a parecer-me, que o feminismo deve ter o cuidado de não idealizar certas expressões de género que, por sua vez, produzem novas formas de hierarquia e exclusão. Opunha-me, em particular, aos regimes de verdade que estipulavam certos tipos de expressões de género como sendo falsos ou derivados, e outros, verdadeiros e originais. O intuito não era prescrever uma nova forma de vida com género que pudesse servir de modelo a quem lesse o texto, mas antes abrir as possibilidades de género sem ditar os tipos de possibilidades que poderiam concretizar-se. Podemos interrogar para que serve afinal «abrir possibilidades», mas é improvável que quem houver entendido o que é viver no mundo social como sendo o «impossível», ilegível, irrealizável e ilegítimo formule essa pergunta. Problemas de Género tentava desvelar os modos como o próprio acto de pensar no que é possível numa vida de género é impossibilitado por certas presunções comuns e violentas. O texto procurava ainda minar todos e quaisquer esforços de brandir um discurso de verdade para deslegitimar práticas sexuais e de género minoritárias. Não significa isso que se aceitassem ou celebrassem todas as práticas minoritárias, mas que devíamos ser capazes de reflectir nessas práticas antes de chegar a quaisquer conclusões sobre elas. O que mais me preocupava eram as maneiras como o pânico face a tais práticas as tornava impensáveis. Será a desagregação dos binários de género, por exemplo, assim tão monstruosa, tão assustadora, que por definição tenha de se considerar impossível e heuristicamente excluída de qualquer tentativa de reflexão sobre o género?

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À época, encontravam-se alguns destes tipos de pressupostos no que se chamava de «feminismo francês», e foram muito populares entre a intelectualidade literária e alguns teorizadores sociais. Mesmo quando me opus ao que assumi ser o heterossexismo no âmago do fundamentalismo da diferença sexual, parti ainda do pós-estruturalismo francês na defesa dos meus argumentos. O meu trabalho em Problemas de Género acabou por se transformar em tradução cultural. A teoria pós-estruturalista exerceu pressão nas teorias norte-americanas de género e nos dilemas políticos do feminismo. Em algumas das suas feições, o pós-estruturalismo ocorre como um formalismo, arredado de questões de contexto social e fim político, o que não tem sido o caso nas suas apropriações norte-americanas mais recentes. De facto, não pretendia «aplicar» o pós-estruturalismo ao feminismo, mas antes sujeitar essas teorias a uma reformulação especificamente feminista. Alguns defensores do formalismo pós-estruturalista mostram-se consternados com a orientação declaradamente «temática» que o feminismo recebe em obras como Problemas de Género, ao passo que as críticas ao pós-estruturalismo da esquerda cultural se manifestaram fortemente cépticas da afirmação de que qualquer coisa politicamente progressiva deriva das suas premissas. Não obstante, nas duas versões considera-se o pós-estruturalismo como algo unificado, puro e monolítico. No entanto, esta teoria, ou conjunto de teorias, migrou nos últimos anos para os estudos da sexualidade e do género, para os estudos pós-coloniais e sobre a raça. Perdeu o formalismo da sua primeira instância e ganhou nova vida, transplantada para o domínio da teoria cultural. Continua a debater-se se o meu trabalho, ou o de Homi K. Bhabha, Gayatri Chakravorty Spivak ou Slavoj Žižek, pertencem

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aos estudos culturais ou à teoria crítica, mas talvez essas questões só demonstrem que se desagregou a sólida distinção entre as duas iniciativas. Alguns autores e autoras defenderão que todos os que referi fazem parte dos estudos culturais, e haverá cientistas dos estudos culturais que se definem por oposição a qualquer forma de teoria (ainda que não, e isso é significativo, Stuart Hall, um dos fundadores dos estudos culturais no Reino Unido). Mas os dois lados da contenda passam muitas vezes ao lado do problema, pois a face da teoria mudou precisamente por via das suas apropriações culturais. Há um novo espaço para a teoria, necessariamente impuro, que emerge na tradução cultural, e é a própria tradução cultural. Não se trata de substituir a teoria pelo historicismo, nem de uma simples historicização da teoria que exponha os limites contingentes dos seus argumentos mais generalizáveis. Trata-se antes da emergência da teoria no ponto onde se cruzam os horizontes culturais, onde é aguda a procura por tradução e a sua promessa de êxito, incerta. Problemas de Género tem as suas raízes na «teoria francesa», ela própria uma curiosa construção norte-americana. Só nos Estados Unidos se encontram tantas teorias díspares agregadas, como se formassem uma espécie de unidade. Apesar de o livro ter sido traduzido em vários idiomas e de ter um impacto particularmente forte na discussão política e do género na Alemanha, há-de emergir em França, se alguma vez realmente emergir, muito mais tarde do que noutros países. Digo-o para enfatizar que o aparente galocentrismo do texto está a uma distância significativa de França e da vida teórica em França. Problemas de Género tende a ler a par, numa veia sincrética, diversos intelectuais franceses (Lévi-Strauss, Foucault, Lacan, Kristeva, Wittig) com poucas afinidades entre si e cujos/as

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leitores/as em França raramente, ou nunca, lêem entre si. De facto, a promiscuidade intelectual do texto marca-o precisamente como norte-americano e torna-o estrangeiro num contexto francês. O mesmo se aplica à sua ênfase na tradição sociológica e antropológica anglo-americana dos estudos de «género», que deriva de uma indagação estruturalista. Se nos Estados Unidos o texto corre o risco de eurocentrismo, ameaçou «americanizar» a teoria em França para os poucos editores franceses que atentaram nele.1 A «teoria francesa» não é, claro, a única linguagem deste texto. Emerge de um longo envolvimento com a teoria feminista, com os debates sobre o carácter socialmente construído do género, com a psicanálise e o feminismo, com a extraordinária obra de Gayle Rubin no género, na sexualidade e no parentesco, com o trabalho revolucionário de Esther Newton sobre o drag, os brilhantes textos teóricos e ficcionais de Monique Wittig, e com as perspectivas gay e lésbica nas humanidades. Se, na década de 1980, muitas feministas assumiram que o lesbianismo se cruza com o feminismo no lesbianismo-feminismo, Problemas de Género procurou refutar a noção de que a prática lésbica é uma instância da teoria feminista e estabeleceu uma relação mais problemática entre os dois termos. O lesbianismo não representa neste texto um regresso ao que é mais importante em ser-se mulher; não consagra a feminilidade nem anuncia um mundo ginocêntrico. O lesbianismo não é a consumação erótica de um conjunto de crenças políticas (a relação entre sexualidade e crença é muito mais complexa, e ocorre muitas vezes ao arrepio uma da outra). Pelo contrário, o texto interroga: de que forma as práticas sexuais não normativas põem em causa a estabilidade do género enquanto categoria de análise? Como impõem certas práticas sexuais

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a questão: o que é uma mulher, o que é um homem? Se já não se encara o género como sendo consolidado pela sexualidade normativa, haverá então uma crise de género específica dos contextos queer? A ideia de que a prática sexual tem o poder de desestabilizar o género nasceu da minha leitura de The Traffic in Women, de Gayle Rubin, e procurou estabelecer que a sexualidade normativa fortalece o género normativo. Em resumo, segundo este esquema, é-se mulher na medida em que se funciona como tal no quadro heterossexual dominante, e pôr esse quadro em causa talvez nos faça perder algum do nosso sentido de lugar no género. Assumo ser esta a primeira formulação de «problemas de género» neste texto. Procurei compreender algum do terror e da ansiedade que algumas pessoas sofrem ao «tornarem-se gay», o medo de perder o lugar no género ou de não saber quem se vai ser se se dormir com alguém supostamente do «mesmo» género. Isso constitui uma certa crise na ontologia vivida ao nível da sexualidade e também da linguagem. O tema assume maior premência quando consideramos novas formas de género que emergiram à luz do transgenerismo e da transexualidade, da parentalidade lésbica e gay, novas identidades butch e femme*. Por exemplo, quando e por que razão algumas lésbicas butch que têm filhos se tornam «pais» e outras se tornam «mães»? E quanto à noção, avançada por Kate Bornstein, de que não se pode descrever um transexual com o substantivo mulher ou

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Butch e femme são termos da subcultura lésbica, associando-se o primeiro ao predomínio de traços e gestos tidos como masculinos e o segundo, tidos como femininos. (N.T.)

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homem, mas tem de ser abordado recorrendo a verbos activos que atestam a transformação constante que «é» a sua nova identidade ou, de facto, a «liminalidade» que põe em causa a essência da identidade de género? Há lésbicas que defendem que as butches não têm nenhuma relação com «ser-se homem», e outras insistem que a sua butchness é ou foi uma via para um estatuto de homem. Estes paradoxos proliferaram certamente nos últimos anos, o que evidencia uma espécie de problemas de género que o próprio texto não antecipou.2 Mas que ligação entre género e sexualidade quis eu sublinhar? Não pretendo decerto defender que formas de prática sexual produzem determinados géneros, mas tão-só que, em condições de heterossexualidade normativa, usa-se por vezes o policiamento do género como forma de garantir a heterossexualidade. Catharine MacKinnon dá uma formulação deste problema que ecoa a minha, não obstante haver diferenças cruciais e importantes entre nós. Escreve ela: Suspensa como atributo de um indivíduo, a desigualdade de sexo assume a forma de género; em movimento como relação entre indivíduos, assume a forma de sexualidade. O género emerge como uma forma solidificada da sexualização da desigualdade entre homens e mulheres.3

Nesta abordagem, a hierarquia sexual produz e consolida o género. Não é a normatividade heterossexual que produz e consolida o género, mas a hierarquia de géneros que se presume suportar as relações heterossexuais. Se a hierarquia de géneros produz e consolida o género, e a hierarquia de géneros supõe uma

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noção operativa de género, segue-se que o género é a causa do género, e a formulação culmina numa tautologia. É possível que MacKinnon queira apenas delinear o mecanismo auto-reprodutor da hierarquia de géneros, mas não é isso que ela afirma. A «hierarquia de géneros» chega para explicar as condições de produção do género? Em que medida serve a hierarquia de géneros uma heterossexualidade mais ou menos obrigatória, e com que frequência são as normas de género policiadas precisamente para sustentar a hegemonia heterossexual? Katherine Franke, uma autora contemporânea da área do Direito, emprega de maneira inovadora perspectivas feministas e queer, de modo a assinalar que, quando assume a primazia da hierarquia de géneros na produção de género, MacKinnon aceita igualmente um modelo presumivelmente heterossexual para pensar a sexualidade. Franke fornece um modelo alternativo ao de MacKinnon para a discriminação de género, defendendo de forma convicta que o assédio sexual é a alegoria paradigmática na produção de género. Não se pode entender toda a discriminação como assédio. O acto de assédio pode ser aquele em que a pessoa é «convertida» em determinado género. Mas há também outras formas de fazer cumprir o género. Assim, para Franke, é importante estabelecer uma distinção provisória entre discriminação sexual e de género. As pessoas gay, por exemplo, podem ser discriminadas em contexto laboral porque a sua «aparência» não está de acordo com as normas de género aceites. E o assédio de pessoas gay pode mesmo ocorrer não para suster a hierarquia de géneros, mas para promover a normatividade de género. MacKinnon realiza uma poderosa crítica do assédio sexual, mas institui uma regulação de outra estirpe: ter um género

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significa já ter entrado numa relação de subordinação heterossexual. A um nível analítico, ela estabelece uma equação em que ressoam algumas formas dominantes de argumentação homofóbica. Uma delas prescreve e admite o ordenamento sexual de género, ao defender que os homens que são homens serão héteros, as mulheres que são mulheres serão héteros. Outro lote de ideias, entre as quais a de Franke, critica precisamente este tipo de regulação de género. Existe assim uma diferença entre perspectivas sexistas e feministas na relação entre género e sexualidade: a sexista declara que a mulher só exibe a sua condição de mulher no acto do coito heterossexual, em que a sua subordinação se torna o seu prazer (emana uma essência que é confirmada na subordinação sexualizada das mulheres); uma perspectiva feminista defende que o género deve ser deposto, eliminado ou inevitavelmente ambiguado precisamente por ser sempre um símbolo de subordinação das mulheres. Esta aceita o poder da descrição ortodoxa daquela, aceita que aquela descrição já opera como poderosa ideologia, mas procura opor-se-lhe. Insisto neste ponto porque alguns teóricos e teóricas queer estabeleceram uma distinção analítica entre género e sexualidade, rejeitando uma ligação causal ou estrutural entre ambos. Fará sentido de um certo ponto de vista: se o que se pretende com esta distinção é que a normatividade heterossexual não deveria ordenar o género, e que se deveria opor a esse ordenamento, defendo firmemente esta perspectiva.4 Se, porém, o que se quer dizer é que (numa abordagem descritiva) não existe regulação sexual do género, penso então que uma dimensão importante, mas não exclusiva, de como a homofobia funciona não é reconhecida por quem a combate com maior fervor. É importante para mim

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conceder, porém, que a performance da subversão do género não pode indicar nada quanto à sexualidade ou prática sexual. O género pode tornar-se ambíguo sem nenhuma perturbação nem reorientação da sexualidade normativa. Por vezes a ambiguidade de género pode operar precisamente por conter ou desviar práticas sexuais não normativas e, portanto, manter intacta a sexualidade normativa.5 Assim, não é possível estabelecer nenhuma correlação, por exemplo, entre drag ou transgénero e prática sexual, e não se pode cartografar de forma previsível a distribuição de inclinações heterossexuais, bissexuais e homossexuais nos movimentos de distorção ou mudança de género. Nos anos mais recentes, tenho dedicado muito da minha obra a clarificar e rever a teoria da performatividade desenhada em Problemas de Género.6 É difícil dizer ao certo o que a performatividade é, porque os meus pontos de vista sobre o que a «performatividade» pode querer dizer mudaram ao longo do tempo, na maioria das vezes em resposta a excelentes críticas7, mas também porque muitos outros a retomaram e lhe deram as suas próprias formulações. Originalmente, a minha pista para ler a performatividade de género foi dada pela leitura de Jacques Derrida de «Diante da Lei», de Kafka*. Nesta história, quem espera pela lei senta-se diante da porta da lei, atribui uma certa força à lei por que espera. Antecipar uma revelação autorizada de significado é o meio por que se atribui e instala a autoridade: a antecipação invoca o seu objecto. Interroguei-me se não funcionamos numa expectativa semelhante no que respeita ao género, que opera como

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Os Contos, vol. i, trad. port. Álvaro Gonçalves, José Maria Vieira Mendes e Manuel Resende (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), pp. 233-35. (N.T.)

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uma essência interior que pode ser revelada, uma expectativa que acaba por produzir o próprio fenómeno que ela antecipa. Primeiro, a performatividade de género gira em torno desta metalepse, a forma como antecipar uma essência de género produz o que postula como sendo exterior a si própria. Segundo, a performatividade não é um acto singular, mas uma repetição e um ritual, que produz efeito pela sua naturalização no contexto de um corpo, entendido em parte como uma duração temporal culturalmente sustentada.8 Formularam-se várias questões importantes a esta doutrina, e uma delas merece aqui uma referência particular. A ideia de que o género é performativo procurava mostrar que o que tomamos como uma essência interna de género é fabricada mediante um conjunto sustentado de actos, postulados pela estilização de género do corpo. Desta forma, mostrou que o que assumimos ser um traço «interno» de nós próprios é algo que antecipamos e produzimos através de determinados actos corporais, em última análise, um efeito alucinatório de gestos naturalizados. Quer isto dizer que tudo o que se entende como «interno» na psique é assim expulsado, e que essa «internalidade» é uma falsa metáfora? Ainda que Problemas de Género parta da metáfora de uma psique interna na sua primeira discussão da melancolia de género, não se trouxe essa ênfase para a reflexão sobre a própria performatividade.9 Tanto The Psychic Life of Power* como alguns dos meus artigos recentes dedicados a temas psicanalíticos tentaram enfrentar este problema, o que muitos têm visto como uma ruptura

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The Psychic Life of Power: Theories in Subjection (Stanford, Stanford University Press, 1997). (N.T.)

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problemática entre os capítulos iniciais e finais deste livro. Ainda que eu negasse que todo o mundo interno da psique não é mais do que efeito de um conjunto estilizado de actos, continuo a pensar tratar-se de um erro teórico de monta tomar a «internalidade» do mundo psíquico por garantida. Algumas características do mundo, as quais incluem as pessoas que conhecemos e perdemos, tornam-se mesmo características «internas» do eu, mas são transformadas através dessa interiorização, e esse mundo interior, como os kleinianos lhe chamariam, é constituído justamente como consequência das interiorizações levadas a cabo pela psique. Isto sugere que pode bem existir uma teoria psíquica da performatividade que exija um estudo mais aprofundado. Apesar de este texto não responder à pergunta quanto à materialidade do corpo ser ou não completamente construída, esse tem sido o foco de muito do meu trabalho subsequente, que espero ser esclarecedor para quem leia o texto.10 Alguns estudos têm indagado se se pode ou não transpor a teoria da performatividade para os problemas de raça.11 Noto aqui que os pressupostos raciais se ocultam sempre no discurso sobre o género de maneiras que é preciso tornar explícitas, mas também que não se pode tratar a raça e o género como simples analogias. Por conseguinte, a pergunta a fazer não é se se pode transpor a teoria da performatividade para a raça, mas o que acontece à teoria quando tenta lidar com a raça. Muitos destes debates têm-se centrado no estatuto da «construção», se a raça se constrói da mesma forma que o género. Penso que nenhuma explicação do género por si só serve: estas categorias funcionam sempre como pano de fundo uma da outra, e muitas vezes têm a sua articulação mais expressiva uma através da outra. Assim, urge ler a sexualização das

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normas de género racial através de várias lentes em simultâneo, e isso iluminará decerto os limites do género como categoria exclusiva de análise.12 Apesar de eu ter enumerado alguns dos debates e tradições académicas que animaram este livro, não pretendo fornecer nestas breves páginas uma apologia completa. Um aspecto das condições da produção deste texto nem sempre é compreendido: foi produzido não apenas para a academia, mas a partir de movimentos sociais convergentes de que faço parte, e no contexto de uma comunidade lésbica e gay na Costa Leste dos Estados Unidos, onde vivi nos catorze anos anteriores à escrita deste livro. Não obstante o deslocamento do tema que o texto leva a cabo, existe aqui uma pessoa: fui a muitos encontros, bares e marchas e vi muitos tipos de género, compreendi que eu própria me encontrava na encruzilhada de alguns deles, e encontrei a sexualidade em várias das suas margens culturais. Conheci muitas pessoas que tentavam encontrar o seu caminho por entre um movimento significativo de reconhecimento e liberdade sexual, e senti o entusiasmo e a frustração que andam a par com o fazer-se parte desse movimento, na sua esperança e na sua dissensão interna. Enquanto estava instalada na academia, levava também uma vida fora desses muros e, ainda que Problemas de Género seja uma obra académica, começou para mim como uma transição, sentada em Rehoboth Beach, a perguntar-me se poderia relacionar entre si os vários aspectos da minha vida. Poder escrever num modo autobiográfico, acredito que não altera o lugar que ocupo como sujeito que sou, mas talvez dê ao leitor uma sensação de consolo de que existe alguém aqui (suspendo por ora o problema de que este alguém é dado pela linguagem).

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Uma das experiências mais gratificantes tem sido o texto ainda hoje continuar a viajar fora da academia. Enquanto o livro era abraçado pela Queer Nation, e algumas das suas reflexões sobre a teatralidade da auto-representação queer ecoavam as tácticas da ACT UP*, encontrou-se também entre os materiais que levaram membros da Associação Psicanalítica Americana e a Associação Americana de Psicologia a reavaliarem alguns dos seus doxas actuais sobre a homossexualidade. Os problemas do género performativo foram apropriados de diferentes maneiras pelas artes visuais, pelas exposições do Whitney Museum of American Art e pela Otis School for the Arts de Los Angeles, só para mencionar algumas instituições. Algumas das suas formulações sobre o tópico das «mulheres» e a relação entre sexualidade e género também fizeram o seu caminho na jurisprudência feminista e na investigação académica de âmbito jurídico dedicada à antidiscriminação, no trabalho de Vicki Schultz, Katherine Franke e Mary Joe Frug. Por outro lado, vi-me obrigada a rever algumas das posições que assumo em Problemas de Género, em virtude dos meus próprios compromissos políticos. No livro, tendo a conceber a afirmação de «universalidade» como sendo de exclusividade negativa e excludente. Contudo, passei a considerar o termo como detendo uma utilização estratégica importante precisamente enquanto categoria não substancial e aberta quando trabalhei com um extraordinário

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A ACT UP, acrónimo de AIDS Coalition to Unleash Power (Coligação da Sida para Estimular o Poder), é uma organização fundada nos Estados Unidos, em 1987, para chamar a atenção para a pandemia da sida e promover as políticas necessárias para apoio aos doentes. A Queer Nation foi fundada três anos mais tarde, para defender os direitos LGBT e combater a homofobia. (N.T.)

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grupo de activistas, primeiro como membro da direcção, depois como directora da Comissão Internacional para os Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (1994-1997), organização que representa as minorias sexuais num sem-número de questões associadas aos direitos humanos. Foi aí que entendi como a afirmação de universalidade pode ser proléptica e performativa, ao invocar uma realidade que ainda não existe e apresentando a possibilidade de uma convergência de horizontes culturais ainda por cumprir. Cheguei assim a uma segunda abordagem da universalidade, na qual esta se define como um labor de tradução cultural orientado para o futuro.13 Mais recentemente, vi-me obrigada a associar o meu trabalho à teoria política e, novamente, ao conceito de universalidade, num livro a ser co-escrito por mim com Ernesto Laclau e Slavoj Žižek sobre a teoria da hegemonia e as suas implicações para uma esquerda teoricamente activista (a ser editado na Verso em 2000)*. Outra dimensão prática do meu pensamento teve lugar na relação com a psicanálise enquanto empreendimento quer académico quer clínico. Trabalho hoje com um grupo de psicanalistas progressistas numa nova revista, Studies in Gender and Sexuality, que procura levar a investigação clínica e académica a um diálogo produtivo nas questões da sexualidade, do género e da cultura. Os críticos e os amigos de Problemas de Género têm chamado a atenção para a dificuldade do seu estilo. É indubitavelmente estranho, e exasperante para alguns, encontrar um livro que não se consuma facilmente para ser «popular» à luz dos padrões académicos. Talvez se possa atribuir esta surpresa ao modo como entendemos o público leitor, a sua capacidade e a sua vontade de *

Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues On The Left. (N.T.)

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ler textos complicados e que constituam um desafio, quando a complicação não é gratuita, quando o desafio serve para questionar verdades que se tomam por garantidas, quando tomar essas verdades por garantidas é opressivo. Penso que o estilo é um terreno pantanoso, e que não podemos escolhê-lo ou controlá-lo de forma unilateral com os intuitos a que conscientemente nos propomos. Fredric Jameson tornou-o claro na sua primeira obra sobre Sartre. Podemos certamente praticar estilos, mas os que ficam ao nosso alcance não são uma escolha por inteiro. Além disso, nem a gramática nem o estilo são politicamente neutros. Aprender as regras que regem a fala inteligível é uma inculcação na linguagem normalizada, onde o preço de não nos conformarmos é a perda da própria inteligibilidade. Como Drucilla Cornell, na esteira de Adorno, me recorda: não há nada de radical no senso comum. Seria um erro pensar que a gramática adquirida é o melhor veículo para exprimir pontos de vista radicais, dados os constrangimentos que, na verdade, a gramática impõe ao pensamento, ao que é pensável. Mas as formulações que distorcem a gramática ou questionam implicitamente as exigências do sujeito e do verbo, no sentido proposicional, irritam claramente algumas pessoas. Exigem maior esforço dos/as leitores/as, e por vezes essas exigências ofendem-nos. Estará quem se ofende a fazer um pedido legítimo de «linguagem simples», ou o seu queixume emerge de uma expectativa da vida intelectual enquanto consumidor? Haverá um valor a derivar de tais experiências de dificuldade linguística? Se o próprio género se naturaliza mediante normas gramaticais, como defendeu Monique Wittig, a alteração de género ao mais fundamental nível epistémico ocorre, em parte, pela contestação da gramática em que o género é dado.

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A procura da lucidez passa ao lado dos ardis que fomentam uma perspectiva aparentemente «limpa». Avital Ronell recorda o momento em que Nixon olhou a nação nos olhos e declarou: «Permitam-me que deixe uma coisa absolutamente clara», e continuou então a mentir. O que se move sob o signo da «clareza», e que preço pagaríamos por não conseguir empregar uma certa suspeição crítica quando se anuncia a chegada da clareza? Quem concebe os protocolos da «clareza», e que interesses são servidos por ela? O que se exclui por se insistir nos padrões convencionais de transparência como exigência para toda a comunicação? O que mantém obscuro a transparência? Cresci com algum entendimento da violência das normas de género: um tio encarcerado devido ao seu corpo anatomicamente anómalo, privado de familiares e amigos, a passar os dias num «instituto» nas pradarias do Kansas; os primos gay obrigados a sair de casa devido à sua sexualidade, real ou imaginada; o meu próprio coming out tempestuoso aos dezasseis anos; e mais tarde uma paisagem adulta de empregos, amantes e lares perdidos. Tudo isto me sujeitou a uma condenação forte e que deixou marcas, mas, felizmente, não me impediu de buscar o prazer e de insistir no reconhecimento legítimo da minha vida sexual. Foi difícil trazer esta violência à tona precisamente por se tomar tanto o género por garantido que era ao mesmo tempo vigiado com violência. Assumia-se ser ou uma manifestação natural do sexo, ou uma constante cultural que nenhuma agência humana conseguiria modificar. Acabei também por compreender algo da violência da vida excluída, aquela que não é nomeada como «viva», aquela cuja prisão implica uma suspensão da vida, ou uma sentença de morte permanente. O esforço obstinado para

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«desnaturalizar» o género emerge neste texto, assim o creio, de um forte desejo de contrariar a violência normativa implicada pelas morfologias ideais de sexo, e também de desenraizar os pressupostos disseminados quanto à heterossexualidade natural ou presumível que são moldados pelos discursos comuns ou académicos sobre a sexualidade. A escrita desta desnaturalização não se fez, como alguns críticos conjecturaram, apenas por uma vontade de brincar com a linguagem ou de prescrever tropelias teatrais em vez da política «real» (como se teatro e política fossem sempre distintos). Fez-se a partir de uma vontade de viver, de tornar a vida possível e de repensar o possível enquanto tal. Como teria o mundo de ser para o meu tio viver acompanhado de familiares, amigos ou parentes mais afastados? Como temos de repensar os constrangimentos morfológicos ideais sobre o humano para que não se condene quem não se aproxima da norma a uma morte em vida?14 Algumas pessoas que o leram interrogaram-se se Problemas de Género procurava expandir as possibilidades de género por algum motivo concreto. Questionam com que finalidade se concebem essas novas configurações de género, e como devemos avaliá-las entre si. A pergunta envolve amiúde uma premissa prévia, nomeadamente, se o texto não aborda a dimensão normativa ou prescritiva do pensamento feminista. Normativo tem pelo menos dois sentidos claros neste encontro crítico, pois é uma palavra que uso muitas vezes, sobretudo para descrever a violência mundana exercida em certos tipos de ideais de género. Uso habitualmente normativo como sinónimo de «pertencente às normas que regem o género». Mas o termo normativo pertence também à justificação ética, ao modo como é estabelecido e as consequências

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concretas que daí advêm. Uma questão central levantada por Problemas de Género tem sido: como podemos ajuizar o modo como o género é vivido a partir das descrições teóricas que aqui se apresentam? Não é possível opormo-nos às formas «normativas» do género sem subscrevermos um certo ponto de vista normativo quanto ao que deve ser um mundo com género. Proponho, no entanto, que a visão normativa positiva deste texto, tal como se apresenta, não assume nem pode assumir a forma de uma prescrição: «Subverta o género tal como digo e terá uma boa vida.» Os que apresentam essas prescrições ou que estão dispostos a decidir entre expressões subversivas ou não subversivas de género fundam os seus juízos numa descrição. O género surge com esta ou com aquela forma, e faz-se então um juízo normativo dessas aparências e fundado na aparência. Mas o que condiciona o domínio da aparência para o género em si? Podemos ter a tentação de estabelecer esta diferenciação: uma versão descritiva do género inclui considerações do que torna o género inteligível, uma indagação sobre as suas condições de possibilidades, ao passo que uma versão normativa procura indicar as expressões de género que são aceitáveis e as que não são, dando assim razões convincentes para distinguir entre essas expressões. A questão, porém, do que é qualificável como «género» atesta em si uma operação de poder arreigadamente normativa, uma operação fugidia «do que vai acontecer» sob a rubrica «do que acontece». Logo, a própria descrição do campo do género não é em caso algum anterior à questão da sua operação normativa, nem pode separar-se dela. Não me interessa formular juízos quanto ao que distingue o subversivo do não subversivo. Acredito que não se podem fazer esses juízos fora de contexto, mas também que não se podem

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fazer em maneiras que se prolongam no tempo (os próprios «contextos» são unidades postuladas que passam por mudanças temporais e expõem a sua falta de unidade essencial). Tal como as metáforas perdem a sua metaforicidade à medida que se cristalizam ao longo do tempo em conceitos, também as performances subversivas arriscam sempre tornar-se sufocantes lugares-comuns por via da sua repetição e, mais importante ainda, por via da sua repetição na cultura de mercadorias, em que a «subversão» acarreta valor de mercado. O esforço de nomear o critério do que é subversivo vai sempre, e deve sempre, fracassar. Ora, o que está em jogo quando usamos o termo? O que continua a preocupar-me antes de mais são os seguintes tipos de perguntas: o que constitui ou não uma vida inteligível, e como é que pressupostos de género e sexualidade normativos determinam de antemão o que se qualifica como o «humano» e o «vivível»? Dito por outras palavras, como agem os pressupostos normativos de género para delimitar o próprio campo da descrição que temos para o humano? Por que meio somos capazes de ver este poder delimitador, e por que meios conseguimos transformá-lo? A discussão sobre o drag que Problemas de Género propõe para explicar a dimensão construída e performativa do género não é um exemplo preciso de subversão. Seria errado tomá-lo como paradigma de acção subversiva ou mesmo como modelo de agência política. O argumento é outro. Se acharmos que vemos um homem vestido de mulher ou uma mulher vestida de homem, assumimos então o primeiro termo de cada uma dessas percepções como a «realidade» do género: ao género que é introduzido pela comparação, falta «realidade» e toma-se como constituindo uma aparência ilusória. Em tais percepções, em que uma pretensa realidade

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se alia a uma irrealidade, julgamos saber o que a realidade é e tomamos a aparência secundária de género como mero artifício, divertimento, falsidade e ilusão. Mas que sentido tem a «realidade de género» que funda assim esta percepção? Talvez julguemos saber o que a anatomia do indivíduo é (por vezes não sabemos, e certamente não reconhecemos a variação que existe na descrição anatómica). Ou derivamos esse conhecimento das roupas que o indivíduo enverga ou de como as enverga. Isto é conhecimento naturalizado, ainda que se funde numa série de inferências culturais, algumas das quais altamente erróneas. De facto, se deslocarmos o exemplo do drag para a transexualidade, deixa de ser possível derivar um juízo quanto à anatomia estável das roupas que cobrem e articulam o corpo. Esse corpo pode ser pré-operativo, transicional ou pós-operativo; mesmo «ver» o corpo pode não responder à pergunta: afinal, quais são as categorias através das quais vemos? O momento em que fracassam as nossas habituais percepções culturais e decorosas, quando não podemos ler com certeza o corpo que vemos, é precisamente esse o momento em que já não podemos estar certos se o corpo que encaramos é o de um homem ou de uma mulher. Vacilar entre categorias constitui em si a experiência do corpo em causa. Quando se põem estas categorias em causa, a realidade do género entra também em crise: deixa de ser claro como distinguir o real do não real. E é nesta ocasião que podemos entender que o que tomamos como «real», o que invocamos como conhecimento naturalizado do género é, na verdade, uma realidade mutável e passível de ser revista. Chamemos-lhe subversivo ou outra coisa qualquer. Ainda que esta observação não seja em si mesma uma revolução política, não é possível nenhuma revolução política sem

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uma alteração radical da nossa ideia do possível e do real. E por vezes esta alteração resulta de certos tipos de práticas que precedem a sua teorização explícita e que levam a repensar as nossas categorias básicas: o que é o género, como se produz e reproduz, quais são as suas possibilidades? E, neste ponto, compreende-se o campo sedimentado e reificado da realidade do «género» como um campo que pode conceber-se de forma diferente e, na verdade, de maneira menos violenta. O propósito deste texto não é celebrar o drag como a expressão de um género verdadeiro e modelar (ainda que seja importante resistir à desvalorização que por vezes se faz dele), mas mostrar que o saber naturalizado do género opera como uma circunscrição violenta, por antecipação, da realidade. Na medida em que as normas de género (o dimorfismo ideal, a complementaridade heterossexual dos corpos, os ideais e o governo de masculinidade e feminilidade própria e imprópria, muitos dos quais são assegurados por códigos raciais de pureza e tabus da miscigenação) estabelecem o que é e o que não é inteligivelmente humano, o que se considera e o que não se considera «real», estabelecem o campo ontológico em que se pode atribuir expressão legítima aos corpos. Se existe uma tarefa normativa positiva em Problemas de Género, é a de insistir na vastidão desta legitimidade dos corpos que foram tidos por falsos, irreais e ininteligíveis. O drag é um exemplo que pretende demonstrar que a «realidade» não é tão fixa como geralmente se assume. O propósito do exemplo é expor quão ténue é a «realidade» do género, de modo a combater a violência exercida sobre as normas de género. ***

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Neste texto, como noutras obras de minha autoria, procurei compreender o que possa ser a agência política, dado não poder ser isolada da dinâmica de poder em que é forjada. A iterabilidade da performatividade é uma teoria de agência, que não pode repudiar o poder como condição da sua própria possibilidade. Este texto não fornece uma explicação satisfatória da performatividade nas suas dimensões sociais, psíquicas, corporais e temporais. De algumas formas, o trabalho continuado dessa clarificação, em resposta a inúmeras críticas excelentes, orienta a maioria das minhas publicações posteriores. Emergiram na última década outras preocupações quanto a este texto, e procurei responder-lhes em várias publicações. Quanto ao estatuto da materialidade do corpo, reconsiderei e revi os meus pontos de vista em Bodies that Matter. Na necessidade da categoria de «mulheres» na análise feminista, revi e expandi os meus pontos de vista em «Contingent Foundation», incluído no volume que co-editei com Joan W. Scott Feminists Theorize the Political (Routledge, 1993) e no volume colectivo Feminist Contentions (Routledge, 1995). Não acredito que o pós-estruturalismo acarrete a morte da escrita autobiográfica, mas de facto chama a atenção para a dificuldade de o próprio «eu» se exprimir pela linguagem que tem ao seu dispor. Ora, este «eu» que a leitora e o leitor lêem é, em parte, consequência da gramática que rege a disponibilidade de pessoas na linguagem. Não estou fora da linguagem que me estrutura, mas também não sou determinada pela linguagem que torna este «eu» possível. É esta a amarra da auto-expressão, tal como a entendo. Isso quer dizer que a leitora ou o leitor nunca me recebe separada da gramática que estabelece a minha disponibilidade perante si. Se eu trato a gramática como pelúcida, não consigo

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chamar a atenção precisamente para essa esfera da linguagem que estabelece e deixa de estabelecer a inteligibilidade, e isso seria frustrar o meu próprio projecto, tal como descrito até aqui. Não procuro ser difícil, mas tão-só chamar a atenção para uma dificuldade sem a qual não pode ocorrer nenhum «eu». Esta dificuldade assume uma dimensão específica quando abordada numa perspectiva psicanalítica. No meu esforço de entender a opacidade do «eu» na linguagem, aproximei-me cada vez mais da psicanálise desde a publicação de Problemas de Género. Parece-me contraproducente a tentativa habitual de polarizar a teoria da psique em relação à teoria do poder, pois parte do que é tão opressivo nas formas sociais de género são as dificuldades psíquicas que produzem. Procurei considerar como se pode pensar Foucault em conjunto com a psicanálise na obra The Psychic Life of Power (Stanford, 1997). Recorri ainda à psicanálise para refrear o ocasional voluntarismo da minha abordagem à performatividade, sem por isso minar uma teoria mais geral de agência. Problemas de Género lê-se por vezes como se o género fosse simplesmente uma auto-invenção ou se se pudesse ler o significado psíquico de uma apresentação com género directamente a partir da sua superfície. Foi preciso ir afinando com o tempo os dois postulados. Além disso, a minha teoria vacila por vezes entre o entendimento da performatividade como linguística e a sua apresentação como teatral. Penso hoje que as duas estão invariavelmente ligadas, de forma até quiasmática, e que reconsiderar o acto discursivo como instância de poder acaba sempre por convocar tanto as suas dimensões linguísticas como teatrais. Em Excitable Speech, procurei mostrar que o acto de fala é simultaneamente performado (logo teatral, apresentado a uma audiência, sujeito a

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interpretação) e linguístico, induzindo uma série de efeitos por via da sua relação implícita com as convenções linguísticas. Se questionarmos como uma teoria linguística do acto de fala se relaciona com a gestualidade corporal, só precisamos de considerar que a própria fala é um acto corporal com consequências linguísticas específicas. Logo, a fala não é exclusiva nem da apresentação corporal nem da linguagem, e o seu estatuto como palavra e acto é necessariamente ambíguo. Esta ambiguidade tem consequências na prática do coming out, no poder insurreccional do acto de fala, na linguagem como condição da sedução corporal e da ameaça de dano físico. Se rescrevesse este livro nas circunstâncias de hoje, incluiria uma discussão do transgénero e da intersexualidade, a maneira como o dimorfismo ideal de género funciona nos dois tipos de discursos, as variadas associações com a intervenção cirúrgica que estes assuntos relacionados mantêm. Incluiria também uma discussão da sexualidade racializada e, em particular, de como os tabus da miscigenação (e a romantização do intercâmbio sexual transracial) são essenciais para as formas naturalizadas e desnaturalizadas que o género assume. Guardo ainda a esperança de uma aliança de minorias sexuais que transcenda as simples categorias de identidade, que recuse a rasura da bissexualidade, que combata e dissipe a violência imposta pelas normas corporais restritivas. Iria esperar que essa aliança se fundasse na irredutível complexidade da sexualidade e na sua implicação em diversas dinâmicas do poder discursivo e institucional, e que ninguém se apressasse a reduzir o poder à hierarquia e rejeitasse as suas produtivas dimensões políticas. Mesmo quando julgo que obter o reconhecimento do estatuto de minoria sexual é uma empresa

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difícil nos discursos reinantes do direito, da política e da linguagem, continuo a considerá-lo uma necessidade de sobrevivência. A mobilização das categorias de identidade com fins de politização continua ameaçada pela ideia de a identidade se transformar num instrumento do poder a que nos opomos. Não é motivo para não usar, e ser usado, pela identidade. Não há nenhuma posição política depurada de poder, e talvez seja essa impureza o que produz a agência como potencial interrupção e reversão dos regimes reguladores. Os que são tidos por «irreais» abraçam ainda assim o real, um abraço que acontece em concertação, e produz-se uma instabilidade vital graças a essa surpresa performativa. Este livro é escrito, pois, como parte da vida cultural de uma luta colectiva que tem tido, e continuará a ter, algum êxito em alargar as possibilidades de uma vida que possa ser vivida para quem vive, ou tenta viver, nas margens sexuais.15 Judith Butler Berkeley, Califórnia, Junho de 1999

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