Delfim Sardo
O Exercício Experimental da Liberdade
Dispositivos da arte no século xx
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Esta edição contou com o apoio do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.
TÍTULO O Exercício Experimental da Liberdade: Dispositivos da arte no século xx AUTOR Delfim Sardo REVISÃO Nuno Quintas CONCEPÇÃO GRÁFICA Rui Silva | www.alfaiataria.org PAGINAÇÃO Rita Lynce IMPRESSÃO Guide – Artes Gráficas COPYRIGHT © 2017 Delfim Sardo © 2017 Orfeu Negro 1.ª EDIÇÃO Lisboa, Outubro 2017 DL xxxxxx/17 ISBN 978-989-8327-82-6 ORFEU NEGRO Rua Silva Carvalho, n.º 152 – 2.º 1250-257 Lisboa | Portugal | +351 21 3244170 info@orfeunegro.org | www.orfeunegro.org
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Ao Manuel, que nasceu ao mesmo tempo que este texto
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Índice
Preâmbulo e agradecimentos 11 Um campo líquido: arte, em geral Valor de uso 19 Entre o específico e o geral 24 Arte e trabalho 29 Desmaterialização, desobjectualização, processo e projecto 35 Olhar pelo retrovisor 39 Assim, 42
Capítulo 1 O fim da pintura e a tarefa do seu luto todas as imagens são pinturas possíveis? À volta do mesmo enquanto outro: qual o sentido do género? A última pintura Um caso específico: Fernando Calhau Qualquer imagem pode ser uma pintura Duas questões para o futuro a construção da viabilidade das imagens pictóricas A suspensão da descrença Viabilidade e representação Mais uma vez a «questão Malevitch» A fronteira aberta Pintura e epiderme: o caso de João Queiroz Três processos de crise Outra vez o caso de João Queiroz e a questão do reconhecimento Forma e mal‑entendido Acontecimento «enquanto» acontecimento
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Capítulo 2 O enorme campo do que não tem nome a sobrevivência da invenção da escultura Entre a mortalha e o monumento A «Casa U r» e o horror «Merz»: totalidade e projecto Competências específicas e cultura de projecto O real como destino simbólico e o espectador móvel Casulos, penetráveis, «Parangolés» Entre o corpo e um «modo paisagístico»
139 143 147 152 156 160 174
acreditar no espaço Entre projecto e processo 185 Segregar espaço 187 Espaço, vertigem e desvio 190 Extensão, profundidade e intensidade 194 Espaço e duração 199 Origens 200 O espaço como possibilidade 201 Ambiente 204
Capítulo 3 Imagens, lentes, espaços e movimentos uma delicada empiria A fotografia como substantivo colectivo 225 «Mnemosyne» 227 Do salto à série 233 Montagem 236 Escala e complexidade 241 Em trânsito 244 Anacronia e reversibilidade 252 a sala, o projector e nós que lá moramos Verosimilhança 255 Recorrências e remissões 259 Entre o cinemático e o cinematográfico 264 A cinemática da tridimensionalidade 268
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Capítulo 4 Representar o corpo «Fantasmata» Da microutopia à desmedida ambição 295 «Stoppage» 298 Memória e prova de existência 302 O duplo interior 305 O caso de Helena Almeida 306 Performatividade e repetição 310 acreditar em fantasmas? O que quer dizer «um corpo»? O corpo histérico Três determinantes na construção corporal (e Bruce Nauman) Entre Beuys e Matthew Barney Alta performatividade, metaperformatividade e autobiografia Fantasma e duplo
313 315 319 324 327 332
Inconclusão 345 Bibliografia 353 Índice onomástico 367
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Preâmbulo e agradecimentos
Este texto centra‑se numa questão que atravessa a prática das artes visuais no século xx e que pode sintetizar‑se na interrogação quanto à viabilidade da arte, em sentido amplo, face às vicissitudes das práticas disciplinares. Para tentar compreender esta conflituosa relação entre a noção de especi‑ ficidade e o entendimento da arte‑em‑geral, procurei percorrer momentos marcantes das diversas tradições que as diferentes disciplinas artísticas foram construindo, tentando centrar a reflexão em situações artísticas dúbias, geradoras de mal‑entendidos que se prolongaram historicamente, em par‑ ticular as contraditórias interpretações que a obra de Jackson Pollock sofreu (e certamente tornou cúmplices) nesse centro cronológico do século que foi a década de 1950. A necessidade de pensar este novelo de temáticas deriva do que tem ocupado a minha prática no contexto artístico: a escrita sobre arte, a acti‑ vidade como professor e fazer exposições – ou a actividade curatorial. Esta toma o problema da relação entre especificidade e globalidade de forma particularmente aguda, porque incide sobre e vive da imanência das obras, das possibilidades de as apresentar em contextos diversos, pois uma obra de arte é sempre um acontecimento específico para um espectador a par‑ tir de um determinado contexto complexo, definido pelo entendimento parcelar da generalidade da arte. Assim, o percurso deste livro liga‑se de forma muito próxima, e em primeiro lugar, a esta actividade curatorial, lugar onde tais interrogações têm ganhado uma expressão espacial e imanente. Poderia mesmo dizer que este texto é o mapa interno das preocupações que me têm mobilizado nas exposições de que me ocupo ou, pelo menos, o trilho que poderia con‑ duzir a esse mapa. Em segundo lugar, a forma como tenho escrito sobre os artistas com quem tenho trabalhado procura partir das suas obras, e não de uma estrutura
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teórica prévia a demonstrar. Também não procuro o novo, mas a recor‑ rência e a sobrevivência, o abismo do que é subtilmente diferente e o que se investe numa pequena utopia de ser topicamente radical. Este texto procura, de forma mais ampla, encontrar a relação entre a sobrevivência desses acontecimentos recorrentes e as suas alterações, tentando com‑ preender o mecanismo gerador da multiplicidade de protocolos que nos fazem poder continuar a ver, escrever sobre e emocionar com arte, mesmo onde ela não parece, ou não quer, estar. Em terceiro lugar, o presente texto deve muito à minha actividade docente, banco de experimentação deste campo heterodoxo entre história da arte, estética e pragmática curatorial reunida sob o guarda‑chuva da teo‑ ria da arte, próximo do «campo sem nome» de que falava Aby Warburg. Este texto partiu de um conjunto de nove conferências proferidas na Culturgest, em Lisboa, a convite de Miguel Lobo Antunes, em dois ciclos de quatro palestras que decorreram em 2007 e 2010; a estes oito momen‑ tos, juntei o essencial de outra conferência, organizada por Renata Catambas também na Culturgest, em 2006, sobre performance e documentação. Reconfigurei esse conjunto de textos na presente tese de doutoramento, apresentada na Universidade de Coimbra. A estrutura manteve‑se fun‑ damentalmente inalterada: uma introdução sobre o problema da arte em sentido amplo e a complexa relação com a especificidade das obras de arte em si mesmas, ou com a especificidade das disciplinas artísticas, a partir de então designadas por géneros artísticos. A ideia central é que as disciplinas artísticas se converteram em núcleos de referências, tradi‑ ções, desafios críticos e sistemas intra‑remissivos que as aproximam da noção de dispositivo, tal como Michel Foucault a utiliza. Os capítulos seguintes dedicam‑se a estes dispositivos, tratados a partir da sua «posi‑ tividade» (outro termo do léxico foucaultiano): os dois primeiros momen‑ tos centram‑se em questões suscitadas pela pintura, o terceiro e o quarto, na escultura e na noção mais ampla e problemática de espacialidade, também ela uma constelação de diversidades que atravessam as práticas artísticas nos últimos cem anos; o quinto e o sexto concentram‑se no uso
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de imagens mediadas por dispositivos lenticulares, a saber, a fotogra‑ fia, na sua relação com a ideia de serialidade, e a imagem em movimento, projectada como constituinte de uma cinemática da tridimensionalidade que não é necessariamente cinematográfica. Finalmente, o sétimo e o oitavo momentos concentram‑se na performatividade e no corpo, ao reflectirem na difícil relação entre a forma substantivada de performance e a sua forma predicativa, bem como o corpo artístico como corpo que é sempre representação. O tema da representação é, em última instância, o destino deste ensaio, procurando testar a proposta de que toda a arte é representação – tema‑ tizada, a partir do contexto das vanguardas, como teste a si mesma e à sua viabilidade. No fundo, a reflexão incide sobre o fibrilar desta recor‑ rente auto‑representação, sempre tratada a golpes de desfibrilador trans‑ cendental na permanente pergunta sobre as condições de possibilidade de um corpo, de uma imagem, de uma espacialidade, de uma ficção – ou da própria arte. O corpo temático interroga a sobrevivência dos géneros (e dispositi‑ vos) artísticos, noção bebida em Aby Warburg, uma de várias presenças recorrentes. Esta sobrevivência é pensada sob a forma de linhagens de questões, por vezes perseguidas a partir dos seus protagonistas. O que se pretende é equacionar como estas linhagens de sobrevivências, na maneira como se tecem em torno de sistemas flexíveis de protocolos (sobre o que é, por exemplo, a arte, o papel do espectador, a autenticidade), definem pro‑ cessos de suspensão da descrença, no fundo o magma ficcional que possi‑ bilita a arte, em geral. Por fim, a muitos devo um agradecimento muito especial. Aos artistas com quem trabalhei ao longo destes últimos 27 anos e me foram suscitando a reflexão que aqui se desenvolve, nomeadamente Julião Sarmento, Fernando Calhau, Helena Almeida, Lawrence Weiner, John Baldessari, Michael Biberstein, Jorge Molder e tantos outros. Ao João Queiroz, primeiro leitor deste texto e com quem mantenho um perma‑ nente diálogo, além da relação com a sua obra, que me tem interpelado sis‑ tematicamente.
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Aos meus colegas da Universidade de Coimbra Abílio Hernandez, José António Bandeirinha, António Filipe Pimentel, Lurdes Craveiro e Luísa Trindade, pela forma amiga como me foram alertando para a prioridade de terminar este texto. À Maria João Gamito, que acreditou neste projecto desde o início. Ao António Massano, que leu atentamente e corrigiu este texto, devo um agradecimento muito especial. Às minhas editoras, Carla Oliveira e Patrícia Guerreiro Nunes, pela leitura e edição atentas – e pela enorme paciência. E, sobretudo, à minha família, a quem devo confiança.
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»Hier aber«, versetzte Wilhelm, »sind so viele widersprechende Meinungen, und man sagt ja, die Warheit liege in der Mitte.« »Keineswegs!« erwiderte Montan: »in der Mitte bleibt das Problem liegen, unerforschlich vielleicht, vielleicht auch zugänglich, wenn man es darnach anfängt!« — Mas aqui — disse Wilhelm —, as opiniões contraditórias são tantas, que se diz que a verdade está no meio. — De forma nenhuma! — replicou Montan. — O que está no meio é o problema: impenetrável, talvez, mas talvez também aproximável, se for abordado da forma certa! Goethe, Wilhelm Meisters Wanderjahre, apud Aby Warburg, 1918
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Valor de uso
No dia 25 de Fevereiro de 1970, Lawrence Weiner, artista norte‑americano cujo percurso se confunde com a própria história da arte conceptual, escre‑ veu uma carta ao Allen Memorial Art Museum em Oberlin, no Ohio, em resposta ao convite que lhe fora dirigido para participar numa exposição intitulada Art in the Mind, nos seguintes termos: Cara Althena Spear A peça a incluir é: Obstructed Colecção: livre uso público A única afirmação a ser impressa com a peça é: O artista pode construir a peça A peça pode ser fabricada A peça não precisa de ser construída Sendo cada uma igual e consistente com a intenção do artista, a decisão reside em quem a recebe na altura da recepção. Acho que isto não traz dificuldade. Quanto à construção, por favor lembre‑se de que, como se afirmou acima, não há uma maneira correcta de construir a obra, como também não há uma maneira incor‑ recta de a construir. Se a peça for construída, isso não significa que a peça seja assim, mas tão‑só como poderá parecer. Atentamente, Lawrence Weiner 1
Pouco mais de um ano depois, a 15 de Maio de 1971, numa entrevista realizada a Weiner por Willoughby Sharp, esta afirmação é objecto de
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questionamento por Sharp, que pergunta ao artista se lhe é indiferente sob qual das três condições (a fabricação pelo artista, a construção por outrem ou a pura inexistência) a obra possa ser. Ao que Weiner responde: – Não me importa esteticamente qual das três condições abarca o trabalho. São as três únicas condições em que eu poderia pensar não serem pretensiosas ou compli‑ cadas. Posso, em determinada altura, ter uma inclinação pessoal para construir algo, como posso ter uma particular aversão quanto à existência de um objecto. Não faz nenhuma diferença. O trabalho existe para qualquer pessoa no momento em que alguém está consciente de que o trabalho, qualquer que ele seja, é posto no contexto da arte por eu [by I]. – Por ti. – Sim. Ele existe nestes termos. – Então existe dentro de uma estrutura de uso? – Completamente dentro de uma estrutura de uso. – E tens de pô‑lo num contexto de utilidade. – Não utilitário, mas num contexto de uso. – Dentro do contexto da arte? – Fora do contexto da arte, estas condições seriam muito tontas.2
Esta entrevista e a carta de proposta do trabalho por Weiner são momentos exemplares do desenvolvimento da ideia de valor de uso que permeou a arte desde as primeiras vanguardas do século xx e suscitam um problema central para qualquer instância de um pensamento sobre arte. Pode formular‑se o problema da seguinte forma: como pode entender‑se, ou ter uma relação com este uso e com o valor da obra enquanto indexado a esse mesmo uso, se a obra de arte pede sempre uma posição tomada com base numa fórmula judicativa? Isto é, se uma obra de arte pede sempre um juízo (mesmo o mais elementar e simples, o de decidir reter o olhar, fazer o espectador mudar o seu ritmo perceptivo), então como não é esse juízo, num contexto de uso, exclusivamente condicionado pelo valor‑de‑uso da obra? Pode sê‑lo? E deve sê‑lo? Se assim for, quais são as condições deste juízo, ou face a quê podemos produzir juízos? Porquê, como e para quê, em
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que condições, podemos dizer de uma obra que é interessante, ou horrível, ou meramente desinteressante? Como podemos fugir de apreciações que fiquem esmagadas pelo moralismo ou tomadas pela necessidade? Não se trata aqui da questão do gosto, mas dos parâmetros que uma obra convoca dentro do seu contexto como arte, até porque, como muito certeiramente diz Weiner, esse é o único contexto no qual uma obra de arte pode ser considerada, sendo evidente que a inerente tautologia, embora marcada pela tónica conceptual da linguagem artística da época, faz emer‑ gir da discussão artística a inadequação entre a condição artística da arte e a sua necessidade de encontrar transcendentais situados fora‑de‑si, como se fosse possível fundamentar a consciência de si fora de si mesma. Esta questão, no entanto, só é formulável a partir de outra, central para a sua compreensão, que deriva da falência – ou da substituição – dos parâmetros produzidos para as obras dentro do universo das disciplinas artísticas, do que poderíamos chamar «géneros artísticos» (precisamente para se demitir a questão disciplinar), por aquilo a que Lawrence Weiner chama o «contexto da arte», que parece ter‑se tornado um universo fluido de migrações de procedimentos, técnicas, tradições, história, estórias, relações, protocolos, ficções e documentos. Assim, a opção por utilizar «dispositivo», termo apropriado de Michel Foucault, parece inevitável: não se trata de uma questão quanto ao médium, nem ao suporte, mas de sistemas de relações embebidas em linhagens históricas de procedimen‑ tos; o que significa que os dispositivos artísticos, tomados neste sentido, não coincidem com os campos disciplinares, mas com as transformações líquidas de procedimentos que se sedimentaram, se problematizaram, se hierarquizaram e se criticaram até ao limite da sua viabilidade. Nesse caso, poderemos ainda dizer que a arte é um campo único, uno e indivisível, que já não define cânones porque dispensou o problema das especificidades das suas disciplinas históricas? Como se articula este grande campo – em que um objecto pode ou não existir, pode ou não ser fabricado (pode ou não ser um objecto) – com a relação específica que, em si mesmo e em cada momento, cada acto, processo, acontecimento ou objecto artístico definem?
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