melancolia e arquitectura EM ALDO ROSSI
TR ADUÇÃO JORG E COL AÇO
Diogo Seixas Lopes
TÍTULO ORIGINAL
Melancholy and Architecture – On Aldo Rossi AUTOR
Diogo Seixas Lopes TRADUÇÃO
Jorge Colaço REVISÃO
Nuno Quintas CONCEPÇÃO GRÁFICA
Rui Silva | www.alfaiataria.org IMPRESSÃO
Guide – Artes Gráficas COPYRIGHT
© 2015 Diogo Seixas Lopes © 2015 Park Books AG © 2016 Orfeu Negro 1.ª EDIÇÃO
Lisboa, Novembro 2016
DL
417812/16 ISBN
978-989-8327-83-3
ORFEU NEGRO
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Para a Patrícia
Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê. fernando pessoa Livro do Desassossego
Índice Introdução 11 13 23
Agora tudo isto se perdeu O nosso habitual sentimento de imperfeição
PRIMEIRA PARTE
Melancolia e arquitectura 33 43 59 72 87
31
Modernidade, inquietação e espaço A estética do sublime Metrópole e spleen O centro perdido Uma arquitectura desanimada
S EGUNDA PART E
O caso de Aldo Rossi 97 106 115 125 134 154 164
Os anos do pós-guerra Uma educação realista Continuidade ou crise? A arquitectura como escolha A arquitectura como memória A arquitectura como autobiografia Política e poética
95
T ERCEIRA PARTE
O Cemitério de San Cataldo 173 183 199 207 223 234 244 253 264
171
Um sinal de cultura Primeira fase do concurso Segunda fase do concurso Planeamento e construção A cidade dos mortos A casa abandonada A forma de esqueleto A arquitectura das sombras Memento mori
Conclusão 273 275 285 296
Uma arquitectura do optimismo? Arquitectura e crise Observações finais
Introdução
Agora tudo isto se perdeu
Durante a Primeira Guerra Mundial, o poeta Georg Trakl serviu como oficial médico e foi passado à reserva devido a depressão. Morreu num hospital militar em Cracóvia, em 1914. Porém, mesmo antes da guerra, escreveu versos intensos acerca da perda pessoal, que estranhamente prefiguram não apenas um mundo ainda por vir, mas também o modo como este seria descrito. A colectânea Gedichte, publicada em 1913, continha o poema «Abendlied» («Canção nocturna»): À noite, quando caminhamos na obscuridade das veredas, A nossa figura clara surge diante de nós. Quando estamos sedentos, Bebemos das águas brancas da lagoa Doçura da nossa infância triste. Findos, repousamos sob os mais velhos arbustos, Fitamos as gaivotas cinzentas. Nuvens de Primavera ascendem sobre a cidade sombria Que sustenta a sua paz no mais nobre tempo dos monges. Quando peguei nas tuas mãos esguias, Ergueste os olhos, redondos. Isto foi há muito tempo.
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Porém, quando a harmonia escura busca a alma, Tu, na tua brancura, surges na paisagem de Outono do teu amigo.1
Tal como outros escritos do autor, o poema dá voz à tristeza por coisas «de há muito tempo». Por sua vez, esta consciência é o resultado de uma vida atormentada durante um período de grande perturbação.2 Dieses ist lang her é também o título de uma gravura de Aldo Rossi, de 1975. Esta referência não é, de modo nenhum, acidental. O arquitecto italiano foi com frequência buscar títulos à poesia, à pintura, ao cinema, e, claro, à arquitectura, como referências para as suas escolhas pessoais. São escolhas que levantam o problema de uma relação intrínseca entre biografia e obra, entre personalidade e conteúdo. As formas que moldam estes factos, nomeadamente os factos da arquitectura, contêm significados sujeitos a explicação. Dieses ist lange her, a gravura, segue essa regra. A gravura é facilmente compreendida por um observador contemporâneo como melancólica, representando, como representa, vários objectos e edifícios a desmoronar-se. O título também está
1
Georg Trakl, «Abendlied», in Gedichte, Leipzig, Kurt Wolff, 1913, p. 57. Versão original: «Am Abend, wenn wir auf dunklen Pfaden gehn,/ Erscheinen unsere bleichen Gestalten vor uns.// Wenn uns dürstet,/ Trinken wir die weißen Wasser des Teichs,/ Die Süße unserer traurigen Kindheit.// Erstorbene ruhen wir unterm Holundergebüsch,/ Schaun den grauen Möven zu.// Früblingsgewölke steigen über die finstere Stadt,/ Die der Mönche edlere Zeiten schweigt.// Da ich deine schmalen Hände nahm/ Schlugst du leise die runden Augen auf,/ Dieses ist lange her.// Doch wenn dunkler Wohllaut die Seele heimsucht,/ Erscheinst du Weiße in des Freundes herbstlicher Landschaft.»
2
Nascido em Salzburgo, em 1887, Georg Trakl publicou a maior parte da sua poesia durante a década de 1910. Cf. Will Stone, introdução a To the Silenced: Selected Poems by Georg Trakl, trad. ing. Will Stone, Todmorden, Arc Publications, 2005, pp. 17 e ss.
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traduzido em italiano, Ora questo è perduto.3 É um inventário e colagem de formas, compostas como uma imagem única. Porém, as formas no interior da imagem estão a ruir. As características particulares desta fonte permitem uma interpretação, no que diz respeito à sua atitude melancólica. A gravura pode ser vista como um comentário, ou alegoria, sobre o estatuto da arquitectura: Por esta razão, o título da gravura Agora tudo isto se perdeu tem uma importância especial: pode soar como uma alusão ao inevitável processo de declínio a que os signos estão sujeitos, uma vez evocados dos recessos da memória […]. Mas, por outro lado, o título alude a uma nostalgia essencial, dado que, ao representar a perda, a gravura imita um procedimento teatral com o objectivo de descrever o pesar pelo desaparecimento de uma ordem das formas orgânica, de objectos-signos, de que a composição é a evocação.4
Conduzido pelos campos da história da arquitectura, este livro versa o mesmo assunto. Apesar de a influência de Rossi se estender desde o início da segunda metade do século xx até hoje, ele convocava referências do passado. Este livro defende que essa sensação de perda é central em qualquer discussão da sua obra e que, além disso, existe uma relação entre melancolia e arquitectura. Com vista a justificar esta afirmação, o livro abrange um vasto leque de materiais que, apesar da sua diversidade, implicam condições
3
Aldo Rossi, Dieses ist lange her / Ora questo è perduto, gravura, 1975, DAM Archiv, Museu da Arquitectura Alemã, Frankfurt, inv. nº 206-014-011.
4
Francesco Dal Co, «Ora questo è perduto: Il teatro di Aldo Rossi alla Biennale di Venezia, 1979», Lotus, nº 25 (1979), p. 67.
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gerais que, para este objectivo específico, podem ser resumidas na breve frase, Dieses ist lange her (isto foi há muito tempo). Porém, o que queremos dizer com melancolia? A palavra melancolia vem do grego – melas (preto), khole (bílis) – e pode filiar-se a sua linhagem aos fundamentos da medicina, estabelecidos pelo físico grego Hipócrates e seus seguidores.5 Este corpus científico, iniciado cerca de 400 a. C., foi precursor de uma descrição sistemática das partes do corpo e das suas doenças. Contribuiu para uma teoria duradoura, prevalecente até ao século xix, que via a saúde como o produto de quatro humores: sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma. Com excepção do primeiro, congénito, os humores eram substâncias produzidas pelo corpo após a ingestão de alimentos. Este termo primitivo e impreciso pode parecer não ter nenhuma relação óbvia com arquitectura, mas a forma pela qual o entendimento humano se desenvolveu significa que, em última análise, veio a ter. Porque, embora a bílis negra, que causava melancolia, fosse uma substância física (localizada no baço e fria e seca como a terra), a secreção desta humidade poderia, segundo Hipócrates, causar problemas mentais, como o medo e o desânimo, se produzida em excesso. Se os sintomas persistissem, o caso era considerado melancólico.6 Estes problemas incluíam uma série de consequências aflitivas, como a descarga ou derramamento da bílis negra pelos olhos. O indivíduo ficava literalmente cego pela
5
Para um estudo histórico da relação entre melancolia e medicina, v. Jean Starobinski, Histoire du traitement de la mélancolie des origines à 1900, Basileia, Geigy, 1960.
6
Id., ibid., vol. iv, Paris, Baillière, 1844, p. 569. «Quando o medo ou a tristeza persistem durante muito tempo, isso é um estado melancólico.»
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abundância do fluxo desta substância. Isso deu origem a um simbolismo primordial do melancólico como ser sombrio e abatido.7 Contudo, ao explorar-se a história remota do vocábulo, fica claro que este termo complexo, que hoje capta tão perfeitamente a poética de Rossi, era ambíguo desde o início. Deve ter-se em mente que, mesmo no mundo antigo, a melancolia não era vista meramente como algo negativo. Na verdade, o melancólico poderia ser visto também como alguém excepcional. Uma passagem atribuída a Aristóteles foi crucial para essa perspectiva. Ao discutir a natureza e a física, o filósofo grego anteviu o papel da bílis negra na definição dos quatro temperamentos e ligou-a a graus superiores da actividade humana. Ao chamar a atenção para a disposição de figuras notáveis, promoveu a melancolia a uma categoria intelectual e heróica. Por que razão todos aqueles que se tornaram eminentes na filosofia ou na política, na poesia ou nas artes são claramente melancólicos, e alguns deles a ponto de serem afectados por doenças causadas pela bílis negra? Um exemplo da mitologia heróica é Hercules. Porque aparentemente ele tinha essa disposição, e por isso, em sua honra, aos sofrimentos da epilepsia chamou-se «a doença sagrada».8
7
Cf. Bennett Simon, Mind and Madness in Ancient Greece: The Classical Roots of Modern Psychiatry, Ithaca (Nova Iorque), Cornell University Press, 1978.
8
Aristóteles, «Problem XXX, I» in Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, Saturn and Melancholy: Studies in the History of Natural Philosophy, Religion and Art, Londres, Nelson, 1964, pp. 18-29. Aristóteles (384-322 a. C.) escreveu este problema como parte do seu tratado sobre Física. A autoria deste Problemata physica é incerta e frequentemente atribuída a Teofrasto, discípulo de Aristóteles que dedicou parte dos seus escritos à descrição de tipos da personalidade humana.
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Aristóteles inclui na lista Empédocles, Platão e Sócrates, bem como «numerosos outros homens famosos, e também a maioria dos poetas». Enquanto a bílis negra trazia sofrimentos à maioria das pessoas, este texto chamava a atenção para o efeito que ela tinha em certos indivíduos. Entre eles havia figuras de excepção, como filósofos, políticos e artistas. A sua constituição, associada à actividade intelectual e à proeminência social, resultava de possuírem concentrações mais moderadas do humor, logo, as suas faculdades pessoais aumentavam em vez de declinarem. O que torna o tropo fisiológico e emocional da melancolia tão adequado quando se aplica a um arquitecto como Rossi é, claro, que o conceito se alterou e transformou ao longo do tempo, o fragmento de um filósofo antigo foi continuadamente apropriado e reinventado por gerações sucessivas. Quando o cristianismo suplantou o mundo pagão da Antiguidade Clássica, a melancolia ajustou-se para ocupar o seu lugar na nova relação filosófica dominante entre o terreno e o divino. Esta nova visão do mundo não eliminou as propriedades primitivas que eram imputadas à bílis negra. Em vez disso, reenquadrou-as num conjunto de crenças com vista a tratar um estado de conflito interior. As conotações morais no julgamento da melancolia foram sublinhadas com o advento do cristianismo e o uso de um novo termo: acédia. Trata-se, como podemos ver, de uma variação da melancolia, mas implicava tormentos semelhantes. A palavra veio do grego akedeia, que descreve a falta de interesse e a perda de fé. Classificava-se como um dos vícios humanos, conduzindo aos sete pecados mortais desde o final do quarto século da era cristã.9 São João 9
Originalmente, a igreja medieval enumerou oito vícios: vanglória, raiva, abatimento, acédia, orgulho, cobiça, gula e fornicação. Evágrio do Ponto (345-399) foi quem primeiro fez
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Cassiano descreveu as dificuldades espirituais dos cenobitas, monges isolados nas planícies do Egipto, nestes termos.10 Conhecidos como os «padres do deserto», testavam a sua fé enquanto jejuavam e rezavam. O procedimento procurava eliminar os desejos físicos para atingir a santidade e ser um com Deus. No caso de os monges não serem bem-sucedidos, a prostração assumia o controlo e, «quando se apodera de uma mente desafortunada, torna uma pessoa horrorizada com a sua situação, desgostosa consigo própria, sentindo também desdém e desprezo pelos irmãos que vivem consigo ou na sua proximidade, como sendo negligentes e mundanos»11. Porém, esta forma de melancolia tinha também um propósito e continha, por conseguinte, a noção da sua própria redenção. Constituía uma transição no sentido da integridade, quando a alma dominava a tentação do corpo. Nas regiões mais seculares do mundo medieval, considerava-se o indivíduo melancólico um arquétipo, alguém que carregava o fardo de um comportamento taciturno e que era invariavelmente rotulado filho de um deus menor. Este conceito popular combinava ideias anteriores, muitas vezes contraditórias, para criar um estereótipo duradouro. Muitas destas ideias tinham origem na astrologia, que reivindicava então, como agora, que as estrelas e planetas afectavam as pessoas e os assuntos terrenos. A escolástica medieval objectava a este credo e argumentava que a vontade do homem era regida por Deus. Os astrólogos
este índice, que evoluiu depois para os sete pecados mortais estabelecidos pelo papa Gregório I (540-604): ira, cobiça, orgulho, luxúria, inveja e gula. V. Jennifer Radden, The Nature of Melancholy, Nova Iorque, Oxford University Press, 2000, pp. 69-71. 10 João Cassiano, De institutis coenobiorum (c. 419) / The Institutes, Ancient Christian Writers nº 58, trad. ing. Boniface Ramsey, Nova Iorque, Newman, 2000. 11
Id., ibid., p. 219.
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não refutavam este mandamento, mas defendiam que o destino poderia ser previsto por meio da observação dos corpos celestes. As suas previsões começaram a ser muito difundidas, fornecendo explicações do mundo baseadas em conceitos que, em grande medida, tinham origem na Antiguidade. Como consequência, nomeou-se Saturno patrono da melancolia no céu.12 Com base nesta correspondência, deu-se à noção de melancolia um modo novo de continuidade cultural. «É na ideia de um contraste, nascido da escuridão, entre as maiores possibilidades do bem e do mal que se fundou a mais profunda analogia entre Saturno e melancolia.»13 Na época, acreditava-se que o planeta era o mais distante e o mais frio, e por isso atribuíram-se características similares ao deus pagão e aos que eram influenciados pelo seu signo. «Como a melancolia, Saturno, esse demónio de opostos, dotava a alma de lentidão e estupor e simultaneamente de poder de inteligência e contemplação. Como a melancolia, Saturno ameaçava quem estivesse sob a sua influência, por mais ilustres que fossem, com depressão, ou mesmo loucura.»14 O conceito medieval de melancolia incorporou aspectos significativos do mito de Saturno. O deus romano era o equivalente de uma divindade grega, Cronos, que derrotara o pai, Urano, com o auxílio de uma foice que lhe fora dada pela mãe, Gaia, tornando-se desse modo soberano da Idade de Ouro. Ao usurpar o lugar do pai, foi-lhe profetizado um destino semelhante, pelo que optou por devorar os filhos para impedir que a previsão se concretizasse. Claro que, como sabemos, um dos filhos, 12
A concepção dos planetas clássicos, estabelecida na Antiguidade, enumerava sete entidades do céu visíveis da Terra: o Sol, a Lua, Mercúrio, Marte, Vénus, Júpiter e Saturno.
13
Raymond Klibansky, Erwin Panofsky e Fritz Saxl, op. cit., p. 168.
14
Id., ibid.
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Zeus, sobreviveu e acabou por encarcerá-lo. Saturno foi, por conseguinte, uma figura problemática, simultaneamente bom e mau. Foi saudado como um governante auspicioso quando a humanidade vivia em prosperidade e em harmonia, pois era o deus da agricultura e das colheitas. A contagem das sementes associou-o à matemática e à geometria e quem fazia medidas fazia-o sob sua protecção. Esse patrocínio estendeu-se a tarefas como a carpintaria, o trabalho de pedreiro e também a arquitectura. Saturno foi o primeiro a relacionar a melancolia com o tema do espaço.15 Se o perfil saturnino das pessoas melancólicas se fundia com a ciência e a superstição, definindo um estereótipo, fundia também o saber árabe com o saber antigo e cristão. Alcabitius (m. 967) foi um estudioso árabe que escreveu diversos tratados sobre astrologia, astronomia, matemática e arquitectura. O seu relato não só mostra quão extensa e complexa era a combinação de traços que constituíam a personalidade melancólica, mas também, por influência da astrologia árabe, quão determinante a sua influência se tornara na vida medieval. Ele descreveu assim o melancólico: Preside às coisas permanentes, duradouras, como a terra, a agricultura, o cultivo, o amanho da terra, e às profissões respeitáveis que têm que ver com a água, como o comando de navios e a sua manutenção, e à administração do trabalho, à argúcia e à fadiga, ao orgulho, aos servos do rei, aos piedosos entre as gentes, aos fracos, aos escravos, aos afligidos, aos inferiores pelo nascimento, aos pesados, aos mágicos mortos, aos demónios, diabos e gente de má fama – tudo isto quando o seu estado se define pelo bem. 15
Id., ibid., pp. 133-6.
22 INTRODUÇÃO
Contudo, quando é o mal, preside ao ódio, à obstinação, ao cuidado, à dor, à lamentação, ao choro, à má opinião, à suspicácia entre os homens; e é tímido, facilmente confuso, inflexível, temeroso, dado à raiva, não desejando bem a ninguém; mais ainda, preside aos ganhos miseráveis, às coisas velhas e impossíveis, às viagens para longe, à longa ausência, à grande pobreza, à avareza consigo próprio e com os outros, ao uso do engano, à carência, ao assombro, à preferência pela solidão, aos desejos que matam pela crueldade, à prisão, às dificuldades, à artimanha, às heranças, às causas de morte.16 Esta profusão de pormenores deu origem a um vocabulário textual associado à melancolia, mas também a um vocabulário visual relevante. Contudo, o foco na morte, tal como apreendida ao longo da vida, continou a ser predominante. «Precisamente porque a personalidade melancólica é assombrada pela morte, são os melancólicos que melhor sabem como ler o mundo. Ou, melhor, é o mundo que se rende ao escrutínio dos melancólicos como a mais ninguém.»17 Quando a justificação para este temperamento ficou finalmente isenta do governo de deuses ou estrelas, a melancolia ganhou o estatuto de consciência. Mais do que nas bases sobrenaturais prevalecentes durante a época medieval, encontrou a tristeza e procurou consolo no seio do eu racional. Poderia então, nesse momento, associar-se aos actos de um indivíduo, nomeadamente a dar forma à realidade.
16
Alcabitius, in id., ibid., pp. 131-32.
17
Susan Sontag, Under the Sign of Saturn, Nova Iorque, Picador, 2002, pp. 119-20.