Obscénica

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OBSCÉNICA TEXTOS ERÓTICOS & GROTESCOS TEXTO

HILDA HILST ILUSTRAÇÃO

ANDRÉ DA LOBA SELECÇÃO E PRELIMINARES

JORGE LIMA ALVES

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PRELIMINARES Hilda Hilst, poeta, dramaturga e romancista, é considerada por muitos uma autora «difícil», «hermética», ou mesmo «louca». Contemporânea de Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, deixou uma obra vasta, mais estudada nas universidades do que disponível nas livrarias, e não é por acaso que assim acontece. A intensidade e o radicalismo da sua escrita, e logicamente do seu pensamento, exigem uma disponibilidade e uma sensibilidade cada vez mais raras. Na recta final da sua vida, quando já desistira de escrever e de coleccionar prémios literários, Hilda afirmou com a maior naturalidade do mundo: «Talvez daqui a cem anos alguém me leia. Mas eu não tenho esperança.» Com a certeza de que ninguém a lera jamais como ela desejaria, declarou noutra ocasião: «Meus livros são todos inéditos.» Em Portugal, esta afirmação provocatória pode ser lida de forma literal: muito poucos conhecem esta autora brasileira, e são menos ainda os que a leram. Um escândalo, se tivermos em conta que Hilst é uma das mais interessantes escritoras na história da língua portuguesa do século xx. Hilda nasceu no dia 21 de Abril de 1930, em Jaú, no interior de São Paulo, filha única de Apolónio de Almeida Prado Hilst (o nome Hilst parece provir da Alsácia) e de Bedecilda Vaz Cardoso, filha de portugueses. Logo após o seu nascimento, o pai, fazendeiro, jornalista e poeta, foi internado numa instituição psiquiátrica, tendo-lhe sido diagnosticada esquizofrenia. Tinha 35 anos e, até à sua morte, aos 69 anos, passou quase toda a vida internado. Em 1950, Hilda publicou o seu primeiro livro de poemas. Seguiram-se outras recolhas poéticas e, mais tarde, romances e peças de teatro. Aos 33 anos, já formada em Direito, influenciada pela leitura de Carta a Greco, de Nikos Kazantzakis, decidiu ir viver para o campo e dedicar-se inteiramente à escrita. Em 1990, cansada de ser uma autora elogiada pela crítica mas ignorada pelo grande público, resolve dar um novo rumo à sua obra. «Quero ser famosa, cansei dessa história de prestígio», declarou à imprensa, anunciando que decidira escrever romances «pornográficos». Os seus leitores mais atentos não terão ficado muito surpreendidos. De facto, o erotismo era já uma pulsão visceral na sua obra, indício de um trilho sagrado. «O erótico, para mim, é quase uma santidade», gostava de afirmar. Desde os primeiros ensaios poéticos, de um lirismo absoluto, em estado puro, passando pelo seu incandescente teatro e acabando nos romances mais experimentais, Hilda procurou sempre inventar novas formas de comunicar e amar,

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confrontando, como escreveu Eliane Robert Moraes, a «metafísica do puro e imaterial com o reino do perecível e do contingente». Obscénica – Textos Eróticos & Grotescos, a presente edição que a Orfeu Negro dedica a Hilda Hilst e André da Loba, integra a colecção Casimiro, um conjunto de «livros ilustrados para gente madura e extravagante», e está dividida em duas partes. A primeira é constituída por largos excertos de Contos de Escárnio/Textos Grotescos*, livro lançado em 1990 que trouxe à escritora o reconhecimento internacional. A repercussão da tradução francesa – publicada por uma chancela da conceituada Gallimard, em 1994, com o título Contes Sarcastiques – foi tal que o jornal Libération enviou um dos seus melhores críticos literários, o famoso Mathieu Lindon, ao Brasil para entrevistar a autora. Obra torrencial, na qual a prosa se mescla com a poesia e o teatro, e a crítica literária e o comentário erudito são intercalados por contos mínimos e interpelações ao leitor, tem como protagonista um sexagenário que decide escrever um livro porque, como afirma, «ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu». É evidente que a pornografia não passa aqui de um pretexto para a autora falar dos seus temas preferidos: o amor, a solidão, a literatura, a traição, o envelhecimento e a morte. A segunda parte de Obscénica reproduz integralmente Bufólicas, editado em 1992. Composto por sete curtíssimos contos «morais», escritos em verso, que pervertem completamente o imaginário das fábulas e dos contos de fadas da nossa infância, Bufólicas veio acrescentar um quarto volume à infame trilogia erótica que, para além de Contos d’Escárnio/Textos Grotescos, inclui O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990) e Cartas de um Sedutor (1991). Não foi, sem dúvida, levianamente que a autora, que sempre afirmou «Toda a minha ficção é poesia. No teatro, em tudo, é sempre o texto poético, sempre», escolheu encerrar com poemas, da maneira mais divertida, a sua saga obscena. Também não é por acaso que a nossa selecção se cinge a duas obras desse período, quando Hilda decidiu «alegrar-se um pouco», como a própria disse, escrevendo sobre sexo e desafiando todos os tabus e preconceitos da sociedade em que vivia. Na nossa opinião, é nestes textos, ditos obscenos, sarcásticos, grotescos, que ela leva mais longe a sua visão desassombrada do mundo e de si mesma, assim como a vertiginosa maestria da sua escrita profundamente inovadora e poética. Alcir Pécora, num artigo intitulado «Não é pornográfica a literatura pornográfica de Hilda Hilst», escreveu que «é totalmente improvável uma erecção ao ler a Hilda obscena». Tem toda a razão este especialista em teoria da literatura. Não é para nós, leitores e companheiros de infortúnio, que Hilda escreve, mas para Deus, nada mais, nada menos. Várias vezes afirmou que nós, pobres

humanos, não saberíamos, mesmo que quiséssemos, lê-la verdadeiramente. «Posso blafesmar muito, mas o meu negócio é o sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus.» O seu interlocutor é só um, esse deus terrível e omnipresente, tão particular e paradoxal – bendito e malvado, divino e humanizado –, que a leva a escrever como se o fizesse com um ferro em brasa sobre a sua própria carne: «Sei tudo sobre a crueldade. Conheço Deus.» Quando, finalmente, Hilda chegou à conclusão de que as suas interrogações mais essenciais nunca teriam resposta neste mundo, deixou de escrever e perdeu completamente o interesse pelo destino dos seus livros. De qualquer modo, a única pessoa cuja opinião poderia ter alguma importância tinha morrido há muito: o pai, esse poeta verdadeiramente maldito. A própria Hilda Hilst passava muitas vezes por demente (alguns críticos falaram mesmo em «sintomatologia esquizofrénica», a propósito dos seus textos e proclamações) aos olhos dos que não perceberam ainda que a loucura é geral e que o humor negro e o desespero criativo são, talvez, das poucas formas de sobrevivência sã num mundo absurdo e suicidário. «Eu não sinto que esteja num mundo que seja o meu mundo. Devo ter caído aqui por acaso. Não entendo por que fui nascer aqui na Terra. Com raríssimas exceções, não tenho nada a ver com este mundo», afirmou, intimamente convicta de que existia, em cada um de nós, uma saída para tudo, inclusivamente para a morte. Nos últimos anos da sua existência, esta «fera doente», «joalheira da linguagem», como lhe chamaram, optou por acreditar que só quando abandonasse o seu invólucro terreno obteria satisfação para as suas dolorosas interrogações. Por isso, sobretudo depois da morte da mãe, começou a interessar-se cada vez mais pelos fenómenos paranormais e lançou mesmo as bases de uma fundação onde se estuda a vida depois da morte e formas de comunicação com o Além. Essa fundação está instalada na famosa Casa do Sol, perto de Campinas, no estado de São Paulo, onde Hilda Hilst viveu até à sua morte, em 2004, e a que ela chamava, ironicamente, «a minha torre de capim». Nelly Novaes Coelho, uma estudiosa da obra de Hilst, acredita que a autora «deixou algumas das interrogações mais radicais do pensamento contemporâneo». O mínimo que se pode dizer é que não é exagero nenhum. Jorge Lima Alves

*Os cortes no texto são assinalados da seguinte maneira: (.)(.).

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CONTOS D’ESCÁRNIO TEXTOS GROTESCOS

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M

eu nome é Crasso. Minha mãe me deu tal nome porque tinha mania de ler História das Civilizações. E se impressionou muito quando leu que Crasso, um homem muito rico, romano, foi degolado e teve a cabeça entupida de ouro derretido por algum adversário de batalha e conceitos. Mamãe morreu logo depois de me dar esse nome. No dia seguinte ao meu batismo. Dizem que foi um ataque fulminante, que eu estava logicamente no berço ou no peito quando ela falou: Crassinho. Suspirou e morreu. Era linda, elegante, gostosa, segundo papai, que morreu um mês depois. Só que a morte dele foi diferente. Morreu em cima de uma mulher nada elegante mas muito mais gostosa que mamãe, segundo me disseram. A mulher era uma puta, daquelas rebolantes, peitudas, tetas em riste. Os homens gostavam assim naquela época. A puta saiu do quarto aos gritos, os peitos balançando iguais a dois lindos melões se os melões nas ramas rasteiras balançassem. Papai morreu no bordel. Foi aquela gritaria, depois sussurros, depois silêncio, depois a funerária saindo, quero dizer, o agente funerário saindo e logo depois entrando com o caixão e tudo e saindo de novo. Um horror. Fui criado pelo meu tio Vlad, ninguém sabe o porquê desse nome, brasileiro e fazendeiro. A mãe dele deve ter lido o quê para lhe dar esse nome? Lembrei-me agora: a mãe de tio Vlad era apaixonada por Vladimir Horowitz. Bem. Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. Então não vou escrever um romance como... E o Vento Levou ou Rebeca, Os Sertões e Ana Karenina então nem se fala. Os verbos chineses não possuem tempo. Eu também não. A minha primeira safadeza foi meio atrasadinha. Eu já havia completado dezoito anos, mas sempre fui muito tímido, talvez por causa do nome, talvez por causa do jeito que papai morreu. Todo mundo quando me via dizia: lá vai o Crasso, filho daquela da crassa putaria. Eu ficava com os olhos úmidos mas logo em seguida, apesar da minha timidez, mostrava o pau. (.)(.)

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O QUE EU PODIA FAZER COM AS MULHERES ALÉM DE FODER?

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