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obra publicada com os seguintes apoios Centro Nacional do Livro – ministério da cultura francês Programa de apoio à publicação – institut français ouvrage publié avec les soutiens suivants Centre national du livre – ministère français chargé de la culture Programme d’aide à la publication – institut français
título original Noir: Histoire d’une couleur autor Michel Pastoureau tradução José Alfaro revisão Nuno Quintas concepção gráfica Rui Silva | www.alfaiataria.org impressão Guide – Artes Gráficas copyright © 2008, 2011 Éditions du Seuil © 2014 Orfeu Negro 1.ª edição Lisboa, Setembro 2014 dl xxxxxx/xx isbn 978-989-8327-40-6 orfeu negro Rua Gustavo de Matos Sequeira, n.º 39 – 1.º 1250-120 Lisboa | Portugal | t +351 21 3244170 info@orfeunegro.org | www.orfeunegro.org
INTRODUÇÃO PARA UMA HISTÓRIA DAS CORES
Quando nos perguntam «que significam as palavras “vermelho”, “azul”, “preto”, “branco”», podemos imediatamente apontar para coisas que têm essas cores, mas a nossa capacidade para explicar o significado destas palavras não vai mais além!1 Auf die Frage: „was bedeuten die Wörter rot, blau, schwarz, weiss?“ können wir freilich gleich auf die Dinge zeigen, die so gefärbt sind. Aber weiter geht unsere Fähigkeit die Bedeutungen dieser Wörter zu erklären nicht. Ludwig Wittgenstein Anotações sobre as Cores/Bemerkungen über die Farben, 1, 68
Há algumas décadas, no início do século passado ou mesmo ainda na década de 1950, o título deste livro poderia ter surpreendido alguns leitores pouco habituados a considerar o preto uma verdadeira cor. Isso, sem dúvida, já não acontece hoje: quase ninguém lhe recusa essa qualidade. O preto recuperou o estatuto que, durante séculos ou mesmo milénios, fora o seu: o de uma cor de pleno direito, e mesmo o de um pólo importante em todos os sistemas da cor. Tal como o branco, seu parceiro, ao qual, 5
aliás, nem sempre esteve ligado, o preto perdera progressivamente o estatuto de cor entre o fim da Idade Média e o século xvii: o aparecimento da imprensa e da imagem gravada, com tinta preta sobre papel branco, dera a estas duas cores uma posição particular que a Reforma protestante, primeiro, e os progressos científicos, depois, tinham acabado por situar fora do mundo das cores. Quando Isaac Newton descobre o espectro, em 1665-1666, traz realmente para primeiro plano uma nova ordem das cores, na qual deixa de haver lugar tanto para o branco quanto para o preto. É uma verdadeira revolução cromática. Durante quase três séculos, o preto e o branco foram portanto pensados e vividos como «não-cores», e até como formando em conjunto um universo próprio, contrário ao das cores: «a preto e branco» de um lado, «a cores» do outro. Na Europa, esta oposição foi familiar a uma dezena de gerações e, embora hoje já não seja muito válida, também não nos choca verdadeiramente. As nossas sensibilidades, contudo, mudaram. A partir da década de 1910, os artistas foram os primeiros a devolver, a pouco e pouco, ao preto e ao branco o estatuto que havia sido o deles antes do fim da Idade Média: o de cores autênticas. Seguiram-se-lhes os homens de ciência, ainda que, durante muito tempo, os físicos se tenham mostrado renitentes em reconhecer ao preto propriedades cromáticas. Por fim, o grande público acabou por se lhes juntar, de modo que hoje, nos nossos códigos sociais e na vida quotidiana, já quase não 6
temos motivo para opor o mundo das cores ao do preto e branco. Sobrevêm apenas, aqui ou ali (fotografia, cinema, imprensa, edição), resquícios da antiga distinção. Por isso, o título deste livro não é de forma alguma um erro ou uma provocação. Também não pretende evocar a famosa exposição organizada no fim de 1946 pela galeria Maeght, em Paris, certa mostra que proclamava, com uma espécie de insolência: «O preto é uma cor.» Pretendia-se não só chamar a atenção do público e dos meios de comunicação através de um slogan apelativo, mas também afirmar uma posição diferente da ensinada nas escolas de belas-artes e nos tratados académicos de pintura. Talvez até, a quatro séculos e meio de distância, os pintores expostos quisessem responder a Leonardo da Vinci: o primeiro entre os artistas a proclamar, logo no final do século xv, que o preto não era verdadeiramente uma cor. «O preto é uma cor»: esta afirmação tornou-se hoje óbvia, quase uma banalidade; a verdadeira provocação seria declarar o contrário. Contudo, não é nesse terreno que a presente obra se situa. O seu título não evoca a exposição de 1946, nem mesmo as ideias do ilustre Leonardo, mas, de forma mais modesta, um livro anterior a este: Bleu: Histoire d’une couleur. O bom acolhimento da comunidade académica e do grande público motivou-me a consagrar um trabalho semelhante à cor preta. Longe de mim, no entanto, a ideia de me lançar numa série completa que, volume após volume, tentasse contar a história de cada 7
uma das seis cores «de base» da cultura ocidental (branco, vermelho, preto, verde, amarelo, azul), e depois das cinco cores «de segundo grau» (cinzento, castanho, violeta, cor-de-rosa e cor-de-laranja). Este empreendimento, constituído por monografias paralelas, faria pouco sentido: uma cor nunca vem só; só ganha sentido, só «funciona» plenamente, do ponto de vista social, artístico e simbólico, se estiver associada ou oposta a uma ou a várias outras cores. Logo, é impossível considerá-la de forma isolada. Falar do preto, como se verá nas páginas seguintes, é também, necessariamente, falar do branco, do vermelho, do castanho, do violeta e até do azul. Daí resultam algumas repetições quanto à obra que dediquei à história desta última cor. Ser-me-ão perdoadas, pois não poderia ser de outra forma. Durante muito tempo, o azul, cor sóbria e mal-amada, permaneceu no Ocidente como uma espécie de «subpreto» ou preto de um tipo especial. As histórias destas duas cores não podem por isso ser muito dissociadas. Também não podem ser separadas das das outras cores. Se, como o meu editor espera, um terceiro volume viesse dar continuidade aos dois primeiros (o vermelho?, o verde?), seria decerto construído em torno das mesmas problemáticas, e a investigação seria feita a partir das mesmas fontes documentais2. Tais estudos, aparentemente monográficos (só na aparência), pretendem constituir as pedras de um edifício cuja construção me ocupa há quase quatro décadas: a his8
tória das cores nas sociedades europeias, da Antiguidade romana ao século xviii. Ainda que, como se verificará nas páginas seguintes, a montante e a jusante eu tenha de ultrapassar estes dois períodos, é neste intervalo cronológico, já muito lato, que se situa o essencial do meu projecto. Também o limito às sociedades europeias, visto que para mim os problemas da cor são, antes de mais, problemas sociais. Ora, o historiador que eu sou não tem competência para falar de todo o planeta, nem tem prazer em compilar, em terceira ou quarta mão, trabalhos de outros investigadores sobre as culturas extra-europeias. Para não escrever disparates nem plagiar trabalhos alheios, limito-me ao que conheço e que foi objecto dos meus seminários, ao longo do último quarto de século, na École Pratique des Hautes Études e na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Tentar construir uma história das cores, mesmo limitada à Europa, não é um trabalho fácil. É mesmo uma tarefa deveras árdua, à qual os historiadores, os arqueólogos e os historiadores de arte (incluindo os da pintura!) recusaram dedicar-se até há pouco tempo. As dificuldades, é verdade, são muitas. Vale a pena evocá-las na introdução deste livro, pois fazem inteiramente parte do tema e ajudam a compreender os desequilíbrios que existem entre o que conhecemos e o que ignoramos. Neste caso, mais do que noutros, não há uma verdadeira fronteira entre a história e a historiografia. Deixemos de lado, por momentos, 9
a história específica da cor preta e enunciemos algumas destas dificuldades. Apesar da sua diversidade, podem agrupar-se em três categorias. As primeiras dificuldades são documentais: nos monumentos, nas obras de arte, nos objectos e nas imagens que os séculos passados nos deixaram, não vemos as cores no seu estado original, mas como o tempo as tornou. Este trabalho do tempo, quer seja o resultado da evolução química das matérias corantes ou da acção dos homens que, ao longo dos séculos, pintaram e repintaram, modificaram, limparam, envernizaram ou suprimiram esta ou aquela camada de cor aplicada pelas gerações precedentes, é, em si próprio, um documento histórico. É por isso que desconfio sempre dos laboratórios que, com meios técnicos agora muito elaborados e publicidade por vezes espalhafatosa, se propõem «restaurar» as cores ou, pior ainda, devolvê-las ao seu estado primitivo. Há nisto um positivismo científico que me parece simultaneamente inútil, perigoso e contrário às missões do historiador. O trabalho do tempo integra a sua própria investigação. Porquê renegá-lo, apagá-lo, destruí-lo? A realidade histórica não se limita ao que ela foi no seu estado primitivo, é também o que o tempo fez dela. Não o esqueçamos e não restauremos levianamente. Também não devemos esquecer que hoje vemos as obras, as imagens e as cores do passado em condições de iluminação muito diferentes das que as sociedades da Anti10
guidade, da Idade Média e da época moderna conheceram. A tocha, a lamparina de azeite, a candeia, o círio, a vela produzem uma luz diferente da gerada pela corrente eléctrica. Apesar de se tratar de uma evidência, que historiador o tem em conta? Esquecê-lo leva por vezes a absurdos. Pensemos, por exemplo, no recente trabalho de restauro das abóbadas da Capela Sistina e nos esforços notáveis, tanto técnicos como mediáticos, para «recuperar a frescura e a pureza originais das cores aplicadas por Miguel Ângelo». Semelhante exercício (ainda que um pouco irritante) estimula decerto a curiosidade, mas torna-se perfeitamente inútil e anacrónico se iluminarmos, olharmos ou estudarmos à luz eléctrica as camadas de cores assim resgatadas. O que vemos de facto das cores de Miguel Ângelo com as nossas iluminações modernas? Não será traição maior do que a operada lentamente pelo tempo e pelos homens desde o século xvi? É ainda mais inquietante se pensarmos no exemplo de Lascaux ou no de outros sítios pré-históricos, destruídos ou danificados pelo encontro funesto entre os testemunhos do passado e as curiosidades do presente. Para terminar com as dificuldades documentais, é preciso ainda recordar que, desde o século xvi, historiadores e arqueólogos estão habituados a trabalhar a partir de imagens a preto e branco: primeiro gravuras, depois fotografias. Abordaremos este assunto com maior pormenor nos capítulos quarto e quinto deste livro. Mas sublinhemos de antemão que, durante quase quatro séculos, 11
a documentação «a preto e branco» foi a única disponível para estudar os testemunhos figurativos do passado, incluindo a pintura. Assim, os modos de pensamento e de sensibilidade dos historiadores parecem também eles ter-se convertido ao preto e branco. Dispondo de reproduções e de livros em que dominava amplamente o preto e branco, os historiadores (e os historiadores de arte talvez ainda mais do que os outros), até há pouco tempo, pensaram e estudaram o passado, quer como mundo feito de cinzentos, de pretos e de brancos, quer como universo onde a cor estava totalmente ausente. O recente recurso à fotografia «a cores» não alterou de modo significativo esta situação. Pelo menos, até agora. Por um lado, os hábitos de pensamento e de sensibilidade estavam demasiado inculcados para se transformarem numa ou duas gerações; por outro, o acesso ao documento fotográfico a cores manteve-se largo tempo um luxo inacessível. Para um jovem investigador ou para um estudante, fazer simples diapositivos num museu, numa biblioteca ou numa exposição foi durante muito tempo um exercício difícil, se não mesmo impossível. Erguiam-se de todos os lados obstáculos institucionais para o desencorajarem ou para o espoliarem. Além disso, por motivos financeiros, os editores e os responsáveis de revistas e de publicações científicas foram obrigados a suprimir as imagens a cores. Nas ciências humanas, perdurou um fosso enorme entre o que as técnicas de ponta permitiam e o trabalho artesanal 12
dos historiadores, que enfrentaram numerosos obstáculos (financeiros, institucionais, jurídicos) para estudar os documentos figurativos que o passado lhes legara. Aliás, estes obstáculos infelizmente não desapareceram de todo, e às dificuldades técnicas e financeiras que as gerações precedentes conheceram juntam-se agora complicados entraves jurídicos. A segunda categoria de dificuldades é de ordem metodológica. O historiador está quase sempre desamparado quando tenta compreender o estatuto e o funcionamento da cor numa imagem, num objecto, numa obra de arte: põem-se ao mesmo tempo todos os problemas (materiais, técnicos, químicos, iconográficos, artísticos, simbólicos). Como conduzir uma investigação? Que perguntas formular e por que ordem? Até hoje, nenhum investigador nem nenhuma equipa propôs uma ou mais grelhas de análise pertinentes que fossem úteis a toda a comunidade científica. É por isso que, perante a abundância das questões e a quantidade de parâmetros, qualquer investigador (e eu, sem dúvida, em primeiro lugar) tende sempre para reter somente o que convém à demonstração em curso e, ao invés, deixar de lado tudo o que não é oportuno. Não é decerto uma boa maneira de trabalhar, embora seja a mais comum. Além disso, os documentos produzidos por uma sociedade, sejam escritos ou figurativos, nunca são neutros ou unívocos. Cada documento possui a sua especificidade 13
e dá a sua própria interpretação do real. Como qualquer historiador, o das cores deve tê-lo em conta e conservar em cada categoria documental as suas regras de codificação e de funcionamento. Textos e imagens, além do mais, não partilham o mesmo discurso e devem ser examinados e explorados através de métodos distintos. Isto é muitas vezes esquecido, sobretudo quando, em vez de procurar informações nas próprias imagens, projectamos nelas o que pudemos aprender noutro lado, nomeadamente através dos textos. Confesso que por vezes tenho inveja dos especialistas da pré-história, que estudam documentos figurativos (as pinturas murais) mas que não dispõem de nenhum texto: são pois obrigados a encontrar, na análise interna das pinturas, hipóteses, pistas de reflexão, significados, sem possibilidade de chapar nas imagens o que os textos lhes poderiam ter ensinado. Os historiadores fariam bem em os imitar, pelo menos num primeiro estádio de análise. Devem em todo o caso desistir de procurar um qualquer significado «realista» das cores nas imagens e nas obras de arte. O documento figurativo, seja antigo, medieval ou moderno, não «fotografa» nunca a realidade. Não é feito para isso, nem no domínio das formas, nem no das cores. Acreditar, por exemplo, que uma porta preta numa miniatura do século xiii ou num quadro do século xvii representa uma verdadeira porta que foi de facto preta é ingénuo e anacrónico. É também um erro de método. Em 14
qualquer imagem, uma porta preta é, antes de mais, preta porque se opõe a outra porta ou a uma janela, até mesmo a outro objecto, que é branco, vermelho ou de um preto diferente (podendo esta porta ou janela encontrar-se nessa mesma imagem, mas também noutra que evoque ou se oponha à primeira). Nenhuma imagem, nenhuma obra de arte reproduz o real com uma escrupulosa exactidão de cor. Isto tanto se aplica aos documentos antigos como à fotografia mais contemporânea. Pensemos no historiador das cores que, daqui a dois ou três séculos, vai procurar estudar o ambiente cromático dos nossos dias a partir dos testemunhos fotográficos das revistas de moda ou de cinema: observará provavelmente um excesso de cores vivas que não corresponde à realidade da cor tal como a vivemos hoje, pelo menos na Europa Ocidental. Além disso, os fenómenos de luminosidade, de brilho e de saturação acentuar-se-ão, ao passo que os jogos de cinzas e de esbatidos que organizam o nosso espaço mais quotidiano estarão atenuados, senão ocultos. O que é válido para as imagens também o é para os textos. Qualquer documento escrito dá da realidade um testemunho específico e infiel. Não é porque um cronista medieval nos diz que o manto deste ou daquele rei era preto que esse manto era mesmo preto. Também não significa o contrário. Os problemas não se põem assim. Qualquer descrição, qualquer notação de cor é cultural e ideológica, mesmo quando se trata do mais anódino dos 15
inventários ou do mais estereotipado dos documentos notariais. O próprio facto de se mencionar, ou não, a cor de um objecto constitui uma escolha muitíssimo significativa, reflexo de tramas económicas, políticas, sociais ou simbólicas que se inscrevem num contexto determinado. Tal como é significativa a escolha de certa palavra que, mais do que qualquer outra, serve para enunciar a natureza, a qualidade e a função dessa cor. Por vezes, pode ser considerável a distância entre a cor real e a cor nomeada, ou então constituir uma simples designação: por exemplo, no nosso dia-a-dia e desde tempos remotos, falamos em «vinho branco» para qualificar um líquido que não tem absolutamente nada de branco. A terceira categoria de dificuldades é de ordem epistemológica: não podemos projectar, sem mais nem menos, nos monumentos, nas obras de arte, nas imagens e nos objectos produzidos pelos séculos passados as nossas definições, os nossos conceitos e as nossas classificações actuais da cor. Eles não eram os das sociedades de outrora (e não serão com toda a certeza os das sociedades de amanhã…). O perigo do anacronismo está sempre à espreita do historiador em cada recanto do documento. Mas, quando se trata da cor, das suas definições e classificações, esse perigo parece ainda maior. Recordemos que, durante séculos e séculos, considerou-se o preto e o branco cores de pleno direito; que o espectro e a ordem espectral das cores eram desconhecidos antes do século xvii; que a 16
articulação entre cores primárias e complementares emergiu lentamente ao longo desse mesmo século e só se impôs de facto no século xix; que a oposição entre cores quentes e frias é puramente convencional e é vivida de forma diferente segundo as épocas e as sociedades. Na Idade Média e no Renascimento, por exemplo, o azul é considerado na Europa uma cor quente, por vezes mesmo a mais quente de todas as cores. É por isso que um historiador de pintura que procurasse estudar num quadro de Rafael ou de Ticiano a proporção entre as cores quentes e as cores frias, e que acreditasse ingenuamente que no século xvi o azul é, como hoje, uma cor fria, se enganaria por completo. As noções de cores quentes ou frias, de cores primárias ou complementares, as classificações do espectro ou do círculo cromático, as leis da percepção ou do contraste simultâneo não são verdades eternas, só etapas numa história dos saberes em permanente mudança. Não as manuseemos nem as apliquemos de forma leviana às sociedades do passado. Tomemos um exemplo simples, tirado do espectro. Para nós, desde as experiências de Newton e da classificação espectral das cores, é incontestável que o verde se situa algures entre o amarelo e o azul. Inúmeros hábitos sociais, cálculos científicos, provas «naturais» (o arco-íris, por exemplo) e práticas quotidianas de todos os géneros estão sempre presentes para nos lembrar ou para nos provar isso mesmo. Ora, para o homem da Antiguidade ou da 17
Idade Média, não faz muito sentido. Em nenhum sistema antigo ou medieval da cor o verde se situa entre o amarelo e o azul. Estas duas cores não têm lugar nas mesmas gamas nem nos mesmos eixos; não podem por isso ter um nível intermédio, um «meio-termo» que seria o verde. O verde mantém relações estreitas com o azul, mas não tem nenhuma ligação com o amarelo. Aliás, seja em pintura ou em tinturaria, nenhuma receita anterior ao século xv nos explica que seja preciso misturar amarelo e azul para se obter verde. Os pintores e os tintureiros sabem fabricar o verde, mas, para o conseguirem, não misturam aquelas duas cores. Também não misturam o azul e o vermelho para chegar ao violeta, antes azul e preto. O violeta antigo e medieval é um semipreto, um subpreto, e assim ficou durante muito tempo na liturgia católica e nas práticas relativas ao traje de luto. O historiador deve por isso desconfiar de qualquer raciocínio anacrónico. Não deve projectar no passado os seus conhecimentos da física e da química das cores, nem deve tomar como verdade absoluta, imutável, a organização espectral das cores e todas as teorias que dela resultam. Para ele, como para o etnólogo, não se deve encarar o espectro senão como mais um sistema, entre outros, para classificar as cores. Um sistema que é hoje conhecido e reconhecido por todos, «provado» pela experiência, desmontado e demonstrado pela ciência; mas um sistema que, daqui a dois, cinco ou dez séculos, pode fazer sorrir 18
ou talvez esteja por fim ultrapassado. A noção de prova científica é, também ela, estritamente cultural: tem a sua história, as suas razões, as suas implicações ideológicas e sociais. Aristóteles, que está longe de classificar as cores na ordem do espectro, demonstra no entanto «cientificamente», quanto ao conhecimento do seu tempo e apresentando provas, a justeza física e óptica, para não dizer ontológica, da sua classificação. Estamos então no século iv antes da nossa era, e o preto e o branco fazem parte dessa classificação. Constituem mesmo os seus pólos. Deixando de lado a noção de prova, que pensar dos homens e das mulheres da Antiguidade ou da Idade Média, cujo aparelho de visão não era em nada diferente do nosso, que não distinguiam exactamente os contrastes das cores como o fazemos hoje? Duas cores justapostas que para nós criam um forte contraste podiam, para eles, formar um contraste relativamente subtil, e vice-versa. Recuperemos o exemplo do verde. Na Idade Média, justapor vermelho e verde (a combinação de cores mais frequente no vestuário entre a época de Carlos Magno e a de São Luís) provocava um contraste suave, era quase um jogo de matizes monocromáticos. Ora, para nós, trata-se de um contraste violento, que opõe uma cor primária à sua complementar. Associar amarelo e verde, pelo contrário, duas cores vizinhas no espectro, forma para nós um contraste pouco acentuado. Contudo, na Idade Média é o contraste mais radical que se pode conceber: usam-no para 19
vestir os loucos e para sublinhar qualquer comportamento perigoso, transgressor ou diabólico. Estas dificuldades documentais, metodológicas e epistemológicas evidenciam o relativismo cultural de todas as questões que dizem respeito à cor. Não podem ser estudadas fora do tempo ou do espaço, nem fora de um contexto cultural determinado. Por isso mesmo, qualquer história das cores tem, antes de mais, de ser uma história social. Para o historiador, como para o sociólogo e o antropólogo, a cor define-se em primeiro lugar como um facto social. É a sociedade que «faz» a cor, que lhe dá as suas definições e os seus significados, que constrói os seus códigos e valores, que organiza as suas práticas e determina as suas implicações. Não é o artista nem o académico, menos ainda o aparelho biológico ou o espectáculo da natureza. Os problemas da cor são sempre problemas sociais, porque o homem não vive sozinho, mas sim em sociedade. Não o admitindo, cairíamos num neurobiologismo redutor ou num cientismo perigoso, e qualquer esforço para tentar construir uma história das cores seria vão. Para a empreender, o trabalho do historiador é duplo. Por um lado, precisa de tentar delimitar o que pode ter sido o universo das cores para as diferentes sociedades que nos precederam, considerando todas as componentes desse universo: o léxico e os fenómenos de nomeação, a química dos pigmentos e dos corantes, as técnicas de pintura e de tintura, os sistemas de vestuário e os códigos que lhes 20
subjazem, o lugar da cor na vida quotidiana e na cultura material, os regulamentos que emanam das autoridades, as moralizações dos homens da Igreja, as especulações dos homens de ciência, as criações dos homens da arte. Os terrenos de investigação e de reflexão não faltam e levantam questões multiformes. Por outro lado, na diacronia, limitando-nos a determinada área cultural, o historiador tem de estudar as mutações, os desaparecimentos, as inovações que afectam todos os aspectos da cor historicamente observáveis. Neste duplo processo, têm de consultar-se todos os documentos: pela sua própria natureza, a cor é um terreno «transdocumental» e transdisciplinar. Mas, na prática, certas áreas revelam-se mais produtivas do que outras. É o que se passa com o léxico: neste campo, como noutros, a história das palavras contribui com muitas e pertinentes informações para o nosso conhecimento do passado. No domínio da cor, sublinha como, em qualquer sociedade, a sua principal função é classificar, assinalar, proclamar, associar ou opor. É o que se passa também, e sobretudo, na tinturaria, no têxtil e no vestuário. Mais do que na pintura ou na criação artística, é provavelmente aí que os problemas químicos, técnicos ou materiais se misturam de forma mais íntima com as questões sociais, ideológicas ou simbólicas. A história da cor preta na Europa, à qual se consagra este livro, parece, sob esta perspectiva, exemplar. 21