Aleixo fora de água [PT]

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SEMANÁRIO#2465 - 24/1/20

Culturas

Cinema

Aleixo fora de água 

O filme desta personagem peculiar procura manter-se fiel, na estética e no discurso, à tradição da série de TV

Ao fim de 12 anos de atividade na televisão e na rádio, o já mítico Bruno Aleixo chega por fim ao grande ecrã, com um filme que, infelizmente, deixa bastante a desejar TEXTO VASCO BAPTISTA MARQUES

m 2008, quem circulasse pelos confins do YouTube corria o risco de dar de caras com um objeto insólito. A saber: uma série de vídeos de animação com cerca de 30 segundos (“Os Conselhos Que Vos Deixo”) onde, recortado contra uma paisagem coimbrã imobilizada em

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fundo, um ewok partilhava connosco algumas das suas pérolas de sabedoria, advertindo  nos, por exemplo, para os inconvenientes de comer cornetos no Café do Aires e de deixar SEMANÁRIO#2465 - 24/1/20 bolas de naftalina ao alcance das crianças. O nome dessa esdrúxula criatura era Bruno

Aleixo e, por trás da sua felpuda fisionomia, habitava um conimbricense de meia idade dotado de um feitio quezilento que, ao longo da década seguinte – e muito por culpa do seu humor castiço e non-sense – viria a tornar-se um dos maiores fenómenos da cultura pop nacional. De facto, poucos meses após o seu surgimento na net, já ele tomara de assalto a SIC Radical, com “O Programa do Aleixo”: uma espécie de talk-show em regime de desconversa permanente, onde, na companhia de um busto falante de Napoleão, Aleixo (que se transformara entretanto num cão para não ser processado pela Lucasfilm) ia discorrendo livremente sobre tudo e coisa nenhuma.

★★

O FILME DO BRUNO ALEIXO De João Moreira e Pedro Santo Com Adriano Luz, Rogério Samora, Fernando Alvim (Portugal) Comédia M/14

A invulgaridade da personagem e do seu programa no panorama do humor televisivo made in 

Portugal (assente ora na recuperação do teatro de revista ora numa lógica de sketches ora no comentário e na sátira política) asseguraram depressa o sucesso de um projeto que, desde o início, foi conduzido por dois jovens guionistas inspirados. Falamos de João Moreira e Pedro Santo que, nos últimos 12 anos, foram também emprestando as suas vozes à extensa galeria de cromos que, gradualmente, vieram integrar o ‘universo Aleixo’: o Homem do Buçaco (um fulano de aparência pré-histórica, cuja cerrada dicção convida ao uso de legendas), Renato Alexandre (uma personificação do Monstro da Lagoa Negra que deu nome ao filme assinado em 1954 por Jack Arnold)… A propósito da estreia entre nós da primeira aventura de Aleixo e Co. no cinema (já lá iremos), estivemos à conversa com os dois argumentistas, para os quais o sucesso do fenómeno se explica pela sua capacidade de gerar um simultâneo efeito de identificação e estranheza. “É fácil identificar pessoas com o mesmo tipo de personalidade do Aleixo e das outras personagens: elas são todas arquétipos de pessoas comuns. O que é bizarro, além das suas fisionomias, é o ponto de vista que temos sobre elas, chamando-as para a linha da frente para ver como elas levam as suas disputas de café e a sua dinâmica de desconversa para dentro de um talk-show ou de um filme”, disse Moreira na entrevista que nos deu. É justamente para dentro de uma longa-metragem (“O Filme do Bruno Aleixo”, realizado pelos dois guionistas) que o célebre ewok transfigurado e a sua pandilha são agora transportados. Como esclareceu Pedro Santo em conversa connosco, a ideia de criar um filme sobre o /


‘universo Aleixo’ não é nova. “Esse projeto foi-nos proposto em 2013 pelo produtor [Luís 

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Urbano, de O Som e a Fúria]. O processo foi-se arrastando ao longo dos anos, porque foi SEMANÁRIO#2465 - 24/1/20 preciso garantir o apoio financeiro do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], desenvolver

um guião que nos satisfizesse... Os timings do cinema são lentos, e nós não estávamos habituados a isso: na rádio, por exemplo, costumamos gravar à terça o episódio que passará na quarta. Mas esse tempo mais dilatado permitiu-nos amadurecer as ideias e ter mais cuidado com os diálogos e as histórias — coisas às quais, em formatos mais imediatos, não podemos dar tanta atenção.” Estamos pois perante um trabalho encomendado, que procura capitalizar o sucesso da ‘saga Aleixo’, transportando-a para um novo suporte (o cinema). Nele, o que encontramos? Antes de mais, o seu desejo de se manter fiel — tanto numa ótica estética como discursiva — à tradição da série, voltando a investir num trabalho de animação digital a 2D que prima pelo seu caráter rudimentar: os únicos movimentos que ela admite são, uma vez mais, aqueles que são realizados pelas cabeças falantes das figuras. Quanto às características das personagens e ao registo absurdo do humor, esses, mantêm-se aqui igualmente inalterados, apoiando-se numa linha narrativa que — como seria de esperar — assenta numa premissa caricata. Sinopse: no dia em que havia ficado de apresentar por fim ao seu produtor um guião para um filme autobiográfico, Aleixo percebe que não deu ainda um único passo nesse sentido e, à míngua de ideias, decide reunir a sua trupe à volta da mesa de um café, para a submeter a uma sessão de brainstorming. O que daqui nasce é uma obra à procura de si própria, que, para contornar os limites do seu dispositivo e evitar que a sua ação se reduzisse a uma sucessão de disputas verbais mais ou menos divertidas entre meia dúzia de talking heads (“sabíamos que queríamos fazer um filme, e não um episódio especial de uma hora e meia”), lançará mão de um estratagema narrativo. Ele consiste em proceder à encenação das várias ideias de argumento apresentadas pelo gang: um conjunto de fantasias cinematográficas improvisadas em cima do joelho e interpretadas por ‘atores reais’ (Adriano Luz, Rogério Samora ou Fernando Alvim, cujas vozes são frequentemente dobradas), que vão homenageando e parodiando diferentes géneros, da sit-com ao thriller policial.

“Os timings do cinema são lentos, e nós não estávamos habituados a isso. Mas esse tempo mais dilatado permitiu-nos amadurecer as ideias e ter mais cuidado com os diálogos e as histórias” PEDRO SANTO

Há que dizê-lo: muito embora este exercício de non-sense abuse da paciência do espectador (os 90 minutos de duração são manifestamente excessivos, tendo em conta aquilo que o filme tem para oferecer), o seu problema fundamental está longe de residir aí. Ele reside, isso sim, na desinspiração das metanarrativas que, por intermédio das personagens, os guionistas vão alinhavando. Tudo se passa como se, descobrindo-se convidados a enveredar pelo caminho /


que sempre recusaram seguir (o da progressão narrativa, mesmo que gaguejante), Moreira  e Santo só conseguissem fazer prova do seu talento humorístico nos momentos em que resistem SEMANÁRIO#2465 - 24/1/20

à tentação de contar uma história, por mais deliberadamente tosca que ela possa ser. Isto é: nos momentos em que sabotam o desenvolvimento da narrativa, quer fixando-se em pormenores ou apontamentos absurdos (uma esfregona assassina, spots publicitários que interrompem de súbito a ação…), quer tomando as maiores liberdades com a composição daqueles filmes dentro do filme, cuja cronologia linear é por vezes dinamitada para permitir o enxerto de uma adenda ou emenda. Seja como for, é-nos impossível deixar de sentir que lidamos com um projeto que vive em constante contradição consigo mesmo (à procura de adotar uma linguagem, a do cinema, que na verdade em nada lhe convém), e que, nesse gesto, acaba por banalizar um universo que estava muito bem no seu habitat natural: a televisão. Gostávamos de ter gostado mais.

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