Ivo Ferreira - Rede Angola www.redeangola.info /especiais/e-evidente-que-isto-e-um-filme-anti-guerra/ •11.02.2016 • 00h00
Ivo Ferreira O realizador fala ao RA do filme “Cartas da Guerra”, baseado nas cartas que Lobo Antunes escreveu na guerra em Angola. O filme está na selecção oficial do Festival de Berlim. Por Amarílis Borges. Em Janeiro de 1971 António Lobo Antunes não poderia imaginar que as cartas íntimas que escrevia à sua mulher, Maria José da Fonseca e Costa, chegariam aos ecrãs de cinema. Era apenas um soldado de 28 anos que se viu forçado a lutar em Angola numa guerra em que não acreditava. Mas além da história de amor, das saudades ali descritas, o realizador Ivo Ferreira viu um relato histórico e sincero de alguém que define o conflito como “uma guerra injusta, estúpida, cruel”. Cartas da Guerra foi escrito por Ivo Ferreira e Edgar Medina com base no livro D’este viver aqui neste papel descripto, em que as filhas do escritor português, Maria José e Joana Lobo Antunes, reúnem as cartas que o pai escreveu em Luanda, Huambo, Moxico e Malanje. Ao Rede Angola, o realizador fala deste conflito “que os próprios portugueses não compreendem” e de “miúdos que eram preparados à pressa” para lutar por um império. O filme foi seleccionado para a competição oficial da 66.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim que hoje começa e está na luta pelo Urso de Ouro (veja a antevisão do festival aqui). A sua estreia mundial está marcada para domingo. Cartas da Guerra conta no elenco com os actores angolanos Orlando Sérgio, David Caracol e Raul do Rosário, num elenco que inclui também Miguel Nunes, Ricardo Pereira e Margarida VilaNova. Ainda não há data para a estreia em Angola.
O livro reúne cartas de amor de António Lobo Antunes a Maria José. O filme é também uma história de amor ou um relato histórico? O livro é uma história de amor belíssima, acho-a muito forte mas tem também um lado da história da guerra colonial, entre 1971 e 1973, e um lado biográfico, porque acompanha um jovem médico, alferes, que está a se tornar escritor. É um pouco de tudo isso. No filme, o que é evidente é que estamos a falar do agonizar de uma guerra, do fim de um regime fascista, do fim do império colonial, isso é marcante para a personagem. É o agonizar de uma guerra estúpida, absurda, que os próprios portugueses não compreendem.
Passaram-se 40 anos desde o fim da luta de libertação para os angolanos, guerra colonial para os portugueses… Parece que foram precisos 40 anos para se falar nisso e, mesmo assim, quando comecei a tratar do assunto tive muitas dificuldades. Tanto por causa da própria guerra, a forma como acabou, e como foi tratado o pósguerra. Ninguém queria falar do assunto, diria que está muito pouco tratado.
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Por que acha que existe essa
“Quando era miúdo achava que as pessoas que tinham ido para a guerra eram más, sem perceber que foram arrancadas das suas vidas” | Foto DR
dificuldade de falar? Por um lado, o próprio episódio da guerra foi muito triste na história portuguesa, as pessoas foram empurradas para um conflito numa altura em que ninguém que tivesse um mínimo de informação defendia a guerra. Toda a gente sabia que era absurda, por isso calculo que tenha sido muito duro para as pessoas que foram, para as famílias que deixaram, para as mães dos filhos que perderam. Por outro lado, foram obrigados a viver coisas muito fortes. São assuntos tabu, percebo perfeitamente que não queiram falar. O meu pai, por exemplo, fugiu para França por questões políticas, para fugir da guerra. Quando era miúdo achava que as pessoas que tinham ido para a guerra eram más, sem perceber que foram arrancadas das suas vidas para serem largadas num sítio que não conheciam. Não estamos a falar de uma guerra de militares, estamos a falar de miúdos que eram preparados à pressa.
Neste momento ainda temos testemunhas vivas, pessoas que poderiam ajudar a contar essa história. Fala-se tanto na cooperação Angola e Portugal, não acha que poderia haver aqui também uma iniciativa dos dois países para se falar desse período? Sim, há histórias deliciosas. Ao mesmo tempo em que o alferes António Lobo Antunes estava ao pé da Zâmbia e, mais tarde, veio a ser um dos grandes escritores da língua portuguesa, do outro lado da fronteira estava Pepetela, que veio também a ser outro dos grandes escritores da mesma língua. Era importante não só haver cooperação mas também que se fizesse filmes angolanos sobre o assunto. Os filmes que abordam isso são muito poucos. O Joaquim Furtado fez uma série fabulosa, é um grande documento. Na literatura, alguns já passaram por aí mas continua a ser um tema muito pouco falado. E, curiosamente, o que me parece que aconteceu em Angola (não sendo eu angolano e tendo todo cuidado ao falar de um assunto que não me compete), é que, depois desta guerra horrível, o facto de se ter transitado para uma guerra civil, entre irmãos, tem um peso muito forte. Parece-me
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que Angola, ao precisar resolver a sua própria guerra, a outra ficou um bocado para trás, tem mais tempo e acaba por ter menos importância para o que se passa hoje. Apesar de tudo, todo o processo foi muito heróico. É uma história fabulosa de homens e mulheres que foram lutar na fronteira.
O próprio Lobo Antunes menciona a evolução da luta dos angolanos ao dizer que os portugueses estão a lutar sem meios “contra um inimigo cada vez mais numeroso e bem preparado”. Isso faz parte do discurso do MPLA na altura. O que acontece é que por Portugal ter acabado por utilizar processos menos convencionais (é claro que não foi uma guerra convencional, era de guerrilha, o equivalente à da Argélia ou do Vietname), ter cometido crimes, acabou por beneficiar Angola, na medida em que houve o apoio internacional. É a sensação que eu tenho. Houve um apoio muito grande ao MPLA precisamente porque estavam a ser cometidas algumas calamidades pelas nossas tropas.
Foto enviada numa das cartas. Da esquerda para a direita: padre Honório, António Lobo Antunes, menina Paula, comandante Joaquim Hernandez Saldanha Palhoto, capitão Basto, Dr. Graça, alferes Santa Bárbara | DR
Para preparar o filme falou com pessoas dos dois lados do conflito? O filme não vê o outro lado. O que se vê do outro lado é a PIDE a torturar um preso político do MPLA. O que se vê é o agonizar desses miúdos que foram empurrados para aquele sítio. Não tem um discurso político de um lado e do outro. Como digo, não só temos hoje plena noção de que era uma guerra injusta, como em 1971 isso era claro para toda a gente.
A sua ideia foi sempre filmar em Angola? Sim, foi uma das minhas teimosias. Há oito anos disse ao José Mena Abrantes que queria ir filmar lá. Na altura também disse aos meus produtores que só queria o filme se filmasse lá. Falei com a Maria José e com a Joana Lobo Antunes, que tinham os direitos do livro. Acho que o filme veio beber dessa energia. Fizemos os interiores cá, fica mais barato, é mais fácil, até porque eram muitos actores para transportar e para alimentar. Não me passaria pela cabeça fazer esse filme sem filmar lá.
Em que locais é que esteve? 3/6
No Cuando Cubango e um pouco em Malanje. O governo provincial do Cuando Cubango teve uma grande abertura para receber esta equipa. Nós precisávamos de ajuda dos militares – por causa das armas, veículos, pela dificuldade que teríamos. Foi formidável e inesgotável o esforço que foi feito tanto da parte das Forças Armadas Angolanas como do Governo Provincial do Cuando Cubango e de muitas associações. Fomos muito bem recebidos lá e foi muito importante porque montámos um quartel no meio de uma população, num sítio onde tivemos de refazer uma ponte para poder passar e fazer o nosso aquartelamento. Na altura, o governador falou na hipótese de a construção que nós fizemos passar a ser uma espécie de posto médico três vezes por semana. Foi um convívio muito especial. Praticamente invadimos uma população, chama-se Tchiweyengue. A princípio fomos recebidos com desconfiança, naturalmente. De repente, apareceram para ali uns brancos malucos, de um lado para outro com as câmaras, a capinar e a construir, com armas, vestidos como tropas portuguesas. No fim ficou uma saudade de tudo aquilo que vivemos. Foi uma experiência muito positiva pelo facto de termos reunido as aldeias para construir a ponte. Foi uma verdadeira aventura. Estávamos nós em Menongue, noutro “No fim ficou uma saudade de tudo aquilo que vivemos” | Foto DR momento, como havia uma estrutura muito inferior para um filme deste género, os actores iam vestidos de tropa portuguesa para o supermercado, um angolano que esteve na guerra de repente vê um militar português. Mas rapidamente as pessoas perceberam que aqueles malucos que andavam por ali eram boa gente numa missão de paz. E, sobretudo, é evidente que isto é um filme anti-guerra.
Ao todo, quanto tempo levou para Cartas da Guerra ficar pronto? Seis ou sete anos. Na verdade, é um filme que foi escrito muito rapidamente, em cerca de seis meses, foi um verdadeiro recorde. Íamos morrendo, eu e o Edgar [Medina], quando acabámos. Mas foi muito bem recebido. Quando falei da ideia ao Luís Urbano e ao Sandro [Aguilar], do Som e a Fúria, gostaram imenso e disseram para avançar para a escrita. Depois acabou por receber apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual em Portugal, de forma mais ou menos célere, entretanto veio esta trapalhada – o primeiro-ministro mudou, acabou o governo, acabou o ministério –, o que penalizou o apoio durante alguns anos. Foi absolutamente dramático porque é tão difícil fazer um filme e quando finalmente estava tudo a andar foi penalizado.
Não tem nenhuma ligação directa com África, o que o atraiu neste projecto?
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Não tenho nenhum familiar directo que tenha estado numa das colónias, nem que tivesse estado na guerra, mas conheci Angola em 2000. Fomos com o Elinga para remontar a peça Quem me dera ser onda. Já tínhamos feito cá e lá fomos fazer uma versão. Foi uma experiência extraordinária, na altura também dei aulas, pequenos cursos de formação. Tivemos a sorte de acompanhar um momento muito bom, em que as coisas estavam a mudar. Durante alguns meses fizemos também parte dessas mudanças. Na altura ainda havia guerra e o Miradouro da Lua era o posto mais avançado que se poderia ir de forma confortável e segura. Curiosamente, não tendo nada a ver com África, a minha mãe trabalha em Angola. Trabalhou lá 20 anos e agora voltou. Sabia que haveria de voltar, que haveria de filmar.
Além de ser um livro biográfico, o escritor está vivo e é um dos mais reconhecidos em Portugal. Sentiu esse peso? Com certeza. Senti, sobretudo, porque trata da intimidade das pessoas e retrata uma pessoa que está viva. Tenho um grande orgulho de terem me autorizado a tratar do assunto e evidentemente (não sei como dizer isso!) tive de me afastar um pouco de tudo, das próprias irmãs e do Lobo Antunes. Queria torná-lo num filme meu e foi necessário um afastamento, de alguma forma saudável para todas as partes. Criei alguns dispositivos no filme que me permitiram ter um pouco de afastamento.
“A questão é sobretudo o pesadelo a que esses jovens foram forçados a passar” | Foto DR
Essa responsabilidade impediu-o de fazer alguma coisa no filme? O argumento inicial passou por uma leitura para perceber a abordagem. Mas está a perguntar se eu deixei de fazer alguma coisa? Não, porque nunca quereria fazer nada que à partida não quisessem que fosse feito. Esse tipo de responsabilidade também é uma liberdade. Evidentemente que há sempre coisas que quando as coloquei no filme pensei “será que?”. Estava a escrever com o Edgar Medina e o facto de não se querer viver uma situação horrorosa, como saber que vai ser executado um homem, esse tipo de questões colocaram-se inicialmente mas não fiz auto-censura e mostrei. A questão é, sobretudo, o pesadelo a que esses jovens foram forçados a passar. Não se trata de esses homens serem cúmplices de um crime, é serem vítimas de um regime estupidificante. Esses soldados também são vítimas da guerra.
O António Lobo Antunes reagiu ao guião? 5/6
Com certeza autorizou. Naturalmente as filhas não me dariam os direitos sem comunicar com ele. A história não só atravessa um período da vida dele, que é muito importante, como trata de um grande amor. Ele terá a relação que ele quiser com o filme e eu ficarei sempre muito grato e orgulhoso de qualquer que seja o contacto que ele tenha.
Nas cartas ele diz algumas vezes que está a pagar um preço muito caro pela possibilidade de voltar a viver em Portugal. Mostra esse regresso? As pessoas em que esses soldados se tornaram? Espero eu que o filme acompanhe uma mudança psicológica. Para mim é mais ou menos evidente que o filme começa onde o inimigo é o Estado, fascismo, regime, depois o inimigo está dentro deles. Já passaram por tanto, que os transformou profundamente e os fez ter receio de voltar às suas vidas. Acho interessante, e permitame a expressão, é que os suicídios aconteciam na volta. As pessoas já não sabiam como voltar para casa e ter uma vida normal. É um aspecto muito interessante, como as pessoas sofriam ao ponto de “As pessoas já não sabiam como voltar para casa e ter uma vida normal” | Foto DR não saber como voltar para as suas mulheres, os seus filhos. Temos ainda muito do stress pós-traumático.
A sua mulher vai fazer o papel da Maria José. É uma tentativa de colocar o seu lado mais pessoal no filme, tal como ele faz nas cartas? Uma tentativa não, é algo completamente concretizado. A própria abordagem a este filme começa quando vim de um festival, cheguei em casa e estava a Margarida [Vila-Nova] grávida do Martim a ler as cartas para a barriga. E foi daí que veio a primeira ideia de querer adaptar isto para o cinema. É completamente legítimo que ela continue a ler as cartas no filme.
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