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Futuro do cinema português assegurado em Berlim 21 Fevereiro 2016 às 20:13
Não foi nas longas, foi nas curtas. Quando se esperava a presença de "Cartas da Guerra" no palmarés, o que teria sido justo, é "Balada de um Batráquio" que traz para o nosso país um dos maiores prémios cinematográficos de sempre. Antes de mais, algumas precisões, face a recentes comentários públicos, para que não restem dúvidas. Desde sempre que o cinema apresenta um certo lado esquizofrénico, com uma vertente industrial e comercial em paralelo com uma outra vertente, mais artística. E, em nenhum caso, nenhuma delas pode sobreviver verdadeiramente sem a outra. É tão legítimo ir ao cinema tão simplesmente para nos divertirmos - desde que não ataquem a nossa inteligência - como para retirar algo mais dessa experiência na sala escura. Por outro lado, quando olhamos para o passado, seja o nosso seja o de qualquer outra comunidade, é a cultura que nos diz como vivia quem nos antecedeu neste mundo. Sem a arquitetura, sem a pintura, sem a música, nos últimos pouco mais de cem anos sem o cinema, tal perceção histórica não seria a mesma. É pois a cultura em geral que nos relaciona com o passado. A internet é muito jovem para que tal possa acontecer. Finalmente, e ao contrário do que muitos pensam, o financiamento do cinema português não é feito com dinheiro dos contribuintes, mas sim com uma percentagem das receitas de publicidade dos vários canais de televisão, geridas pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual. Sendo que a verba anual para o cinema português é tão ridícula que um colega de outro país nos disse em Berlim que essa quantia não daria para pagar a alimentação de uma produção de Hollywood, o que os nossos produtores e realizadores fazem é absolutamente milagroso. Na realidade, é de uma total irresponsabilidade comparar o cinema português com o americano ou o francês, dotados que são de duas das mais poderosas indústrias cinematográficas do mundo - sem falar de públicos que amam verdadeiramente o cinema na sua mais ampla variedade. Caso fosse legítimo entrar em regime de comparações, o cinema português poderia sê-lo em relação a países com a mesma dimensão, nomeadamente económica. E então seria grande a surpresa. Tem mesmo de ser dito: em função da nossa dimensão e das nossas capacidades, a cinematografia portuguesa é das mais respeitadas em todo o mundo. Infelizmente, mas essa é uma questão muito portuguesa, tal nem sempre acontece entre nós. Vem isto a propósito de algo que não é de mais sublinhar, uma presença extraordinária de oito filmes nas secções oficiais do Festival de Berlim, culminando com o que é, sem sombra de dúvida, e não há que ter medo das palavras, um dos prémios mais importantes da cultura portuguesa, um Urso de Ouro na Berlinale. Tal feito ser cometido pelo que é o mais jovem realizador da histórias de 66 edições da Berlinale a ganhar um Urso de Ouro - Leonor Teles tem apenas 23 anos - é um sinal de que o futuro do cinema português está assegurado. Quase toda a delegação portuguesa estava convicta que seria Ivo M. Ferreira a estar presente no palmarés do festival, com "Cartas de Guerra". Mesmo se as expectativas em relação a um eventual Urso de Ouro eram reduzidas, esperava-se que o Prémio para Melhor Contribuição Artística ou o Prémio Alfred Bauer, para um filme que abre novas perspetivas ao cinema, pudesse vir para Portugal. Ivo M. Ferreira acabou por ser batido nestes dois prémios pela duração inusitada de "A Lullably for a Sorowful Mystery", do filipino Lav Diaz e pela fotografia um pouco esteticizante do chinês "Crosscurrent", de Yang Chao. Percebe-se que se um festival abre uma excepção para mostrar um filme de oito horas, o júri se sinta obrigado a dar-lhe um prémio.
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Com algumas semelhanças com o filme português, pela abordagem de um período histórico e pela opção pelo preto e branco, "Cartas de Guerra" ganha-lhe seguramente na universalidade da declaração de amor nele contida e pela coerência plástica e narrativa. Não foi então nas longas, foi nas curtas. Inesperadamente, por se tratar de uma secção menos mediática e por um caráter ainda mais aleatório na comparação entre filmas, dada a diversidade de abordagens no formato da curta-metragem, existente precisamente com essa finalidade da experimentação. Bravo pois a Leonor Teles, uma jovem de Vila Fanca de Xira, recentemente formada pela Escola de Cinema, escreveu, fotografou, montou e realizou "Balada de um Batráquio", um filme de 11 minutos em forma de manifesto contra a xenofobia manifestada por uma boa parte da sociedade portuguesa contra a comunidade cigana, de que a realizadora é originário, pelo lado paterno. Há pois também uma vertente política neste prémio, além da aposta na frescura do relato cinematográfico de Leonor Teles. O que não admira, num festival que sempre se mostrou empenhado nas causas mais relevantes do nosso tempo, e que este ano espalhou pelos diversos locais onde se desenrolou caixas onde se poderiam depositar donativos a favor dos refugiados, acolhidos em enorme número na Alemanha. Tal dimensão política é ainda evidente no Urso de Ouro do festival, "Fuocoammare", documentário de Gianfranco Rosi sobre a ilha de Lampedusa, onde chegam anualmente milhares de emigranes ilegais vindos do norte de África, deixando para trás, nas águas do Mediterrâneo, outros milhares de mortos, em grande parte mulheres e crianças. Obra de grande dimensão humana, pondo em relevo a própria comunidade local e com a coragem de não virar a cara nos momentos mais duros, a conquista do Urso de Ouro pode ser vista ainda como a celebração do documentário como cinema de direito próprio ou ainda a prova de que, no geral, as ficções escolhidas para a seleção oficial competitiva mostraram uma qualidade média muito abaixo do historial da Berlinale. Aliás, o empenhamento político da Berlinale, passado seguramente aos diversos elementos do júri presidido por Meryl Streep, voltam a ser confirmados com o Urso de Prata equivalente ao Grande Prémio do Júri, atribuído a "Death in Sarajevo", novo ajuste de contas de Denis Tanovic em relação à guerra dos balcãs, o mesmo se podendo dizer do Urso de Prata do Melhor Argumento, entregue a Tomasz Wasilewski, a história encadeada de quatro mulheres nos últimos tempos do regime comunista na Polónia. Esperados, e amplamente merecidos, os prémios para Melhor Actriz, para Tryne Dirholm, em "The Commune", do dinamarquês Thomas Vinterberg, e de Melhor Actor, para Majd Mastoura, de "Hedi", do tunisino Mohammed Bem Attia, em contraste com o inexplicável Prémio de Realização, para m dos filmes menos "realizados" da seleção oficial, "L"Avenir", de Mia Hansen-Love, que se limita de forma um pouco preguiçosa a acompanhar a personagem de Isabelle Huppert um pouco por todo o lado. Se Berlim foi um momento de festa para o cinema português, com oito filmes presentes, um Urso de Ouro e uma longa-metragem aplaudida e vendida já para vários mercados, entre outras receções assinaláveis, o próprio festival terá de entrar num processo de reflexão sobre as formas como seleciona os filmes exibidos, este ano muito aquém da qualidade a que jornalistas e sobretudo o extraordinário público de Berlim estão habituados a assistir.
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