OLMO E A GAIVOTA_20160500_Metropolis (pag.126) {entrevista} [pt]

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METROPOLIS Foi você que disse Angelina Jolie?... João Lopes

DIRECTOR Jorge Pinto EDITOR João Lopes REDACÇÃO Catarina Maia Nuno Antunes Tatiana Henriques Sérgio Alves COLABORADORES André Santos Inês Gens Mendes Luísa Fresta Luís Salvado Maria Helena Lacerda Nuno Galopim Nuno Vaz de Moura Rui Pedro Tendinha Rita Fonseca Rodrigo Fonseca Tiago Alves Vasco Baptista Marques DIRECÇÃO GRÁFICA Maria João Aleixo de Barcelos SITE Cristina Brites - 7App PROJECTOS ESPECIAIS Nuno Vaz de Moura [e-mail]

abril 2016 - número 36

25 MAIO NOS CINEMAS

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Um dos destaques deste número da METROPOLIS é o filme “By the Sea”, entre nós lançado com o título «Junto ao Mar». Poderíamos dizer que, tratando-se apenas de um lançamento em DVD, tal destaque reflecte o nosso gosto e empenho em dar visibilidade a filmes — ou “produtos”, como dizem os profissionais do “marketing” — que, à partida, não desfrutam da visibilidade das grandes campanhas. Em todo o caso, acentuar essa atitude seria atrair um velho equívoco. Não se trata, de facto, de sugerir que o trabalho jornalístico envolve qualquer coisa de “heróico” apenas porque se debruça sobre algo que o mercado não valorizou especialmente (neste caso, sancionando-o com o sempre inquietante rótulo “directo para DVD”). Trata-se, isso sim, de perguntar como é que o mercado avalia os “produtos” que comercializa. Perguntará o leitor: estará em jogo a valorização de um filme comercialmente desamparado, porventura proveniente de uma cinematografia pobre, sem trunfos para competir na agitação do mercado? Digamos que o próprio leitor poderá avaliar a situação. Isto porque “By the Sea” foi dirigido por uma senhora de nome Angelina Jolie, contando como actores principais com um tal Brad Pitt e a própria realizadora. Que dizer? Não é um problema português, entenda-se. Com uma fraca carreira nas salas dos EUA, o filme foi claramente marginalizado desde a origem, de tal modo que aquilo que aconteceu em Portugal não passa de um discreto sintoma do modo como “By the Sea” se “ausentou” de alguns dos mais importantes mercados do planeta. Na prática, isto significa que a indústria mais poderosa do mundo (que é também, convém não esquecer, uma das artisticamente mais ricas e fascinantes) pode não revelar especial empenho em defender um filme com... Angelina Jolie e Brad Pitt. Fica a mais insólita das perguntas: de que falamos quando falamos de uma estrela de cinema? Ou duas?


SUMÁRIO 6 planos do mês 10 FESTA DO CINEMA 20 X-MEN: APOCALIPSE

JOGOS 174 HITMAN

60 KLEBER MENDONÇA FILHO 62 FILMES DISTÓPICOS

TV

68 A LAGOSTA

178 THE GIRLFRIEND EXPERIENCE 172 LINE OF DUTY

72 JODIE FOSTER 76 SHANE BLACK 78 TOM HANKS 82 APICHAPTON WEERASETHAKUL 86 HOU HSIAO-HSIEN 90 ISABEL COIXET 94 LUCILE HADZIHALILOVIC

CINEMA EM CASA 156 STAR WARS 158 A NOITE DE VARENNES 159 MINHA MÃE 160 QUE HORAS ELA VOLTA? 162 THE HUNGER GAMES 163 AS SUFRAGISTAS 164 ELA É MESMO...O mÁXIMO 165 SICARIO - INFILTRADO 166 STEVE JOBS 168 THE WALK 170 A VIAGEM DE ARLO

100 WHIT STILLMAN 108 LUÍS FILIPE ROCHA 112 PAULO MIL HOMENS

ALICE

Foi Tim Burton, em 2010, que começou a “nova vaga” de Alice no País das Maravilhas; agora é James Bobin a assinar «Alice do Outro Lado do Espelho» — ou como os estúdios Disney vão refazendo os seus títulos clássicos.

CANNES

O maior festival de cinema do mundo abre com a nova realização de Woody Allen e inclui, entre outros, os irmãos Dardenne, Pedro Almodóvar, Christian Mungiu e Jim Jarmusch — sempre igual, sempre diferente.

THE GIRLFRIEND EXPERIENCE

Sete anos depois do filme homónimo de Steven Soderbergh, surge uma série sobre o dia a dia de uma “call girl” de Nova Iorque, protagonizada por Riley Keough — cinema e televisão mantêm relações cordiais e inovadoras.

120 LEONOR TELES 126 PETRA COSTA 134 OSWALDO CALDEIRA 138 FESTIN - ADRIANA NIEMEYER 140 RUSSOS, SOVIÉTICOS & etc 142 BY THE SEA

CRÍTICAS 145 CAPITÃO AMÉRICA: GUERRA CIVIL 146 VIVER À MARGEM 147 A LEI DO MERCADO 149 AXILAS 150 O MENINO E O MUNDO 151 CEMITÉRIO DO ESPLÊNDOR


PLANOS DO mês

POR TIAGO ALVES

14 abril A seleção de Cannes

Entre os 21 filmes candidatos à Palma de Ouro não há primeiras obras e nenhum filme nacional. Na 69ª edição regressam os veteranos JeanPierre e Luc Dardenne, já premiados por duas vezes com a Palma de Ouro, e Ken Loach – com 79 anos é o realizador mais velho na seleção. O cinema romeno volta a mostrar a sua força com dois filmes na competição oficial, realizados por Cristian Mungiu, vencedor da Palma de Ouro em 2007, e Cristi Puiu. Sean Penn, Olivier Assayas, Jim Jarmush, Jeff Nichols, Nicolas Winding Refn, Xavier Dolan e Pedro Almodóvar são alguns dos candidatos à Palma de Ouro. Na seleção está um filme falado em português do pernambucano Kleber Mendonça Filho, com Sónia Braga no principal papel.

1 abril Disney desenvolve filme com irmã de Branca de Neve

Rosa Vermelha será a protagonista de um novo filme em imagem real que está a ser preparado nos estúdios Disney. Como base serão usados dois contos dos irmãos Grimm, sem qualquer relação entre si. O resultado final será um filme protagonizado por Rosa Vermelha, irmã de Branca de Neve, que acorre em seu auxílio e procura uma forma de a fazer regressar à vida com a ajuda dos sete anões. A Disney perdeu o momento para fazer o primeiro filme de imagem real de «Branca de Neve», mas procura valorizar o seu clássico através de um “spin off”.

18 abril dois portugueses na semana da crítica de cannes Dez curtas-metragens integram o alinhamento da 55ª edição da Semana da Crítica, a competição paralela mais antiga do Festival de Cannes. Na seleção oficial desta edição surgem os filmes «Ascensão», de Pedro Peralta, e «Campo de Víboras», de Cristèle Alves Meira. Em «Ascensão», Pedro Peralta registou o resgate de um homem que caiu dentro de um poço. «Campo de Víboras» é um filme da realizadora francesa Cristèle Alves Meira, de ascendência portuguesa, que foi rodado durante as festas dos caretos, no concelho de Vimioso. A Semana da Crítica de Cannes foi criada em 1962 pelo sindicato de críticos de cinema e pretende dar a conhecer novos talentos, apresentando primeiras e segundas obras de realizadores de todo o mundo.

21 abril Prince (1958 - 2016)

«Purple Rain» é o tema que mais ecoa no momento da despedida de Prince. É o título da sua participação mais relevante em cinema, um filme de Albert Magnoli, onde Prince interpretou um papel vagamente autobiográfico. Ele é The Kid, um talentoso e problemático vocalista de uma banda de Minneapolis. «Purple Rain – Viva a Música» valeu-lhe o Óscar na categoria de melhor de canção original. Prince contribuiu com diversos temas em mais de uma centena de bandas-sonoras.

12 abril A Festa do Cinema continua 7 abril Prémios Sophia: «Amor Impossível» é o mais nomeado O mais recente filme de António Pedro-Vasconcelos, «Amor Impossível» recebeu 14 nomeações para a edição 2016 dos prémios Sophia da Academia Portuguesa de Cinema. O filme está nomeado nas 14 categorias possíveis. Na edição anterior, «Os Gatos Não têm Vertigens», de António-Pedro Vasconcelos, tinha sido o mais premiado conquistando nove galardões.

A segunda edição da Festa do Cinema, na qual os preços dos bilhetes de cinema custarão 2,5 euros nas salas aderentes, acontecerá de 16 a 18 de maio. A iniciativa aconteceu pela primeira vez em 2015 e contou com cerca de 200.000 espectadores em 500 salas de cinema. A Festa do Cinema é uma iniciativa da Associação Portuguesa de Empresas Cinematográficas, com o apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e dos distribuidores de conteúdos audiovisuais.

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27 abril A aposta ganhadora de Tom Hanks

28 abril O novo rosto de Lara Croft

A atriz Emily Blunt assumirá o papel que foi eternizado pelo desempenho de Julie Andrews. Blunt será a protagonista do remake do clássico «Mary Poppins» realizado por Robert Stevenson, em 1964. O novo filme será dirigido por Rob Marshall («Chicago»), e Emily Blunt interpretará Mary Poppins contracenando com o portoriquenho Lin-Manuel Miranda que tem sido muito aplaudido na Broadway. A sequela de «Mary Poppins» é um dos projetos em imagem real que a Disney anunciou recentemente que estrearão até 2019.

O ator norte-americano Tom Hanks é um fervoroso adepto de futebol. E torce pelos britânicos do Aston Villa. Durante as entrevistas promocionais do filme «Negócio das Arábias», o ator foi confrontado com a má situação do clube que foi despromovido. Tom Hanks sorriu, disse que não estava preocupado com o Aston Villa porque no início da época apostou que o Leicester seria campeão. “100 libras no Leicester”, referiu. Uma aposta vencedora que lhe rende 500 mil libras, cerca de 640 mil euros. Sentido de humor ou oportunidade?

Alicia Vikander foi escolhida para ser a nova Lara Croft no relançamento da personagem que está a ser preparado. A atriz sueca projetou-se internacionalmente com os papéis de uma androide em «Ex-Machina» e da esposa do pintor Einar Wegener em «A Rapariga Dinamarquesa», sendo que este desempenho lhe valeu o Óscar de melhor atriz secundaria. Vikander substitui Angelina Jolie no novo seriado de «Tomb Raider» que será realizado pelo norueguês Roar Uthaug.

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FILME AINDA NÃO CLASSIFICADO PELA IGAC

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26 abril Emily Blunt em «Mary Poppins»

ELENCO DE PRODUTORES EXECUTIVOS

GUARDA-ROUPA

MONTAGEM DE

SUPERVISOR MUSICAL PRODUZIDO POR

MÚSICA DE

PLANEAMENTO DE PRODUÇÃO

DIRETOR DE FOTOGRAFIA ESCRITO POR

2 DE JUNHO NOS CINEMAS

CO-PRODUTORES REALIZADO POR


festa do cinema entrevista nuno sousa

Após o êxito da primeira edição, A Festa do Cinema regressa com a aposta nos preços baixos dos ingressos nas salas de todo o país durante três dias. Falamos com um dos organizadores, Nuno Sousa (UCI Cinemas), que aponta para um aumento da adesão dos espetadores, numa edição de 2016 que promete grandes surpresas, incluindo a participação da Academia portuguesa de Cinema. SÉRGIO ALVES

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Após o êxito do ano passado com mais de 200.000 espetadores, quais as expetativas para a Festa do Cinema de 2016? Estimamos para este ano cerca de 250 mil espectadores. Em relação à primeira edição, existe(m) alguma(s) novidade (s) para a edição deste ano? O sucesso da edição no ano de 2015 fez aumentar o interesse de todos os exibidores e agentes do mercado, inclusive marcas comerciais, que este ano já colaboram com a Festa do Cinema. Juntou-se a IGAC, reconhecendo este como o evento de excelência para promover a defesa dos direitos de autor e campanhas anti-pirataria. Há também um acordo com a

Academia Portuguesa de Cinema, cujos detalhes anunciaremos no nosso evento de lançamento de dia 9 de Maio. Qual o ponto de situação do mercado de exibição cinematográfica? Fale-nos de forma breve sobre isso. Houve um aumento de 20% em 2015, a que a muito se deve o evento Festa do Cinema, que uniu, pela primeira vez, todos os players do sector, num objectivo e estratégia comuns. Mas obviamente vem também de uma melhor gestão na sequência de estreias blockbusters disponibilizadas pelos grandes estúdios e de uma enorme evolução no encontro de públicos

com a produção nacional, tal como se registou no extraordinário sucesso de «O Pátio das Cantigas». Acha possível nos próximos tempos haver uma redução dos preços dos bilhetes de cinema de forma generalizada? Não, a tabela de preços pode e deve ser cada vez mais dinâmica mas deverá ser sempre influenciado por todos os índices económicos. A Festa do Cinema é uma aposta para manter no futuro? Com certeza, assim que terminar a edição de 2016, começaremos de imediato a trabalhar a edição de 2017.

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alice no país do cinema Uma menina, ingénua e incauta, persegue um coelho, entra por um buraco e descobre um mundo alternativo, por vezes inquietante, sempre deslumbrante... Parece um filme, não é? Em boa verdade, é assunto de muitos filmes, de tal modo o livro “Alice no País das Maravilhas” e a sua continuação, «Alice do Outro Lado do Espelho», se impuseram como cauções da dimensão mais fantástica, ou mais fantasiosa, do próprio cinema. Com o lançamento de uma nova “Alice” cinematográfica — «Alice do Outro Lado do Espelho», com realização de James Bobin —, é forçoso reconhecer que os livros de Lewis Carroll estão na base de um género à parte. E tal como no domínio dos super-heróis, também aqui o nome de Tim Burton emerge como uma influência decisiva: foi ele que, em 1989, com o seu «Batman», abriu novas hipóteses expressivas à BD; voltou a ser ele, em 2010, com a sua «Alice no País das Maravilhas», protagonizada por Mia Wasikowska (de novo a liderar o elenco do novo filme), que reabriu as hipóteses espectaculares da fábula tradicional no cinema. Escusado será dizer que, neste processo, ao mesmo tempo artístico e comercial, a marca dos estúdios Disney emerge como um factor decisivo. Afinal de contas, grande parte da dinâmica industrial de Hollywood durante o século XXI envolve a fixação dos públicos infantil e juvenil, procurando não alienar as gerações mais velhas — questão paradoxal, sem dúvida, que Alice, de ambos os lados do seu espelho, consegue abarcar com natural eficácia. Cerca de 150 anos depois das primeiras edições dos livros inspiradores, podemos acreditar que o próprio Carroll não desdenharia os artifícios do cinema. JOÃO LOPES


o regresso da fรกbula literรกria

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AS VERSÕES DE ALICE

As novas versões de “Alice” não são um mero resultado das novas tecnologias, já que o livro de Lewis Carroll é uma antiga referência da história do cinema — a sua primeira adaptação data de 1903.

do estúdio, incluindo Gary Cooper, W. C. Fields, Cary Grant, Sterling Holloway e Edward Everett Horton (no papel do Chapeleiro Maluco). Em qualquer caso, aquela que viria a tornar-se a versão canónica de «Alice no País das Maravilhas» é um desenho animado e surgiu em 1951, com chancela dos estúdios Disney. Vale a pena

DESENHO DE JOHN TENNIEL 1ªED (1865) “ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS”

uma referência fundadora do “western”). A história regista mais uma “Alice” americana do período mudo, em 1915, com assinatura de W. W. Young. Do período sonoro, há duas versões ainda durante a década de 30: uma de 1931, realizada por Bud Pollard, e outra de 1933, de Norman Z. McLeod, especialista da comédia burlesca que dois anos antes dirigira os Irmãos Marx em «Monkey Business» («A Culpa Foi do Macaco»). Com Charlotte Henry no papel de Alice, o filme de McLeod tinha produção da Paramount e apresentava um elenco com vários nomes fortes

ALICE DO OUTRO LADO DO ESPELHO (2016)

A primeira edição de “Alice no País das Maravilhas” surgiu em 1865. Quando associamos agora o clássico de Lewis Carrol apenas à versão que Tim Burton dirigiu em 2010, somos, talvez, levados a uma daquelas deduções enredadas no nosso próprio presente: as novas tecnologias permitiram, finalmente, emprestar às aventuras de Alice uma dimensão cinematográfica...

Nada mais simplista. De facto, a primeira adaptação do livro foi feita em terras britânicas, data de 1903, tendo sido dirigida por Cecil Hepworth e Percy Stow. Poucos anos depois, em 1910, surgiu nova versão, assinada por Edwin S. Porter, um dos grandes pioneiros do cinema americano (responsável, por exemplo, por «The Great Train Robbery», título de 1903 que é

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (1951)

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recordar que esta é uma produção que, na lista das longas-metragens de animação da mesma origem, se situa entre «Cinderela» (1950) e «Peter Pan» (1953): os estúdios viviam numa conjuntura em que o modelo das suas obras fundadoras começava a ser questionado, procurando-se novas matrizes visuais e cromáticas, de alguma maneira tentando superar as marcas mais típicas das aguarelas dos primeiros tempos. Mesmo considerando que qualquer generalização é abusiva — logo em 1955, surgiria o notável «A Dama e o Vagabundo» —, dir-se-ia que é a partir dessa época, e até alguns anos após o desaparecimento de Walt Disney (faleceu em 1966), que se assiste à consolidação de um certo academismo nos desenhos dos estúdios. E não será um mero acaso que, pelo menos para já, seja nesse período que estão os títulos que, agora, a Disney se tem empenhado em refazer em novas versões, mais ou menos devedoras das novas tecnologias digitais — recordese o caso exemplar de «Maléfica» (2014), com Angelina Jolie, de alguma maneira “corrigindo” as fragilidades de «A Bela Adormecida» (1959). Uma coisa é certa: o aparecimento de «Alice do Outro Lado do Espelho», adaptando o segundo livro de Carroll sobre Alice (publicado em 1871), confirma o desenvolvimento de um sector de produção apostado em explorar o conceito de “blockbuster” para além dos temas directa ou indirectamente ligados ao universo dos super-heróis. Entre a banda desenhada e a fábula literária, eis o ziguezague que, hoje em dia, determina algumas das mais importantes convulsões da indústria de Hollywood. JOÃO LOPES

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (1933)

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X-Men: Apocalipse

«X-Men: Apocalipse» marca o fim de uma trilogia que levou os mutantes ao passado e que nos deu a conhecer a verdadeira origem dos X-Men. Desta vez, os heróis terão pela frente o maior vilão da bandadesenhada X-Men: o Apocalipse. Espera-se destruição maciça e a Humanidade está em risco. A METROPOLIS dá-lhe a conhecer todos os detalhes de um filme com muitos poderes especiais e emoções à flor da pele. TATIANA HENRIQUES


Em 1983, os mutantes são praticamente aceites pela sociedade. Entretanto, na penumbra, Apocalipse (Oscar Isaac), o primeiro e mais poderoso mutante, acorda após um sono de milhares de anos e não fica nada contente com aquilo que vê no mundo. Para ele, só há uma alternativa: eliminar a espécie humana e criar um novo regime mundial, que será chefiado pelo próprio, claro está. Para cumprir os seus propósitos, Apocalipse reúne Os Quatro Cavaleiros, uma equipa composta por Magneto (Michael Fassbender), Psylocke (Olivia Munn), Storm (Alexandra Shipp) e Angel (Ben Hardy). Quem não concorda com estes planos é o Professor X (James McAvoy) que, com a ajuda de Mystique (Jennifer Lawrence), formará um grupo de jovens mutantes que farão de tudo para impedir os avanços de Apocalipse. É o nascimento dos X-Men.

X-Men: Apocalipse Tudo começou em 2000, quando estreou o filme «X-Men». Os mutantes invadiram o grande ecrã e causaram impacto. De lá para cá, foram muitos os altos e baixos, do qual se destaca «X-Men: O Confronto Final» (2006), cujos estragos praticamente “obrigaram” a que fosse criada uma nova linha temporal, revelada em «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido» (2014). Este novo tomo, «X-Men: Apocalipse», tem um título “porreiro”, é certo, sendo também uma aposta arrojada da FOX. Os estúdios anunciaram a produção do filme em dezembro de 2013,

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meses antes do lançamento de «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido», que poderia ter sido um fracasso nas bilheteiras mundiais. Longe disso, auferiu 748 milhões de dólares e levou a saga para um novo patamar, muito mais expansivo. O 6º filme da série principal X-Men (tirando os filmes a solo de Wolverine) é encarado como a maior empreitada da saga. Tem um orçamento de 250 milhões de dólares e foi filmado em diferentes locais do mundo, como Nova Iorque, Berlim, Cairo e Polónia.


Tudo porque, nesta obra, o nível de destruição será planetário. Não, o Apocalipse não está para brincadeiras. “Nunca fizemos um filme em que a ameaça do vilão fosse global e se jogasse a um nível de extinção como acontece aqui, pela primeira vez. Se tens um filme sobre uma personagem chamada Apocalipse, tens de assumir que pode ser, efetivamente, o apocalipse”, refere o produtor e argumentista Simon Kinberg. O filme passa-se antes da primeira trilogia X-Men, mais precisamente em 1983, uma altura em que os mutantes têm uma convivência com os humanos como nunca antes foi retratado. Após Mystique ter salvo a vida do Presidente Nixon, os humanos deixam de encarar os mutantes com o medo de outrora. “Eles são parte da sociedade e da cultura. Aqui, são quase aceites”, explica Bryan Singer. Charles Xavier continua o seu trabalho na Escola para Jovens Mutantes, Mystique salva mutantes da escravatura e exploração, enquanto Magneto vive praticamente incógnito na sua terra-natal. “Os humanos agora celebram o Dia M, aniversário do atentado fracassado de Magneto à vida do presidente dos EUA. Sabe-se apenas que uma mutante azul misteriosa o salvou e isso gerou uma onda de aceitação aos mutantes no mundo”, conta Singer. Todavia, há sempre uma carga inerente: “Assemelha-se ao que se passou com os direitos civis dos negros e hoje com os direitos dos gays. Aceita-se, mas há sempre uma dose de cinismo em certos segmentos da sociedade, que não estão 100% preparados”. Outro aspeto curioso é que Singer volta a trabalhar com personagens que já havia retratado no passado, como Cyclops, Storm, Jean Grey

ou Nightcrawler, mas agora de uma forma muito diferente: “Eles estão em épocas das suas vidas onde eram totalmente opostos do que se iriam tornar. É emocionante para mim, voltar e pegar nessas personagens que trabalhei há tantos anos, lançálas de uma forma completamente diferente e mostrar como eles evoluíram“. Simon Kinberg realça que o filme “vai desafiar o conceito de família que iniciámos, indo ainda mais fundo nas personagens principais”. “Muitas trilogias chegam, curiosamente, à terceira parte e erram ao introduzir demasiadas personagens, perdendo o foco. Eu próprio errei nisso em «X-Men: O Confronto Final». Mas aqui seguiremos a lição de «O Regresso de Jedi» (1983): aprofundar a história dos heróis centrais e dos seus crescimentos”, ajuntou. Quando esta trilogia terminar, aproximar-se-á ao universo X-Men que vimos em «X-Men», como Kinberg clarifica: “Criámos uma linha temporal alternativa, mas queremos levá-la ao terreno conhecido da primeira trilogia, como mostrámos na cena final de «X-Men: Dias de um Futuro Esquecido». Temos que ser fiéis ao cânone e, ao mesmo tempo, surpreendentes. Há mais destruição e perda neste do que nos anteriores”. Singer salienta que o filme conta “a história da verdadeira formação dos X-Men. Fundamentalmente, a história é sobre como o Xavier formou os X-Men como os viríamos a conhecer nos filmes X-Men 1, 2 e 3”. “Temos grandes cenas e há alguns filmes em que isso é o foco. Nunca será o nosso. Temos grandes coisas mas o nosso filme sempre será guiado pelas nossas personagens”, conclui.

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x-men Charles Xavier Professor X Charles Xavier (James McAvoy) assume, neste filme, aquilo que tem vindo a ensaiar em «X-Men: O Início» (2011) e «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido»: ser um verdadeiro mentor para jovens mutantes. No primeiro filme da trilogia, Charles Xavier ainda está à procura da sua própria identidade e do seu caminho, percebendo-se, desde logo, uma grande capacidade de tolerância, compreensão e, até mesmo, sacrifício. No filme seguinte, tudo se complica e Xavier passa por uma crise existencial, na qual o trespassa um ressentimento em relação ao passado, que se refletia na ligação com os seus próprios poderes, tornando-se num viciado em medicamentos que faziam “adormecer” os seus poderes e que lhe davam, de novo, a possibilidade de andar, algo que perdeu no primeiro filme. Passou-se uma década entre «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido» e «XMen: Apocalipse» e conheceremos agora um Charles Xavier diferente, talvez mais na linha do mostrado na primeira trilogia cinematográfica, em que o intérprete era Patrick Stewart. O agora Professor X é uma figura otimista e confortável na sua pele mas, com a chegada de Apocalipse e, consequentemente, de um poder que está muito além das suas capacidades, a boa disposi-

ção poderá não durar para sempre, tornando-se num Xavier “mais endurecido”, conta McAvoy. “Parece que agora interpreto o Professor X, enquanto antes pensava que estava a interpretar o Charles”, assinala. A refletir a mudança, a personagem surge também, pela primeira vez nesta trilogia, careca, devendo-se o facto a algo “horrível e doloroso” que lhe acontece, conta McAvoy. O ator ficou bastante contente com a mudança, pois confessa que sempre teve “curiosidade para ver como ficaria. Foi a oportunidade perfeita”. “É ótimo chegar ao fim desta trilogia. Estou feliz com isso e em finalmente ficar careca”, acrescentou. Professor X é, de facto, um dos mutantes mais poderosos dos X-Men, sendo um incrível telepata mas, para McAvoy, o grande poder do líder dos mutantes é outro: “Penso que o maior poder do Charles é a sua empatia e a sua capacidade de ensinar de melhor forma por causa disso”. Sobre o futuro dos filmes X-Men, seria necessário que James McAvoy renegociasse o seu contrato para continuar a ser Professor X. Sobre o assunto, o ator não deixa margem para dúvidas: “Se me quiserem, farei mais”.


Raven Darkholme Mystique Mystique é, muito provavelmente, a personagem que mais divergiu entre a sua versão na banda-desenhada e a sua adaptação cinematográfica. Mais do que isso, a dimensão narrativa da personagem também mudou entre as duas trilogias. Mais conhecida como sendo uma vilã impiedosa e letal, uma aliada leal de Magneto, Mystique é agora… uma heroína. A que se deverá tamanha mudança? Não haverá muitas dúvidas em apontar Jennifer Lawrence como uma das principais “culpadas”. X-Men foi o seu primeiro franchise e, quando a vimos pela primeira vez como Mystique, não era propriamente uma desconhecida (já até tinha no currículo uma nomeação para o Óscar de Melhor Atriz por «Despojos de Inverno», 2010) mas estava longe de ser a estrela mundial que é hoje, o que viria a acontecer quando se tornou na Katniss Everdeen da saga «The Hunger Games». Em «X-Men: O Início», Raven era ainda uma adolescente, bastante insegura e inquieta, à procura de um rumo, personificando o paradigma do “Orgulho Mutante”, que viria a abraçar por completo no final da obra. Quando a revemos em «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido», é já uma adulta determinada, disposta a tudo para salvar os seus “irmãos” mutantes. Todo o filme

gira em torno da personagem, cuja decisão final de não assassinar Bolivar Trask (Peter Dinklage) – e, consequentemente, salvar a vida do Presidente dos EUA – muda a narrativa por completo e as linhas temporais dos filmes X-Men. Em «X-Men: Apocalipse», há uma nova passagem do tempo e Raven é agora uma espécie de ativista dos direitos civis, tendo sempre a causa mutante como foco. Ao usar a sua capacidade para mudar de aparência física, pôde infiltrar-se em locais obscuros e perigosos um pouco por todo o mundo e libertar mutantes que viviam como escravos. É a partir desta contenda que conheceremos algumas personagens, como Nightcrawler, com quem Raven tem, pelo menos na banda-desenhada, uma relação muito especial. A verdadeira aparência da mutante é agora conhecida por todos, pelo que, para não ser reconhecida, precisa de se disfarçar. Singer explana o assunto: “Ela é famosa, mas nunca mais ninguém a viu”, sendo considerada uma “grande heroína desde 1973”. “Ela não está confortável com isso. Não está interessada em ser o rosto de um mundo que ela não acredita que exista. Ela não é uma heroína”, completa. Na banda-desenhada, Mystique raramente colabora com os X-Men e, quando o faz, é mais para engendrar uma armadilha do que pro-

priamente outra coisa. Agora, está pronta para lutar junto dos X-Men, sendo, inclusive, a sua líder. Já a relação com Charles é que não corre às mil maravilhas, como explica Simon Kinberg: “Há um conflito entre a Raven e o Charles, porque ele vive numa espécie de mundo feliz no qual normalmente os ricos vivem e as coisas correm-lhe bem. A Raven vê um mundo mais sombrio, um mundo que ainda não está consertado”. A personagem tem muitas cenas de ação e Jennifer Lawrence viria a ter uma leve lesão mas devido a uma cena bem mais calma. A atriz relembra o momento com o seu habitual bom-humor: “Estou com 25 anos, todos os ossos começam a falhar. No «Hunger Games», tinha de correr entre árvores que explodiam e ardiam mas agora magoo-me ao dormir num chão gelado? Muito estranho”. O contrato da atriz com os filmes X-Men termina agora mas a atriz deu recentemente sinais de que estaria disposta a encarar novamente as oito horas necessárias na cadeira de maquilhagem para se tornar na mutante azul: “Estou morta por voltar. Adoro estes filmes, adoro fazer parte. Gosto muito de filmes com um conjunto [de atores] porque não está tudo nos teus ombros”.


Hank McCoy Beast Hank McCoy (Nicholas Hoult) é um brilhante cientista, sensato e diplomático. Bem, quase sempre. Quando há algo que o faz perder o controlo, transforma-se em Beast, uma fera azul com poderes sobre -humanos. É uma das personagens fulcrais nesta trilogia e temos visto a sua evolução de um jovem mutante inquieto para alguém seguro e determinado. Ainda em «X-Men: O Início», vimos que McKoy experimentou um sérum que deveria regredir a sua mutação mas, ao invés disso, acabou por a exponenciar. Desde então, tem aprendido a viver com isso e tornou-se no braço-direito de Charles Xavier, tal como foi mostrado em «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido». Neste novo filme, Hank assume uma postura de mentor, trabalhando lado a lado com Xavier na formação dos estudantes na escola. Escolhe até um deles como pupilo: o jovem Scott Summers. O cientista tem também os seus poderes controlados, a não ser, claro, quando alguém o chateia além da conta… e parece que Apocalypse é capaz de conseguir com que Hank atinja o ponto de ebulição. Além disso, haverá espaço para abordar uma paixão adormecida que começou em «X-Men: O Início». Falamos, claro, de Mystique. Nicholas Hoult refere que o mutante “está, definitivamente, mais maduro”, “numa fase mais feliz em relação ao filme anterior”. “O Hank continua a acreditar que o mundo precisa dos X-Men e apesar de, nesta altura, haver paz entre humanos e mutantes, sente que algo se passa e tem uma espécie de plano de guerra, preparando-se para o pior. Tirando isso, ele espera pelo melhor e diverte-se a ensinar”.

Peter Maximoff Quicksilver «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido» juntou imensos atores, personagens cheias de poderes e efeitos especiais arrebatadores mas aquilo que fica mesmo na memória é a cena de Quicksilver (Evan Peters) na cozinha enquanto ele e outros comparsas tentavam fugir incólumes da prisão após terem resgatado Magneto. Quicksilver roubou a cena e agora está de regresso para voltar a arrasar, espera-se. O jovem mutante é agora mais maduro e torna-se num membro por completo dos X-Men. Evan Peters conta que a sua personagem “passou a interessar-se por música. Limpou um pouco a sua cave. Não é mais o cleptomaníaco que era quando apareceu pela primeira vez. Está um pouco mais tranquilo 10 anos depois”. O ator realça que «X-Men: Apocalipse» vai mostrar uma nova faceta de Quicksilver: “Este filme tem um tom bastante sério e participo mais tempo. Antes só apareci, fui engraçado e fui embora, mas neste fico para a história. Há aquela linha ténue, aquele balanço que tens que encontrar e espero que tenhamos conseguido. Tivemos liberdade para experimentar e o Quicksilver é uma personagem tão divertida que vive no seu mundo próprio”. E vem aí mais uma grande momento à Quicksilver: “Há uma cena que levou um mês e meio para filmar e que corresponde a três minutos no filme. O Evan trabalhou mais neste filme do que qualquer outro ator por causa dessa cena”, conta Bryan Singer. Ao contrário de muitas outras personagens do filme, não há uma versão cinematográfica mais velha de Quicksilver. Para Evan Peters, tal representa uma maior liberdade

interpretativa, estando “totalmente livre para experimentar”, já que “estes filmes têm mostrado um lado tão diferente do Quicksilver em relação à bd que estou ansioso para ver o que acontece, de facto, com ele quando ficar mais velho e se terei idade suficiente para interpretá-lo”. Falando noutras versões da personagem, não podemos deixar de mencionar aquela que foi revelada no filme «Vingadores: A Era de Ultron» (2015) e que teve um final dramático. Evan Peters deu a sua opinião sobre o rumo do seu doppelgänger: “Eles podiam trazê-lo de volta de alguma forma ou poderia haver outro estúdio que fizesse filmes de super-heróis que usassem o Mercúrio. Fiquei muito confuso em relação à razão de o matarem. Achei que estava muito porreiro. Era uma versão completamente diferente da personagem. A Scarlet Witch estava lá e tal. Fiquei um pouco chateado por o terem morto”, comenta o ator. Neste novo filme, Quicksilver terá um arco mais desenvolvido, que focará a demanda pelo seu pai, nada mais nada menos do que Magneto. O tema foi ligeiramente abordado em «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido» mas agora terá o devido destaque. “O Quicksilver sabe quem é o pai e está à procura dele. Passaram-se 10 anos, ele não o encontrou entretanto e, depois, algo acontece”, explica Peters. A ligação parental leva-nos a uma outra questão: será que Quicksilver será tentado por um caminho mais obscuro? Evan Peters fala sobre o assunto: “Penso que ele continua bom. Ele não foi para o lado negro. Julgo que ele entende a razão de o Eric ter seguido aquele caminho e por que faz aquelas coisas. Acho que ele tem uma grande empatia por ele e sabe pelo que está a passar e quer tentar ajudá-lo. Há uma forma de fazer isto sem destruir pessoas. ”.

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Jean Grey Jean Grey é uma das mutantes mais poderosas da bandadesenhada, até mais do que o Professor X ou Magneto. Mas, em «X-Men: Apocalipse», a telepata Jean Grey é ainda apenas uma adolescente que tenta, a todo o custo, ter uma vida normal, apesar dos seus poderes. Esta é uma versão inédita da personagem, interpretada por Sophie Turner, a Sansa Stark da série «A Guerra dos Tronos», que considera Jean Grey como sendo “isolada, insegura e muito alheada”. “Consigo identificar-me muito com a Jean. Ela é jovem, está na escola, tem que se adequar para não ficar afastada. A diferença é que, além das hormonas e dos rapazes, precisa de lidar com um poder quase incontrolável!”, brinca a atriz britânica. Para Turner, o melhor do filme é a relação entre Jean e Xavier, que, além de professor, é uma figura paterna para a mutante: “O Xavier parece ter uma atração – nada sexual – por essas jovens vulneráveis que se sentem alienadas e desconfortáveis na própria pele. Eles têm esse laço silencioso, porque ele também é um telepata e passou pelas mesmas coisas. É muito poderoso e vê isso a crescer nela. Quer protegê-la e ajudá-la a controlar os seus poderes, mas também ajudá -la a alcançar o seu melhor potencial. Eles têm uma relação realmente muito bonita”.

“Eles ligam-se especialmente pelo poder. Já a conexão com o Scott é apenas um vislumbre de coisas que podem acontecer no futuro”, assinala. A atriz refere-se ao relacionamento amoroso entre Jean Grey e Cyclops, um dos mais antigos da Marvel e mais queridos pelos fãs, que, aliás, não ficaram muito satisfeitos com o tratamento que o casal teve na trilogia original – algo que poderá agora mudar. “É realmente interessante ver o jovem e parvo Scott e a tímida Jean a apaixonarem-se e a criar essa química estranha que os dois têm”, conta a atriz. Sophie Turner revela o seu contentamento por interpretar a personagem: “Jean foi sempre a minha favorita. Já vi os filmes umas cinco vezes cada um e sou muito fã. A banda desenhada só lia ao lado dos meus irmãos quando era mais nova. Mas preferia os filmes e os desenhos animados”. Falando em filmes, não poderíamos deixar de referir Famke Janssen, que interpretou a personagem na trilogia original e que foi uma referência para Turner: “Adoro a Jean pelo que a Famke fez com ela. Ela é tão elegante e boa atriz! Ela contoume algumas coisas valiosas, mas disse-me especialmente que eu desse a minha própria força à personagem”. Além de Famke Janssen, Jean Grey já havia sido interpretada no Cinema por outra atriz: Haly Ramm, no filme «X-Men: O Confronto Final», numa versão mais nova da personagem. Quando se fala em Jean Grey, vem logo à cabeça um dos mais importantes momentos dos X-Men na

banda-desenhada: A Fénix. Trata-se do lado negro de Jean Grey, incrivelmente poderoso… e descontrolado. O segmento “The Dark Phoenix Saga”, de 1980, foi escrito por Chris Claremont e foca-se em como Jean Grey é exposta à radiação mortal de uma tempestade solar, assumindo, posteriormente, a personalidade de Fénix, que viria a explodir um planeta inteiro. Apercebendose dos seus poderes, acaba por matar-se, numa decisão que nem todos gostaram na época, como conta Claremont: “O Frank Miller e eu guardámos os papéis porque o Frank recebeu ameaças de morte quando matou a Elektra e eu recebi quando matei a Fénix”. A história foi pobremente retratada em «XMen: O Confronto Final», pelo que se aguarda uma nova adaptação, que consiga captar verdadeiramente a força da Fénix e Simon Kinberg não descarta que tal possa acontecer futuramente: “Seria, sem dúvida, uma história que poderíamos contar de uma forma diferente”. “A Jean tem um grande papel neste filme. É divertido escrever personagens que sabes que, um dia, vão tornar-se demasiado poderosas para o seu próprio bem. É engraçado ver as faíscas disso”, asseverou.


SCOTT SUMMERS CYCLOPS Scott Summers/Cyclops (Tye Sheridan) é um dos membros X-Men preferidos dos fãs e terá uma nova versão cinematográfica em «XMen: Apocalipse». Quando chega à Escola de Xavier, Scott está completamente cego e não usará de imediato os famosos Ray-Bans pelo qual Cyclops é conhecido. Ao invés disso, conheceremos o início de vida difícil do mutante, alguém “furioso” e “perdido”, como Sheridan descreve. Acima de tudo, está a tentar encontrar-se a si próprio e procura conseguir controlar os seus poderes, o que será, garantidamente, um caminho cheio de chama. O poder de Cyclops deriva da energia solar, sendo que o seu corpo metaboliza essa energia e canaliza-o através dos olhos. Ao longo dos anos, a reserva de poder vai aumentando. Esta nova versão cinematográfica poderá ser também uma hipótese de pôr os pontos nos is no que à história de Cyclops diz respeito. Assim, na banda-desenhada, Scott é visto como o primeiro X-Men, apesar de Xavier ter treinado Jean durante algum tempo antes de recrutar Cyclops. O Professor X desde logo viu o potencial de Summers para ser um líder e não demoraria muito para ir numa missão e deixar a escola ao cargo de Cyclops. Todavia, na trilogia original, na qual a personagem era interpretada por James Marsden, o foco foi mais direcionado para Wolverine e menos para Cyclops, que até era o líder, tendo uma complexidade narrativa pouco abordada. Simon Kinberg conta que “este Cyclops é rebelde e muito distante da versão

completamente certinha e cautelosa de antes”. “Penso que continua resmungão, mas tem um sentido de humor, uma raiva interior e há muitas coisas que está a tentar ultrapassar e conquistar. E vê-se essa luta”, conta Sheridan. “O filme fala muito da origem do Cyclops. Ficamos a saber coisas sobre ele que ainda não sabíamos. Penso que ele é um lobo alfa. Gosta de estar no topo”, enfatiza. Cyclops será levado pelo irmão, Alex Summers, para a escola depois de um acidente. “Veremos alguns dos acontecimentos que o tornaram no que ele é, um tipo que muita gente considera um pouco difícil”, afirma Sheridan. “Como boa parte do filme fico com óculos ou vendado, já que Scott não controla as suas rajadas óticas, o maior desafio para mim foi aprender a atuar com outras partes do rosto e a melhorar a minha expressão corporal”, completa. Tye Sheridan poderá ter agora o seu primeiro papel de destaque no Cinema mas não é bem um novato, tendo começado a sua carreira com um cineasta de renome, Terrence Malick, no filme «A Árvore da Vida» (2011). Tinha apenas 11 anos e interpretava o filho de Brad Pitt e Jessica Chastain. “As pessoas pensam que o estilo do Terry é único e é mesmo. Mas foi o primeiro estilo que conheci e, de alguma forma, vai ser sempre normal para mim”, conta o ator. Sobre esta nova experiência num filme X-Men, Sheridan diz estar ainda em choque. “Só acreditei no dia em que entrei no set pela primeira vez e vi o X no chão do set da mansão”, comenta.


Jubilation Lee Jubilee

Kurt Wagner Nightcrawler O sensível e carismático Kurt Wagner/Nightcrawler está de volta aos filmes X-Men, agora numa versão adolescente. Para substituir Alan Cumming, que interpretou a personagem em «X-Men 2» (2003), entra em ação Kodi Smit-McPhee, conhecido pelos filmes «A Estrada» (2009) e «Deixa-me Entrar» (2010). O ator descreve a sua personagem como sendo “mais vulnerável, aventureiro e alegre”. “Uma mistura de ideias, mas algo que acredito que será bastante fiel àquilo que os fãs gostam e algo com o qual também me consigo identificar”, afirma. Tal como os novatos X-Men, também será mostrado um Nightcrawler mais inseguro e que só ganhará verdadeira força após o confronto com Apocalipse. “Ele tem medo da

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sua própria sombra até um certo ponto, por isso está, certamente, muito assustado. Através de tudo o que ele faz neste filme, vai-se formando o caminho que o torna o herói corajoso que ele é”, refere. Kodi Smith-McPhee foi o ator que mais penou nas filmagens devido ao longo processo de transformação diária que a sua personagem exige, como o próprio contou: “Chego três horas antes de todos os outros e sou o último a sair, mas não me vão ouvir a reclamar! Estou nos X-Men!”. Habituado sobretudo ao cinema independente, o ator diz que “é incrível a escala de um filme assim”. Para se preparar para o papel, leu muitos comics e viu filmes e desenhos animados. “Agora enten-

do totalmente o amor dos fãs por ele, que é muito sensível e estudei também diversas religiões, meditação, fé e até física quântica. O texto tem um belo equilíbrio em relação ao Nightcrawler”, conta. Além disso, o ator trabalhou também na pronúncia alemã, já que a personagem é originária desse país. “O Kurt é uma personagem afetuosa e querida. Ele é quase um amável animal para mim. Vem de um caminho diferente em relação aos outros X-Men. Tem um passado diferente, um visual diferente. Ele é estranho, desajeitado e incrível em diferentes formas”, remata.

Jubilation Lee/Jubilee não terá em «X-Men: Apocalipse» a sua estreia cinematográfica, tendo já sido interpretada por Katrina Florence e Kea Wong em «X-Men» e «X-Men 2», respetivamente. Todavia, agora terá maior destaque. Jubilee é amiga de Jean Grey, Cyclops e Nightcrawler e, quando a conhecemos no filme, já é estudante da escola do Professor X há quase uma década. Lana Condor foi escolhida para interpretar a mutante, justamente pelas suas semelhanças físicas com a personagem. A atriz estava na escola secundária quando foi selecionada e vai fazer a sua estreia nas lides da representação.

Jubilee, personagem criada em 1989 por Chris Claremont e Marc Silvestri, vai ter um visual muito típico da década de 1980, usando o seu clássico casaco amarelo e os óculos de sol cor de rosa. “Ela não é uma personagem particularmente sombria ou contemplativa, vem de Beverly Hills e gosta de video jogos”, conta Simon Kinberg. Os seus super-poderes também vão aparecer, claro, e decerto a atriz não se esquecerá de algumas cenas, como a própria conta: “Eles prendiam um fio que tinha luz LED nas palmas das minhas mãos, mas sempre que os usava levava um choque. Não

disse nada porque não queria estar sempre a chamar a manutenção. Na verdade, ajudou-me porque assumi que doeria todas as vezes que usasse os meus poderes”. Apesar do contratempo, a atriz mostra-se radiante por interpretar Jubilee: “Ela é tão fixe. Bem mais do que eu. Liga-se a toda a gente. Tive uma conversa com o Bryan, o nosso realizador, sobre como ela representa os asiáticos na generalidade. Os XMen sempre foram outsiders – minorias, gays e lésbicas. É como se fosse todos outsiders reunidos num só.


Os Quatro Cavaleiros Ororo Munroe Storm Ororo Munroe/Storm (Alexandra Shipp), uma mutante com o poder de alterar as condições climáticas, terá também direito, em «X-Men: Apocalipse», a uma versão mais jovem mas, sobretudo, mais retorcida. Assim, conheceremos as origens de Storm, mas com algumas alterações, já que sempre vimos Storm como uma das principais constituintes dos X-Men mas, neste filme, ela está no lado dos vilões. Alexandra Shipp, que participou no badalado «Straight Outta Compton» (2015), explica um pouco o estado desta nova Storm: “Não é como se ela estivesse na mansão a divertir-se. Ela é muito diferente dos outros miúdos porque eles têm famílias. Eles tiveram algum amor e apoio que a Storm não teve desde que os pais morreram no acidente de avião quando tinha 5 anos. Ela está muito baralhada e os únicos mutantes que conhece são maus, usam os seus poderes para roubar ou proteger criminosos”. Na banda-desenhada, Storm fica sozinha nas ruas do Cairo enquanto tenta sobreviver e conviver com os seus poderes. Entretanto, tenta roubar Xavier, que acaba por salvá -la daquele mundo. No filme, essa pessoa será Apocalipse. “Ela está num modo de sobrevivência. Por isso, quando conhece Apocalipse, tem uma espécie de revelação numa altura em que lutava para sentir

que pertencia a algum lado”, explica Shipp. “Interpreto a Storm do ponto de vista em que ela está num estado completamente emocional. Quando tens 18 anos e as hormonas começam a assentar. Quando o Apocalipse diz ‘Sou o que esperas. Serás a deusa que mereces ser’, isso diz-lhe algo”, assinala. “Ela não sabe nada sobre os X-Men. A única coisa que sabe é sobre a Mystique, quando ela salvou o presidente, mas é basicamente isso”, de qualquer forma, “não a vejo como vilã”, salienta. O que também não faltará nesta nova Storm será um Mohawk de cor branca, tão icónico e caraterístico da personagem. Uma mudança visual que “foi um pouco um choque”, confessa a atriz. Também fará parte da composição da personagem uma pronúncia queniana, já que as raízes de Storm assentam nesse país africano. A própria Halle Berry, que interpretou a personagem nos primeiros filmes, começou por usar um sotaque próprio em «X-Men», mas acabaria por abandoná-lo nas sequelas. Desta vez, Storm mostrará mesmo de onde vem, como conta Alexandra Shipp: “Logo que soube que tinha ficado com o papel, comecei a estudar tudo sobre o Quénia. Estou a tentar não parecer Jamaicana! Eles têm sons glotais semelhantes”.


Betsy Braddock Psylocke Após um cameo pouco relevante em «X-Men: O Confronto Final», Betsy Braddock/Psylocke (Olivia Munn) tem agora uma presença retumbante em «X-Men: Apocalipse». O seu principal poder é a telecinésia mas também não se safa nada mal com uma espada na mão, resultando numa mutante potencialmente perigosa, exatamente aquilo que Apocalipse procura. Todavia, Olivia Munn realça que a personagem não é necessariamente má: “Ela está à procura da finalidade correta. Os seus poderes podem ser usados para o bem ou para o mal”. Recrutada pelo vilão que dá nome ao filme, Munn assegura: “Apocalipse e os Quatro Cavaleiros são muito poderosos. O mundo está em risco”. Apesar do maior destaque cinematográfico, não iremos conhecer, neste filme, as origens de Psylocke. Na banda-desenhada, trata-se de uma personagem bastante complexa, começando por ser irmã do Captain Britain até que acaba por trocar de corpo com um extraterrestre e ganhar ainda mais poderes. A sua perícia com a espada psíquica é um dos aspetos mais marcantes e vai ser representada no filme: “Vês muitos super-heróis que não querem sempre matar e evitam-no se puderem. Ela nunca teve esse problema e gosto da ideia de que ela seja uma vilã que não tem problemas em ser vilã. Ela é telecinética e telepata, por isso pode ler a tua mente. Pode criar qualquer coisa com a sua mente. Para ganhar qual-

quer batalha, ela apenas precisaria de criar uma montanha e fazê-la cair sobre ti, mas ela escolhe criar uma espada para que possa matar de uma forma próxima e pessoal. Sempre achei isso muito porreiro”, considera a atriz. Olivia Munn procurou fazer quase todas as cenas de Psylocke, mesmo as mais arriscadas (aliás, tornou-se viral um vídeo entre a atriz e Ryan Reynolds, o famoso Deadpool, em que Munn domina o trabalho com a espada): “Fiz tudo do início até ao fim. Foi uma sensação boa de entrar no set e dizer ‘Espera, eu posso fazer isso. Podem pendurar-me e dar-me uma espada, eu sou boa’. Psylocke é uma personagem muito poderosa e letal. Para mim, foi importante ser capaz de fazer todas as cenas porque, quanto mais realista isso for, melhor será para o público. E a única forma de deixar isso mais realista era se eu fizesse”. O que também se destaca em Psylocke é o seu guarda-roupa e Olivia Munn fala sobre o tema: “Bom, eu adoro a Psylocke. Sei que ela se veste de uma forma muito sensual. As roupas são reveladoras, mas é importante saber que ela sempre teve histórias importantes... Não é por ela estar vestida dessa forma que é uma mulher promíscua e vulgar – na verdade, foi o Apocalipse que a vestiu dessa forma”. A atriz revelou que ela própria ajudou na concepção do guarda-roupa: “Acho que o meu primeiro pensamento quando vi o guarda-roupa foi de que ele precisava de ser roxo. No início, era

preto porque o látex era preto, toda a armadura era preta e era mais simples de fazer, mas eu pensei ‘Precisamos de fazer em roxo’. Essa foi a primeira coisa que pensei quando me vi com o guarda-roupa, que foi pelo Photoshop”. Munn também falou sobre a possibilidade de um filme solo da personagem: “Acho que se a Psylocke tivesse a hipótese de contar a sua história seria bom entender e ver como tudo começou... Poderia ser quando ela sai da universidade e antes de tudo o que acontece com a família. Nós começamos um pouco antes de a família dela ser levada e nós entendemos tudo o que ela perdeu. Ela começa a entender o quanto é poderosa. Acho que isso seria ótimo, pois é algo que sempre gostei sobre ela, que ela veio de uma boa família e perdeu tudo. Gostaria de contar essa história”. Parece que Munn conhece a personagem de trás para a frente e a verdade é que conhece mesmo: “Venho de uma família que falaria dos X-Men como se fosse a Guerra Civil. Íamos todas as semanas às lojas de banda-desenhada. Foi a nossa infância. Adoro a Psylocke há muito tempo”.


Warren Worthington III Angel

Warren Worthington III/Angel (Ben Hardy) é um mutante com belas asas brancas e que consegue voar. A personagem foi interpretada anteriormente por Ben Foster em «X-Men: O Confronto Final», no qual o seu único objetivo era fazer o bem. Todavia, neste filme, a história será um pouco mais sombria mas também mais em linha com aquilo que é abordado na banda-desenhada. Ora, Angel será retratado como alguém atormentado forçado a lutar contra outros mutantes num clube clandestino de luta, sendo depois resgatado e recrutado por Apocalipse, que lhe dá umas asas metálicas. A partir daí, consegue também voar a uma velocidade sobre-humana e lançar flechas venenosas, tornando-se no Archangel. Ben Hardy salienta que Angel “tem errado muito na vida. Está zangado por causa disso, talvez seja um pouco convencido e arrogante e é apanhado na lógica de Apocalipse”. Este será o primeiro grande papel do jovem ator britânico, após ter participado na série «EastEnders». O ator confessa que estava “aterrorizado” no seu primeiro dia de gravações. “Não quero desacreditar o que fiz antes, mas este era o derradeiro objetivo, fazer filmes como este”, assinala.

Erik Lehnsherr Magneto

Erik Lehnsherr (Michael Fassbender), mais conhecido por Magneto, mudou muito desde a última vez que o vimos, em «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido». O mutante com o poder de controlar metal está de volta à Polónia, onde nasceu, e vive quase incógnito, tendo um estilo de vida praticamente normal. Tem uma mulher e uma filha, trabalha numa fábrica e já não usa os seus poderes, passando a viver como um mero humano. “Fisicamente, ele trabalha de uma forma que é uma espécie de penitência”, explica Fassbender. Apesar de ser a pessoa mais procurada do mundo, conseguiu, de alguma forma, ter uma vida pacífica. “Ele tem uma família, que lhe será, mais uma vez, retirada, devolvendo-o ao mundo que ele tentou deixar para trás e à eterna disputa se a filosofia de Xavier é ou não certa”, conta Kinberg. “A jornada de Magneto será muito intensa. Ele já perdeu tanto...”, complementa Singer. Foi exatamente isso que vimos ao longo da trilogia que agora se encerra. Assim, em «X-Men: O Início», vemos um jovem Erik no Holocausto que lhe causa cicatrizes na alma, visíveis em várias atitudes que toma posteriormente. Já em «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido», Magneto começa por estar preso, após ser considerado assassino do Presidente Kennedy (no filme, Magneto explica que, na verdade, estava a tentar salvá-lo, porque ele também era mutante).

Ainda trabalha, por pouco tempo, com Charles, mas a cisão entre ambos é demasiado grande. Em «X-Men: Apocalipse», o vilão do filme aproveitar-se-á dos pontos fracos de Magneto. “Quando o Apocalipse chega até ao Erik, ele está num estado muito baixo e muito vingativo. Ele revolta-se contra Deus, exige respostas e, quando o Apocalipse aparece, é como se ele pensasse ‘Terei tido, de alguma forma, uma resposta?’”, diz Fassbender. Talvez seja por isso que, ao contrário do que tem sempre acontecido, Magneto não seja aqui um líder, cumprindo ordens de outros. O ator explica os motivos: “Bem, creio que ele está a servir a sua família. Faz o que faz para dar um abrigo e segurança à sua família”. “Ele aprecia que este tipo vá fazer aquilo que ele não pôde. Tem muito mais poder do que ele, é uma força imensa. De certo modo, é como unir-se a uma fação ou a um grupo radical, escolheram-no num momento muito baixo e vulnerável, no qual não lhe importa se morre ou não ou que aconteça seja o que for”, acrescenta. Bryan Singer refere ainda que “um dos muitos poderes do Apocalipse é a sua capacidade para inundar outros mutantes com poderes maiores. O Magneto mostra uma pequena parte do que pode fazer. Ele já é incrivelmente poderoso, mas agora o Apocalipse vai dar-lhe mais poderes do que aquilo que vimos até agora”.

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Apocalipse Apocalipse (Oscar Isaac) não é um vilão qualquer, é “o” vilão X-Men. É o primeiro mutante, imortal e (praticamente) invencível, conseguindo reunir e amplificar poderes dos mutantes. O seu verdadeiro nome é En Sabah Nur (cuja tradução é “O Primeiro”) e tem incontáveis poderes, como força sobre-humana, teletransporte, telecinésia e voo. Além disso, “pode dissolver, alterar e transformar moléculas mortas”, sendo “um homem difícil de vergar”, conta Singer. As suas raízes assentam no antigo Egito e durante o seu tempo de vida já enfrentou muitas lutas pelo poder. A que acontecerá neste novo filme será mais uma: “Quando desperta, em 1983, uma das piores épocas da humanidade, ele decide que o seu legado não deve morrer e começa a sua jornada para purificar o mundo, que se encontra poluído, corrupto e cheio de falsos deuses e, obviamente, os X-Men vão colocarse no seu caminho”, conta Simon Kinberg. Oscar Isaac completa: “Ele é a força criativa/destrutiva da Terra. Quando as coisas começam a ficar erradas ou quando não se parece estar a seguir o caminho da evolução, ele destrói essas civilizações”. “Ele é alguém que tem podido passar por gerações reunindo e aumentando a sua consciência, sentindo que é o tutor da Humanidade e da evolução”, acrescenta o ator. Para conseguir o que deseja, “o Apocalipse reúne os Quatro Cavaleiros e a sua agenda é bastante catastrófica”, explica Bryan Singer. Todavia, é importante realçar que outro dos poderes de Apocalipse é a capacidade de controlar outros mutantes, pelo que os Quatro Cavaleiros não concordam em absoluto com o plano de Apocalipse.

Tom Hardy chegou a ser inicialmente pensado para assumir o papel do vilão, mas a empreitada viria a ser entregue a Oscar Isaac, o ator guatemalense que ganhou uma recente fama mundial após participar em filmes como «Ex-Machina» (2015) e «Star Wars: O Despertar da Força» (2015). “Se soubesse tudo o que envolveria [a maquilhagem] provavelmente teria dito que não. Esperamos que tenha acrescentado alguma intensidade emocional à personagem”, brincou o ator. Isaac é, na verdade, um grande fã das histórias X-Men, pelo que apreciou particularmente fazer parte da produção. Apocalipse foi criado em 1986 numa história escrita por Louise Simonson e com desenhos de Jackson Guice. Na banda desenhada, nos primeiros dias do Apocalipse, o mutante descobriu e adquiriu uma nave alienígena de uma espécie conhecida como os Celestiais. A sua tecnologia e os seus muitos poderes tornaram Apocalipse imortal. “Isso interessa-me imenso e podes encontrar um pouco disso no filme”, conta Singer. O realizador refere também que discutiu com o ator Oscar Isaac sobre “a natureza dos cultos”: “Todos eles têm aspetos parecidos, como aspetos militarizados, políticos, jovens e, às vezes, sensuais. Cada um dos quatro cavaleiros de Apocalipse representa, neste filme, um desses aspetos: Angel é o militar, Magneto o político, Ororo a jovem e Psylocke a sensual”. “O Apocalipse é, sem dúvida alguma, o mais poderoso vilão nas histórias de banda-desenhada dos X-Men. Nenhum homem pode pará-lo. Nenhum exército pode pará-lo. Mas pessoas com outros poderes podem…”, afir-

ma Simon Kinberg. “Apocalipse é uma personagem muito porreira. As histórias X-Men foram sempre centradas em lutas entre mutantes e humanos. Este será um pouco diferente, lida com conceitos de mutantes, deuses e homens. Trata-se de questões universais. Apocalipse não faz distinção entre humanos e mutantes, apenas entre o fraco e o forte”, acrescenta Singer. O vilão do filme é considerado o maior desafio na escrita do argumento, como explana Kinberg: “Como criar um personagem tão poderoso, o mais forte que já tivemos em qualquer filme X-Men, e humanizá-lo de forma a equilibrar o drama e a ação? Ele também é visualmente difícil, numa escala superpoderosa, mas que inevitavelmente deveria exibir alguma fraqueza. Procurámos muito isso no argumento e estou muito feliz com o resultado”. “O filme lida com esse vilão diferente, que traz um conceito completamente novo à saga. Ele não compreende que é um mutante. Achava que era um deus no antigo Egito. Essa criatura poderosa vai forçar humanos e mutantes a trabalharem juntos”, assinala Singer. “Penso que há uma grande similitude, em termos de personagem, planos e temas com o Sebastian Shaw (Kevin Bacon) em «X-Men: O Início» e Magneto. Mas o Apocalipse é muito mais uma espécie de vilão mítico”, refere. Mais do que isso, o que realmente chamou a atenção de Singer foi o passado de Apocalipse: “Estou fascinado pela religião, os cultos e o culto da personalidade. E como um mutante antigo poderia ser, como o Apocalipse se consideraria a ele próprio e como seria visto pelos outros. Pensei que seria uma boa

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ver Hugh Jackman na pele do mutante. Está a ser preparado um terceiro filme a solo, que terá estreia em 2017 e, como apontam rumores, será para maiores de 18 anos, seguindo a linha inaugurada por «Deadpool» (2016).

William Stryker Num filme recheado de mutantes, o General William Stryker (Josh Helman) [imagem abaixo] é um dos poucos humanos mas é, sem dúvida, marcante. Stryker tem continuado o trabalho deixado por Bolivar Trask e, claro, não trabalha ao lado dos X-Men. Por outro lado, a sua presença no filme enfatiza a presença de Wolverine, já que Stryker é um dos criadores do Programa Weapon X, responsável pelo esqueleto de adamantium do mutante de garras afiadas.

outras personagens Moira MacTaggert Moira MacTaggert (Rose Byrne) [imagem acima] é uma agente da CIA que foi fulcral na formação dos X-Men, ainda em «X-Men: O Início», mas ela nem sequer se lembra disso. No final do filme, Charles Xavier retirou-lhe a memória. Todavia, tal não impediu que Moira continuasse a estudar os mutantes e ela está agora de regresso, com imensa informação sobre Apocalipse. A agente poderá ajudar os X-Men na dura tarefa de enfrentar o vilão mas também poderá despoletar a antiga relação com Xavier que, entretanto, não se desenvolveu justamente por causa do mutante telepata, que quis protegê-la. É como uma vez

disse o tio do Homem-Aranha: “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades”.

Alex Summers/ Havok Alex Summers (Lucas Till), mais conhecido como Havok, era um dos jovens mutantes que apareceram em «X-Men: O Início» e tem poderes espetaculares mas pouco abordados. Teve também uma pequena participação em «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido», voltando agora neste novo filme tendo, porventura, um maior destaque. Além disso, é a primeira vez que aparecem juntos no grande ecrã os irmãos Summers, ou seja, Havok e

Cyclops, o que poderá ser particularmente interessante. Todavia, ainda é incerta a dimensão da participação de Havok, sabendo-se concretamente que irá juntar-se a Xavier numa visita a Moira MacTaggert, que lhes irá explicar quem é o Apocalipse. Além disso, será Havok que levará Cyclops para a escola do Professor X.

Wolverine Um dos mais queridos mutantes é, sem dúvida, Wolverine. O irascível herói de garras bem afiadas faz parte das principais histórias dos X-Men e vai ter uma perninha em «X-Men: Apocalipse». Aliás, Hugh Jackman participou em

todos os filmes X-Men, por isso não seria agora que se iria romper a tradição. Todavia, ao contrário de «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido», em que Wolverine foi um dos protagonistas, aqui a sua participação será bastante mais residual, como explica Bryan Singer: “Wolverine, como personagem central, não se encaixa nessa história em particular”. Ainda assim, o realizador realçou que a sua presença “não é simples. Há algo mais essencial que acontece. Liga com uma cena que se integra no cânone dos seis filmes e com o nascimento de uma nova direção”. Não obstante, os fãs podem ficar descansados porque ainda terão mais uma oportunidade para

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Bryan Singer 2016 é um ano especialmente pejado de filmes de super-heróis. Parte de tanto sucesso dever-se-á a Bryan Singer, que acreditou no carisma das adaptações de bandadesenhada quando o género estava algo desacreditado. O realizador começou a trabalhar em «X-Men» em 1996 e, quando este estreou, em 2000, acabaria por voltar a chamar a atenção dos espectadores para este tipo de filmes. “Não havia nenhum conceito ou modelo. Os filmes de banda-desenhada tinham morrido, só se pensava neles como sendo parolos. Aceitei o filme porque vi que os temas dele me interessavam. Via o Xavier e o Magneto como Martin Luther King e Malcolm X”, recorda. Além disso, o cineasta sentiu uma identificação especial com os mutantes: “Sou bissexual, então isso foi, provavelmente, um fator de peso, porque a mutação é descoberta naquela idade da puberdade em que és diferente da tua vizinhança inteira e da tua família e sentes-te um pouco isolado. De certa forma, isso provavelmente pesou na minha decisão de realizar o filme”. Na primeira trilogia, foi dado um grande destaque a Wolverine e Singer explica o motivo: “Através dele consigo com que este seja um filme que, por acaso, é baseado em banda-desenhada e tem cenas de ação, mas ainda é um filme, não só um género”, disse. Não obstante, há vida além dos X-Men na carreira de Singer. Aliás, antes mesmo de começar a saga mutante, o cineasta realizou «Os Suspeitos do Costume» (1995),

um filme muito apreciado pelo público e que venceu 2 Óscares. Singer fez também parte da história de uma das séries mais bem-sucedidas da última década, «Dr. House», tendo realizado o episódio-piloto, destacando-se também na sua carreira «SuperHomem: O Regresso» (2006) e «Valquíria» (2008). Portanto, está mais do que habituado à opinião dos críticos, mas confessa que não lhes dá assim muito valor: “Não gosto de citar o Woody Allen, mas ele tem toda a razão: o público nunca mente. O que conta são os espectadores. E se eles gostaram e sentiram algo, vão voltar ou contar a um amigo”. “Dentro de pouco tempo terei de enfrentar os críticos porque depois das excelentes críticas de «X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido», sou um alvo fácil. Faça o que fizer, não vão gostar. Não estou a competir apenas contra a Marvel ou a DC, mas também comigo mesmo! Se começo a preocuparme com estas coisas, a minha cabeça vai explodir”, completa. Falando noutros filmes de superheróis, Singer revela se acabam ou não por afetá-lo no momento de fazer o seu próprio filme: “Eles influenciam-me sempre! Mas, quando vou fazer um filme dos X-Men, penso: ‘A última coisa que posso fazer é tentar fazer com que um filme dos X-Men se pareça com o Cavaleiro das Trevas ou com os Vingadores’. Se vou ver um filme de ‘Star Wars’ ou qualquer saga de que goste, quero que aquele tom seja mantido”. Singer é muito atento a outras produções, incluindo na televisão, confessando-se um grande fã da série «A Guerra dos Tronos» onde até encontra similitudes com os heróis mutantes: “Existe uma ligação entre X-Men e a série. Ambos são sobre uma geração de jovens a descobrir os seus poderes, a descobrir quem são e qual é o seu

lugar no mundo. Gosto de como a série mostra diferentes grupos de pessoas rumo a um objetivo geral. Eles nem sabem qual é o objetivo certo. Quem quer sentarse naquele trono desconfortável? Eu não. Todos são miseráveis mas, por alguma razão, querem aquele poder”. Para Singer, «X-Men: Apocalipse» “é o encerrar de um ciclo. É, de alguma forma, a conclusão de uma jornada de seis filmes”. Resta agora a pergunta, conseguirá o cineasta separar-se dos seus heróis favoritos ou permanecerá no comando da saga? O cineasta responde: “Abandonar a saga é algo que não penso em fazer, mas não posso fazer outro filme de X-Men de seguida. E espero não fazer isso. Quero fazer uma pausa”. “Adoro esses heróis. Sempre adorei desde que era um nerd isolado nos anos 1980. Identifico-me muito com eles. Escolhi pessoalmente cada ator da saga e este é o quinto filme que dirijo. Sem falar que é um trabalho divertido e muito sedutor a nível criativo. É difícil pensar noutra pessoa a assumir o leme. Tinha que ser eu o tipo a cortar o cabelo do Xavier, por exemplo. Há tanta coisa para criar que só posso fazer dentro dos filmes X-Men. É tudo muito pessoal”, conclui.


Cannes

memórias & futuro Ao referir-se ao facto de cada edição do Festival de Cannes ser habitualmente conotada com um “tema” mais ou menos transversal, Thierry Frémaux, delegado geral do certame, dizia recentemente, com alguma candura, que a organização não escolhe “temáticas” — quem faz o festival são os filmes e os cineastas... É uma boa afirmação, didáctica à sua maneira, no sentido de nos fazer compreender que um festival de cinema não existe como uma colecção de filmes “ideais”, sendo antes um ponto de situação sobre algo que está em constante movimento e transfiguração, envolvendo muitas diferenças e contradições. Não há, então, responsabilidades específicas de quem escolhe e programa? Claro que sim. E a edição deste ano (11/22 Maio) começa mesmo por reforçar um princípio que, em boa verdade, tem vindo a ser enunciado ao longo da última década. A saber: a importância fundamental das memórias como fundamento de qualquer prática cinéfila, na certeza de que o cinema do presente e do futuro se enraíza num património que, de uma maneira ou de outra, se mantém vivo e actuante.

Observe-se, por isso, a riqueza da oferta da secção Cannes Classics. Como já é tradição, há uma colecção imensa de títulos em cópias restauradas, incluindo «Contos da Lua Vaga» (1953), uma das obras mais lendárias do mestre japonês Kenji Mizoguchi, «One-Eyed Jacks» (1961), bizarro e fascinante western interpretado e dirigido por Marlon Brando, e «O Poço e o Pêndulo» (1961), umas das pérolas da “série B” de Roger Corman. Isto sem esquecer que volta a crescer o número de documentários sobre a história do cinema, incluindo um que se anuncia como um monumento de inusitada ambição: «Viagem Através do Cinema Francês», um ensaio de 3 horas e 15 minutos com assinatura de Bertrand Tavernier. Entretanto, os mais cínicos dirão que a selecção oficial se limita “ repescar” os suspeitos do costume, incluindo os cineastas que já ganharam Palmas de Ouro: Luc e Jean-Pierre Dardenne («La Fille Inconnue»), Ken Loach («I, Daniel Blake») e Cristian Mungiu («Bacalaureat»). Em boa verdade, vale a pena recordar que o cinema e a cinefilia acontecem também através destas formas de fidelidade — disso e do resto aqui falaremos. JOÃO LOPES

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money monster

antevisão

cannes 2016 Raras vezes na história do Festival de Cannes, desde o ensaio para a sua fundação, em 1939, passando por sua estatização como evento anual, a partir de 1946, a Croisette recebeu uma seleção tão pop quanto a composição do cardápio competitivo e hors-concours de 2016, com

uma elite de autores de ampla adesão popular desde a sessão de abertura, com «Café Society», de Woody Allen. Embora Cannes sempre tenha sido um oásis da resistência estética em meio a um mar de ondas populares, como são hoje as marés dos filmes de super-herói, a briga

pela Palma de Ouro deste ano resolveu dar mais vazão às cartilhas de género, ciente do quanto elas podem funcionar bem como ração para o imaginário cinéfilo. Neste momento de uma desleal competição com a teledramaturgia, no qual as plataformas digitais de TV (ao lado da HBO) se impõem como a principal fonte de criatividade para o audiovisual, na estação balnear francesa pelo qual passaram nar-

rativas revolucionárias como «Os Incompreendidos» (1959), «Pulp Fiction» (1994), «Rosetta» (1999) e «4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias» (2007) resolveu reagir usando pipoca contra pipoca. Não por acaso, o Midas do mercado, Steven Spielberg, vai estar lá com seu «O Amigo Gigante» («The BFG»), apoiado pela Disney.

A presença de um par de darlings das multidões como George Clooney e Julia Roberts, protagonistas de «Money Monster», só vaticinam esse desenho mais popular que se faz presente também na briga pela Palma de Ouro. Embora tenha caído em desgraça em seu namoro com a indústria hollywoodiana após «Showgirls» (1995), o holandês Paul Verhoeven tem uma ficha corrida exemplar entre os

blockbusters, com sucessos como «RoboCop – O Polícia do Futuro» (1987) e «Instinto Selvagem« (1992) no currículo. Sua entrada na competição com suspense «Elle» é mais do que o reconhecimento de uma autoria na direção: é um afago nas engrenagens mercadológicas que enxergam no filão thriller um veio seguro para atrair plateias.


hordas de entusiastas com seu «OldBoy» (2004) e pode renovar seus votos de fidelidade com olhar ocidental com seu novo projeto: «The Handmaiden». O mesmo pode se dizer do iraniano Asghar Farhadi, que depois de sair oscarizado com «A Separação» (2011), volta aos holofotes com «The Salesman», fazendo uma homenagem ao dramaturgo Arthur Miller e seu «A Morte de um Caixeiro Viajante», pilar do teatro moderno nos EUA – e todo o Ocidente.

O mesmo pensamento pode ser aplicado para «The Neon Demon», de Nicolas Winding Refn, da Dinamarca. Fora os milhares de fãs colecionados pelo cineasta com «Drive» (2011), há uma massa de aficionados por terror que encontram naquela narrativa de luzes e sombras artificiais um lugar para chamar de seu. E a presença de Keanu Reeves no elenco pode assegurar uma amplitude de público. Há uma chance de aplicação da mesma hipótese também para o brasileiro «Aquarius», de Kleber Mendonça Filho: há nele uma centelha sci-fi, que pode mobilizar os pagantes europeus e causar frissom entre os espectadores do Brasil, onde o longa anterior do cineasta, «O Som ao Redor», inspirado por John Carpenter, virou um fenômeno indie.

Mesmo em seleções paralelas, como a Un Certain Regard, há filmes que passam pela Croisette para construir uma ponte com o Oscar. É o caso de «Captain Fantastic», de Matt Ross, que, a julgar pelas resenhas de Sundance, pode render uma estatueta ao genial ator Viggo Mortensen. Outro concorrente da UCR capaz de conquistar votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é

Sean Penn dirigindo (a talvez ex-) namorada Charlize Theron e Javier Bardem em «The Last Face» também pode suscitar filas nas salas de exibição, sobretudo nos EUA. Jim Jarmusch nunca foi um peso-pesado na receitas de projeção, mas volta agora calçado pelo galã da hora: Adam Driver, o neto de Darth Vader na nova franquia Star Wars. Na Europa, três concorrentes têm um pretérito perfeito na arrecadação com a venda de ingressos: o espanhol Pedro Almodóvar (no páreo com «Julieta»), o francês Oliver Assayas (em concurso com «Personal Shopper», cuja estrela é a vampirinha Kristen Stewart) e os belgas Jean-Pierre Luc Dardenne (na briga com «La Fille Inconnue»). E já há também um fã-clube volumoso em volta da filmografia do canadiano do Quebec Xavier Dolan, em marcha rumo à Palma com «Juste la Fin Du Monde», com a diva da hora: Marion Cotillard. Mesmo os realizadores do Oriente convocados para concorrer têm uma chancela das grandes redes de multiplex do planeta. Park Chan -wook, da Coreia do Sul, arrebatou

julieta

AQUARIUS

o desenho animado «The Red Turtle», do holandês Michael Dudok de Wit, oscarizado pelo curta-metragem «Father and Daughter» em 2001. Na Semana da Crítica se percebe uma marcha contrária, com filmes sem muito apelo (nem autores prontos). Mas, a Quinzena dos Realizadores, por outro lado, deu a si mesma o direito de ter Nicolas Cage e Willem Dafoe bancando bandidos em «Dog Eat Dog», de Paul Scharder, um mestre da direção, reconhecido na Croisette pelo roteiro de «Taxi Driver», Palma de 1976. De lá também muito se espera de «Neruda», do chileno Pablo Larraín, que botou Hollywood no bolso com «No» (2012), tendo o queridinho mexicano Gael García Bernal a seu lado. O tabuleiro está armado. Agora resta o festival começar para saber quem dará o xeque-mate em Cannes. RODRIGO FONSECA, CRÍTICO DE CINEMA E ROTEIRISTA DA TV GLOBO


AMERICAN HONEY - ANDREA ARNOLD COMPETIÇÃO

Grandes esperanças

O cinema autêntico e ultrarealista de Andrea Arnold, realizadora de «Aquário», chega aos EUA para contaminar uma ideia de sonho americano. Um sonho vivido por um grupo de jovens que durante o dia vende subscrições de revistas e à noite diverte-se na noite do Midwest. No elenco, destaca-se Shia LaBeouf, ator que já foi estrela de Hollywood mas, por agora, prefere propostas de risco.

HANDS OF STONE - JONATHAN JACUBOWICZ SESSÃO ESPECIAL DE HOMENAGEM A ROBERT DENIRO A descoberta possível de um novo cineasta. Mais um filme sobre boxe, este baseado numa história verdadeira: a relação de um treinador, Ray Arcel e o pugilista cubano Roberto Duran. Convencional ou não, já se diz que é um filme que vai fazer brilhar muito um De Niro mais envelhecido do que nunca. Os Weinstein estão por trás do projeto e poderá ser um dos títulos de Cannes que ganhará embalagem para os próximos Óscares.

ELLE - PAUL VERHOEVEN COMPETIÇÃO

O AMIGO GIGANTE - STEVEN SPIELBERG SELEÇÃO OFICIAL, FORA DE COMPETIÇÃO

Regresso de Paul Verhoeven, cineasta que foi Herói Indie do último IndieLisboa, numa altura em que a sua carreira está cada vez mais aclamada depois de um período americano marcado pelo escárnio a «Showgirls». Agora, tem um filme “francês” - pega em Isabelle Huppert e filma a história de uma mulher de meia-idade que ganha uma estranha fixação pelo seu agressor. Na Holanda, mesmo sem ninguém ter visto o filme, acredita-se que as feministas vão ficar de cabelos em pé...

Em 1982, reza a lenda, ET- O Extraterrestre, passou em Cannes e mudou a História do cinema. Acreditamos que não tenha sido exagero. Agora, regressa com uma fantasia. Será um filme estritamente para crianças esta adaptação de The BFG, de Roald Dahl? Talvez seja antes um presente para todos os cinéfilos com coração de Peter Pan. Mark Rylance é o protagonista de um conto onde uma menina estabelece uma relação com um gigante bondoso. A magia de ET pode voltar, seguramente...

São alguns dos filmes mais esperados de Cannes 2016. Um festival que parece estar à procura de uma Palma de Ouro que seja assumidamente uma obra-prima, algo que não sucedeu no último ano com «Deephan- Refúgio», de Jacques Audiard. Este ano, na seleção, presume-se que esteja aqui algum do melhor cinema norte-americano, mesmo com as ausências de nomes como Damien Chazelle («La la Land»), Derek Cianfrance («The Light Between Oceans») ou Clint Eastwood («Sully», que talvez não estivesse terminado a tempo). Para além dos americanos, uma seleção, à partida, fortíssima de cinema do mundo e nomes consagrados a representar a comitiva da casa, como Assayas, Dumont ou Guiraudie. O melhor de tudo é que podemos sempre contar com surpresas. RUI PEDRO TENDINHA

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MA LOUTE - BRUNO DUMONT COMPETIÇÃO

CAPTAIN FANTASTIC - MATT ROSS UN CERTAIN REGARD

O cineasta mais aclamado da sua geração em França volta à competição de Cannes onde já venceu por duas vezes o Grand Prix («A Humanidade», 1999 e «Flandres», 2006). «Ma Loute» parece querer retomar o tom de humor burlesco da sua anterior aventura, «O Pequeno Quinquin», que há dois anos atrás foi o ai-Jesus da Quinzaine. Juliette Binoche e Fabrice Lucchini são os protagonistas de uma história que envolve uma intriga de desaparecimentos ao longo de uma praia do norte de França. Pelo trailer, promete mundos e fundos...

Se Cannes tivesse o muito comum Prémio do Público, este filme do ator Matt Ross, seria uma espécie de vencedor antecipado.Conto sobre uma família fora do comum que tenta adaptar-se a uma utopia: uma vida em comunidade fora da sociedade e numa floresta. O patriarca é Viggo Mortensen, que interpreta este pai coragem que tem a cargo seis filhos depois da morte da mulher. Afinal, Cannes também nos traz filmes emocionais.

NERUDA - PABLO LARRAÍN QUINZENa DOS REALIZADORES

BONS RAPAZES - SHANE BLACK SELEÇÃO OFICIAL, FORA DE COMPETIÇÃO

Num ano onde não cheiramos grandes propostas de risco na seleção da Quinzaine, olhamos com entusiasmo para «Neruda», o regresso do cineasta chileno mais interessante do momento (em Portugal continuamos a aguardar o anterior, «El Club», conto muito perturbante sobre pedofilia), que entretanto já tem rodado o biopic sobre Jackie Kennedy, produzido por Darren Aranovsky. Aqui, examina as feridas da ditadura do Chile através de uma episódio de perseguição a Pablo Neruda.

Hollywood chega ao “red carpet” com um dos filmes com maior “hype” do momento, a comédia de detectives de Shane Black, o argumentista e realizador que nos anos 1980 reinventava o conceito dos buddy movies com filmes como «A Fúria do Último Escuteiro» ou os “Arma Mortífera”.Desta feita, trás Ryan Gosling e Russel Crowe, dois detetives nos anos 1970 num caso de um suicídio de uma estrela do cinema porno. Tem muito, muito bom ar.

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fotos: victor juca

daquele (e deste nosso) país, não trilhava a estrada mais disputada do Festival de Cannes. Para Kleber, a seleção pela curadoria cannoise representou a coroação da estética de risco, temperada a coentro, que caracteriza a filmografia de seu estado – Pernambuco, no Nordeste de sua pátria – e de sua cidade.

aquarius CANNES 2016 entrevista kleber mendonça filho Único representante de língua portuguesa entre os concorrentes à Palma de Ouro num ano com medalhões autorais do naipe do holandês Paul Verhoeven («Elle»), do espanhol Pedro Almodóvar («Julieta») e do iraniano Asghar Farhadi («The Salesman»), «Aquarius» abre uma vez mais para o cinema brasileiro – mais especificamente para o cinema com DNA pernambucano – o veio mais nobre de toda indústria audiovisual: o tapete vermelho da Croisette. Em dezembro, a produção foi cotada como um

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dos títulos mais importantes da América Latina deste ano numa lista de apostas da revista Cahies du Cinéma, bíblia da intelctualidade cinéfila desde a década de 1950. Chegou a hora de entender por quê. Entre 11 e 22 de maio, o balneário vai conferir o nascimento do drama, dirigido por Kleber Mendonça Filho, sobre uma jornalista (Sonia Braga) às voltas com a especulação imobiliária e com uma inusitada relação de ir, vir e repensar o tempo.

«O Som ao Redor» (2012), que totalizou 29 prêmios mundo afora, a começar pela láurea da Fipresci no Festival de Roterdão.

CINEMA E ROTEIRISTA DA TV GLOBO

Para ser o rosto-síntese de «Aquarius», Kleber convocou a paranaense Sonia Braga, estrela recordista de bilheteria nos anos 1970 e 80, que foi jurada em Cannes em 1986. Ela interpreta Clara, uma crítica de música aposentada, hoje às voltas com a possível demolição do prédio onde vive. A premissa faz da própria cidade do Recife um personagem.

“Em Cannes, os filmes viram bactérias, ou seja, contagiam olhares, gerando debate”, diz o cineasta, consagrado antes por

“É natural que a cidade faça parte dos filmes porque é lá onde eu trabalho e, por isso, ao partir para escrever um roteiro, fico pensando nela ao escolher onde as cenas vão

RODRIGO FONSECA, CRÍTICO DE

se passar. E, Recife, além de seu lado mundano, tem algo a mais que ganha uma ressignficação na tela do cinema. Fora isso, eu cresci com filmes de todos os lugares do mundo, menos do Recife. Até os filmes brasileiros se passavam em outros lugares, como o Rio de Janeiro e São Paulo”, lamenta Kleber. “Nos últimos 15 anos, contudo, a minha cidade passou a ser filmada pelo cinema pernambucano e eu colaborei com a ideia de cidade que nosso estado levou ás telas”. Desde 2008, quando Walter Salles e Daniela Thomas concorreram com «Linha de Passe» (prémio de melhor atriz para Sandra Corveloni), um longa-metragem do Brasil, falado na língua oficial

“As reações ao cinema do Recife vem sendo acima da média, como resposta a filmes muito distintos entre si, capazes de gerar debate. É comum vermos no país filmes que não acontecem, que passam despercebidos. Mas lá no Recife não tem sido assim. A produção local tem gerado boas discussões não é de agora. Vivemos recente uma leva que incluiu «O Som ao Redor», «Eles Voltam», «Tatuagem», «Ventos de Agosto», «Boi Neon» e «Animal Político». São filmes muito bons, muito diferentes entre si e feitos por cineastas que têm liberdade para expressar o que pensam. Fico feliz em ver Pernambuco no cinema como uma comunidade subdividida de modo a cada um fazer seu próprio filme, do seu jeito”, disse Kleber. A obra pregressa de Kleber já inspirou conexões com a estética de John Carpenter e até de Michael Haneke (sobretudo em «Nada a Esconder»), mas ele evita falar do que influenciou «Aquarius». “Em «O Som ao Redor», eu levei meses para me abrir sobre referências, até porque muita gente identificou muitas delas, o que torna mais fácil falar sobre processos. Mas me antecipar agora, sobre um filme que ainda não foi visto, não é uma coisa boa. Tento fazer com que o filme tenha um ambiente totalmente natural de recepção, seja ela positiva ou negativa, aberta para referências”, diz o realizador, cujo primeira longa foi o documentário

«Crítico»(2008). Inédito aos olhos da crítica em sua nação de origem, «Aquarius» vem sendo enquadrado, ainda que prematuramente, numa tendência temática brasileira que se chama de «Classe Média Blues», rótulo nascido no ambiente acadêmico para definir longas com personagens ligados a essa faixa econômica, vide «Casa Grande», de Fellipe Gamarano Barbosa, e «Que Horas Ela Volta?», de Anna Muylaert, e o próprio «O Som ao Redor» – e todos tiveram grande sucesso no exterior. “Este filme expande questões que já abordei em outros filmes, embora seja bem diferente deles, mas o que me deixa mais ansioso é a possibilidade de ele gerar reações, interações, conexões. Algumas reações que eu já tive até agora, de quem mostrei, é a de que ele seja um filme político. Mas todos os filmes são políticos de alguma forma. O caso é que, com a situação política pela qual o Brasil passa hoje, é impossível algo não respingar no que fazemos”, diz Kleber. “Quando se capta um clima, ele é parte de uma obra de arte. Mas é importante saber que «Aquarius» foi escrito há três anos e filmado no ano passado, ou seja, veio antes de tudo isso que está aí”. Além de «Aquarius», vai ter sangue nacional em Cannes também na briga pela Palma dos curtas-metragens, com «A Moça Que Dançou com o Diabo», produção paulista de João Paulo Maria Miranda. Na mostra Cannes Classics, entrou o documentário «Cinema Novo», do carioca Eryk Rocha, sobre o movimento que conduziu a estética cinematográfica do país à modernidade nos anos 1960.


O contrário da utopia Nos nossos dias de muitos pessimismos, a utopia é coisa pouco comum. Provavelmente, já ninguém acredita nos amanhãs que cantam... O que está na moda é a distopia. Um exemplo esclarecedor pode ser o filme «A Lagosta», do grego Yorgos Lanthimos (ver texto mais à frente), que arrebatou o prémio do júri em Cannes/2015. O dicionário ajuda-nos a compreender: trata-se de organizar a descrição de sociedades em que tudo está organizado de forma opressiva e assustadora, “por oposição à utopia”. Não admira que haja uma história cinematográfica das distopias — ou uma história das distopias cinematográficas. De facto, na sua qualidade de metódico barómetro dos nossos medos e ilusões, o cinema tem encenado países imaginários cujos medos e inquietações podem ser, afinal, muito palpáveis — a começar por esse filme genial e emblemático que é «Metropolis» (1927), de Fritz Lang, aqui evocado através dos labirintos da sua monumental cidade. Nas páginas que se seguem, propomos uma pequena galeria de filmes distópicos, combinando alguns dos mais célebres com outros que não ultrapassaram uma audiência limitada, mesmo quando se transformaram em objectos de culto. Em qualquer um deles, sentimos que as fronteiras da nossa identidade são desafiadas e, de alguma maneira, redesenhadas. JOÃO LOPES

metropolis (1927)


distopias

ALPHAVILLE (1966) Na memória corrente da Nova Vaga francesa, esta prodigiosa narrativa de Jean-Luc Godard é, por certo, um dos títulos menos citados. Em parte, compreende-se porquê: na descrição da evolução temática e formal do seu realizador, compreende-se “mal” que Godard tenha realizado este policial futurista no meio de coisas tão obviamente marcadas por temas sociais e convulsões ideológicas da época como «Uma Mulher Casada» (1964) ou «Pedro, o Louco» (1965). Na verdade, perpassa por aqui a questão fulcral da (im)possibilidade do amor, projectada num tempo de opressão social e política em que o detective Lemmy Caution (Eddie Constantine, retomando uma personagem que já interpretara em filmes de algum sucesso) tenta salvar a frágil Natach von Braun (Anna Karina). O fascinante efeito de estranheza do filme passa por uma essencial opção de rodagem: tirando partido das novas películas hiper-sensíveis, a preto e branco, que a Kodak tinha acabado de lançar, Godard pediu ao seu director de fotografia, Raoul Coutard, que arriscasse filmar sempre com a luz disponível nos cenários parisienses, não usando reflectores ou luzes de compensação. Resultado prático: Paris surge como a mais realista das cidades e também a mais obscura e inquietante.

LARANJA MECÂNICA (1971) Como dizia o célebre cartaz original, estas são “as aventuras de um jovem cujos principais interesses são a violação, a ultra-violência e Beethoven”. Inspirado no romance de Anthony Burgess, Stanley Kubrick conta a história de Alex (Malcolm McDowell) como uma parábola voraz sobre o fim do mundo — se há uma classe de filmes visionários, este tem nela um lugar de destaque, justificando o culto que permanece.

O PROCESSO (1963) Há uma ironia cruel para descrever livros como “O Processo”, de Franz Kafka: são impossíveis de adaptar ao cinema. Talvez, a não ser que sejam filmados por alguém como Orson Welles... Com Anthony Perkins (três anos depois de «Psico») vagueando no corredores labirínticos de uma dantesca burocracia, eis um filme em que o gigantismo dos cenários envolve uma perturbante dimensão intimista. Trata-se, afinal, de representar a (des)ordem do mundo.

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THX 1138 (1971) – A imagem de George Lucas como mago de «A Guerra das Estrelas» é francamente redutora. Afinal de contas, ele é o autor desta saga envolvente, distópica por excelência, situada numa sociedade totalitária do século XXV. Com Robert Duvall e Donald Pleasence, «THX 1138» constitui uma das referências nucleares no processo de transfiguração de Hollywood que Lucas, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola, entre outros, iriam protagonizar (Coppola é, aliás, um dos produtores).

MAD MAX (1979) Aconteceu 36 anos antes de «Mad Max: Estrada da Fúria»: George Miller iniciava a sua saga sobre um futuro pontuado por dantescos combates travados em cenários desérticos, entregando o papel do herói a um ilustre desconhecido chamado Mel Gibson. Efeitos especiais? Talvez, mas a energia de tudo isto começava na sensação de regresso a uma natureza selvagem, primitiva em todos os seus elementos e valores, paradoxalmente carregada de simbologias futuristas. WESTWORLD (1973) Muito antes de ficar célebre pelas adaptações do seu livro Parque Jurássico, Michael Crichton estreouse na realização com esta aventura de um outro parque: um complexo turístico em que a vida de uma cidade do velho Oeste é reconstituída através de robots “humanizados”... Digamos, para simplificar, que a maquinaria dos robots não é fiável, vindo a questionar a própria confiança neles depositada pelos humanos — o resultado é uma espécie de “western” virado do avesso, irónico e inquietante.

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A SCANNER DARKLY (2006) – De «Blade Runner» (1982), de Ridley Scott, a «Relatório Minoritário» (2002), de Steven Spielberg, muitas vezes a obra de Philip K. Dick (1928-1982) tem sido convocada pelo cinema. Este será um dos exemplos mais sofisticados e também, infelizmente, mais esquecidos dessa relação. Recuperando a antiga técnica da rotoscopia (com as imagens desenhadas a partir

de um registo prévio dos actores), já por ele utilizada em «Waking Life» (2001), o realizador Richard Linklater faz o retrato de um futuro próximo e indefinido em que os EUA estão sob o jugo de uma conspiração de drogas, pontuada por mecanismos de hiper-vigilância. A sensualidade dos movimentos e das cores confere ao filme uma originalidade visual (e também narrativa) que, nos últimos tempos, tem

sido metodicamente anulada pela rotina dos efeitos especiais para “super-heróis”. Além do mais, este é um filme que resulta de uma verdadeira reunião de notáveis, com Steven Soderbergh e George Clooney entre os produtores executivos e um elenco que inclui, entre outros, Keanu Reeves, Robert Downey Jr., Woody Harrelson e Winona Ryder.


TENAZ COMO UMA THE LOBSTER

Talvez já se tenha colocado a questão: se fosse um animal, que animal seria? Um exercício de imaginação ou talvez de vaidade para entreter tempos mortos. Em «A Lagosta» a escolha deixa de ser hipotética e torna-se em algo real. Mais do que isso, torna-se numa punição, no pior dos destinos. Situado num futuro próximo, o filme conta a história de uma sociedade distópica onde os solitários têm apenas 45 dias para encontrar um parceiro ou serão transformados num animal. Este, poderá ser da sua esco-

lha caso falhem na sua missão mas cumpram todas as regras ou num atribuído pelas autoridades que será tão mais fraco e de vida perene quanto a gravidade das ofensas. O protagonista David (interpretado por Colin Farrell) escolhe ser uma lagosta por esta ter uma longa longevidade, sangue-azul como os aristocratas e ser fértil durante toda a vida. E porque gosta do mar. Esta descrição, a um tempo racional e patética, marca o tipo de humor que percorre todo o filme. A aridez dos diálogos, ditos de forma

LAGOSTA mono-tónica e sem emoção, com explicações que se tornam surreais de tão racionais, resultam em momentos hilariantes que garantem o sucesso do filme. Quando recebi a sinopse estava preparado para ver algo como uma das inúmeras adaptações de «A Metamorfose» de Kafka ou o clássico «A Mosca» (1986) de David Cronenberg com todos os efeitos especiais e de caracterização das fases de transformação. Mas esse não é o interesse de Lanthimos e toda a parte da trans-

formação é ocultada: apenas vemos uma porta que dá acesso ao local onde esta se realiza e duas linhas de diálogo com uma fugaz descrição do processo. O que parece interessar ao realizador é a desesperada tentativa de racionalização do ser humano perante o absurdo da vida. Tal como já o tinha feito nas obras anteriores – sobretudo em «Canino» (2009) - Lanthimos caminha em terrenos difíceis, próximos do universo de Michael Haneke. Em ambos, os modos e processos da civilização são vistos como absurdos e desumanos.

Em «A Lagosta» a reflexão é feita sobre a necessidade, ou mesmo, a obrigatoriedade, de constituir família: de casar e ter filhos. Numa época em que o casamento e a adopção estão a ser vistos como uma certeza do politicamente correcto e não como um modelo normativo asfixiante ou uma instituição falida, a questão tornase mais do que pertinente. Mas voltemos ao argumento. David, ao chegar ao hotel, faz amizade com dois “condenados”: um


coxo (Ben Whishaw) e um sigmático (vulgo “sopinha-de-massa”), interpretado por John C. Reilly. O trio discute as suas probabilidades de sucesso e as suas estratégias para consegui-lo. Cada um seguirá um caminho diferente: o coxo opta por enganar o sistema, o sigmático prefere iludir-se e acreditar que terá sucesso, enquanto que o herói irá contra o que lhe é imposto: primeiro foge do hotel para se juntar aos “solitários” e depois deixa-os para se juntar à Cidade. O herói percebe que ambos os sistemas são igualmente totalitários: se o primeiro obriga ao casamento, o segundo impõe a solidão. Um faz anátema da masturbação, o outro proscreve as relações sexuais. Será com uma míope (Rachel Weisz) e graças a um derradeiro sacrifício que consegue vencer o sistema. A escolha dos actores, pese embora tenha funcionado, é algo desconcertante. Habituados que estamos a ver Colin Farrell no papel de galã musculado é uma surpresa vê-lo aqui barrigudo, com óculos, bigode e penteado a lembrar Geraldo Rivera. Mas Farrell mostrou-se à altura das exigências e foi devidamente reconhecido com vários prémios que lhe foram atribuídos pela sua interpretação. A ombreá-lo esteve Olivia Colman maravilhosamente no papel de directora do hotel; mas, de resto, os actores não tiveram interpretações de nota, talvez porque as personagens atribuídas eram justamente de pessoas anónimas, anódinas e alexotímicas: para as representarem tiveram que desaparecer. As roupas que envergam são tão sensaborronas quanto as personalidades das personagens. Numa das cenas – um baile no hotel – todas as mulheres estão com

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LÉA SEYDOUX

COLIN FARRELL/RACHEL WEISZ

o mesmo vestido e os homens com o mesmo fato e gravata. Não se entenda isto, contudo, como uma falha; antes pelo contrário os figurinos de Sarah Blenkinsop são perfeitos para as personagens e para os cenários. Aliás, todo o filme tem uma enorme coerência visual. Por exemplo, o luxuoso Parknasilla Spa Resort de County Kerry (Irlanda) onde foram filmadas as cenas do Hotel, aparece com uma decoração impessoal e sem alma típica das grandes cadeias internacionais de hotelaria. Este é um mundo sem emoção nem gosto pessoal onde tudo é uniformizado e formatado. Coube à magnífica banda sonora preencher os vazios de sentimento e envolver as cenas como um bafo de calor humano.

A coerência que teve visualmente não parece ter sido alcançada de forma tão eficaz no que diz respeito ao argumento. O filme, por vezes, parece ser a adaptação de um livro mais complexo e que deixou partes omissas. Há várias passagens em que é exigido ao espectador que as complete com a sua imaginação. Se são falhas ou figuras de estilo caberá a cada um decidir. Mas, de forma geral, esta foi uma obra bem conseguida e, ironicamente, ao apresentar-nos um mundo cinzento, sem marcas pessoais ou identidade acabou por se tornar em algo com sabor, diferente e tenaz... como uma lagosta. NUNO VAZ DE MOURA

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o silêncio dos inocentes

JODIE FOSTER talento que brilha

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Atriz americana, realizadora e produtora. Jodie Foster nasceu em 1962, em Los Angeles, Califórnia, e com apenas sete anos começou a representar em séries televisivas. Foster é um talento precoce e passou parte da sua infância e adolescência a filmar, tendo entrado em mais de 30 séries televisivas entre os sete e os catorze anos. No cinema sobressaiu muito cedo pela mão de Martin Scorsese, com quem rodou os seus dois primeiros filmes: «Alice Não Mora Aqui» (1974) e «Taxi Driver» (1976), onde interpretou uma jovem prostitu-

ta, um papel que lhe valeu, as 14 anos, uma primeira nomeação para um Óscar na categoria de melhor atriz secundária. Nesse mesmo ano filmou «Bugsy Malone» (1976), de Alan Parker, um clássico sobre gangsters protagonizado por um elenco de adolescentes. Foster trocou a televisão pelo cinema e até à idade adulta integrou o elenco de mais sete comédias familiares ou dramas sobre a adolescência. A jovem atriz nunca parou de filmar, e sempre fez um esforço tremendo para conciliar a representação com os estudos, frequentando o Liceu Francês de Los Angeles, durante a infância, e a Universidade de Yale, no inicio da idade adulta, onde concluiu a formação em literatura. No entanto, o seu percurso público foi abalado, em 1981, quando John Hinckley Jr., um homem perturbado, tentou assassinar o presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan, declarando que pretendia chamar a atenção da atriz. Este episódio condicionou a sua carreira e na década de oitenta a atriz entrou em sete filmes de baixo orçamento, com qualidade duvidosa ou deficiente distribuição e que permaneceram na obscuridade. A situação mudaria quando participou numa audição para integrar o elenco de «Os Acusados» (1998) de Jonathan Kaplan. Ganhou o papel de Sarah, uma jovem que é violada num bar e testemunha em tribunal contra os homens que abusaram dela. O desempenho seria reconhecido com o Globo de Ouro e o Óscar de melhor atriz. Apesar disso, o seu filme seguinte, «Testemunha Invo-

taxi driver

luntária» (1991), realizado e interpretado por Dennis Hopper, seria mais um passo em falso. Foster precisou de mais um filme para consolidar o seu estatuto de estrela relevante, o que aconteceu com o desempenho de Clarice Sterling em «O Silêncio dos Inocentes» (1991), de Jonathan Demme, com o qual ganhou o segundo Óscar de melhor atriz. Finalmente tinha condições para selecionar melhor os seus projetos e isso levou-a a inverter o rumo realizando o seu primeiro filme, «Mentes que Brilham» (1991). Não obteve um bom resultado financeiro mas foi um sucesso junto da crítica e esse reconhecimento levou-a a realizar um segundo filme, «Fim-de-semana em Família» (1995). A década de noventa foi um período positivo e os resulta-

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sala de pânico

dos mostraram que Jodie Foster é mais popular como atriz do que como realizadora. «Maverick» (1994), um western cómico, onde contracenou com Mel Gibson, foi um enorme sucesso de bilheteira, e «Nell» (1994), onde interpretou o papel de uma eremita, valeu-lhe a quarta nomeação para um Óscar. Seguiram-se «Contacto» (1997), de Robert Zemeckis, «Sala de Pânico» (2002), de David Fincher e «Pânico a Bordo» (2005), de Robert Schwentke - estes filmes confirmaram a sua capacidade para liderar sucessos de bilheteira. Nesse período, Foster foi vista em filmes menos populares mas igualmente interessantes como «Um Longo Domingo de Noivado» (2004), de Jean-Pierre Jeunet, «Infiltrado» (2006), de Spike Lee, e «A Estranha em Mim» (2007), de Neil Jordan. Nos últimos sete anos rodou muitos menos filmes do que na infância. Vimo-la nos elencos de filmes tão diferentes como «Elysium» (2013) de Neill Blomkamp, e «O Deus da Carnificina» (2011) de Roman Polanski. Realizou «O Castor», onde dirigiu o amigo Mel Gibson, três episódios de séries televisivas, e «Money Monster» (2016), com a dupla George Clooney e Julia Roberts. Foi um período em que a atriz dedicou mais tempo à sua família, assumindo publicamente a sua homossexualidade e concentrando a atenção na educação dos seus dois filhos. TIAGO ALVES

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1970. Mas depois do fenómeno de bilheteria que «Homem de Ferro 3» tornou-se, facturando US$ 1,2 bilhão mundo afora tendo Black como realizador. Cannes recebe o filme hors-concours, mas com ansiedade, não apenas pelo tapete vermelho estrelar que a produção garantirá à Croisette, mas para entender melhor a cabeça criativa que, três décadas atrás, deu ao cinema de ação um novo ethos, distanciando o filão de seu parentesco com o faroeste e aproximando-o de uma elegância noir ainda bruta, mas cheia de charme. E fez tudo isso quando tinha apenas 22 anos e concebeu o argumento de «Arma Mortífera» (1987), com Mel Gibson e Danny Glover. Naquela época, com a primeira aventura do detetive Martin Riggs e do sargento Roger Murtaugh, Black introduziu no género o conceito do herói kamikaze, cuja disposição para morrer era tão grande quanto a aptidão (e a disposição) para matar. Seu gesto foi exemplar e rendeu frutos como «Assalto ao Aranha-Céus» (1988), com Bruce Willis, redefinindo o conceito do heroísmo na tela grande ao trazer uma fractura psicológica para adicionar tridimensionalidade aos protagonistas. Não por acaso, o Tony Stark playboy e ébrio de Robert Downey Jr. na franquia do Vingador Dourado da Marvel caiu-lhe nas mãos, as de roteirista e as de diretor. E a escolha do estúdio Disney deu certo. Por quase dez anos, entre 1996 e 2005, o nome dele foi um prenúncio de desastre para os produtores, graças ao fracasso de projetos como «A Fúria do Último Escuteiro» (1991), nos quais gastou-se muito e facturouse pouco. Para evitar acusações e deboches, ele saiu de cena. Mas resolveu voltar à cena fazendo algo mais do que escrever. Dirigir virou um verbo de ação para Black quando ele resolveu filmar as peripécias de um astro em crise (Downey Jr.) com um detetive gay (Val Kilmer):«Kiss Kiss Bang Bang». Foi uma premissa simples e rápida, para filmar com trocos dos cofres da Warner,

shane black o argumentista prodígio

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Sempre acompanhado de um cigarro electrónico, para sublimar em vapor a tensão de alternar a pena de escritor com a câmara de diretor, Shane Black pagou caro o preço de ter sido o argumentista mais bem pago de Hollywood nos anos 1980 e início de 1990, mas vem dando o troco filmando (e ainda escrevendo) o que bem quer, vide «Bons Rapazes». Não é qualquer nome na Meca da indústria do audiovisual com cacife para ter Ryan Gosling e Russell Crowe juntos, em situações embaraçosas, numa versão ébria e chapada dos anos

bons rapazes

homem de ferro 3

kiss kiss bang bang

mas a encomenda saiu melhor do que se esperava. O projeto não faturou aos tubos, mas virou culto. Dali, ele recebeu o sinal verde para criar como quisesse, sendo até chamado para a TV, via Amazon Studios, para rodar um western: «Edge» (2015). É hora agora de ver o que os investigadores de «Bons Rapazes» podem fazer pela memória desse prodígio que teve a sabedoria de não desistir – e a sorte de acertar. RODRIGO FONSECA, CRÍTICO DE CINEMA E ROTEIRISTA DA TV GLOBO

arma mortífera

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O Náufrago

tom hanks

O ator não escolhe um papel mau há mais de duas décadas. Mas ainda não ganhou o Óscar que o colocará num patamar superior. Regressa no novo filme de Tom Tykwer, «Negócio das Arábias». TIAGO ALVES

o ator mais familiar

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O teatro foi a porta de entrada de Tom Hanks no mundo da representação, do showbiz e do entretenimento. Um dos atores mais poderosos de Hollywood, que celebra 70 anos no próximo dia 9 de julho, estudou teatro na Universidade Estadual da Califórnia. Começou nos palcos onde durante três anos, entre 1977 e 1980, passou os verões a representar em produções adaptadas de William Shakespeare pela companhia teatral Great Lakes, no Ohio, enquanto que durante o inverno trabalhava numa companhia de teatro em Sacramento. Nesse período recebeu o seu primeiro prémio atribuído pelo círculo de críticos de teatro de Cleveland, pelo desempenho de Proteu em «Os Dois Cavalheiros de Verona». Em 1980 mudou-se para Nova Iorque, participou em diversas audições, ganhou um papel num thriller e foi contratado para integrar o elenco de várias séries televisivas do canal ABC. O seu primeiro grande sucesso chegaria pela mão de Ron Howard que o escolheu para um papel secundário em «Splash: A Sereia» (1984) e, posteriormente, acabou por lhe atribuir o desempenho principal. No entanto, os sete filmes seguintes não correram tão bem do ponto de vista financeiro e foram desvalorizados pela critica que pontualmente elogiava os desempenhos do ator. O esforço foi recompensado quatro depois de «Splash», com «Big» (1988), de Penny Marshall, o filme que lhe valeu a primeira nomeação para um Óscar de melhor ator pelo desempenho de um menino de 13 anos no corpo de um homem com

Os Dois Cavalheiros de Verona

35. Nos anos seguintes tardou em conciliar sucesso comercial com o reconhecimento crítico, apesar de ter rodado filmes diferentes como a comédia «Joe Contra o Vulcão» (1990), de John Patrick Shanley, e o drama «A Fogueira das Vaidades» (1990), de Brian De Palma. A sua relevância como ator cresceria imenso em dois filmes distintos, «Sintonia de Amor» (1993), de Nora Ephron, e o drama «Filadélfia», de Jonathan Demme, onde assumiria um papel de um advogado infetado com vírus VIH. Na época a opção do ator foi considerada corajosa porque este foi dos primeiros filmes em Hollywood a lidar com o preconceito da homosse-

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(2001) onde contracenou com Julia Roberts, a atriz com quem já tinha filmado a comédia política «Jogos de Poder» (2007), de Mike Nichols. Nas suas escolhas mais recentes valorizou personagens que se distinguem pelos seus feitos ou contexto: um pai que morre e deixa um enigma para o filho em «Extremamente Alto, Incrivelmente Perto» (2011), de Stephen Daldry, um herói improvável em «Capitão Phillips» (2013), de Paul Greengrass, Walt Disney em «Ao Encontro de Mr. Banks» (2013), de John Lee Hancock, o negociador hábil da guerra fria em «A Ponte dos Espiões» (2015), de Steven Spielberg, e um empresário norte-americano em apuros no drama «Negócio das Arábias» (2016), de Tom Tykwer. Já o vimos em papéis memoráveis e situações tremendamente distintas mas ainda falta aquele papel que fará novamente a diferença e que lhe valerá o terceiro Óscar, algo que só Daniel Day Lewis conseguiu.... e que Tom Hanks não ganhou quando foi nomeado pela quarta e quinta vez em «O Resgate do Soldado Ryan» e «O Náufrago».

BIG

xualidade. Hanks ganharia o seu primeiro Óscar de melhor ator e só precisou de esperar um ano para repetir a proeza com «Forrest Gump» (1994), de Robert Zemeckis. A partir daí firmou-se como uma estrela de categoria e terminaria o século passado com uma sucessão de filmes memoráveis e diferentes: «Apollo 13», (1995), novamente sob direção de Ron Howard, «Toy Story» (1995) e «Toy Story 2» (1999), onde interpretou a personagem do cowboy Woody, «Você tem Mensagem» (1998), de Nora Ephron, «O Resgate do Soldado Ryan» (1998), de Steven Spielberg, «The Green Mille – À Espera de Um Milagre» (1999) de Frank Darabont, e «O Náufrago» (2000), de Robert Zemeckis. Foi ainda durante este período que arriscou realizar o seu primeiro filme, «O Sonho Não Acabou» (1998). Neste período, a cereja no topo do bolo foi a consagração com o Lifetime Achievement Award, do American Film Institut, que aconteceu em 2002. Hanks tornou-se no ator mais jovem a receber essa honra. O seu percurso demorou a consolidar mas a partir do momento em que se tornou uma cara reconhecida ele passou a ser um elemento fulcral para o sucesso dos filmes em que participava. E passou a escolhê-los cada vez mais centrado na personagem, no realizador ou no projeto. «Caminho Para a Perdição» (2002), de Sam Mendes, «Apanha-me Se Puderes» (2002) e «Terminal

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BIG

de Aeroporto» (2004), ambos de Steven Spielberg, «O Quinteto da Morte» (2004), de Joel e Ethan Coen, e o projeto de animação «Expresso Polar», de Robert Zemeckis, são exemplos dessa escolha criteriosa. Depois surgiu a escolha mas fácil, óbvia, menos interessante, mas que o projetou definitivamente para o estatuto de uma das estrelas mais rentáveis de Hollywood: Hanks assumiu a personagem de Robert Langdon em «O Código da Vinci» (2006), de Ron Howard, série que desenvolveria nas sequelas «Anjos e Demónios» (2009), e «Inferno» (2016). Este mega sucesso não o impediu de continuar focado em filmes com uma escala mais pessoal. Realizou a longa-metragem «Larry Crowne»

FOREST GUMP


cemitério do esplendor entrevista EXCLUSIVA APICHAPTON WEERASETHAKUL

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Cronista da selva, apaixonado por bestas mais próximas da alegoria e da tragédia existencial do que da selvageria animal, o tailandês Apichaptpong Weerasethakul volta às telas portuguesas com um cinema que congrega fábula, videoarte, mitologia e existencialismo numa mistura autoral com cheiro de mata molhada. Seu novo longa-metragem, «Cemitério do Esplendor», exibido na mostra Un Certain Regard de Cannes em 2015, é mais uma viagem metafísica pela Ásia. Consagrado com a Palma de Ouro por «O Tio Boonmee que se Lem-

bra das Suas Vidas Anteriores», em 2010, o diretor de 45 anos investiga agora uma praga do sono que coloca um exército num estado letárgico. O enredo é uma metáfora sobre a sonolência política de hoje em dia. Nesta entrevista, o cineasta, que se apresenta com o apelido de “Joe” para simplificar a pronúncia ocidental do seu quilométrico nome, fala sobre os riscos (e as poéticas) inerentes ao verbo “dormir”. RODRIGO FONSECA, CRÍTICO DE CINEMA E ROTEIRISTA DA TV GLOBO

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«Cemitério do Esplendor» retrata uma doença do sono que deixa soldados tailandeses em um estado de letargia incontornável, como numa espécie de morte sonolenta. Essa sonolência seria uma metáfora das nossas moléstias contemporâneas? APICHAPTONG WEERASETHAKUL – Poder-seia pensar em fuga, pois o sono, neste filme, pode representar tanto um mecanismo para escaparmos da realidade à nossa volta ou uma reflexão sobre a nossa incapacidade de controlar as narrativas. Eu sou atraído por fronteiras, seja a fronteira entre a realidade e a ficção ou entre a Vida e a Morte. Dormir é um caminho que temos para navegar entre essas fronteiras e sair de lá com inquietações..

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De que maneira prática a fronteira entre realidade e ilusão se processa no seu cinema? O cinema não comporta uma realidade dentro de si, porque ele é feito de diferentes camadas de ilusão. Fazer cinema é controlar o ilusório. O senhor está preparando agora uma ficção científica. Como será o projeto? Será, como sempre, um ensaio sobre o Tempo. Ele é fruto de uma relação adolescente com esse género. Cresci em um momento no qual o mercado editorial da Tailândia sofreu uma invasão de romances sci-fi estrangeiros, que eram traduzidos para a nossa língua. Eles conviviam muito bem, em nosso imaginário, com as fábulas locais. E isso me fez ver

que a ficção científica não é apenas uma questão de futuro, mas também de memória, de mundos alternativos. Que tradições folclóricas mais despertam o seu interesse como criador, uma vez que seus filmes são embebidos de folclores xamânicos da Ásia? Tenho enorme curiosidade pelas técnicas medicinais xamânicas latinas, para entender de que forma elas podem gerar visões. Essas visões são uma forma alternativa de cinema. Já é possível notar uma nova Tailândia nas telas desde que o seu cinema explodiu no mundo? O que mudou na indústria local? Na Tailândia, cada vez mais, contratempos económicos geram

um entretenimento pálido, de potência fugaz, concebido à pressa para levantar dinheiro nas bilheterias, alcançando apenas plateias adolescentes. Lamento notar que tanto os cineastas independentes quanto os realizadores conectados a estúdios buscam hoje uma saída deste nosso sistema cinematográfico anémico, indo atrás de outros públicos, a partir de coproduções com países vizinhos. Eu não sei ainda o quanto o nosso cinema consegue refletir a nossa realidade por conta da censura do governo. Mas, de modo geral, estamos vivendo um tempo de abertura para produções de escala maior e, quase sempre, elas se aproximam do escapismo.

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superar as de «O Tigre e o Dragão» (2000), considerado um marco do género.

Shu Qi

a assassina entrevista EXCLUSIVA Hou Hsiao-Hsien Tempo e alma parecem substantivos sinônimos nos filmes de Hou Hsiao-Hsien desde «A Grama Verde de Casa» (1982), quando o ambiente escolar parecia alimentar nos seus personagens uma certa sensação de juventude perene, uma pertença contínua a uma fase na qual as descobertas sensoriais são mais possantes do que os deveres. Pareceu, portanto um desafio para o cineasta taiwanês de origem chinesa, na sabedoria de seus 69 anos, transpor essa visão metafísica sobre o espírito humano para um

período histórico mais ancestral (o século IX) e para um formato de gênero bem demarcado: no caso, a cartilha das artes marciais. Essa transposição tem nome: «A Assassina» (Nie Yin Niang), um thriller capa & espada pelo qual o realizador ganhou o prémio de melhor diretor no Festival de Cannes de 2015, sendo ainda eleito um dos melhores filmes do ano passado. Aclamado mundialmente por dramas de tintas existenciais como «Poeira no Vento» (1986) e «Café Lumière» (2003), Hsiao-Hsien aqui apela para a violência numa operação desconstrutiva para isolá-la de sua brutalidade essencial, retratando socos e chutes com uma poesia visual rara, digna da pintura chinesa. RODRIGO FONSECA, CRÍTICO DE CINEMA E ROTEIRISTA DA TV GLOBO

“Vivemos hoje um tempo em que Hollywood reina soberana nas salas de exibição, ao contrário do que eu vi nos anos 1960, quando comecei a estudar, e havia uma leva autoral, chamada de cinemanovismo, do qual saiu a Nouvelle Vague francesa, a partir da qual os longas traziam radicalidade em seu olhar sobre o mundo”, lembrou Hsiao-Hsien em entrevista a METROPOLIS de Cannes. “De alguma forma, eu sigo a filmar com a esperança de que os filmes não se rendam à pobreza estética. Por isso, abrir brechas para riscos como encarar gêneros que já alcançaram fôrmas bem estabelecidas”.

“Minha inquietação maior aqui era explorar o universo feminino enquadrado a partir de um ambiente de muita contradição política. Viajamos no Tempo até uma China em ebulição, na qual a literatura e as artes plásticas abriam espaço para a fabulação. É um país de muitas cores, que eu tento buscar num certo trecho da minha narrativa”, disse o diretor, que, num gesto contraditório à primeira vista, optou pelo preto e branco no trecho inicial da sua mais recente longa-metragem. “A questão do preto e branco foi quase instintiva para mim, numa reação à violência: estava narrando a história de uma mulher cuja profissão é matar, o que, em si, já me soa assustador. Tirar a cor foi uma forma de diluir a crueldade. Mas a cores entram na hora que ela precisa decidir um caminho, decidir que rumos tomar em relação à tarefa de matar”. Alguns dos mais prestigiados jornais europeus abriram páginas inteiras para elogiar «A Assassina» na Croisette. Sua trama se concentra numa missão da matadora Yinniang (Shu Qi), que caiu em desgraça diante de seus patrões após ter falhado na tarefa de matar um aristocrata, apiedada dele ao vê-lo com um bebê no colo. Para recuperar sua honra, ela deve cruzar o país e matar seu primo, por quem ela é apaixonada há tempos. O dilema entre o dever e o desejo norteia a narrativa, marcada por sequências de batalha de tirar o fôlego, com toda a sorte de armas orientais.

Coalhada de adrenalina, «A Assassina» narra a saga de uma matadora de aluguel com sequências de ação capazes de Hou Hsiao-Hsien

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“Há uma complexidade central para encarar esse filão, quando não se é experiente nele: proteger os atores, que podem sair machucados se não forem experts em luta. Eu passei por essa situação com as minhas atrizes, pois elas terminaram as filmagens com uma série de ferimentos”, explicou o diretor, que usou a referência dos filmes de samurai do Japão. “Eu me impressiono com a tradição japonesa dos épicos marciais até hoje pela habilidade com que os diretores administram o realismo na condução e na captação das lutas. Se você não crer na habilidade de um guerreiro em manusear a espada na tela, você perde todo o coeficiente de verossimilhança da trama e perde o coeficiente trágico do que é narrado. Meu cuidado

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era preservar esse realismo da tradição sem perder o que eu buscava fazer: uma reflexão universal sobre a angústia de escolher um caminho, na vida e na profissão”. Laureado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1989 por «A Cidade do Desencanto» e ganhador do Grande Prêmio do Júri em Cannes por «Mestre das Marionetes» em 1993, HsiaoHsien passou oito anos sem lançar longas, dedicando-se à direção do Festival de Taipei, em Taiwan, onde vive desde garoto. Nos fim dos anos 1980, ele foi considerado pelos pesquisadores da linguagem cinematográfica como uma das maiores promessas para a renovação da arte de fazer filmes. A julgar pelas resenhas publicadas

sobre o périplo marcial Yinniang, seu trabalho mais recente é um exercício de excelência visual. “Tenho muita vontade de fazer mais um filme de artes marciais para ter a certeza de que consigo dominar o género”, diz HsiaoHsien. “Estava acostumado a fazer filmes muito simples e baratos em quesitos de produção, mas aqui, como se trata de uma reconstituição histórica, era necessário uma verba maior. Dependo do sucesso da aventura de Yinniang para saber se consigo filmar de novo nessa ambientação. Mas, tenho a sensação que é possível, pois criei um público fiel ao longo do tempo”.

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por palavras aquilo que senti mas gostei mesmo do argumento. E ao pensar nas poucas actrizes que podiam interpretar este papel uma delas seria a Juliette Binoche. Enviei o argumento à Juliette, uma pesssoa que eu já conhecia, e ela disse que sim. É uma história que combina perfeitamente a força da natureza com a força e a resistência humana. O filme é uma jornada ao Polo Norte mas para a Josephine é uma travessia na auto-descoberta ao deparar o que se passa com o marido e descobre os seus próprios limites.

juliette binoche

ninguém quer a noite

entrevista isabel coixet Isabel Coixet é uma realizadora da Catalunha que há muito deu o salto para fora do seu país em termos de produção, realizou filmes como «A Vida Secreta das Palavras» (2005), «Elegia» (2008) e «Learning to Drive» (2014) sendo uma pioneira a trabalhar com elencos estrangeiros onde se incluem grandes nomes da interpretação como Tim Robbins, Ben Kingsley, Penélope Cruz e Patricia Clarkson. O seu último trabalho, «Ninguém quer a Noite», abriu a Berlinale em 2015 e teve uma recepção fria. O filme é uma experiência visualmente impressionante numa

luta, baseada em factos verídicos, entre a resistência e a resilência de duas mulheres face ao inverno no Polo Norte onde cai a noite durante várias semanas. Um filme inspirado numa história paralela mas não menos épica da conquista do Polo Norte, Josephine Peary (Juliette Binoche) casou-se com Robert Peary, o homem que viria a reclamar ter atingido o centro geográfico do Polo Norte, a sua esposa viajou em várias expedições com o marido e deu à luz uma criança a 30 graus de latitude do Polo Norte. As expedições foram descritas nos seus diários intitulados “My Arctic Journal”. Este é o ponto de partida para um filme que não deseja ser apenas um relato histórico ao abordar a epopeia e confrontar a protagonista com dilemas pessoais que assumem um segundo plano

quando a batalha pela sobrevivência se afirma perante a Natureza. JORGE PINTO

O que a levou a adaptar esta história? ISABEL COIXET: Tenho de dizer que gosto do trabalho do argumentista Miguel Barros. Ele disse-me que estava a escrever uma história sobre uma mulher no Polo Norte que era a esposa de um famoso explorador. E sempre que me abordava com esta ideia eu dizia para os meus botões “isto não é o que desejo fazer”, pareceu-me algo bastante difícil e um desafio para adaptar ao ecrã. Depois o Miguel enviou-me o argumento final e gostei bastante, era poderoso e selvagem, senti que era algo que tinha de realizar. Não consigo expressar completamente gabriel byrne

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Hoje em dia aventura no cinema é sinónimo do espectáculo dos efeitos especiais, no mundo real já não há nada para explorar e o GPS não ajuda ao espírito. Estava consciente desse desafio para

os espectadores? Se acho que a história é interessante e os personagens são fascinantes penso que alguém na audiência também vai também partilhar esta sensação de fascinio comigo. Sei que os espectadores na actualidade esperam sempre outra coisa mas a beleza e a paixão da realização é apresentar histórias com sgnificado e que no meu espectro da realidade fará sentido para o público. O seu filme remete-nos para os primórdios da sétima arte. Sim, uma das primeiras coisas que fizemos juntos como equipa técnica foi visionar a nova versão restaurada de «Nanuk, o Esquimó» na Cinamateque. Para mim era algo importante referir que estávamos a ver um documentário que na realidade era um documentário falso, há uma história e os acontecimentos não


a cair. Na realidade a Juliette Binoche é uma mulher normal com várias responsabilidades, vive uma vida real ao contrário de várias actrizes que têm um milhão de assistentes ao seu dispor, ela tem uma casa, cozinha, lê e pinta.

rinko kikuchi

acontecem em tempo real perante a câmara. Robert J. Flaherty era um génio, ao recriar as coisas que tinha visto anteriormenmte eu queria replicar esse espírito e esse mundo, queria passar essa mensagem à minha equipa, se o Robert J. Flaherty o fez há 100 anos atrás nós podemos fazer actualmente. Foi complicado filmar em condições adversas? Em todos os meus filmes é possível encontrar neve, chuva, nevoeiro mas posso dizer que as semanas em que filmamos na Noruega foram as mais duras da minha carreira, diria da minha vida. Há um momento onde estamos no meio do frio em que é impossível pensar e estávamos a rodar em circunstâncias muito complicadas. Depois fomos para um estúdio filmar algumas cenas adicionais e o desafio ainda foi maior, porque quando estamos ao ar livre com

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um frio de rachar e a câmara capta o frio, num estúdio somos obrigados a recriar essa sensação. Realmente foi uma situação dificil mas na realidade não gosto de coisas facéis. Teve pena de colaborar tão pouco com Gabriel Byrne (Bram Trevor), é um belo apontamento? É um actor adorável, um fantástico ser humano, é mesmo um homem interessante e especialmente as mulheres ficam tristes quando ele sai de cena [Spoiler] mas ele tem de morrer [Fim de Spolier] é o primeiro personagem que força a personagem de Josephine a questionar-se sobre a sua jornada, é o primeiro a semear dúvidas na sua mente. A Josephine pensa que está certa e o mundo começa a desabar sobre ela, o mundo perfeito onde ela vive. Era importante ter o personagem do Gabriel Byrne mas depois a

Já tinha colaborado com Rinko Kikuchi (Allaka) em «Map of the Sounds of Tokyo», é uma actriz com muito talento. Ela é fantástica e bastante subvalorizada, às vezes quando as pessoas falam deste filme e só referem a Juliette Binoche (eu acho que ela é genial) mas Rinko também é muito boa e representou extremamente bem a sua personagem.

é muito inteligente mas quando está a representar ela é capaz de esquecer todas as explicações e indicações e representar apenas através do seu puro instinto. Foi um enorme prazer conseguir trabalhar com ela e observar todos os dias a transformar-se naquela personagem. Ela tem o meu amor e a minha admiração mas também é bastante divertido trabalhar com ela pois olhamos para os seus olhos e vemos bastante da história do cinema europeu. Ela pode ser uma diva mas também um ser humano perfeitamente normal adorava conseguir fazer todos os meus filmes com ela.

Juliette Binoche é uma força da natureza a combater a própria natureza e a mudar a sua personalidade? Penso que trabalhar com uma das melhores actrizes do mundo é um deleite, ela é prespicaz e faz sempre as perguntas certeiras,

É engraçado referir isso porque no filme a sua personagem começa como uma diva e depois tem de se tornar numa sobrevivente. Ela começa o filme como uma personagem pouco simpática mas aos poucos a sua fachada começa

protagonista passa a estar só com a outra mulher [Allaka] que faz parte daquele cenário selvagem. O Gabriel Byrne teve um papel necessário.

O filma é uma co-produção internacional? A única forma de produzir o filme foi através de uma coprodução tentei manter o espírito, lia o argumento todas as noites e preparava as cenas com antecipação. Não interessa se estamos a filmar na Noruega, na Bulgária ou num estúdio em Tenerife, no final o filme é um todo, para mim esse é o legado. Para um director o que interessa estarmos a criar um filme e vamos tentâ-lo fazer da melhor forma que conseguirmos. O trabalho da figurinista Clara Bilbao incute algum surrealismo à história através dos trajes de Josephine Peary. Estávamos inspirados sobre o que as pessoas vestiam quando estavam no Polo Norte, tentamos utilizar os tecidos mais parecidos com aquele período. As formas e a qualidade dos materiais era muito semelhante ao que se usava na época. A escolha das cores foi minha, uma opção que achei que ficava bem em contraste com a neve. Jean-Claude Larrieu é um colaborador habitual da Isabel Coixet, como foi rodar numa moldura tão bela e distinta? Esta foi a sétima colaboração com o Jean-Claude e trabalhamos não só a ver o filmes, a luz é uma expressão daquilo que os personagens estão a sentir, este é um momento negro em que a protagonista sente que a sua empreitada não vai resultar. Tentamos expressar com a luz o que os personagens atravessam

nas suas reações e nos seus sentimentos. E falamos bastante antes de filmaramos mas quando chegamos à rodagem não precisamos de falar entre nós mas trabalhamos muito bem, ele é um fantástico director de fotografia, é alguém com quem podemos contar. E os realizadores precisam de pessoas com quem possam contar sempre. É dificil fazer um filme como o seu e depois ter tido reacções algo frias, é uma sensação bastante árdua. É bastante dificil, trabalhamos cinco anos das nossas vidas no projecto com muita luta e trabalho até encontrar o financiamento e depois um individuo senta-se e em três linhas arruma com o filme. Eu sei como são as coisas, essas são as regras do jogo, como realizadora sentimos que queremos morrer mas tenho muito orgulho no filme que fiz independentemente do que se diga. Adorava que todas as pessoas pudessem apreciar mas o que podemos fazer... Foi anunciado «The Bookshop», como o seu próximo projecto? É mais uma aventura, é a história de uma mulher em Inglaterra em 1959 que vive numa pequena vila e deseja abrir uma livraria local, esse é o principio de uma narrativa que relata as barreiras com que deparamos todos os dias e relata a natureza do mal. A história começa de uma forma doce e torna-se corrosiva, é um filme inspirado num romance de Penelope Fitzgerald publicado nos anos 60, é uma escritora que aprecio desde que li o livro desejava adaptá-lo ao cinema. Penso que a protagonista é como eu, estou cheia de esperanças e expectativas e alguém chega e esmaga os nossos sonhos, é a história da minha vida.

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entendo isto ou não entendo completamente o que o filme será’. Por isso, desenvolvi, juntamente com os meus argumentistas, este mundo, acrescentámos mais elementos, não propriamente explicá-los, mas dar mais substância, pelo menos, ao leitor. Depois, no final do processo, desenvolvemos uma espécie de mundo de ficção científica. Os produtores não conseguiram encontrar grande financiamento, por isso tive de cortar. Cortei um quarto do argumento. Estava a crescer e depois tornou-se, novamente, mais essencial e abstracto, o que, na verdade, gosto muito. Penso que o filme é mais como um sonho – um pesadelo, às vezes –, mais do que um filme do género fantástico. Penso que a abstração, o facto de ser mais elíptico, não ter explicações… Para mim, é importante que o público tenha espaço e liberdade para entrar na história e no mundo e torná-lo próprio – é isto que gosto enquanto espectadora e é isso que tento fazer nos meus filmes.

EVOLUÇÃO entrevista Lucile Hadzihalilovic A realizadora francesa Lucile Hadzihalilovic foi uma das convidadas do IndieLisboa 2016, tendo apresentado o seu mais recente filme, «Evolução», uma obra quase sensorial e recheada de surpresas. A METROPOLIS conversou com a cineasta sobre o filme e a sua carreira. TATIANA HENRIQUES

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Como descreveria o seu filme? LUCILE HADZIHALILOVIC Costumo dizer que é uma espécie de filme de terror sem imagens. Fala mais do mundo interior de uma criança, um rapaz de 10 anos de idade, sobre os seus medos e expetativas. Considera que alguns filmes que não têm imagens de terror podem ser mais assustadores? Sim, penso que, às vezes, quando vês elementos gore e agora isso é comum, vê-se isso em muitos, muitos filmes, não só em fantásticos. Sim, claro, às vezes, quanto menos mostras, mais espaço há para a imaginação e a tua imaginação pode assustar-te mais do que quaisquer imagens reais.

Como se lembrou de escrever este argumento? O que surgiu primeiro, na verdade, foi o hospital, com um rapaz a ser levado pela mãe, tendo dores na barriga. Depois dei à volta a isso e pensei que deveria passar-se fora do hospital. Claro que deveria ter mar, com o oceano podemos ter muitas coisas, elementos que se ligam à história. Portanto, se havia um mar, pensei que deveria ser uma ilha. Comecei por pensar neste casal, rapaz e mãe, e depois numa aldeia onde teria outras mães e outros rapazes. Eram uma espécie de camadas. A certo ponto, desenvolvi-o [o argumento] imenso, muito mais do que aquilo que está no filme, porque tivemos algumas dificuldades em encontrar financiamento para o filme e as pessoas diziam ‘Não

Falando do mar, algumas das cenas foram filmadas debaixo de água. Que principais desafios acarretaram para si enquanto realizadora? Sim, foram realmente cenas desafiantes, claro. Em primeiro lugar, não faço mergulho, foi praticamente a primeira vez na minha vida em que pus a minha cabeça debaixo de água e vi o que lá estava a acontecer. Fomos muito sortudos em encontrar um homem que era mergulhador e operador de câmara e que conhecia muito bem estas ilhas – nós gravámos o filme nas ilhas Canárias e Lanzarote –, ele sabia bem onde encontrar as paisagens e a vegetação. A dificuldade foi fazê-lo entender que não queríamos ter imagens documentais mas, mais uma vez, algo abstrato, com textura. Disse-

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lhe que não queria peixes, queria o movimento das vegetações. No final, ele percebeu isso muito bem e trouxe-nos imagens que achei fantásticas, uma espécie de dádiva e, claro, uma das grandes dificuldades foi filmar com os atores, com o rapaz. Ele era um bom nadador, mas era de Bruxelas, não é o tipo de criança que vive ao pé do mar e nada todos os dias. Ele estava confortável com isso, gostou de filmar essas cenas, mas foi algo desafiante para ele a nível físico. As cenas não foram filmadas numa piscina, mas num mar, com correntes. É claro que estávamos muito próximos do local mas, de qualquer forma, foi fisicamente difícil e também há a questão de ele ter de não respirar durante algum tempo. E, na cena com a enfermeira, em que têm de estar os dois juntos, foi bastante árduo, porque

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gastavam todo o oxigénio para estar em determinada posição. Depois, também era difícil porque o ator tinha de interpretar, ter algum tipo de reação. Enquanto o mergulhador filmava, não tínhamos nenhumas imagens para ir vendo porque não tínhamos o cabo. Portanto, ele filmava, eu punha a minha cabeça numa máscara para ver mais ou menos o que o ator estava a fazer. Levou imenso tempo. Alguns dos atores são crianças. Como escolheu o elenco? Para a criança, não estava à procura de alguém que já fosse ator. Estava simplesmente à procura de alguém muito carismático. Achei-o muito comovente quando o conheci. Na verdade, ele parece mais velho do que aquilo que parece, tem um ar algo frágil e depois as suas

expressões são mais maduras do que das crianças da sua idade. Mesmo que não te apercebas, penso que sentes isso e dá-lhe algo de especial. Depois, para a mãe e para a enfermeira, escolhias também pela sua aparência porque precisava de mulheres que tivessem algo de criatura marinha. Gosto do facto de que, mesmo sendo ao sol, elas têm uma tez pálida, cabelo ruivo e, depois, achei que elas ficariam com um visual estranho sem as sobrancelhas, tornando-as, também, algo similares. A atriz que interpreta a mãe, JulieMarie Parmentier, é algo única no panorama francês, julgo eu. Ela participou em muitos filmes e acho que é muito boa, tem muita presença. Como não íamos ter muitos diálogos, achei que tinha de ser uma atriz com carisma, muito forte. Penso que a Julie-

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não o faz muito e, claro, em alguns países, isso é mesmo um problema. Nunca o experienciei, mas talvez simplesmente não estivesse muito atenta.

Marie e a Roxane Duran, que interpreta a enfermeira, têm estas qualidades e parecia que tinham um mundo interior, mesmo se não expressassem muito. Trabalhou primeiro como editora antes de avançar para os seus próprios filmes. De que forma é que pensa que essa experiência a poderá ajudar na conceção dos seus filmes? Penso que a edição é uma verdadeira aproximação à realização. Claro que é uma forma de escrever o filme. Pode-se realmente aprender ao estar numa sala de edição e o que também aprendi ao editar é que tens de ter escolhas na edição. Bem, algumas pessoas sabem exatamente o que vão usar, depende de muitos realizadores, mas penso que é muito importante ter escolhas.

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Os seus filmes costumam abordar a transição entre infância e adolescência. Porquê? Penso que talvez porque foi uma altura na minha vida onde tive muitas emoções, receios, expetativas, era um momento de mudança. É algo que provavelmente gosto de explorar. Penso que este momento de mudança é também algo fácil de usar num filme porque a personagem está tanto na infância como depois está a mudar. Não é apenas só sobre as suas mudanças, mas ele começa a questionarse sobre a idade adulta. É um momento em que começa a ter alguma emancipação, o início disso. Por essas razões, penso que é um momento interessante na vida para explorar.

Foi a primeira realizadora a vencer um Cavalo de Bronze no Festival de Cinema de Estocolmo em 2004. Julga que atualmente as realizadoras têm mais oportunidades no Cinema? Espero que sim. Talvez a França não seja o pior país para as mulheres realizadoras, porque há muitas. Nunca pensei realmente que ser mulher era um problema. Julgo que, tendo em conta os meus filmes, eles é que seriam mais o problema em si, devido ao tipo de filmes que queria fazer. Sei que não temos 50 realizadoras, é menos do que isso, não sei exatamente o número. Penso que, atualmente, as pessoas estão a falar muito do assunto, do facto de haver a necessidade de apoiar, de alguma forma, as mulheres a fazer filmes porque a sociedade

E por que acha que os seus filmes são um problema? É difícil fazer com que eles aconteçam, em termos de financiamento, penso que por se tratarem de filmes do género fantástico e também por serem independentes. Na França, o que é considerado fantástico, que lida com um mundo imaginário e não é realismo, é um caminho que não é fácil de seguir. Não sei porquê, parece que as pessoas acham-no bizarro, quando não é assim tanto, na verdade. E porque o filme não era muito baseado na narrativa, mesmo que, mais uma vez, tivéssemos tentado criar uma história muito coerente, apesar de não mostrar tudo ao público. Porque o filme é algo abstrato e fala de sentimentos e emoções, com uma experiência muito visual em vez da narrativa, é muito verbal, não tem muito diálogo… As pessoas tiveram alguns problemas em perceber o que iria ser o filme. Precisava que os leitores tivessem alguma imaginação e, normalmente, as pessoas que dão o dinheiro não se permitem ter muita, porque estão algo assustados em colocar um rótulo. É um filme híbrido e penso que era algo bom, mas não me ajudou porque as pessoas diziam ‘É um filme fantástico? De horror? Mas não parece assim tanto’. Tive que por um rótulo e pensei ‘não, é mais uma mistura’. Essa foi uma dificuldade.

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stephen fry

amor e amizade entrevista Whit Stillman Um ano depois de ter sido um dos “heróis independentes” do IndieLisboa, Whit Stillman regressa a Lisboa para apresentar o seu último trabalho, «Amor e Amizade», escolhido para filme de abertura da edição deste ano do festival. Baseado numa das obras menos conhecidas de Jane Austen – “Lady Susan” - o filme é protagonizado por Kate Beckinsale num elenco de qualidade. Conversámos com o realizador sobre a construção do argumento, as comparações com os seus trabalhos anteriores, a escolha do elenco e o método de direção de atores e a importância do cinema independente e da sua singularidade. SÉRGIO ALVES

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«Amor e Amizade» é a sua última longa-metragem. O que fez escolher esta obra de Jane Austen (“Lady Susan”)? WHIT STILLMAN - Bem, sempre fui, uma espécie de especialista sobre os filmes de Jane Austen e é o único trabalho pelo qual sou considerado, pela importância que dou à obra de Jane Austen e porque no meu primeiro filme, «Metropolitan» (1990), as personagens falam imenso de Jane Austen … nunca quis fazer um filme porque as obras existentes são muito boas e havia outras pessoas a adaptá-las ou que já as tinham adaptado. E descobri este romance, um pouco de forma acidental. É uma obra pouco conhecida e o original é de difícil leitura e achei-o muito divertido e

mostra o seu lado de comédia e o seu sentido de humor… …Sim… … O que é refrescante nos dias de hoje e não perdeu a sua atualidade, de forma alguma, o seu sentido crítico. Em certo sentido ainda é mais forte, nos dias de hoje, porque as pessoas hoje são mais descontraídas e sinceras a falar de assuntos como o dinheiro, o casamento e a morte. É muito divertido! Percebia que iria demorar muito tempo até ter o argumento tal como o queria e por isso em vez de acordar com a produtora um prazo – seis semanas ou seis meses - para o ter pronto decidi escrevê-lo por conta própria, entre outros projetos e deixá-lo nascer de forma lenta.

whit stillman

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Jane Austen: os rumores, a intriga, as convenções sociais, o interesse... De que forma podemos ligar toda essa atmosfera social ao estado atual do amor e da amizade na sociedade contemporânea? Uma das coisas que nos dá mais prazer na ida ao cinema é esquecer quase tudo o que se passa na realidade. Mas por vezes reparas em situações sobre o homem e a mulher, as relações, a manipulação e temos mais verdade no ecrã, é o caso deste romance do séc.XVIII, do que em certas discussões atuais sobre o feminismo ou o machismo. Pois “Lady Susan”, no séc.XVIII, é uma personagem dominadora e consegue levar avante o que pretende mesmo não tendo o direito de voto.

E foi difícil adaptá-lo para cinema? A escrita do argumento … O que facilitou bastante o processo foi a assunção de que teria de demorar algum tempo. Assim, tornei possível este longo argumento a partir das cartas – todos os diálogos eram provenientes das cartas, todo o texto proveniente das cartas são diálogos, é como baralhar um baralho de cartas. Depois pus o livro de lado e trabalhei apenas no argumento. Tivemos um longo processo de casting e durante este processo fiquei farto de algumas cenas e reescrevi-as. Tive a oportunidade de ver «Amor e Amizade» e «Metroplitan» – no início da semana – e notei a importância

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que confere ao texto escrito, à obra escrita, às palavras e também à importância e a qualidade dos diálogos. Para lá das diferenças, qual a tarefa criativa que prefere: a escrita ou a realização? E qual é a mais difícil? Acho que ambas têm momentos muito difíceis: na escrita, o momento mais difícil é depois de teres a ideia e de te apaixonares por ela, tens de começar a escrever! E esse é um processo muito doloroso, antes de teres o material da história – no caso deste filme essa dor foi atenuada pois no argumento original desde o principio tive material divertido, piadas e histórias e isso tornou este processo de escrita não doloroso. E a verdade é que acho que a realização é mais fácil do que a escrita …

É mesmo? Acho que é mais fácil. O problema é que existem estes pontos de crise, de tensão e agressão. Existem um conjunto de coisas que se passam que exigem uma resposta agressiva e por isso é, algumas vezes, quase como uma guerra! Por vezes é uma guerra boa, onde estás a triunfar! Noutras vezes é uma guerra má, onde perdes! (risos). «Amor e Amizade» (2015) e «Metropolitan» (1990) podem ser comparados? Sim! São ambos comédias de costumes, onde a pressão social, as regras rígidas, as convenções, a integração e desintegração do indivíduo no

seio do grupo social? Sim! Na realidade cada um dos filmes é inspirado no trabalho de Jane Austen em extremidades distintas daquilo que ela escreveu. «Metropolitan» (1990) é influenciado e inspirado nas suas obras, não é uma adaptação duma obra dela. Vai buscar inspiração à heroína duma das suas obras mais importantes- “Mansfield Park”. É a obra mais sóbria e séria que ela escreveu em reação à adesão às outras obras anteriores. E esta obra, “Lady Susan”, é de longe a menos sóbria e a mais divertida e tola obra dela. E também a menos moralista! Pois normalmente, os seus contos são contos morais e este celebra uma personagem algo imoral! Continuando nessa linha e sobre O Amor nas obras de

Sobre o casting: Kate Bekinsale é sublime no papel de Lady Susan! foi difícil convencê-la a aceitar este papel? No processo de casting, a dificuldade maior não foi com a Kate: ela esteve sempre connosco e tem um agente muito bom –é difícil em Hollywood reunir financiamento para um filme e para isso é necessário uma estrela no filme. E a maioria das estrelas estão representadas pela Creative Artists Agency (CAA) e estes não são muito simpáticos com o cinema independente. E a minha sorte foi que a Kate tinha deixado essa agência, veio para a minha agência e para uma agente que era interessada em literatura, e lia argumentos (a maioria dos agentes nem sequer lê os argumentos). Ela leu o argumento e viu que seria a escolha acertada para a Kate voltar a fazer algo semelhante ao que ela fazia antes de «Underworld» (2003). A surpresa para a maioria das pessoas é grande pela Kate estar neste registo, mas se forem ver há mais ou menos 20 anos era isto que a Kate Beckinsale estava a fazer.

No final dos anos 1990… Sim, e no nosso filme «The Last Days of Disco» (1998) e dois projetos antes desse ela tinha tido um filme com o John Schlesinger sobre Jane Austen chamado «Cold Comfort Farm» (1995) e participou numa mini série de televisão como a personagem Emma da obra de Jane Austen. Assim, ela tinha experiência anterior – filmou «Muito Barulho por Nada» (1993) com Kenneth Branagh. Este é o seu background! Ela é uma rapariga de Oxford! E o seu Pai foi um comediante popular na televisão inglesa. E trabalhar com Stephen Fry, como foi? Ele é único, não? Magnífico! Ele é fantástico! Nós tínhamos este papel que ele podia fazer, mas é um cameo – um dia de filmagens, uma cena de um dia -. Mas, para nós o fato de ele ter lido o argumento e aceite o papel foi a confirmação de que o filme ia mesmo avançar! Tiveram a certeza? Foi algo tão importante para nós! Galvanizámo-nos com o fato de ele participar no filme. Filmámos numa sexta-feira 13 de Fevereiro do ano passado e demos-lhe o nome de “Stephen Fryday”, em homenagem a ele. Ele é a pessoa mais inteligente e charmosa que já conheci e é altíssimo! Durante a rodagem ensaia muito com os atores antes de filmar? Não! É quase o oposto. Como já fiz as audições e eles já fizeram o papel, sei que eles conseguem fazê-lo, quase que filmo bloqueando o ensaio pois muita da espontaneidade e da frescura pode desaparecer. A cenografia e os figurinos são impressivos neste filme. É o seu primeiro filme onde

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in the last days of the city

estes aspetos são relevantes ou decisivos. E qual o grau de dificuldade da produção de «Amor e Amizade»? Quer dizer, nos outros filmes estes são aspetos com os quais me preocupo, interessa-me mesmo esta imagem dos filmes e todos eles se desenrolaram no passado, num certo momento temporal, em certo sentido. Todos eles! E estranhamente, é mais difícil fazer um filme passado há 20 anos atrás do que fazer outro passado há 200 anos! Em certo sentido, foi o que senti: as escolhas são mais difíceis … Foi intimidante pensar em todos estes aspetos de produção… No início do processo … … Sim, antes de começar. Mas, assim que começamos a trabalhar com as pessoas que trataram destes aspetos, eles eram tão profissionais e já o tinham feito tantas vezes … Sentiu-se mais confortável? Sim! Tivemos de fazer pesquisa e ver imensas imagens e escolher o que nos interessava e eliminar o que não nos interessava. E, uma vez que há uma certa imprecisão

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nos cenários, se se passa em 1793 ou em 1805 ou algures entre estas duas datas. E de fato não há ninguém nos dias de hoje que possa confirmar isso ou dizer lembro-me que foi nesse ano…. Claro que sim … Então, vimos as imagens desse período e escolhemos aquelas que gostámos. Nos figurinos queríamos vestidos bonitos e sexy para as mulheres. Não queríamos vestidos que as fizessem parecer ou ter um ar maternal, não queríamos isso. A Chloe (Sevigny) gosta de realçar o seu decote nos vestidos – e eles eram todos tão pequenos. A Kate (Beckinsale) é mais discreta. Mas, é suposto ela ser uma viúva, de luto, no início do filme. Por isso ela está vestida de preto, depois passa a violeta e subitamente já passou a estar de vermelho! O Whit gosta dessa fase de escolha de figurinos? Sim. Gosto! Uma das melhores coisas foi que tive de estar em Londres para o casting entre outras coisas. E a designer de figurinos

queria que eu fosse com ela às casas de aluguer de fatos onde tem todos estes vestidos e fatos e pude ver parte do elenco pela primeira vez desde as audições iniciais, a virem experimentar os figurinos. E é uma excelente forma de vê-los a todos e de ver tudo… E ver como vão ficar para a rodagem? Sim, ver se isto fica bem ou se não fica tão bem. Se há demasiado verde … Mudando de assunto, concorda comigo se disser que existe um fascínio antigo das elites norte-americanas pela sociedade britânica? Sim, concordo em absoluto. Tem toda a razão. Acho que é mais visível do que em Inglaterra, há essa afinidade. Quando era mais novo sentia esse interesse … Acha que tem a ver com o passado colonial? Acho que as pessoas estão bem cientes donde são originárias. Sabemos que viemos em 1685 e depois houve a revolta dos protestantes e nós estávamos com

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felizes com o material que já tínhamos. E fomos para Cannes, no ano passado com material de promoção, com um teaser, podemos vendê-lo para os EUA e para muitos outros países. E isso pôs-nos no caminho certo para a distribuição do filme. Então, o filme já tem datas de estreia na Europa? Sim. Nós estreamos nos EUA a 13 de Maio. Esta apresentação no Indie (o filme teve honras de abertura do festival no passado dia 20 de Abril) foi a segunda na Europa. A primeira apresentação foi em Roterdão em Fevereiro. Depois estreamos em Inglaterra e na Irlanda a 27 de Maio. Estreia em França a 22 de Junho e em Portugal no dia 30 de Junho.

chloe sevigny e kate beckinsal

os revoltosos. E ou fugíamos ou eramos mortos. Lembro-me da primeira vez que fui a Londres com a minha família: somos mais ingleses do que a Rainha de Inglaterra (porque é uma família real de origem germânica, trazida da Alemanha)! Outro tópico que nos interessa: o Cinema Independente! Ainda faz sentido utilizar o termo cinema independente, no estado atual do cinema mundial? Sim, ainda faz! O cinema independente pode ser definido de várias formas, naturezas e dimensões distintas, mas é um termo muito útil. E este festival, IndieLisboa está muito bem designado e classificado porque ou é o desejo de fazer um projeto industrial ou comercial ou é a aspiração artística ou intelectual.

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É uma fronteira … O que é que está a gerar o filme? Não são os sucessos do realizador ou outra coisa qualquer, é, isso sim, a natureza do projeto! Separei as águas porque fiz os meus filmes entre estes dois (o primeiro e este mais recente) no seio do sistema de estúdios mas são, seguramente, filmes independentes que um estúdio acolheu e resolveu apostar. Mas era muito pouco confortável fora dos EUA: nos EUA, nós temos distribuição independente mas, fora dos EUA, estamos nas mãos dum Estúdio que não está talhado para o nosso tipo de cinema e por isso os meus filmes, na Europa, não foram assim tão vistos. É porque a seguir ao primeiro estavam todos no seio do sistema de distribuição dos grandes estúdios e por isso não foram distribuídos em Portugal! O primeiro, «Metropolitan» (1990) foi distribuído pela Lusomundo.

No ano passado, o Whit Stillman e os seus filmes foram um dos focos centrais do IndieLisboa. Como sentiu esse interesse? Teve algum feedback da reação do público português ao seu trabalho? Foi uma ótima experiência! Gostei e ajudou bastante a dar a conhecer a minha obra e a que os meus filmes se tornassem conhecidos e mais admirados. E faz com que a situação, hoje, com o novo filme a ser distribuído aqui, seja muito boa. Pois, agora ao lançar este filme em Portugal, já existe um contexto adequado para a sua estreia, para muitas pessoas que conheceram a minha obra no ano passado. É muito gratificante porque quando vim aqui o ano passado, ainda não tínhamos acabado a montagem mas sabíamos que já tínhamos algo de que gostávamos. E estávamos

metropolitan (1990)

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luÍs filipe rocha um certo ar de cinema novo

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Quando esteia «Cinzento e Negro», o 11º filme do realizador, revemos uma obra feita de diversos filmes que marcaram a diferença no panorama do cinema nacional. TIAGO ALVES O Direito ficou lá atrás e o Cinema impôs-se como profissão. A transição para o Portugal democrático mudou o rumo de Luís Filipe Rocha que concluiu o curso de Direito na Universidade de Lisboa mas optou por trabalhar na área do cinema quando aconteceu a re-

volução de 1974. A revolução do Cinema Novo já tinha acontecido mas o realizador abraçou as mudanças políticas e históricas através do posicionamento temático nos primeiros filmes que realizou. Foram documentários, curtas e médias metragens, como «Nós No País» (1975) e «Barranhos – Quem tem Medo do Poder Popular?» (1976), onde assumia um olhar comprometido com a dinâmica da esquerda portuguesa. A urgência em filmar as mudanças que ocorriam no Portugal revolucionário levou-o a rodar uma primeira longa-metragem de ficção, «A Fuga» (1977), sobre a transição do Estado Novo para o regime democrático. O filme, protagonizado por José Viana e Henrique Viana, procurou relatar um episódio verídico de um grupo de prisioneiros políticos que fugiu do Forte de Peniche. Regressa ao tema da repressão no Estado Novo naquele que é considerado o seu filme mais marcante. «Cerromaior» (1980), uma adaptação do primeiro romance homónimo de Manuel da Fonseca, publicado em 1943, foi rodado em Portel e Santiago do Cacém. É um filme onde os diálogos escasseiam, dando peso aos silêncios e muita relevância aos olhares, que mostra um Alentejo trágico, o celeiro de Portugal em regime latifundiário, habitado por pessoas que vivem desesperadas, revoltadas, na miséria. Este continua a ser o filme mais justo sobre a realidade alentejana neste período histórico que alguma vez foi feito no cinema português. Um filme que permanece invisível, que devia ser exibido e

reexibido. E no percurso dos Festivais percorrido pelos filmes de Luís Filipe Rocha, «Cerromaior» foi o que obteve um espaço mais nobre tendo integrado a seleção oficial de Cannes, na secção Un Certain Regard. Neste primeiro momento da sua obra Luís Filipe Rocha alargou o horizonte histórico centrando a atenção num autor que admira: Jorge de Sena. Durante dois anos, no período 1982 – 1984, preparou «Sinais de Vida» (1984), um filme que viaja pelos temas da obra do autor, nas áreas da poesia, da ficção e do teatro. O díptico dedicado a Jorge de Sena seria concluído uma década depois, com «Sinais de Fogo» (1995), um dos raros filmes

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portugueses a debruçar-se sobre os reflexos da guerra civil da Espanha na sociedade portuguesa. É um filme histórico, com uma eficaz reconstituição da sociedade figueirense dos anos 30, numa fase de consolidação do regime salazarista. Entre os dois filmes dedicados à escrita de Jorge de Sena rodou em Macau, onde viveu, «Amor e Dedinhos de Pé» (1992) adaptando uma obra de Henrique Senna Fernandes, cuja ação decorre em 1900. Até esta data nenhum dos filmes do realizador obteve grande sucesso junto do público. Isso mudaria com «Adeus, Pai» (1996), outro filme raro no cinema português devido à temática da infância e adolescência. A narrativa está centrada na relação entre um pai ausente e um filho que imagina uma relação diferente. Filme tocante, rodado nos Açores – espaço natural a que Luís Filipe Rocha regressou agora em «Cinzento e Negro» (2015) – obteve sucesso junto do publico cativando mais de 100.000 espectadores. Curiosidade suplementar: foi a longa-metragem onde se estreou o ator Afonso Pimentel, na altura com 14 anos. Luís Filipe Rocha continuou a procurar abordar temas relevantes que o cinema português ignorava. Foi assim em «Camarate» (2000), uma obra de ficção baseada num facto real nunca esclarecido perante a opinião pública: o processo jurídico relativo ao acidente de aviação que vitimou o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, o ministro da defesa Adelino Amaro da Costa e seus

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acompanhantes, aquando da campanha presidencial de dezembro de 1980. O tema foi bem tratado num thriller judicial sobre um hipotético atentado com motivações políticas, mas o filme não causou o impacto desejado devido à narrativa visual algo televisiva. O realizador aprofundou novamente temáticas de caráter social e familiar nos seus filmes seguintes. Em «A Passagem da Noite» (2003), Leonor Seixas interpreta uma jovem que é violada por um toxicodependente (o filme recebeu prémios de argumento, realização e atriz no festival do Cinema Mediterrânico em Valencia). «A Outra Margem» (2007), aborda a história de amizade de um travesti e de um jovem rapaz com síndrome de Down explorando o contraste das suas existências. Luís Filipe Rocha é também argumentista dos seus filmes e foi nessa qualidade que retomou o período do Estado Novo quando adaptou a novela de Manuel Tiago (Álvaro Cunhal) para a série televisiva da SIC «Até Amanhã Camaradas» (2003) realizada por Joaquim Leitão. Agora regressou aos Açores, Faial e Pico, para filmar uma história policial de traição e vingança em «Cinzento e Negro» (2015). Não há um filme igual, há sempre uma impressão de um certo cinema novo... [CRÍTICA A «CINZENTO E NEGRO» E ENTREVISTA A LUÍS FILIPE ROCHA NO SITE METROPOLIS]

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axilas entrevista paulo mil homens «Axilas», baseado no conto de Rubem Fonseca, é o derradeiro filme de José Fonseca e Costa. Com a morte inesperada do realizador de Sem Sombra de Pecado (1983), o produtor Paulo Branco falou com Paulo Mil Homens para realizar as cenas que faltavam e concluir o filme. Conversámos com ele sobre o filme, a rodagem, a personagem principal, a Lisboa do filme e ainda sobre a experiência na realização. SÉRGIO ALVES

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No final de 2015, em plena rodagem do «Axilas», morre Fonseca e Costa. O Paulo assumiu a direção do filme. Conte-nos como tudo se passou… PAULO MIL HOMENS - Foi um choque! Nós estávamos a montar o filme durante a rodagem. Estávamos a montar quase uma semana depois de ter começado a filmar – estive ligado ao filme e à montagem do filme desde o início. Aliás, o Fonseca e Costa foi acompanhando tudo. Depois, surgiu a interrupção do filme porque ele adoeceu e a morte foi um choque para a equipa toda,

como é compreensível. Depois, houve uma conversa com o produtor do filme, o Paulo Branco, no momento em que 2/3 do filme já estavam feitos … Mas faltava rodar 1/3 do filme … Sim. Faltava filmar 1/3 do filme. Na verdade o que eles tinham rodado já estava montado, mas faltavam elementos fundamentais para a compreensão da história, para o filme funcionar … Como um todo … E Paulo Branco mostrou determinação em acabar o filme.


Fonseca, e dá uma outra dimensão ao Lázaro.

Depois, falou-me a mim e eu em colaboração com o argumentista – Mário Botequilha – e com a ajuda do Assistente de realização – Pedro Madeira – preparámos um plano de rodagem para filmar o que faltava, montar. De qualquer das formas, o que acho importante destacar é que o filme existe por si só: é um filme do José Fonseca e Costa, mas existe.É um filme completo, não é um filme fragmentado. É um filme! Decerto foi uma tarefa difícil e uma responsabilidade assumir a realização do que faltava do filme. Quais as principais dificuldades ao longo deste processo? Era o que todas as pessoas me diziam: que era uma grande responsabilidade e é uma enorme responsabilidade! As dificuldades são as normais de produzir um filme. É um processo sempre difícil. Digamos que o que havia já definido – existiam variadíssimas coisas já definidas: o estilo, a forma como o material estava filmado, a caraterização da maior parte das personagens – isso já estava definido. Por isso foi pegar no espírito … E no tom do filme? No tom, muito irónico e divertido que acho que o filme tem. Foi pegar nisso e construir elementos que faltavam ao filme e concluir! Como foi a direção de atores? Presumo que o Paulo não tivesse experiência nesse domínio … Tenho, sobretudo tive na escola de cinema e tenho alguma experiência, embora nada comparada à do Fonseca e Costa. Agora, dirigir os atores: bem, o elenco do filme é ótimo, são todos belíssimos atores, de gerações distintas – desde a Cecília Guimarães à Elisa Lisboa duma

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A morte paira ao longo de todo o filme. O filme começa e acaba com um funeral. Essa presença da Morte já fazia parte dos planos de Fonseca e Costa ou foi posterior à sua morte? Porquê a escolha da Morte como sombra permanente no filme? Fale-nos disso… Já fazia e eu respeitei. Há uma obrigação ética que tinha quando aceitei este compromisso que era de respeitar o que já estava escrito pelo Fonseca e Costa. Em colaboração com o Mário Botequilha fizemos pequenas alterações – o normal até porque o próprio Fonseca e Costa já o estava a fazer. Há sempre ajustes, cortes. De qualquer forma essa estrutura que é a estrutura final do filme, que é a do argumento já estava presente no argumento e é o filme!

geração, ao José Raposo doutra geração, e ao Pedro Lacerda que é extraordinário no filme. A personagem do Pedro Lacerda é a que faz avançar o filme, é muito importante… Aliás é uma personagem que não existe no conto original do Rubem Fonseca. O conto no filme está refletido nos últimos 20 minutos, essa é matéria do conto. Que é a história da Maria Pia. O Rubem Fonseca era um escritor que o José Fonseca e Costa gostava bastante. Dizia que era um dos grandes escritores da língua portuguesa e a verdade é que a escrita do Rubem Fonseca é muito interessante. E, insisto, está refletida ness último terço do filme.

Portanto o filme nasce a partir desse pequeno conto … Desse pequeno conto. Mas, nasce sobretudo do encontro do José Fonseca e Costa com o Mário Botequilha (argumentista): o José Fonseca e Costa tinha esta ideia deste personagem Lázaro de Jesus, esta figura que vive em duas Lisboas quase opostas, com uma educação muito severa, numa certa Lisboa que o José Fonseca e Costa que é uma Lisboa que também está a desaparecer. E este filme é sobretudo isso: um filme lisboeta e também neste sentido importa referir o fado do Carlos Manuel Proença e José Manuel Neto… Essa personagem, o Lázaro de Jesus, confunde-se com a personagem do conto do Rubem

Essa presença da morte que paira sobre o filme … O filme está cheio de pequenos aspetos pessoais. E ele tinha, dada a sua condição física essa percepção. Mas, o filme, ao mesmo tempo é uma exortação à vida nas suas múltiplas formas e se calhar era isso que ele queria dizer da Morte - como o Lázaro diz no final: “Vive-se Bem, Morre-se Mal!”. O Lázaro de Jesus parece mover-se em círculos antagónicos duma forma, como hoje se diz disruptiva, ou seja ele faz mexer com os vários ambientes onde se move. O que pensa que está na base dessa forma de agir, e dessa personalidade original? Quais as motivações do protagonista? Acho que o Lázaro é um agitador. É alguém que está permanentemente inconformado e nesse sentido é uma boa personagem para histórias – faz

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A abundância de vernáculo – no típico ambiente alfacinha- em paralelo com os ambientes mais formais quer da soirée do banqueiro, dos concertos na Gulbenkian e das exposições no CCB. Acha que essa diversidade reflete a Lisboa dos dias de hoje? Acho que isso reflete a vida! As pessoas têm tendência a ajustar a sua forma de falar a determinadas situações. O vernáculo tem uma função sempre forte, introduz uma coisa nova na linguagem, mas é só uma palavra, ou são só palavras. Introduz algo de diferente porque certas palavras têm uma força que outras não têm! Acho que é por aí … Mas existe também o sentido cómico.

acontecer, provoca acontecimentos muitas das vezes completamente imprevisíveis. De alguma maneira é como se não tivesse uma psicologia definida e isso também é interessante. É uma personagem, um ser livre, que é herdeiro de outras personagens do Fonseca e Costa. Por exemplo, o Kilas, ou o protagonista do Sem Sombra de Pecado. É um ser livre. É capaz das atitudes mais inesperadas – ser criança, ser adulto, ser um artista. Capaz de vestir várias roupas, passar dumas para as outras, mantendo-se estranhamente igual! Uno! A escolha do Pedro Lacerda e do restante elenco é feliz. Como foi a relação no set de rodagem? Foi ótima! Quer com o elenco quer com a equipa. Correu

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tudo com grande normalidade! Dentro do possível, claro. Atendendo à situação criada pelo desaparecimento do Fonseca e Costa. Eles tinham estado durante mais de dois meses a filmar com ele. São pessoas que têm relações de trabalho muito antigas. Em relação ao seu método de trabalho na direção de atores: seguiu o mesmo método do Fonseca e Costa ou não? Essa pergunta é engraçada, porque o Fonseca e Costa tinha uma forma de trabalhar muito própria – aliás, eles fez alguns filmes baseados no improviso. Manteve este estilo de improviso e eu vi o que ele ia filmando e comparando com o argumento. Tentei manter um pouco esse espírito, para obter a maior naturalidade possível dos atores.

E essa diversidade de ambientes presente no filme reflete o que se passa na Lisboa de hoje? O filme passa-se numa época indefinida. Como se não soubéssemos muito bem: parece que às vezes estamos nos anos 1950, depois parece que estamos nos anos 1980. Há planos interessantes no filme que colocam imensas questões: a sequência em que o José Raposo sai de casa da Mãe e desce no elevador da Glória e dialoga com os vendedores de castanhas. O fundo da cena está pejado de turistas. E essa é a Lisboa de hoje. E existem momentos como os passados naquelas tascas que parecem ser o Bairro Alto … E esses são sítios que também estão a desaparecer! Apesar de hoje, existirem uma série de locais a proliferar por Lisboa que copiam e imitam o autêntico para consumo de turista.

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Nesse aspeto, o filme pode funcionar como um registo duma certa Lisboa que está a desaparecer… …Uma certa Lisboa que o Fonseca e Costa quis guardar, fixar, homenagear.

Refaço a pergunta: Estes temas já faziam parte da intenção inicial do Fonseca e Costa? Ah, sim! Isso está tudo no argumento do filme. É uma visão muito ácida e crítica. Muito corrosiva …

A educação conservadora de Làzaro e a descoberta tardia da sexualidade, o tom forte na crítica às instituições e ritos da igreja. Tem tudo a ver com aquilo que Fonseca e Costa pensava sobre determinados assuntos? Julgo que sim, mas é complicado …

Em relação à Igreja, por exemplo é fortíssimo… Finalmente, falando desta sua experiência como realizador. Gostaria de repetir esta experiência como realizador ou foi apenas uma experiência única? Depende das condições. Das circunstâncias. A verdade é que tenho projetos que gostava de filmar …

Pois, sei que é difícil responder a essa pergunta. Pois, O José Fonseca e Costa não está cá para responder

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agora estreou Posto avançado do Progresso (2015) no qual fez a montagem e que estreou há um mês … Mas como realizador, vê-se a avançar com um projeto? Espero que sim! Tenho um projeto. Vamos ver se tenho condições para o fazer! Mas continuo na minha atividade de montador. As duas não se excluem. Para alguns teóricos, os filmes nascem na montagem, são construídos na montagem! Outros podem dizer que os filmes morrem lá …

Como Montador continua a fazer muitos trabalhos. Ainda

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insistindo e, às tantas, percebi ‘ok, eles estão mesmo a falar a sério, querem mesmo que eu desenvolva o projeto’. E depois resolveu partir para a ação, porque, na curta-metragem, vimo-la, literalmente, a partir a louça. Sentiu necessidade de criar uma obra mais interventiva? Sim, sim, porque, no filme anterior que tinha feito [«Rhoma Acans», 2012], senti que estava só a ilustrar um problema e não havia propriamente nenhuma resposta. Houve um sentimento de frustração que surgiu daí e, neste filme, apeteceu-me não sentir a mesma coisa. Então, achei que não íamos fazer um filme sobre isto, temos de, pelo menos, tentar apresentar a solução e não ficarmos só pela ilustração do problema. Daí a intervenção.

a balada de um bratráquio entrevista leonor teles Leonor Teles tem 23 anos e tornou-se, em fevereiro passado, na mais jovem realizadora de sempre a vencer um Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim. A vitória deve-se à curta-metragem «Balada de um Batráquio», uma obra que põe o dedo na ferida de uma forma inventiva e inesperada. A METROPOLIS esteve à conversa com a jovem cineasta sobre o filme que chega às salas portuguesas no dia 28 de abril. TATIANA HENRIQUES

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Quais são as suas primeiras lembranças cinematográficas e como começou a sua relação com a Sétima Arte? Era os filmes que eu via no domingo à tarde. Gostava muito de Cinema como gostava de livros e os meus pais sempre fomentaram, a mim e aos meus irmãos, para ler e ver filmes e lembro-me de ir, quando era bastante pequena, com a minha mãe ao Cinema ver uma data de filmes mas daí a querer trabalhar em Cinema foi bastante diferente. Porque, apesar de gostar de Cinema, de literatura e etc., queria era ser piloto da Força Aérea. Depois, no 12º ano, percebi que não era bem aquilo que eu queria e comecei a ver que tinha outros interesses. Gostava muito de Fotografia mas, para não estar só a restringir à Fotografia,

descobri, naquela altura, que havia o curso de Cinema, decidi candidatar-me e foi durante o curso que percebi mesmo que era isto que eu gostava de fazer. Fui para o curso um bocado naquela ‘posso estudar fotografia, posso estudar fotografia em movimento, vou experimentar, se não gostar posso fazer outras coisas, ir para a Força Aérea’ mas não. Depois, durante o curso, percebi mesmo que é isto que eu gosto de fazer. Como surgiu a ideia para «Balada de um Batráquio»? LEONOR TELES - A ideia já vem de há muito tempo atrás, para aí há uns 10 anos. Tinha 13, 14 anos quando, através da minha mãe, descobri o significado dos sapos de louça. A partir daí, quando soube disso, eu e a minha mãe tínhamos

sempre esta brincadeira de ‘um dia, vamos entrar nuns sítios e vamos partir os sapos todos’. Mas isto era só uma brincadeira, de quando era adolescente. Depois, mais tarde, em setembro de 2013, fui jantar com os meus produtores, entrámos num restaurante, estava lá um sapo e perguntei-lhes, à Filipa [Reis] e ao Miller [João Miller Guerra]: ‘Vocês sabem o que significa este sapo?’. Eles não faziam a mínima ideia, conteilhes o significado dos sapos e esta história da minha mãe. Eles acharam aquilo tão engraçado e curioso que insistiram comigo para desenvolver essa ideia. No início, achei ‘não, eles estão a brincar comigo, ninguém quer saber disto, que parvoíce’, mas eles foram insistindo, insistindo e


Sente que esta questão da discriminação para com a etnia cigana ainda é um grave problema ou sente alguma evolução? Acho que não houve assim… claro que já houve algumas melhorias, como é normal, mas não sei até que ponto houve assim umas melhorias tão significativas porque aquilo que eu sinto ou, pelo menos, o que eu vejo e tenho contacto, é que a comunidade cigana continua um pouco a viver como viviam os meus avós – quando os meus avós eram mais novos do que eu, atenção, portanto, já foi para aí há 100 anos. Portanto, se se continua a viver da mesma maneira… acho que aí não houve melhorias significativas quanto ao modo de vida. Por outro lado, no caso da sociedade em geral para com a etnia cigana, ainda há uma

tolerância bastante grande no que diz respeito ao racismo contra os ciganos, ou seja, é aceite. É muito célebre ouvir-se aquela frase “não sou racista mas” quando se fala de ciganos. E uma discriminação que talvez não seja tão abordada quanto outras, por exemplo. Exatamente, mas a verdade é que ainda é preciso ser feito um caminho de ambas as partes. Acho que esta marginalização que existe face aos ciganos também é, às vezes, perpetuada um bocadinho por eles se porem à parte. Portanto, tem de haver um caminho de ambas as partes e acho que isso só vai acontecer com a educação, a formação escolar, que assim é que as pessoas podem ter algum conhecimento e alargar perspetivas e novos horizontes. Porque é que há preconceito, porque é que há racismo? Porque

não se conhece, é muito por falta de conhecimento e também por medo e receio. E quis contribuir para a atenuação dessa discriminação com o seu filme? Não necessariamente. Fiz o filme porque queria fazer, tinha as minhas próprias questões, vontades e inquietações. Mas, a partir do momento em que faço o filme e ele tem a oportunidade de ser mostrado… se as pessoas bem o acharem vão ver o filme e daí tiram de lá o que quiserem. Não posso impor uma interpretação, não posso dizer que é um filme assim ou assado. Se as pessoas acharem que, depois de verem o filme, podem levar aquilo para casa e pensar um bocadinho mais sobre essa questão do racismo, óptimo, mas isso não é uma coisa que dependa de mim.

O filme foi gravado em Super 8. Porquê? Por acaso, inicialmente, nos primeiros meses em que estive a desenvolver o projeto, estivemos sempre a pensar em filmar em digital mas não sei muito bem porquê, tive um sonho ou uma coisa qualquer, uma epifania, em que achei que isto tinha de ser filmado em Super 8. Acho que, formalmente, era muito importante que o filme também estivesse em concordância com a narrativa e com o tema – estamos a falar de coisas que, para mim, são um bocado absurdas e ridículas que ainda hoje existam. Para mim, é absurdo esta questão dos sapos existir, portanto, era necessário que o próprio meio em que fôssemos filmar também fosse, de certa forma, assim meio absurdo, ridículo e tosco e o Super 8, sendo muito rugoso, muito granulado e colorido, com um aspeto muito tosco e muito parvo, achei que era perfeito para trabalhar este tema e acho que se coaduna muitíssimo bem com a narrativa do filme. Foi exatamente com essas palavras, “parvo e tosco”, que classificou o filme aquando do seu discurso de vitória no Festival de Berlim. Por que vê o filme desta forma? E continuo a classificar. Porque, lá está, é absurdo existirem sapos

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comercial em Portugal – permitiu no sentido em que se abriu essa possibilidade, o que é muito importante, porque é muito raro curtas-metragens estrearem em sala, ainda por cima em todo o país, é óptimo. E depois, também há outra parte, em que se abrem portas para outros festivais internacionais e permite que o filme chegue a outro tipo de públicos que não o português, o que é óptimo, porque é isso que eu quero quando faço filmes, que ele seja visto pelo maior número possível de pessoas. O filme já correu alguns festivais e vai chegar agora pela primeira vez a Portugal. Quais são as expetativas, tendo em conta que é um público diferente? Muito diferente. Espero que corra tudo bem e que as pessoas gostem e que vão ver o filme. Já que o

de louça como forma de afastar outras pessoas. Aqui estamos a falar dos ciganos mas, para qualquer outra situação, é absurdo haver sinais, objetos, o que quer que seja, mas a verdade é que, se pensarmos, não existe, pelo menos em Portugal, outro tipo de objeto para afastar qualquer tipo de etnia. Eu aqui estou a falar em pessoas, não estou a distinguir etnias. É tão parvo que isto exista que eu estar a fazer um filme sobre uma coisa que ainda existe que é parva acaba por ser todo um conjunto de coisas parvas umas a seguir às outras. Mas acho que, às vezes, é preciso falar do ridículo através do ridículo. Às vezes, é preciso chamar a atenção para coisas sérias, embora parvas, de uma forma divertida e foi muito o que tentámos fazer com o filme

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e o Super 8 também ajuda muito a passar esse sentimento de diversão e parvoíce. De facto, parece que o tema começou a ser mais falado a partir do filme. Lembro-me, por exemplo, de um amigo meu, que é jornalista desportivo, e que partilhou, há pouco tempo, nas redes sociais, uma imagem de um sapo de louça à porta de um hotel no qual estava em trabalho. Isso é óptimo! É uma das coisas boas do filme que é, mesmo que as pessoas não saibam, quando veem o filme, ficam a saber e começam a reparar porque começam a vê-los em todo o lado e só por isso o filme já é bom. Já é bom que provoque isso nas pessoas.

filme foi tão falado e que se criou tanta expetativa à volta dele… E o filme não está só no Indie, vai estrear comercialmente, em todas as salas do país, da NOS. Portanto, há mais do que oportunidades para se ver o filme. É mesmo isso que eu espero, que as pessoas adiram em massa para ir ver o filme. E enquanto realizadora, como vê o papel da mulher no Cinema, em Portugal e no mundo? Acho que, em Portugal, há muitas realizadoras, se calhar não tanto em ficção – talvez tirando a Teresa Villaverde –, mas, em documentário, há muitas realizadoras, a Margarida Cardoso, a Cláudia Varejão, a Catarina Mourão, a Filipa Reis (que também é minha produtora). Há uma série de realizadoras que estão a trabalhar novos

temas e de maneiras bastante diferentes daquilo que é habitual. Espero que continue assim e que continue a crescer. Se calhar, a indústria ainda é um bocadinho mais fechada no que diz respeito às mulheres mas acho que nós estamos a desbravar caminho e isso é muito importante. Aliás, quando a Leonor ganhou um prémio, também se falou numa nova realizadora. São questões que me ultrapassam um bocado. Para mim, é mais importante o filme do que propriamente essa questão se é homem ou mulher, ou se trabalham mais homens ou mulheres. Acho que se uma pessoa quer verdadeiramente fazer um filme, se acredita naquilo que está a trabalhar, só tem é que lutar por isso.

É a mais jovem realizadora de sempre a vencer um Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim. Como foi receber o prémio e já tem tido algumas repercussões na sua carreira? Para já, ainda não houve repercussões na minha carreira. Possivelmente, o que poderá acontecer é que, para projetos futuros, possivelmente vou obter financiamento, o que já é muito bom para uma pessoa da minha idade. Claro que me senti bem, optimamente, foi incrível, foi espetacular, totalmente inesperado. Claro que agora já dá um bocadinho para pensar sobre o que aconteceu, no que possivelmente vai acontecer, mas as coisas boas é também permitir que o filme vá a outros sítios, ou seja, permitiu não só a estreia

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olmo e a gaivota entrevista Petra Costa Depois de «Olhos de Ressaca» (2009), curta-metragem sobre os avôs e «Elena» (2013) sobre o suicídio da irmã, a realizadora brasileira Petra Costa volta a surpreender com «Olmo e a Gaivota», imersão na vida da atriz Olivia Corsini durante a sua gravidez. Conversámos com Petra sobre a origem do projeto, a co-autoria do filme com Lea Glob, o título do filme, o trabalho com Olivia Corsini e Serge Nicolai, a rodagem e as suas limitações e ainda sobre a participação do ator Tim Robbins na produção do filme. SÉR-

Depois de «Olhos de Ressaca» (2009) e «Elena» (2013) surge com esta belíssima história de amor e vida. Fale-nos da génese deste projeto … Bem, eu venho do teatro e tinha um desejo grande de fazer um filme com um grupo de atores e queria criar da mesma forma que se cria no teatro – à base de improvisação, de workshop - uma co-autoria em conjunto com os actores. Da experiência que tive noutros filmes de ficção achava o processo de ficção um tanto engessado em que o ator e o realizador ficam reféns dum argumento que acaba, muitas vezes, de imobilizá-los … Aprisiona? como se Aprisionasse?

PETRA COSTA - É! E o realizador, muitas vezes, escuta muito pouco os seus atores e cria muito pouco com os atores que são, quando bons atores, verdadeiros autores. E eu queria fazer um filme nesse espírito de colaboração. Então, tinha esse desejo! Aí, quando estava a terminar o «Elena» (2013), mostrei ao Serge Nicolai e à Olivia Corsini , pois eles estavam em tournée mundial e passaram alguns meses no Brasil. Eles gostaram do filme e a Olivia disse: vamos fazer um filme juntos! Eu fiquei com essa ideia na cabeça. Logo depois, fui convidada para fazer uma co-realização com a Lea Glob por um festival na Dinamarca … Para fazerem um filme em conjunto? Sim! Convidaram dez realizadores

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barreiras é muito mais fácil. Agora no outro as barreiras são impostas por eles, você não tem muito controle. Nesses momentos de diálogo com os atores que o filme mostra, houve sugestões da parte deles: nem por aqui não podemos ir. Essas sugestões foram acordadas no princípio ou foram ao longo do filme? Não, foram ao longo do filme. Mas, uma coisa que a Olívia definiu no inicio foi não filmar o parto! Por exemplo, achei que outro momento de limitação podia ser a nudez da Olívia… Não, não foi!

europeus para fazerem filmes com dez realizadores não-europeus. E aí aceitei o convite pois já gostava do trabalho … E foi a Petra que introduziu o tema do futuro filme? Depois, tínhamos uma semana para decidir o filme. falei com a Lea e propus-lhe duas ideias: uma era essa ideia de fazer algo com esses atores mas antes disso contei-lhe dum argumento que era um dia na vida duma mulher em que nada acontece mas tudo acontece dentro da cabeça dessa mulher. E a Lea gostou e disse: porque é que não escolhemos uma mulher verdadeira (pois ela queria mais fazer um documentário). E eu disse: e se essa mulher real fosse uma atriz? E o material fosse a vida dela? E ela gostou dessa ideia e fomos perguntar à Olivia se ela se interessaria e ela aceitou mas disse que estava grávida! E

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aí um dia na vida duma mulher, transformaram-se em Nove Meses!

pessoa? Factos da vida! Que são esses questionamentos existenciais …

E foram nove meses de rodagem? Foram nove meses de rodagem mas ainda continuamos a filmar depois do nascimento do bébé!

As dúvidas, os medos, as angústias? Exatamente! No caso do «Elena» (2013) claro que isso já estava presente muito a partir desse evento sísmico que é o suicídio. Neste caso, do «Olmo e a Gaivota» (2015), o evento sísmico é o nascimento.

Depois de Elena, filme mais melancólico nas suas próprias palavras, surge com este Olmo e a Gaivota, mais luminoso! Porquê esta escolha? foi intencional? Não! Eu não teria problema nenhum em fazer só filmes dum tipo mais melancólico. Na verdade foi a pesquisa que levou a isso: um dos motivadores da pesquisa foi o quanto se passa dentro da cabeça que é incomunicável e não se traduz em eventos… Em factos da vida duma

No filme anterior, a imersão era na sua história, da sua irmã, enfim nas suas origens. Os passos dados pela sua irmã em Nova Iorque, a sua carreira, as suas cartas… Agora é a vida doutra mulher, também atriz, mas existe um distanciamento maior. Qual dos dois foi o mais difícil de realizar? Cada um tem a sua dificuldade: no Elena era difícil estar convivendo

com a Morte durante tanto tempo, mas o que era fácil era que a investigação dependia apenas do meu inconsciente e dos diários. Tudo o que observava estava ali muito disponível para mim. No caso de «Olmo e a Gaivota» estava com dois seres humanos, com os quais não tinha uma intimidade tão grande e que tinham barreiras! existiam vários lugares da intimidade deles que eles não queriam que nós entrássemos … Que nunca foram ultrapassados? Sim! Acho que o filme mostra isso. Mostra esses momentos de pausa e de diálogo entre Realizadores e Atores … Sim, então isso é uma dificuldade. Em termos psicológicos a pesquisa no «Olmo e a Gaivota» foi mais difícil. Porque se investigasse mesmo quando não existem

A encenação da peça: as imagens da sala de ensaios do teatro e da interação artística entre o casal são abandonadas quando Olívia é obrigada a deixar a produção da peça e a ela apenas regressa quando Olívia recorda o passado amoroso dela. Porquê essa opção de deixar as imagens dos ensaios e fechar em quatro paredes as câmaras, na casa deles, numa sensação de claustrofobia sentida ao longo do filme ? Porque estávamos olhando o mundo através do ponto de vista dela. E essa claustrofobia foi imposta pela condição dela não poder sair de casa. Essa claustrofobia decorreu da própria situação dela? Sim, porque senão seria talvez um filme normal: via um casal apaixonado, que têm filho e aí você acompanha o marido esperando …. Agora, o que nos interessou nesse filme e que acho que falta muito nas narrativas, tanto na literatura como no cinema, é saber o que se passa na cabeça da mulher enquanto ela cria um ser.

É quase irónico que a sociedade ocidental tenha dado tanta ênfase a essa narrativa que Deus criou o mundo em sete dias! Isso é uma hipótese, não é? A única coisa que têm em concreto é que uma mulher demora nove meses, uma cadela em tantos meses, uma baleia em tantos meses … Isso é o que há concreto, embora não se explore isso. Não se explora o que é que acontece no primeiro mês, o que que acontece no segundo mês e no terceiro dentro da cabeça da mulher. E fisiologicamente? quando ela cria os olhos, a barriga, etc … Poderia haver uma bíblia inteira sobre isso, mas não há! O quanto isso vem do homem de tirar a narrativa da mulher… E a rodagem do filme foi sendo feita, também, em função das limitações da própria atriz. Isto é, aquela limitação de não poder sair de casa surgiu no próprio filme? Vocês não estavam á espera? Não. Surgiu e até como se mostra no filme nós chegámos a pensar: será que paramos? será que faz sentido continuar? Porque os nossos planos eram filmar em Itália (a Olivia é italiana), filmar noutros lugares … As viagens dela, as deslocações dela, a própria viagem a Nova Iorque com a companhia de teatro que estava prevista. Vocês viram isso como uma limitação ou como uma oportunidade? Virou uma limitação que nós depois utilizámos como uma oportunidade. O filme inteiro foi um pouco isso: a realidade se impondo desde a gravidez, depois a complicação da gravidez. Foi o tempo inteiro adaptando-se à vida! Um dos momentos mais bonitos do filme: quando a

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Olivia pode finalmente sair à rua, há uma espécie de libertação? Sim. Uma ode à alegria, á vida. Ao estar na rua. Como foi para vocês viver esse momento enquanto criadoras? Nós sentimos essa saída por termos tido esse tempo de claustrofobia e aí é como se a Gaivota voltasse a ter asas (O título «Olmo e a Gaivota» reflete muito o embate ao qual o protagonista está imposto – um desejo de voar, de criar, da artista e da liberdade e o outro que é o Olmo, uma árvore, que é a criação duma família, a criação de raízes e o quanto tem que se sacrificar para isso também). Esse é o momento em que a Gaivota volta a ter asas! Poético! Ao longo do filme, a Petra (e a Lea Glob também) intervêm e dialogam com os atores. Estes momentos foram decisivos na construção do próprio filme? No sentido de apontar um rumo – agora vamos por aqui e já não por aqui … Sim. Na verdade isso foi uma

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escolha feita na montagem pois durante a rodagem nós não tínhamos a certeza se íamos ou não incluir esses diálogos. Mas, aí durante a montagem nós quisemos assumir-nos como personagens nesse filme como elementos perturbadores. E acha que o filme funcionou melhor com esses elementos disruptivos, como agora se diz? Acho que sim. Tinha-me dito que a Olívia e o Serge também deram sugestões? Claro.Eles colaboraram muito. Que peso tiveram essas sugestões? É difícil pesar mas a voz off, por exemplo, resultou dum pedido que fizemos à Olivia para gravar um diário de voz durante os nove meses de gravidez. Aí esse diário enformou não só o diário de voz off mas também algumas cenas. Porque a voz off é um elemento que integra sempre os seus filmes? É um elemento estruturador do filme, para si? Sim! A voz off é a alma do filme!

O cinema criou uma aversão à voz off que eu lamento e tenho pena, na verdade. Porque a voz off é a subjetividade! E talvez essa aversão à voz off que surgiu no cinema seja uma aversão à subjetividade. Faz-se mas não se reflete! Pode existir cenas de encontro ou de discussão mas a reflexão não. E a reflexão talvez seja o mais interessante. Porque nós vemos um casal a discutir, o que nós não conseguimos, no dia- a-dia, é entrar na cabeça das pessoas. Isso é o que mais me fascina no cinema, a possibilidade de entrar dentro da cabeça de outra pessoa. Essa Imersão, não é? É. O filme passa-se quase todo em interiores (a casa, a sala de ensaios, a casa dos amigos no jantar, o consultório médico). A intenção de criar uma atmosfera algo claustrofóbica resultou das próprias circunstâncias da vida dela, não é … No cinema dinamarquês e o Lars Von Trier tem um filme que se chama cinco obstruções e ele vai

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Poderá com esta estreia abrir uma porta para que o seu trabalho seja distribuído em Portugal? Espero que sim. «Elena» (2013) é um filme belíssimo e tem uma história interessante à volta dele. Quernos contar a ligação de Tim robbins ao filme e como tudo começou. Sei que entregou um Dvd do Elena (2103) ao Tim Robbins … Foi em 2013 que tudo se passou: no festival de Berlim, entreguei um dvd do filme para ele. Conversámos um pouco porque o Tim Robbins é um dos atores mais ativistas nos EUA . Conversámos sobre isso e eu tinha visto uma peça de teatro dele contra a guerra no Iraque que foi um pouco destruída pela imprensa norte-americana. Dei-lhe um dvd e ele teve a grande generosidade

Portanto, este filme teria sido outro se a Olivia tivesse tido outra vida? Seria outro filme, completamente diferente … Sim! Sem dúvida.

em exclusividade enquanto Serge continua a fazer a sua vida, prosseguindo a carreira e viajando, inclusivamente ao estrangeiro. Afinal em que ponto estamos em termos de condição feminina neste século. Pensaram nestas questões durante o filme? Pensámos nisso desde o começo. Quando ela falou que estava grávida foi muito isso que nos interessou em continuar porque é um tema muito pouco discutido. Hoje em dia a gravidez é um dilema para quase todas as mulheres que têm a oportunidade de escolher. É um dilema para mim, para a minha co-diretora (Lea Glob) e por isso também nós nos interessámos em fazer o filme.

A condição da mulher: Olívia é obrigada a deixar de trabalhar, a suspender a carreira para abraçar as tarefas maternais

Pois esse aspeto que hoje não se fala muito mas que no filme ressalta muito: esta impossibilidade, a Olivia tem

colocando obstruções para se fazer uma pequena curta que o realizador já tinha feito antes. Mas existe toda uma teoria no cinema sobre como trabalhar com limitações. E essa limitação do apartamento foi a limitação criadora do filme. Muitos autores dizem que o pior que podem ter num filme é não ter limitação nenhuma pois aí você não tem nenhuma … Fonte … Fonte de Atrito!

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de assistir ao filme e disse que gostaria de ajudar o filme como pudesse. E sugeriu entrar como produtor executivo do filme na estreia nos EUA. E isso aconteceu e o filme teve uma estreia muito bonita nos EUA. Muito graças à ajuda dele, também. E voltou a produzir este agora – «Olmo e a Gaivota»? Foi uma grande coincidência porque quando falei para ele que estava fazendo este filme, ele já conhecia o Serge e o Theatre du Soleil. Ele tem um grupo de teatro em Los Angeles que é inspirado no Theatre du Soleil – é como um filho desse teatro. E ele entrou, de cabeça, neste projeto, também. Já está a trabalhar num novo projeto? Estou a trabalhar nalguns projetos. Documentário e ficção. Estou a trabalhar num projeto sobre a questão política brasileira e acompanhando essa crise atual.

que fazer uma opção – deixar de fazer a coisa que mais gosta na vida que é ser atriz e tem que se dedicar apenas a uma coisa. E esse aspeto é marcante … Sim, e para muitas mulheres essa decisão não se dá durante a gravidez mas logo depois da gravidez, quando o filho nasce. Nós tentámos condensar as questões da maternidade durante os nove meses da gravidez mas para muitas mulheres essas questões surgem depois. É o seu primeiro filme a estrear em Portugal? Sim, sim! Como se sente em relação a isso? É um momento muito marcante poder estar a estrear aqui. Gostaria muito que o «Elena» (2013) pudesse estrear aqui também.

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fados da memória da mãe. A saudade é seu motor.

histórias de alice entrevista oswaldo caldeira Experimentação melodramática sobre o poder autorregenerativo do amor, a coprodução luso-hispano-brasileira «Histórias de Alice» foi uma das maiores surpresas em língua portuguesa a chegar ao circuito exibidor do Brasil de janeiro até agora, marcando o regresso de um realizador premiado, cuja potência criativa nem sempre recebeu o devido prestígio. Como cineasta, Oswaldo Caldeira fez História à força de cults como «O Bom Burguês» (1979) e «Passe Livre» (1974). Mas ele mexeu nas cabeças também na condição de professor.

Todo cinéfilo que estudou Comunicação na rede pública do ensino superior no Rio de Janeiro dos anos 1990 ou 2000 deve um “Obrigado, mestre!” a esse diretor mineiro. Docente titular de Cinema na Universidade Federal da Cidade Maravilhosa, ele formou gerações e gerações com suas reflexões sobre linguagem e narrativa audiovisual, enquanto preservava seu viés de cineasta autoral, rodando produções como «Tiradentes» (1999). Por quase duas décadas, dividido entre a pesquisa e a docência, o realizador permaneceu afastado das salas de exibição com suas ficções, investindo mais no formato DVD. Mas esse jejum chega agora ao fim. Rodado em 2006, em localizações cariocas, mineiras e portuguesas, este drama de amor narra o périplo de um cineasta, Lucas (Leonardo Medeiros), que se embrenha Oceano

Atlântico adentro atrás de respostas sobre seu passado, sobretudo sobre sua mãe, Alice interpretada por Ana Moreira. Em cena, tudo é sinestesia... Ventos de mormaço sacolejam lençóis e pijamas estendidos no varal de uma casa na Belo Horizonte de 1954, terra intermediária, de trégua e de bonança, entre os dois hemisférios que dividem «Histórias de Alice». Primeiro (e necessário) filme de ficção de Oswaldo Caldeira depois de um êxodo de 17 anos longe da telona carrega uma proposta proustiana em seu afã de rememorar o passado. É algo similar ao que ele fez em «Tiradentes», só que com mais potência. Naquele quintal de Minas Gerais onde as roupas de cama balançam, o protagonista, o cineasta Lucas, viveu momentos

felizes, resguardado das angústias que tornar-se-ão o combustível de sua curiosidade documental na idade adulta. Em solo mineiro, tudo se resume a um velocípede e à inteireza de uma mãe que narra casos quase fabulares pescados no mar. O País das Maravilhas de onde vem essa Alice, defendida com gestos, silêncios e olhares ultrarromânticos pela atriz Ana Moreira, é um Portugal perdido em si mesmo, conformado por ter sido o dono do mundo na época das navegações e ter deixado essa coroa real se esfumaçar na concorrência metalista com as naus britânicas. De um lado há esse Portugal das cantigas e das meias verdades e, do outro, o Portugal contemporâneo, cosmopolita, cenário de filme noir aonde vai um Lucas em tempo de madureza (na pele de Leonardo Medeiros), à cata dos cacos espati-

Colcha de imagens captadas há exatamente dez anos, «Histórias de Alice» estampa as rugas de sua idade na fotografia de Antonio Luiz Mendes em seu tom esmaecido, por vezes riscado. O visual sugere alguma coisa fora do prazo, deslocada, quase vencida, desterritorializada, como é a própria condição do filme na cena industrial do cinema brasileiro hoje, sem parecer neochanchada, nem experimento narrativo. O ar de não pertencimento é o sintoma não só da situação da longa-metragem, como também de sua dramaturgia. Lucas é um homem sem pátria: não a pátria geopolítica, o país natal, mas sim a pátria ventre, o amparo materno. Lucas singra um oceano atrás daquela mãe que o Tempo tirou dele sem pedir licença, no bom senso dela em perder a lucidez antes que os traumas do passado a devorassem. Caçar esses traumas e entendê-los a fundo é a forma de esse cineasta – alter ego de Caldeira – prestar um tributo a sua Alice através do espelho da nostalgia e da melancolia. É, sem dúvida, um dos melhores filmes brasileiros do ano e um dos mais possantes e elegantes das últimas décadas.

Nesta entrevista à revista METROPOLIS, Caldeira fala sobre seu retorno, sobre a arte de filmar e sobre resistências estéticas – assunto que ele transformou em lição de aula muitas vezes, refinando o olhar de seus estudantes. RODRIGO FONSECA, CRÍTICO DE CINEMA E ROTEIRISTA DA TV GLOBO

O quanto da sua experiência documental pesa numa recriação histórica e num deslocamento geográfico entre nações como é o caso de «Histórias de Alice»? OSWALDO CALDEIRA «Telejornal», o meu primeiro filme, um média-metragem sci-fi de 1967, foi feito por um jovem cineasta e estudante de filosofia, fã de Heráclito, Godard, Faulkner e James Joyce. Como o próprio nome indica, tratava-se de um programa jornalístico de televisão supostamente do futuro, que se propõe, com base em fragmentos de som e imagens, a reconstituir uma cidade desaparecida no espaço e no tempo – o Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, ele busca explicações para o que


terá acontecido com ela. Vemos imagens documentais jornalísticas de tragédias, desmoronamentos, manifestações de rua contra a ditadura militar, pancadarias, violências policiais, intercaladas por cenas com personagens ficcionais que percorrem e participam destes eventos. O protagonista destas cenas do passado é encarnado pelo mesmo ator que apresenta o programa em busca de uma resposta para suas indagações. Ele tenta juntar reunir estes fragmentos de forma a fazerem sentido e trazerem uma resposta, uma verdade para suas indagações. No filme «Histórias de Alice», nós vemos o protagonista, o cineasta Lucas, saindo de seu país, o Brasil, para buscar em outra nação – Portugal - o passado de sua família, particularmente das histórias que sua mãe contava e que não conseguiu gravar.

Ele também busca o passado? Sim. Ele também vai buscar depoimentos, documentos, locais, fragmentos de verdades ou supostas verdades que lhe permitam uma resposta sobre o passado de sua família, sobre sua própria identidade e biografia. Então, são dois movimentos no espaço e no tempo que, de certa maneira, têm um percurso similar e que valem como descoberta mais pelo percurso em si e suas indagações e revelações do que pelas supostas verdades descobertas. É a aventura do conhecimento. Esse percurso indetermina-se nas minúcias realistas, aquilo que normalmente se atribui a documentaristas. Não busco em meus filmes tanto de ficção como documentais a reconstituição minuciosa realista. Para mim ficção e documentário

estão em permanente tensão entre si. Como se dava essa tensão nas suas anteriores longasmetragens históricas? Não é a primeira vez que faço um filme que implica numa reconstituição histórica - foi também o caso do «Tiradentes», de «O Bom Burguês», do meu documentário sobre a Pampulha [região do Belo Horizonte] e trabalho este fator como mais um elemento de que se dispõe, como outros do filme, para explicitar a consciência de que um filme é apenas um filme. Ou seja, um filme é uma encenação, uma construção através de planos, feita com base em enquadramentos, movimentos, sons, músicas, ruídos, diálogos. É uma montagem, um acoplamento, uma colagem, que se transfigura a

cada momento com possibilidades de conjunções várias. Um filme é uma tentativa de conhecimento, uma entre as muitas existentes, seja de seu diretor, seus autores, seus atores seus personagens. Essa postura permanece até em meus filmes mais recentes, como é o caso de «Histórias de Alice», que traz a indagação sobre o sentido das coisas e nossas possibilidades de alcançarmos o seu sentido mais profundo. Então no meu trabalho, a ficção e o documentário convivem sempre lado a lado numa espécie de tensão se questionando se afirmando e se negando permanentemente. De que forma a jornada de Lucas, o protagonista de «Histórias de Alice», interpretado por Leonardo Medeiros, carrega experiências pessoais suas?

Quando Lucas se desloca para Portugal em busca das histórias de sua mãe, do passado de sua família, essa viagem me remete a uma famosa frase citada num filme do diretor Joseph Losey: “O passado é um país estranho, pois lá, eles pensavam diferente”. Quando fui a Portugal, depois da morte de minha mãe, não encontrei lá nem sequer as palavras que minha família usava. Não ouviam-se mais traços do sotaque que eles tinham. Quando estive lá em 1966, era o Portugal de Salazar, um país sinistro. E agora, tinha jovens, muita liberação e mercado comum europeu. Lucas, como herói romântico, busca a todo custo conciliar os dois passados de sua família no Brasil e de sua família em Portugal, mas não encontra nenhum deles. Lá estão agora os aventureiros, os sem pátria, sem ideal, sem filiação e apego a nada. Então, o eventual documentarista que existe em mim no sentido mais estrito, tem de se ater e se fixar nesta flutuação, nesta flutuação de valores, de interpretações, de meias e turvas verdades. De que maneira a tradição do cinema francês da qual o senhor é entusiasta, estudioso e pesquisador entra na concepção espacial e afetiva desta Europa visitada por Lucas? «Acossado», de Godard, foi um marco para mim. Trazia uma ruptura com a narrativa tradicional, carregado de uma nova concepção do espaço e do tempo. Era o cinema de travellings, como queria Bazin, violentando da luz de estúdio com a câmara na mão e vários outros elementos. Godard, ao mesmo tempo em que filma com atores, faz um documentário simultâneo em que os passantes apontam para a equipe. Ali, o ator interrompe

uma cena para se dirigir ao diretor. Na direção, Godard revela permanentemente os elementos de construção do cinema, da ilusão do cinema, de sua ação sobre o espectador. O espectador é despertado permanentemente para o fato de que ele não está dentro do filme, vivendo através dos passos do protagonista. Há um corte permanente de que aquilo não é uma verdade, mas uma das verdades, a verdade daquele filme, dos personagens daquele filme. Poiccard é herói ou vilão. Patricia Franchini é heroína ou vilã. Uma heroína que chama a polícia e denuncia o seu amado para provar a si mesmo que não o ama. Uma ruptura radical com a concepção amorosa do happy end tradicional. Então, de certa forma, ainda que de uma forma inconsciente, todas essas questões de Godard estão presentes em Historias de Alice. Nessa permanente aproximação e afastamento com o amor romântico e um amor cínico, debochado mesmo. Como foi estruturada a luz para esta narrativa? Que elementos o senhor buscou para compor planos de cada segmento da trama? Os planos que pertencem nitidamente ao passado foram filmados por Antonio Luiz Mendes Soares em sépia. Planos de sonhos, de situações mais oníricas, são mais aguados, difusos. Planos do presente são tratados de forma realista, cores fortes etc.é apropriado para os meus filhos verem e que não lhes é insignificante. As crianças podem acompanhar a narrativa sofisticada. O sonho de Walt era manter sempre as famílias unidas, mas não necessariamente da maneira mais óbvia ou previsível.


do outro lado do atlântico

FESTin 7ª edição entrevista Adriana Niemeyer É já a 7.ª edição do FESTin Festival de Cinema Itinerante de Língua Portuguesa e, este ano, o cinema feito em português volta a ser celebrado. O Festival homenageia, em 2016, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que comemora 20 anos de existência. São muitos os filmes que fazem parte da seleção, além de várias atividades paralelas. A METROPOLIS entrevistou Adriana Niemeyer, diretora-artística do FESTin, que contou os destaques desta nova edição. TATIANA HENRIQUES

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O que destaca nesta nova edição do FESTin? ADRIANA NIEMEYER - Esta sétima edição, ao contrário das anteriores que homenageavam um país membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, vai homenagear todo o conjunto durante as comemorações dos 20 anos da CPLP. O foco para tal comemoração está no público infantil, que participará de uma festa especial na própria sede da Comunidade, onde serão exibidas curtas-metragens educativas, bem como contos tradicionais nos vários sotaques da língua. O filme de abertura, «Todas as cartas de amor são ridículas», é já uma homenagem à língua, sendo baseado no poema de um dos nossos maiores poetas, Fernando Pessoa.

Quais foram os critérios para a seleção dos filmes? Além da qualidade da realização, fotografia e roteiro, o “tema” tem grande importância na seleção. Damos preferência às coproduções que retratam as realidades de cada país, ao mesmo tempo que encontram similaridades entre eles. Os curadores também se interessam em dar oportunidades aos novos talentos e aos documentários que denunciem situações de interesse local, mas que sirvam de exemplo para os demais países da comunidade. Além dos filmes em competição, que outras atividades destaca nesta edição? Damos sempre destaques às nossas mostras tradicionais, como a Mostra Brasileira, Mostra Social,

a Mostra Infantojuvenil. Mas, este ano, devido a um grande número de excelentes trabalhos experimentais, resolvemos apostar no FESTin Arte. Destaque também a duas mesas: “O cinema como forma de fomentar o turismo” e “Cinema, educação e comunicação comunitária”. Pode falar-nos um pouco sobre o FESTin +? O FESTin + é dedicado não só à chamada terceira idade mas também a todos aqueles que acreditam na possibilidade de um envelhecimento ativo. São curtas-metragens que tratam o tema de uma maneira realista mas positiva, que possa incentivar a população mais idosa a participar ativamente da sociedade.

a lenda do gato preto

Que balanço faz do Festival ao longo destes anos? Um festival que vem crescendo não só em Portugal, em público e prestígio, mas também através das suas itinerâncias. Em 2015, o FESTin tocou os quatro cantos do mundo, tendo estado presente em Timor-Leste, Guiné-Bissau, Angola e Brasil, através de parcerias com o Instituto Camões e festivais locais. Também através da parceria com o Lusophone Fim Festival, os filmes que participam do FESTin

Lisboa são exibidos nas mostras que acontecem em Nairobi, Adis Abeba, Banguecoque e Sydney. Ou seja, nenhum outro festival divulga mais obras em língua portuguesa em todo mundo do que o nosso. Agora também os países que não falam português estão demonstrando interesse em ter o FESTin dentro da sua programação cultural, como é o caso da Roménia e Alemanha.

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Russos, soviéticos & etc.

Os filmes “antigos” continuam, felizmente, a fazer parte das opções do mercado cinematográfico. Agora, em Lisboa e Porto, podemos (re)descobrir alguns títulos fundamentais do ‘Grande Cinema Russo’, desde o experimentalismo de Vertov até ao romanesco de Mikhalkov. Mais uma vez, importa referir e elogiar o facto de, para lá dos seus desequilíbrios ou contradições, o mercado cinematográfico ter recuperado a capacidade de dar a ver as mais variadas memórias, relançando um valor fulcral da cinefilia. A saber: a consciência do passado dos filmes como um

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decisivo factor de leitura do presente. Por vezes, esta actividade tem adquirido a estrutura de ciclo(s), dando a ver, em particular, as filmografias completas de alguns autores emblemáticos — o russo Andrei Tarkovski foi um dos exemplos recentes (aliás, entretanto, surgiu a edição da respectiva obra integral em DVD). De russos voltamos a falar, agora numa revisitação que envolve, em particular, o período revolucionário soviético e, nessa medida, vários títulos de Sergei Eisenstein, Dziga Vertov ou Aleksandr Dovzhenko. De

adeus a matiora

IVAN, o Terrível

qualquer modo, o ciclo organizado pela Leopardo Filmes, ‘Grande Cinema Russo’, ostenta um sugestivo subtítulo: ‘Do mudo à Perestroika’ (em Lisboa, no Espaço Nimas, até 13 de Julho; no Porto, no Teatro Municipal Campo Alegre, até 15 de Junho). Na prática, trata-se de revisitar cerca de seis décadas de uma produção obviamente marcada pelas convulsões da URSS e, em particular, pelos crimes do poder estalinista — é um arco histórico e temático que, por assim dizer, podemos ler a partir do admirável experimentalismo documental de «O Homem da Câmara de Filmar»

(Vertov, 1929) até à contundência da análise histórica de «Ivan, o Terrível» (Eisenstein, 1945), monumento sobre os bastidores do poder em duas partes (cuja terceira seria bloqueada pelo próprio Estaline). Curiosamente, esta é uma história que não pode ser dissociada de uma espécie de coexistência perversa com a produção ocidental, em particular com alguns modelos de Hollywood. Assim, por exemplo, o gigantismo de «Guerra e Paz» (1966), de Sergei Bondarchuk, decorre também de uma vontade de rivalização com as superproduções da década de 60 («Lawrence da Arábia», etc.) com chancela de Hollywood. Para quem conheça a produção

soviética apenas através dos clássicos dos anos 20, o ciclo propõe, assim, alguns importantes documentos, dando a ver trabalhos de cineastas tão importantes como Marlen Kutschiev (este um nome que vem desde o período estalinista até à actualidade), Larisa Shepitko (autora de «Asas», de 1966, subtil desmontagem do imaginário heróico) ou Elem Klimov (cujo «Adeus a Matiora», lançado em 1983, possui a dimensão visceral de uma genuína saga popular) — sem esquecer, claro, Nikita Mikhlakov, autor romanesco cuja obra inclui o muito conhecido «Olhos Negros» (1987), com Marcello Mastroianni. ‘Grande Cinema Russo’ é também um acontecimento que nos pode ajudar a ler o património

cinematográfico para além da dominação (descritiva e simbólica) dos modelos americanos. Nada disso significa qualquer menosprezo pela riqueza e complexidade da história de Hollywood. Acontece apenas que o cinéfilo é também aquele que conhece o valor relativo de qualquer padrão de produção ou modelo estético — ele sabe construir o seu olhar a partir de uma permanente disponibilidade para a máxima diversidade dos filmes. JOÃO LOPES

foto «O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR» Copyright Lobster Films

o homem da câmara de filmar


(Pitt), escritor confrontado com a angústia da página em branco. A expectativa romântica — a reconciliação afectiva de Vanessa e Roland — vai-se transfigurando num insólito processo de redescoberta que encontra uma espécie de espelho, material e simbólico, num outro par (interpretado por Mélanie Laurent e Melvil Poupaud). Através de uma admirável depuração dos tempos narrativos, este é um filme em que o “nada” que acontece se vai consolidando como uma arquitectura de afectos em que cada personagem se revela muito para além das aparências que cultiva. Dir-se-ia um filme de análise psicológica, mas é, sobretudo, uma fascinante peça dramática sobre a física e a metafísica de uma relação a dois (ou, como sugeria Freud, a quatro...) Depois de «Na Terra de Sangue e Mel» (2011) e «Invencível» (2014), Angelina Jolie confirma-se, assim, como uma cineasta de muitas singularidades, além do mais conseguindo neste caso, a partir de um argumento minimalista (também de sua autoria), concretizar um projecto alheio às convenções da sua imagem de marca e também à facilidade de qualquer moda cinematográfica ou mediática. Filme com ambíguas componentes autobiográficas?... Não nos precipitemos em jogos fúteis, cúmplices da desavergonhada mediocridade da imprensa cor de rosa. Registe-se apenas que, desta vez, ela assina: Angelina Jolie Pitt. JOÃO LOPES

by the sea Angelina Jolie, apelido Pitt Angelina Jolie reaparece como realizadora, assinando e interpretando o brilhante “By the Sea” — infelizmente, as opções do mercado impuseram um lançamento directo em DVD... Há qualquer coisa de bizarro e, num certo sentido, incómodo na descoberta de «By the Sea»/«Junto ao Mar», terceira longa-metragem de ficção realizada por Angelina Jolie, directamente no mercado do DVD. Daí a desencantada pergunta que, mesmo sem respostas seguras, importa formular: que está a acontecer no espaço público do cinema (português e não só) quando um filme, dirigido e interpretado por alguém como Angelina Jolie, na companhia do seu marido Brad Pitt, é objecto de tão desconcertante secundarização?

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Enfim, importa não alimentarmos qualquer falsa ingenuidade. Ninguém está a sugerir que a imagem mais estereotipada de Jolie (uma espécie de “eterna” Lara Croft) se adequa a «Junto ao Mar» ou que, em última instância, poderia servir para promover o filme junto dos seus espectadores potenciais. Nada disso. Este é mesmo um exemplo de um cinema de invulgar pulsação intimista, alheio a qualquer look da moda, com um timing narrativo tão delicado e subtil que faz mesmo lembrar algumas experiências revolucionárias dos anos 60, em particular de um autor como o italiano Michelangelo Antonioni («A Aventura», «A Noite», «O Eclipse»). Em termos simples, digamos, então, que estamos perante a história de um casamento exposto aos seus mais radicais silêncios. Em meados da década de 1970, o cenário de uma praia esquecida do Sul de França (de facto, a rodagem decorreu na ilha de Malta) acolhe Vanessa (Jolie), uma ex-bailarina que parece perdida na nostalgia da arte que já não pratica, e o marido Roland

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Título Nacional

Capitão América: Guerra Civil Título ORIGInal

S CA TI CRÍ CRÍ TI CA S

Captain America: Civil War REALIZADORes

Anthony Russo, Joe Russo ACTORES

Chris Evans Robert Downey Jr. Scarlett Johansson ORIGEM EUA DURAÇÃO

146´ ANO

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Entretenimento non-stop, narrativa bem articulada e uma boa dose de humor à mistura: estes são os principais ingredientes de «Capitão América: Guerra Civil», que transporta para outra atmosfera sem se perder no raciocínio. O filme opõe dois dos principais heróis Marvel: Capitão América (Chris Evans) e Homem de Ferro (Robert Downey Jr.). Outrora amigos, viram inimigos, quando se coloca uma questão fundamental: os super-heróis devem ou não ter supervisão governamental? Os dois divergem na resposta, tal como outros heróis, formandose, paulatinamente, dois lados de uma guerra sem precedentes no Universo Cinematográfico Marvel. Recheado de excelentes sequências de ação, o filme mostra que, acima de tudo, os irmãos Russo sabem contar uma boa história. O encadeamento da narrativa vai-se construindo pouco a pouco, dando tempo ao próprio espectador de formar a sua opinião sobre a génese do conflito. A obra segue por completo a linha estilística traçada em «Capitão América: O Soldado do Inverno» (2014), com menos iridescência do que em «Vingadores: A Era de Ultron» (2015) e um ambiente com mais suspense, o que só engrandece o resultado final. A obra não se perde em si mesma com o evoluir do conflito e com o momento épico em que os super-heróis se confrontam entre si, tal como aconteceu com o recente «Batman vs Super-Homem: O Despertar da Justiça». Além disso, num filme com tantas personagens, é importante realçar que cada um vai tendo o seu destaque próprio, com uma boa composição

individual. Os verdadeiros protagonistas são Capitão América e Homem de Ferro, que crescem na narrativa em harmonia com o que tem vindo a ser retratado no Universo Cinematográfico e demonstram, uma vez mais, uma excelente química em cena. É claro que gostaríamos de ver um maior desenvolvimento de algumas personagens, sobretudo Feiticeira Escarlate e Visão, mas há um bom equilíbrio neste desfile de super-heróis, aos quais se acrescentam o Pantera Negra (Chadwick Boseman) e o novíssimo HomemAranha (Tom Holland). O primeiro tem um carisma magnetizante e muita personalidade e o segundo consegue roubar todas as cenas, com uma leveza e umas pitadas de humor desconcertantes. Tom Holland é um diamante por lapidar (já o tínhamos percebido em «O Impossível», 2012) e deixa as expetativas em alta para o filme a solo do aracnídeo. «Capitão América: Guerra Civil» é tudo aquilo que podemos esperar de um filme de super-heróis. A obra consegue provar que não é preciso haver cenas absolutamente portentosas a nível visual, prédios a implodir e cidades em ruínas, para nos cativar: apenas é necessária uma boa história. É claro que o filme ainda poderia ser melhor: falta-lhe, quiçá, um maior arcaboiço político que ajudasse a sustentar a trama e um vilão mais portentoso – Daniel Brühl bem que se esforça, mas Zemo quase passa incógnito. Todavia, não tenhamos dúvidas: «Capitão América: Guerra Civil» é um dos melhores filmes do género até à data. Numa luta feroz entre super-heróis, quem ganha mesmo é o espectador. TATIANA HENRIQUES

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Será que, no actual cinema americano, existe alguma descendência do cinema de Robert Altman (19252006) e, em particular, da sua capacidade de expor as convulsões que se agitam por detrás das superfícies do real? Se mais respostas não houvesse, importaria sublinhar um nome emblemático: Oren Moverman. A terceira longa-metragem de Moverman — depois de «O Mensageiro» (2009) e «Rampart – O Renegado» (2011), ambas protagonizados por Woody Harrelson — aí está como um belo exemplo desse olhar que parece começar nas nuances do retrato psicológico mas que, a pouco e pouco, se vai consolidando como arqueologia de uma pequena comunidade humana. O desafio de «Viver à Margem» é tanto mais interessante quanto envolve uma temática que, com equívoca facilidade, poderia transformar-se num exercício mais ou menos piedoso ou panfletário. Trata-se, de facto, de traçar o retrato de um semabrigo, na cidade de Nova Iorque, estabelecendo elos muito especiais com aqueles que, por razões familiares ou circunstanciais, partilham o seu desamparado universo. Mais uma vez demonstrando um impecável sentido da direcção de actores — Richard Gere é brilhante na composição da personagem central —, Moverman integra os pressupostos de uma visão realista que, em última instancia, possui qualquer coisa de hiper-realista. Observem-se as incríveis manipulações cromáticas da direcção fotográfica de

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Título Nacional

Título Nacional

Viver à Margem

A Lei do Mercado

Título ORIGInal

Título ORIGInal

Time Out of Mind

La Loi du Marché

REALIZADOR

REALIZADOR

Oren Moverman

Stéphane Brizé

ACTORES

ACTORES

Richard Gere Jena Malone Steve Buscemi

Vincent Lindon Karine de Mirbeck Matthieu Schaller

ORIGEM

ORIGEM

Estados Unidos

França

DURAÇÃO

DURAÇÃO

120’

93’

ANO

ANO

2014

2015

Bobby Bukowski (também colaborador de Moverman nos filmes anteriores) e veja-se como a sua atenção ao detalhe envolve a sugestão de que o real está permanentemente assombrado pelos desígnios das memórias mais indecifráveis, porventura oníricas. Registe-se, enfim, que o título original do filme coincide com o de um álbum de Bob Dylan, lançado em 1997: “Time Out of Mind”. É apenas uma coincidência. Desta vez, “Time Out of Mind” designa uma pequena peça musical que a personagem de Richard Gere interpreta ao piano — foi, além do mais, como podemos verificar no genérico final, uma peça composta pelo próprio actor. JOÃO LOPES

Encarado como “a” longa-metragem política nº1 de 2015 por sua percepção de que “poder” é sinônimo de “dinheiro” e “governo” é igual a “economia”, «A Lei do Mercado», de Stéphane Brizé, alcançou cinco estrelas no juízo de algum dos mais influentes olhos da crítica francesa no tempo em que chegou à marca de 836 mil ingressos vendidos em seu país de origem. O duplo sucesso se deve à acuidade de seu retrato para a moléstia financeira que varre o Velho Mundo, ferindo sobretudo a saúde moral de quem já está na casa dos 50 anos e se vê uma peça descartada pelas engrenagens do Capital. Sem jamais escorregar no melodrama, mantendo temperatura e pressão fora das condições normais, na fronteira com o suspense, o diretor do subestimado «Entre Adultos» (2009) e de «Uma Primavera com Minha Mãe» (2012) faz do calvário ético de um cinquentão desempregado seu espaço de observação (em 360 graus) do desamparo social numa França em rota de colisão com a recessão.

dificuldades financeiras e garantir sustento à mulher e ao filho, que é portador de necessidades especiais, ele se submete a um emprego de baixa remuneração em um hipermercado. Lá, Thierry vai conhecer as diferentes formas de humilhação que a exclusão financeira pode produzir. “É uma condição da Europa hoje: o medo da escassez financeira”, disse Lindon em Cannes no ato de sua vitória, coroando uma atuação de contenções. Mestre na arte de represar excessos, como visto em sua recente parceria com Claire Denis («Bastardos») e Alain Cavalier («Pater»), Lindon sacrifica seu status de galã maduro compondo um tipo nas franjas do patético, que ainda estima seu caráter em valores que não podem ser comprados no atacado ou no varejo. RODRIGO FONSECA

Seu protagonista, Vincent Lindon, foi indicado ao prêmio de melhor ator no European Film Awards, por um mérito inquestionável e também pelo fato de ter conquistado a láurea de melhor atuação masculina no Festival de Cannes em maio do ano passado. A consagração definitiva da produção veio com um artigo na Cahiers du Cinema que dá uma distinção a Brizé como sendo um herdeiro da tradição politizada de Costa-Gavras e Francesco Rosi. Na trama, Lindon é Thierry, chefe de família com uma ficha corrida de elogios como bom profissional mas que, ao chegar aos 50 anos, encontra-se sem emprego. Para sair das

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Título Nacional

Axilas Título ORIGInal

Axilas REALIZADOR

José Fonseca e Costa ACTORES

Pedro Lacerda Elisa Lisboa Maria da Rocha ORIGEM

Portugal DURAÇÃO

87’ ANO

2016

Que filme é «Axilas»? Ou que filme esteve para ser? Ou ainda: que filme acabou por ser «Axilas»? São perguntas jornalisticamente incontornáveis. De facto, ao falecer a 1 de Novembro de 2015, o realizador José Fonseca e Costa deixou materiais de rodagem que, de acordo com as informações divulgadas, correspondiam a cerca de dois terços da duração final de Axilas. Daí a necessidade de um trabalho de acabamento — cenas adicionais e montagem — que veio a ser assegurado por Paulo MilHomens. Escusado será sublinhar que esse trabalho foi executado com um misto de exigência e carinho que, em última instância, permitiu concretizar o objecto acabado que chegou às salas. Os problemas de «Axilas» são anteriores a tudo isso. A saber: esta é a crónica íntima de um homem obcecado pelas axilas dos corpos femininos? Ou será uma comédia social mais ou menos rocambolesca, visando em particular um universo saturado de uma religiosidade beata? «Axilas» procura um realismo cruel ou um artifício paródico? Mesmo sem respostas seguras, os desequilíbrios do

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filme deixam uma certeza que, em qualquer caso, importa valorizar: «Axilas» ficará, de facto, como uma referência incontornável para qualquer abordagem do universo (melo)dramático de Fonseca e Costa, já que nele acaba por se reflectir um desencanto existencial que, de modo paradoxal, envolve uma relação frontal com o silêncio da morte. Nesta perspectiva, não deixa de ser curioso sublinhar que este será o filme que mais se aproxima daquele que é, a meu ver, o título mais pessoal de Fonseca e Costa: «Os Cornos de Cronos» (1999). Em ambos encontramos personagens masculinas — interpretadas primeiro por Carlos Vereza, agora Pedro Lacerda — que enfrentam os enigmas, seduções e silêncios do universo feminino. Mais do que isso: tal enfrentamento é cúmplice de um desejo de libertação que, passando pela atracção sexual, parece “resolverse” através de derivações mais ou menos obsessivas (a atracção do protagonista pelas axilas das mulheres). Apetece dizer que Fonseca e Costa filmou a dimensão muito física da sexualidade, transfigurando-a em artifícios mais ou menos metafísicos — daí, talvez, o seu cepticismo pontuado por uma permanente energia sarcástica. JOÃO LOPES

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Depois de 3 anos chega às salas portuguesas «O Menino e o Mundo» (2013); não se devia esperar tanto tempo por um filme assim. Alê Abreu desenhou, rabiscou, coloriu, ou seja, criou um filme de animação que se revelou um tesouro. O ponto de partida para a história do filme é bastante comum: pai deixa a sua família, a sua casinha de campo, para procurar melhores condições de vida na grande cidade. Parte e para trás fica o seu filho pequeno que não entende esta despedida. É um menino curioso, cheio de energia e de imaginação, utilizando esta última para manter viva a memória do pai. Porém, não é suficiente, por mais que tente guardar o som da flauta do pai, as saudades são demasiado grandes, por isso, ao jeito de Alice, atravessa a linha de comboio e entra no mundo. Apesar da familiaridade do tema e da exaustão com que é utilizado, a abordagem de Alê Abreu transforma-o em magia e maravilha. O realizador/ artista regressa ao mundo das crianças com os lápis de cor e de cera, faz recortes e colagens e pinta com aguarelas. Isto é, a técnica que usou transfigura a narrativa e faz-nos de facto ver o mundo pelos olhos de uma criança. E, para além disso, leva-nos a viajar ao mundo minimalista de Miró, a encantarmo-nos com as cores fauvistas e a bambolearmo-nos com os ritmos brasileiros, pois a música é outro elemento

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Título Nacional

Título Nacional

O Menino e o Mundo

Cemitério do Esplendor

Título ORIGInal

Título ORIGInal

O Menino e o Mundo

Rak ti Khon Kaen

REALIZADOR

REALIZADOR

Alê Abreu

Apichatpong Weerasethakul

Vozes

ACTORES

Vinicius Garcia Marco Aurélio Campos Lu Horta

Jenjira Pongpas Banlop Lomnoi Jarinpattra Rueangram

ORIGEM

ORIGEM

Brasil

Tailândia

DURAÇÃO

DURAÇÃO

80’

122’

ANO

ANO

2013

2015

fundamental nesta animação, funcionando com um dos fios condutores da história. Mas não é um filme simplista ou sem pendor crítico. Muito pelo contrário. Alé Abreu recorre a todos estes ingredientes para construir uma forte crítica à atualidade. Através da busca do meninorabisco entramos em contato com uma realidade triste e desumanizada, na qual assistimos às consequências de uma sociedade de consumo feroz e à sua mecanização e também à destruição da natureza – tema presente em várias das animações de Hayao Miyazaki, nomeadamente «Nausicaä do Vale do Vento» (1984) ou «A Princesa Mononoke» (1997); mas também podemos evocar Jacques Tati ou Charlie Chaplin em «Tempos Modernos» (1936), principalmente as cenas que se desenrolam na fábrica de têxtil. Não é um filme para “miúdos”, mas sim para “graúdos”. Temos de ver para além da máscara de lápis de cor e rabiscos e apreender a mensagem urgente que transmite: estamos a construir um futuro distópico, no qual o menino-rabisco perde as suas cores. RITA FONSECA

O menos que se pode dizer do universo criativo do tailandês Apichatpong Weerasethakul é que contém temas e referências que, nos seus particularismos culturais, podem ter tanto de enigmático como de sedutor. Bastará recordar, a esse propósito, o filme com que arrebatou a Palma de Ouro de Cannes — «O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores» (2010) —, uma crónica insólita em que a banalidade do quotidiano era rasgada pela emergência de formas e sinais de um mundo alternativo, totalmente do lado da fábula. Porventura com outra transparência, «Cemitério do Esplendor» decorre de uma dicotomia semelhante, gerada a partir de uma situação de grande contenção dramática. Este é, afinal, um filme centrado num hospital instalado nas antigas instalações de uma escola, recebendo soldados que, aparentemente traumatizados por situações que ficam por esclarecer, passam grande parte dos seus dias a dormir... Do sono ao sonho vai um passo que, afinal, sustenta os principais pilares narrativos do cinema de Weerasethakul. Como ele gosta de dizer, o seu filme reflecte a situação de “absurdo” a que chegou o seu país, em especial depois da instauração do poder militar, há cerca de dois anos. Em todo o caso, «Cemitério do Esplendor» não será exactamente uma descrição “simbólica”, antes uma espécie de cerimónia (cinematográfica, sem dúvida) em que

sentimos as fronteiras do real a deslocar-se, como se os sonhos das personagens se transformassem em acontecimentos a que só o ecrã pode conferir consistência. Nesta perspectiva, «Cemitério do Esplendor» constitui o rigoroso contrário da acumulação de efeitos especiais que, hoje em dia, caracteriza o cinema (dito) mais espectacular. Weerasethakul procura e expõe as fissuras do fantástico a partir de uma mise en scène que funciona por sugestão, aproximação de contrários ou equilíbrio de contrastes — descobrir os limites do próprio real é, afinal, o seu verdadeiro projecto político. JOÃO LOPES

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Axilas

O Caçador e a Captão América: Rainha do Gelo Guerra Civil

Cemitério do Esplendor

Cinzento e Negro

A Correspondência

Demolição

Dheepan

Duplo Confronto

Janis: Little Blue Girl

A Lagosta

A Lei do Mercado

Macbeth

O Menino e o Mundo

O Profeta

Suburra

catarina maia

jorge pinto

joão lopes

nuno antunes

nuno galopim

rodrigo fonseca

rui pedro tendinha

tatiana henriques

tiago alves

sérgio alves

vasco marques

a lagosta 19 de maio

x-men apocalipse

Alice do Outro Lado do Espelho

ANGRY BIRDS - O FILME

pais e filhas

o clube

19 de maio

26 de maio

2 de junho

2 de junho

2 de junho

todos querem o mesmo


“Quem não sabe é como quem não lê.” http://maquinadeescrever.org

CINEMA EM CASA

MAQUI NADE ESCRE VER


J.J. Abrams nos lusomundo audiovisuais

Star Wars: O Despertar da Força Star Wars: Episode VII The Force Awakens

ACTORES Daisy Ridley John Boyega Oscar Isaac

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A edição celebra inteiramente o poder da Força em «Secrets of the Force Awakens: A Cinematic Journey», um documentário de sessenta minutos, separado por quatro capítulos, que foi realizado pelo experiente Laurent Bouzereau dando uma perspectiva geral da produção da génese até à ultima cena. É uma viagem que acompanha a narrativa com imagens exclusivas de bastidores, reuniões, testscreens e entrevistas com o elenco e a equipa artística. A par do documentário encontramos featurettes dedicadas a deliciosos aspectos de produção como a criação das criaturas, o BB-8, a música de John Williams, a famosa primeira leitura do argumento, o apoio às causas globais e finaliza com seis cenas

cortadas que são um bónus para os fãs. «Star Wars: O Despertar da Força» é mais um feito para a prosperidade de um dos melhores criadores da actualidade. Há vários anos que acompanho a carreira de J.J. Abrams e antes do senhor estar na moda já tinha oportunidade de escrever que estávamos na presença de um criativo a ter em conta. O seu trabalho na área da televisão e cinema levaram-no a assumir as rédeas da maior saga popular do universo. Para fazer seguir em frente Star Wars era preciso regressar ao passado e juntamente com Lawrence Kasdan, o melhor argumentista desta série, uniu-se o melhor de dois mundos, à baila regressam os personagens icónicos e junta-se o sangue novo. Sobre o

mote de regressar ao passado para melhorar o futuro, os produtores deram vida a lendas do grande ecrã num trabalho visual que foi ao pormenor da série original com a missão de deslumbrar passado obviamente pela música do incontornável compositor John Williams. O filme é uma incrível travessia visual e emocional onde os dois lados opostos da Força se redescobrem sob o peso do legado passado e confrontam-se no futuro, dizem-se “olás” e “até sempre” num desfilo de esperança e nostalgia. A consistência do trabalho e o entendimento que para ir mais além era necessário passarmos por «Star Wars: O Despertar da Força» criaram as bases para sequelas e spin-offs, nasceram novos heróis, vilões e um adorável droide, o BB-8.

Através de um brilhante jogo de casting nasceu uma estrela, Rey (Daisy Ridley), que está bem acompanhada por Finn (John Boyega) e Poe Dameron (Oscar Isaac), o antagonista Kylo Ren (Adam Driver) é igualmente uma força a ter em conta. A conjugação de efeitos práticos e digitais sobre a batuta de J.J. Abrams e o esforço de centenas de técnicos e artistas abriram novamente as portas deste universo. Fizeramse as pazes com a velha guarda e soltaram-se as amarras da criatividade. A história, a monumentalidade dos cenários e os efeitos digitais estão em harmonia. Star Wars é novamente uma saga que define um patamar de excelência cinematográfica em pleno século XXI. JORGE PINTO

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Nanni Moretti

Ettore Scola alambique

A Noite de Varennes La nuit de Varennes

ACTORES Jean-Louis Barrault Marcello Mastroianni Hanna Schygulla

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Ettore Scola, realizou e escreveu em parceria com Sergio Amidei o delicioso argumento de «A Noite de Varennes» (1982), um tratado histórico que cruza o romance e o comentário político em plena Revolução Francesa. Nos principais contamos com a presença da musa do novo cinema alemão, a bela Hanna Schygulla, Marcello Mastroianni, no papel de Casanova, o americano Harvey Keitel e Jean-Louis Barrault num grande desempenho como principal protagonista. O enredo inicia-se em Paris, na noite em que Louis XVI e Marie-Antoinette fogem para se juntarem a um exército que está às portas de França com o intento de esmagar a Revolução. Porém, à porta do Palácio de Versalhes, está Restif

(Jean-Louis Barrault), um amante das letras e da noite, escritor versado, de pendor explícito no que toca à descrição das relações entre homens e mulheres, e cronista histórico, é ele quem vê uma condessa (Hanna Schygulla) a sair discretamente e decide segui-la. A sua perseguição leva-o ao encalço do Rei fugitivo e a um grupo de viajantes no coche que segue estrada fora. Pelo meio, dãose lições de sedução e confrontamse ideias e ideais, fala-se do medo do desconhecido e dos ganhos e perdas que arrastam os ventos da Revolução. Os diálogos são uma êxtase para a alma, «A Noite de Varennes» é um filme de época que é uma alegria para os olhos. JP

Nanni Moretti volta a desdobrarse numa multiplicidade de funções no seu último trabalho, «Minha Mãe», mas oferece a ribalta à magnífica Margherita Buy que como protagonista incute a perspectiva feminina ao drama de uma morte anunciada. O filme é um soberbo estudo sobre a dor e a perda de um ente querido. A obra foi baseada na memória do próprio Nanni Moretti que sofreu com a doença da mãe enquanto filmava «Habemos Papam». O filme lida com uma crise pessoal e a negação de Margherita (Margherita Buy) face à doença terminal da mãe (Giulia Lazzarini). Margherita é uma realizadora que está a meio da rodagem de uma obra com conteúdo político-social e que tem entre o elenco uma estrela

americana manienta. Um papel interpretado por John Turturro, que parece ligado à corrente, num dos seus melhores desempenhos dos últimos tempos. Margherita lida ainda com a separação do seu namorado, com a filha adolescente (Beatrice Mancini) que tem maus resultados na escola e o irmão (Nanni Moretti) que abandona o trabalho para estar junto da mãe hospitalizada. Os personagens são reais e as situações verossímeis, é uma obra que não desaparece da nossa memória, e será por certo desconcertante para todos aqueles que passaram por algo semelhante. No seu coração está uma verdadeira antologia sobre a mortalidade como só Nanni Moretti sabe descrever. Bravíssimo!. JP

leopardo filmes

Minha Mãe Mia madre

ACTORES Margherita Buy John Turturro Giulia Lazzarini

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Anna Muylaert alambique

Que Horas Ela Volta? ACTORES Regina Casé Helena Albergaria Michel Joelsas

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A realizadora brasileira Anna Muylaert dirige uma obra com várias ressonâncias políticas e sociais que transcendem as fronteiras do Brasil. «Que Horas Ela Volta?» é um belíssimo estudo sobre a clivagem social e política que nasce do afecto como ponto de partida e de uma relação maternal numa sociedade desigualaria que tem a educação como um instrumento de ascensão social e o fim da invisibilidade. Val (Regina Casé) é uma empregada doméstica de uma casa luxuosa em São Paulo. Há dez anos que cuida do filho (Michel Joelsas) da patroa (Karine Teles)

que a prefere à própria mãe. Mas a chegada de Jéssica (Camila Márdila), a filha da empregada que vem do nordeste brasileiro para São Paulo para realizar o exame de ingresso na universidade vem causar um abanão nas rotinas estabelecidas. Para os patrões ricos, o depressivo Dr. Carlos (Lourenço Mutarelli), e sobretudo a patroa não conseguem deixar de esconder o mal estar provocado pela presença da jovem. A relação entre patrões, a empregada e a dignidade da filha colocam a descoberto as trincheiras sociais. O filme é uma janela para o mundo

onde figura a desigualdade, o racismo, os preconceitos e as regras invisíveis. Regina Cassé, uma espécie de Oprah da televisão brasileira, dá “show de bola”, interpretação até à unha do pé numa performance extremamente física e emocional, um dos melhores desempenhos femininos de 2015, é genial. Anna Muylaert conseguiu com este filme chegar aos quatro cantos do mundo e provou ser uma poderosa voz do cinema brasileiro numa obra com humor, esperança e grande consciência social. E se gostarem do filme têm um bónus, a edição em DVD inclui um

fabuloso e detalhado comentário da realizadora e de Camila Márdila, a não perder esta edição da Alambique. JP

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Francis Lawrence PRIS Audiovisuais

The Hunger Games: A Revolta Parte 2 The Hunger Games: Mockingjay - Part 2

ACTORES Jennifer Lawrence Josh Hutcherson Liam Hemsworth

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«The Hunger Games: A Revolta» coloca um ponto final na saga cinematográfica baseada na trilogia de Hunger Games, de Suzanne Collins. O capítulo final é mais uma variação do conceito original: um jogo pela sobrevivência num terreno cheio de perigos mortais. A acção desenrola-se no Capitólio, onde a heroína, a resiliente Katniss Everdeen (numa interpretação sem espinhas de Jennifer Lawrence) confronta o antagonista da história, o déspota Presidente Snow (Donald Sutherland). No derradeiro jogo mortal onde o prémio será a liberdade dos estados subjugados pela tirania, Katniss ainda está face a face com o dilema sobre o amor ficcional/real com Peeta (Josh Hutcherson) mas tem maturidade suficiente para reconhecer a

ascensão de uma nova ameaça embriagada pela sede de poder (Julianne Moore). O cenário é urbano, intenso, mas episódico, e naturalmente as relações entre as personagens surgem tenuemente com o ritmo de sprint a deixar pouco espaço às emoções. O primeiro filme foi o único que atingiu o equilíbrio entre stunts e a viagem pessoal e emocional de Katniss. Nesta obra esse trajecto resume-se a um terceiro acto que já vem tarde. Talvez só os fãs mais inveterados destes filmes não fiquem desiludidos nesta transcrição visual de uma fantasia literária que no seu todo cumpre a missão nos aspectos distópicos de cenários, figurinos e na mensagem de uma sociedade controlada por uma força opressora que tem na coragem de uma inesperada heroína a sua salvação. JP

«As Sufragistas» é um filme que faz valer a importância da sua mensagem na descrição de um incontornável facto histórico da humanidade. A narrativa foca o movimento sufragista em Inglaterra, no início do século XX, a acção centra-se no auge da luta entre 1911 e 1912, uma luta de sacrifícios, discriminação e violência. O argumento de Abi Morgan relata os feitos do movimento através de uma mulher comum que se junta à causa e perde tudo o que amava em favor de princípios e um bem maior. Meryl Streep surge como uma cabeça de cartaz mas participa no filme durante cinco minutos. O foco está na talentosa Carey Mulligan que carrega o filme às costas, é ela o fio condutor e o centro da intriga dramática. Na representação de Maud Watts,

uma mulher comum que sente na pele a desigualdade e assume a tarefa titânica de lutar pelos seus direitos. É preciso também ressalvar que Helena Boham Carter tem uma entrega total no seu papel como Edith Ellyn. Os cenários, figurinos e recriação de época estão sólidos e não são propriamente algo de telefilme. Faltou um argumento mais apaixonado e menos descritivo, as cenas dedicadas à relação de amor entre mãe e filho são momentos que ficam mais na memória, ainda mais do que a luta pelos direitos e a perseguição às sufragistas. «Sufragistas» não deixa, porém, de ter o seu papel na consciencialização das audiências para a importância da luta por um direito de que hoje a maioria das mulheres usufrui em todo o mundo. JP

Sarah Gavron nos lusomundo Audiovisuais

As Sufragistas Suffragette

ACTORES Carey Mulligan Anne-Marie Duff Helena Bonham Carter

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Peter Bogdanovich

Denis Villeneuve

PRIS Audiovisuais

Ela é Mesmo... o Máximo She’s Funny That Way

ACTORES Imogen Poots Owen Wilson Jennifer Aniston

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pris Audiovisuais

Peter Bogdanovich mostra toda a sua experiência como argumentista, realizador e versado conhecedor da sua arte ao criar uma divertida farsa que possui o espírito da comédia screwball. O filme tem a sua voz e tem reminiscências da velha guarda, mas também a influência de vozes contemporâneas como as comédias de Woody Allen e Larry David. É um prazer ver tantos actores, dos pequenos papéis aos principais protagonistas, em plena harmonia com o seu texto e a deixarem a sua marca nos personagens. A história é um bizarro conto de fadas moderno, uma call girl que tenta ser actriz tem um encontro acidental que

muda a sua trajetória por entre um rol de peripécias com os homens que estão obcecados pela sua inocência e a maneira decidida de viver a vida. A narrativa vive de uma teia de relações e colisões inesperadas entre os personagens que proporcionam uma torrente de riso em situações burlescas. O ritmo avassalador dos diálogos, a acção e o elenco estrelar fazem a mistura de farsa com as nuances da vida como a infidelidade, o amor e os sonhos, a espiritualidade e a sexualidade regado com uma grande dose de loucura, o filme é uma injeção de magia cinematográfica e um antidoto contra o cinismo. JP

O canadiano Dennis Villeneuve realizou um policial que se desdobra em filme de guerra e nos leva até às trincheiras da sanguinária “guerra contra as drogas”. É uma das obras mais ambíguas sobre o legado e o conflito transfronteiriço em torno do crime e o tráfico de droga entre o México e os Estados Unidos. Dirigido de uma forma seca e realista é uma narrativa despida de lirismos e assaz na vertente visual, técnica e interpretativa. A fotografia do artista visual Roger Deakins cruza o realismo de uma guerra urbana com paisagens que evocam os clássicos western nesta monumental, dir-se-á quixotesca, tarefa que as forças

da Lei travam contra os cartéis de droga. Emily Blunt rouba o show ao personagem que dá nome ao filme e que tem uma composição avassaladora de Benicio del Toro, a figura pragmática no cerne desta história. Blunt, no papel de Kate, é os olhos do espectador, a sua incredulidade perante os factos espelha a nossa, as suas dúvidas são as nossas. Ao visionar em homevideo «Sicario» é um objecto de alta tensão em formato comboio bala de 120 minutos, desenrola-se vertiginosamente e mantém o mesmo ímpeto como num ecrã de cinema. JP

SicArio Infiltrado sicario

ACTORES Emily Blunt Josh Brolin Benicio Del Toro

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Robert Zemeckis

Danny Boyle nos lusomundo Audiovisuais

Steve Jobs

ACTORES Michael Fassbender Kate Winslet Seth Rogen

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Aaron Sorkin escreveu o perspicaz argumento de «Steve Jobs» a partir do livro de Walter Isaacson e teve uma abordagem distinta ao se afastar do típico biopic “do berço à cova” no original filme de Danny Boyle. A esta equação junta-se o brilhante Michael Fassbender (Steve Jobs) e temos magia em cena. O filme, em três actos, foca a relação central entre Steve Jobs e a sua filha, Lisa, ao longo de três lançamentos tecnológicos, num espaço de 15 anos, que definem a carreira do visionário da tecnologia. Na antecâmera desses momentos são abordados outros quatro pontos de tensão de Jobs na relação com o sócio, o programador Steve Wozniak (Seth Rogen), a confidente Joanna Hoffman (Kate Winslet), o

inventor Andy Hertzfeld (Michael Stuhlbarg) e o executivo John Sculley (Jeff Daniels). Os longos diálogos e a interpretação voraz de Michael Fassbender assimilam por completo a psicologia da figura brilhante, focada e feroz nas ideias mas também manipuladora, dissimulada e alienada daqueles que o amavam numa síntese de sacríficos que prejudicaram pessoas. A câmara astuta de Danny Boyle torna o processo de interpretação dramática em espaços fechados em momentos de pura dinâmica que se afastam de uma performance de palco ou um documentário resultando num filme povoado de personagens. Os extras incluem um bom making of (15´). JP

«The Walk: O Desafio» é um filme que nos deixa sem respiração na histórica verídica de Philippe Petit na sua audaz travessia no arame nas torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque em 1974. O filme eleva-se sobretudo no poder das imagens e não palavras, a edição em Blu-ray 3D replica o espírito da sala de cinema num trabalho único de desenvolvimento visual que envolveu algumas técnicas inovadoras na captura da imagem na concepção da obra. A narrativa combina um stunt perigoso com a arte performativa a vários metros de altura e sem espaço para erros, o clímax da história é a travessia entre as torres e são momentos de puro fascínio.

“The Walk” está dividido em três capítulos, o bichinho de andar no arame de Philippe Petit (Joseph Gordon-Levitt), a relação com o mentor (Ben Kingsley) e a sua musa (Charlotte Le Bon), a reunião dos comparsas na preparação e acompanhamento para tentar o impossível e transcende com a travessia das torres. O resultado é uma bela combinação entre o poder da narrativa e os efeitos especiais numa história com humor e suspense com um elenco e uma realização de Robert Zemeckis que está à altura do prodigioso feito num justo tributo ao espírito de Philippe Petit e à memória do World Trade Center, uma presença imponente no filme. . JP

pris Audiovisuais

The Walk: O Desafio the walk

ACTORES Joseph Gordon-Levitt Charlotte Le Bon Guillaume Baillargeon

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Peter Sohn nos lusomundo audiovisuais

A Viagem de Arlo The Good Dinosaur

vozes Jeffrey Wright Frances McDormand Maleah Nipay-Padilla

«A Viagem de Arlo» é realmente uma jornada de crescimento, com um arco narrativo onde acompanhamos um pequeno e temeroso dinossauro que se separa da sua família quando é arrastado pelas correntes de um rio e vai juntamente com um improvável amigo humano ganhar resiliência e crescer enquanto procura regressar a casa. O filme da Pixar poderá não ter a complexidade dos mais recentes êxitos do estúdio mas é uma animação prodigiosa em termos de execução visual, assombrosa no modo como nos transporta para um cenário natural que é envolvente para personagens e espectadores. A exemplar edição em Blu-ray enfatiza justamente as cores e a complexidade visual. A história e

a animação digital andam de mãos dadas num trajecto de amizade, ternura e aventura de Arlo e a criança selvagem, Spot, dois seres sozinhos no mundo que se ajudam mutuamente num ambiente natural cheio de possibilidades mas também de perigosos percalços. A fasquia está sempre alta na Pixar, tende-se a descurar obras e relações menos complexas em cena, o homevideo pode provar que na história destes personagens encontramos várias lições de vida e uma animação de encher a vista. A edição em Blu-ray é bastante interessante, cenas inéditas, gags e featurettes de produção, destaque para um comentário precioso com os principais responsáveis da obra a revelarem segredos e pormenores da animação. JP

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elastic.tv

zes parecem distantes mas estão bem próximos no Olimpo do capitalismo, veja-se a injecção de capital que cria dilemas éticos quer no mundo das acompanhantes de luxo quer em elementos corruptos da firma de advocacia. Neste último caso, o foco está no personagem de Paul Sparks («Boardwalk Empire»), David Tellis, um sócio da firma que na realidade se comporta como uma criança mimada que pensa que tem o mundo aos seus pés actuando sem pensar nas consequências até se cruzar com alguém mais perspicaz do que ele quando se envolve com Christine, a estagiária da firma.

TV

THE GIRLFRIEND EXPERIENCE

A Starz continua a provar ser o canal de televisão norte-americano a apresentar as séries mais inovadoras e, sem margem para dúvidas, as mais ousadas da actualidade. Assim, após o surpreendente «Flesh and Bone» [crítica no site METROPOLIS] aí está mais um exercício de pura sedução: «The Girlfriend Experience». A série é inspirada pelo filme homónimo de Steven Soderbergh, em Portugal baptizado de «Confissões de Uma Namorada de Serviço», de 2009, que tinha como protagonista a super estrela porno Sasha Grey, mas, curiosamente, em termos de situações explícitas a longa-metragem é pálida face a esta série. Steven Soderbergh também produz a série que é desenvolvida pela dupla Lodge Kerrigan e Amy

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Seimetz que pegam no conceito dos argumentistas do filme de 2009, David Levien e Brian Koppelman, e lançam-no na estratosfera com a estonteante Riley Keough à cabeça numa performance inesquecível. A jovem actriz, que tem uma árvore genealógica interessante (é a neta de Elvis e Priscilla Presley), foi um anjo da Victoria’s Secret e foi vista recentemente no papel de uma das parideiras de Immortan Joe em «Mad Max: Estrada da Fúria». Este cometa chamado Riley Keough tem uma entrega total no seu desempenho a nível físico e psicológico, o seu estatuto só sai reforçado depois de «The Girlfriend Experience», um daqueles trabalhos que define para sempre uma carreira, é impossível ver a série sem a

presença estilhaçante de Keough. Daqui a um ano ainda estaremos a pensar nela. A história segue a entrada de Christine Reade (Riley Keough), uma personagem que possui os atributos de sonho de qualquer mulher, é uma visão de beleza, inteligência e carisma. Christine é impelida por uma extraordinária força de vontade, o seu desejo de ter sucesso e o cumprir das suas metas tornam-na implacável a vestir várias peles e a compartimentar os vários mundos onde se move ao longo do seu percurso na primeira temporada. A série começa com Christine como uma estudante de direito, com pouco dinheiro para pagar a renda, começa o estágio numa firma de advocacia. Christine é convidada por Avery Suhr (Kate Lyn

Sheil), a sua colega de curso, para acompanhá-la num serviço a um “namorado”, esta é a sua porta de entrada na Girlfriend Experience, um serviço de acompanhantes de luxo. Os treze episódios da série não são apenas uma trip de sensualidade e puro erotismo, tornam-se um salto na complexidade emocional e física da personagem, o prazer que ela retira, o controlo sobre as situações e os seus clientes, as fronteiras emocionais que se estabelecem, as fantasias que se criam, a sua relação com o corpo e a sexualidade, a ambição no ambiente corporativo, as distantes relações com a sua família e a definitiva emancipação. No percurso de Christine há pontos de contacto entre os universos que por ve-

Os criadores da série, Lodge Kerrigan e Amy Seimetz, entrevistaram várias escorts de luxo que providenciaram as suas histórias pessoais que serviram para inspirar vários momentos de «The Girlfriend Experience» no perfil e os dilemas da protagonista na criação das fantasias aos seus clientes e a si própria. É preciso sublinhar que neste processo narrativo, os criadores criaram e exploraram uma figura e uma narrativa onde não se cai na tentação de julgar a protagonista, nunca foi ambição deste registo, uma decisão que facilita o modo como processamos e nos relacionamos com a história da metamorfose de uma personagem deixando o ónus das acções de Christine para a consciência de cada espectador. A acção da série desenrola-se em Chicago mas foi rodada em Toronto e muitas das vezes com luz natural permitindo criar mais intimidade para os actores dando mais ênfase na performance em situações que o assim exigiam para se criar o efeito desejado. O trabalho de fotografia e encenação é muito trabalhado sempre com o foco na perspectiva, no olhar e na reacção na performance de Riley Keough. Os cenários, o design de som e os figurinos são de uma exuberância absoluta, os melhores restaurantes e hotéis são o reflexo da personalidade e a vida imersiva de Christine. Nunca uma crise de identidade foi tão sensual e subliminar como «The Girlfriend Experience», um dos grandes momentos de televisivos em 2016. JORGE PINTO


a moralidade e o dever das suas funções. A ambiguidade é a área predilecta da série. Recordamos que Lenny James entretanto foi dar espectáculo para outras paragens rumando a Atlanta, na Geórgia, para interpretar o papel de Morgan no “blockbuster” televisivo «The Walking Dead».

Line of Duty

TV

«Line of Duty» é um policial ímpar produzido pela BBC, criado por Jed Mercurio que continua a elevar a fasquia a cada temporada definindo um padrão de excelência para esta aclamada série britânica que terminou recentemente a terceira época em Inglaterra. «Line of Duty» desenrola-se no seio de uma unidade da polícia britânica intitulada AC-12, a sua delicada missão é o combate à corrupção cometida pelas forças da Lei. A série tem um núcleo duro que já vem da primeira temporada constituído por três incorruptíveis: Ted Hastings (Adrian Dunbar), o chefe de divisão e figura quase paternal de DS Steve Arnott (Martin Compston) e DC Kate Fleming (Vi-

cky McClure). Estes dois investigadores, Steve e Kate, foram recrutados por Hastings e suplantam as capacidades com a sua perspicácia e acutilância para combater a corrupção utilizando sobretudo a lógica e o instinto. Os casos de cada temporada são mirabolantes e inesperados, contêm um arco de história que cresce ao logo dos seis episódios que compõe cada época, combinando o melhor do policial de investigação com o suspense e uma representação no limite das reacções humanas sobre pressão. A vida privada nunca está dissociada da função policial tornando-se comprometida pelo ambiente de alta tensão gerando personagens fascinantes nos seus inuendos.

As três séries têm uma figura central, um agente que ultrapassa a Lei e envolve-se num crime tornando-se alvo da investigação da AC-12. Estes personagens são intrincados e agigantam-se no pequeno ecrã, as interpretações são indissociáveis de cada época. A série foi filmada com pezinhos de lã em Belfast, uma cidade onde ainda se sentem as tensões na rua face a Inglaterra. Andar caracterizado como um polícia não é algo que se faça de ânimo leve, muito provavelmente esse facto passou para a própria série onde os protagonistas da AC-12 são sempre mal vistos por investigarem e questionarem os assuntos internos da própria polícia. A primeira temporada deixa-nos com um nó na garganta por culpa da representação do brilhante Lenny James como o DCI Tony Gates, uma performance onde o espectador torce pelo indivíduo corrompido que se depara num duelo entre

A segunda temporada inicia-se com um caso onde uma detective bastante perspicaz mas em estado depressivo, Lindsay Denton (Keeley Hawes num desempenho contra a corrente da sua carreira), é acusada de conspirar a morte dos seus colegas e de um suspeito que estava a ser protegido pelas autoridades aquando da sua transferência. O lado político dá sinal de vida, as repercussões do caso podem tocar o topo da cadeia alimentar. Keeley Hawes tem uma excelente representação de alguém que contorna deliberadamente a Lei para proteger uma vítima. A série é igualmente prolífica em longos diálogos onde se citam diretamente os códigos e as alíneas que regem a profissão, a forma tão eloquente como são apresentados integram sem levantar suspeitas os diálogos da narrativa tornando-os mais emotivos em plenas sessões de interrogatório onde há grandes desempenhos e muita preparação na arte da representação. A terceira temporada inicia-se com a morte de um suspeito pelo Sargento Danny Waldron (Daniel Mays), o chefe de uma equipa de brigada de intervenção rápida. O que parece um caso de abuso de força policial desdobra-se numa conspiração que envolve agentes da Lei, celebridades e políticos em casos cometidos numa instituição que abriga menores. A terceira série traz novamente para primeiro plano Lindsay Denton (Keeley Hawes), a protagonista e os acontecimentos da segunda temporada mesclam-se com a actual investigação que a par do fio policial não abandona outras temáticas como os problemas sociais e a conduta moral do ser humano. O agente no centro da terceira época é interpretado por Daniel Mays, a pressão

estava sobre o actor, anteriormente os outros actores que interpretaram o papel central na série conseguirem em 2010 com Lenny James tornar «Line of Duty» a série mais vista da BBC2 nos últimos 10 anos e a segunda época com Keeley Hawes tornou-se a série mais vista em 2014 na BBC2. O papel de Daniel Mays é negro e perturbador, à flor da pele a sua figura é de um bully, um homem solitário que não tem amigos nem familiares próximos, a sua infância complicada levou-o a proteger-se atrás do escudo da polícia, é um personagem “legal” e mortal. O trabalho é a sua vida, tem várias quezílias com os membros da sua unidade e a morte fatal durante a perseguição da sua equipa não surpreende ninguém. Mas vários twists vão surgir e surpreender os espectadores tornando a trama ainda mais densa. Inicia-se mais uma montanha russa emocional que só termina no derradeiro capítulo. O caso da terceira época é obviamente ficcionalizado mas está relacionado com casos recentes e circunscritos da polícia britânica por ter pactuado com o crime ao olhar para o lado quando chegaram denúncias de abusos a menores em décadas passadas. A série chega mesmo a utilizar uma foto do DJ da BBC, Jimmy Savile, um indivíduo acusado de pedofilia num caso altamente mediático, a apertar a mão a um dos personagens ficcio-nais da série (!). Relativamente aos agentes da brigada de intervenção, os protagonistas da temporada, tal como no mundo real, saem para a rua armados, ao contrário da maioria dos agentes em Inglaterra. Interessa sublinhar que este facto real facilita certamente as taxas de mortes fatais no exercício das funções, em 24 anos (1991 a 2015) a polícia de Inglaterra e Gales atingiu mortalmente 55 pessoas, segundo o departamento de Homeland [Segurança Interna], nos Estados Unidos foram alvejadas mortalmente 59 pessoas em 24 dias em 2015... «Line of Duty» é uma série completa que requer a nossa atenção, entramos de cabeça e depois é impossível parar perante o clima de constante suspense. JP

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se deparamos com a mesma missão mas com variações como por exemplo, eliminar o alvo com veneno, com um garrote, explosivos ou outros utensílios mortais à nossa disposição. Atingir os vários objectivos nessa segunda missão de treino será importante para quando iniciarmos as missões em ambiente real pois nem tudo é linear e temos à disposição várias alternativas para atingir os objectivos finais. A terceira missão e conclusão do nosso treino é a eliminação de um operativo que está numa base militar, temos várias alternativas para eliminar o alvo, a mais engraçada delas é sabotar o banco de um avião militar despoletando o “eject” quando o alvo vai testar o assento. A visão do jogo é feita na terceira pessoa, iniciamos a primeira missão “real” em Paris num desfile de moda para eliminar Viktor Novikov e a sua parceira Dalia Margolis, que utilizam o mundo da moda para encobrir a sua organização criminosa. A partir deste momento as missões de treino parecem uma brincadeira de crianças, escusado será de dizer se estamos armados no Rambo a missão está destinada ao fracasso. A mansão pa-

hitman

jogos “Hitman” é um dos lançamentos mais aguardados de 2016, é uma edição editada no formato digital em episódios de acção, aventura e espionagem que seguem o anti-herói da história, o famoso Agente 47, o homem de fato preto, careca e de gravata vermelha. O jogo foi desenvolvido pelo estúdio dinamarquês IO-Interactive e distribuí-

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do mundialmente pelo gigante Square Enix. O lançamento está disponível para Windows, Xbox One e a Playstation 4, a versão testada nesta análise. É preciso recordar que “Hitman” é o culminar de quinze anos de experiência e várias versões de jogo que entretanto criaram rebentos na literatura e no cinema mas essencialmente corrigiram e aprimoraram um lançamento que marca o primeiro semestre de 2016 e promete ainda fazer muitos estragos até ao final do ano. O prólogo do jogo funciona como um “reset” da série, se preferirem uma prequela antes do Agente 47 ser uma lenda, os seus futuros superiores da ICA (International Contract Agency) têm sérias dúvidas sobre as suas capacidades de assassino silencioso. O jogador entra num imersivo ambiente de acção furtiva onde tem de cumprir três missões com respectivas variações até ter carta branca para ser lançado no mundo. Após estas

missões de treino o Agente 47 regressa à actualidade e à linha narrativa do anterior jogo, “Hitman: Absolution”. O jogo inicia-se numa base secreta no interior de uma montanha na Europa central, a primeira missão de treino é a reprodução de uma missão do passado do nosso operativo, o jogador deverá infiltra-se dentro de um iate de luxo, no decurso de uma festa, eliminando o anfitrião, um traficante de armas. Ao nosso dispor temos a inteligência e o charme como também os disfarces quando personificamos membros da tripulação ou a segurança privada (basta colocá-los a dormir, trocar de roupa e esconder os corpos inanimados), desta forma temos acesso a áreas restritas. Também estão disponíveis ao longo da missão de treino, alguns recursos como veneno, facas, chaves inglesas e até mesmo os extintores e objectos de arte que dão jeito para dar umas traulitadas. Ao passarmos esta fa-


por cenário, vão surgindo ao longo deste ano nos episódios do jogo. Os alvos são bastante letais, bastante observadores e altamente treinados, em Paris surge o primeiro alvo, Scott Sarno, conhecido como o “Director”, no cenário de Sapienza aparece no radar Gary Lunn, o “Enforcer”. O lançamento neste formato em episódios digitais com a adição de novos cenários, objectivos e desafios que proporcionam aos jogadores missões que são bastantes longas e desenvolvidas em termos narrativos e visuais sem bu-

risiense tem três andares, a segurança é apertada e o staff (garçons ou designers) estão atentos a movimentos suspeitos, o nível tem cerca de 300 personagens AI (nos jogos anteriores tínhamos 40 ou 50 personagens com inteligência artificial). O mais curioso é quando eliminamos um dos alvos, normalmente Viktor Novikov, capturar o segundo o alvo é digno de uma missão impossível porque a segurança aumenta exponencialmente em seu redor. O cenário de Paris dura várias horas e as alternativas para cumprirmos as missões são variadas através das submissões que encontramos no menu de jogo juntamente com o mapa do local e acessórios mortais que nos ajudam a cumprir o objectivo, a paciência é uma virtude. O segundo cenário de jogo desenrola-se em Itália e foi editado no final de Abril

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passa-se à beira mar na cidade costeira de Sapienza onde devemos eliminar dois indivíduos que estão a desenvolver um vírus letal. O Agente 47 deve infiltrar-se numa mansão, abater os alvos e destruir o vírus. Em Sapienza temos uma nova história, dez sub-missões, novos disfarces, 75 desafios, seis armas novas e sete troféus para serem conquistados. O cenário de Sapienza é completamente diferente, desenrola-se de dia e num ambiente aberto, ao contrário de Paris, são dois apetitosos episódios que nos deixam com água na boca.

vemos o alvo definido. Cada alvo tem um vídeo, uma história e uma motivação para estar no local. Depois encontramos o Escalation Mode, uma forma de dar novos desafios aos jogadores, por exemplo, temos de assassinar um alvo com um sabre, num segundo patamar eliminar o mesmo alvo com um sabre e vestidos de empregados de mesa e apagar as imagens do crime num espaço de minutos. Não é permitido efectuar gravações em ambos desafios, Elusive Targets e Escalation Mode, a acção desenrola-se em tempo real.

O jogo tem outras vertentes através da “live component”, primeiro temos os Elusive Targets são contratos que estão disponíveis nas localizações disponíveis (Paris e Sapienza) num período limitado, temos de cumprir a missão em contra-relógio se falharmos a missão nunca mais

A par desta narrativa que vai fazer o Agente 47 atravessar o globo há uma história paralela apelidada de “Sarajevo Six”, sobre seis mercenários que cometeram violentos crimes de guerra no cerco de Saravejo. As oportunidades para os eliminar, um membro do Sarajevo Six

gs à mistura permitindo que a interacção e feedback dos players na melhoria da experiência de jogo. Estão previstos mais lançamentos de missões, em breve, no mês de Maio, chega a missão de Marrakesh e para o final do ano estão alinhadas aventuras nos Estados Unidos, Tailândia e Japão. A par destes lançamentos haverá eventos semanais e conteúdo adicional, vale a pena espreitar o site. As novas missões e o conteúdo adicional será gratuíto para aqueles que adquiriram a versão digital completa do jogo. A edição em formato físico, com as missões aci-

ma assinaladas (Prólogo, Paris, Sapienza, Marrakesh, EUA, Tailândia e Japão) sairá em Janeiro de 2017, a espera não compensa por existir actualmente um objecto orgânico e em constante mutação. “Hitman” é um jogo imperdivel que vai crescer nos próximos meses com os seus gráficos de ponta carregado de microdetalhes, ambientes envolventes num clima de espionagem e acção furtiva aos comandos de um herói carismático. JORGE PINTO

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Yann Martel “As Altas Montanhas de Portugal” 270 p.p. Editorial Presença

Depois do retumbante sucesso de «A Vida de Pi», Yann Martel traz-nos mais uma história onde a religião, o fantástico, a perda e os animais são os temas fortes. E desta feita, a acção passa-se por cá, por terras lusas. Da capital ao extremo nordeste, com um salto até Otava, no Canadá, acompanhamos três protagonistas, em épocas diferentes, ligados por símbolos e estranhas coincidências. Primeiro temos Tomás, um jovem que passa por uma série de perdas pessoais trágicas e encontra refúgio num diário de um padre que, no séc. XVII, faz missão nas colónias portuguesas e nos conta sobre as misérias e o absurdo do tráfico de escravos. O manuscrito fala também de um invulgar crucifixo que inspira o herói a fazer uma quixotesca epopeia, num dos primeiros automóveis, pelas terras de Portugal. De Alfama a Tuizelo, em 1904, são ainda vários dias de viagem e o caminho não se faz sem encontrar perigos e incidentes. Seguese a história do Dr. Eusébio Lora, médico-legista bracarense que, numa noite de fim de ano da década de trinta, experiencia uma estranha alucinação envolvendo a sua defunta mulher e a autópsia de um idoso trazido cadáver numa mala pela própria viúva. A última história acontece num tempo mais próximo, quando o senador canadiano Peter Tovy decide, após a morte da sua mulher e o desmembramento da sua família, mudar-se para Tuizelo – terra dos seus antepassados - acompanhado de um chimpanzé. As três histórias, sendo independentes, cruzam-se e recruzam-se de forma inesperada numa narração envolvente e sedutora que nos faz aceitar o fantástico como real. A linha que cose esta manta de retalhos é a dor da perda. A morte dos entes queridos é o gatilho para o começo da acção de cada um dos protagonistas. Segue-se a dor, a reflexão sobre o tema e os processos de superação do trauma que raiam a loucura. Tomé começa a andar às arrecuas para não encarar o Mundo, o Dr. Eusébio alucina e Peter procura consolo na companhia animalesca de um símio. Cada um começa então uma viagem. A do jovem e a do canadiano são feitas de forma literal enquanto que a do médico é mental. É, por isso, também a

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mais intensa e surreal. Os livros da Agatha Christie são usados para a exegese dos Evangelhos e uma estranha autópsia, cheia de simbolismos, reflecte sobre as grandezas e misérias do corpo e da alma humanos. Com a romaria de Tomé, ao volante do seu Renault que mal sabe conduzir, testemunhamos a degradação de um homem que, face à tragédia, se obstina na procura de um novo Graal: um artefacto religioso que iria mudar toda a História. A jornada do senador é mais serena e pautada. Sendo que é a última a ser-nos descrita é a que junta todos os pontos soltos, dá coerência às anteriores e resolve o mistério final. Martel parece ter uma fixação com Portugal. Para quem leu «A Vida de Pi» há-de lembrar-se que na nota introdutória o autor dentro do livro diz ter viajado para a Índia a fim de escrever um livro sobre Portugal. Em “Self”, publicado em 1996, o enredo também passa

pelo nosso país: é o destino da viagem de um jovem canadiano quando acaba os estudos. As três obras têm isso em comum: um canadiano que vem para cá. Mas o país que nos é descrito não parece ser o país onde estamos. Há muito pouca portugalidade nas descrições de Martel. E há, igualmente, imprecisões ou decisões estilísticas difíceis de compreender. A mais estranha será justamente a que dá título à obra. Das várias descrições que poderíamos dar deste nosso rectângulo de terra, altas montanhas parece ser a menos plausível. A nossa orografia não é muito extrema. No livro a expressão surge como o nome de uma região onde se situa a aldeia de Tuizelo. Esta aldeia existe de facto e fica no concelho de Vinhais, distrito de Bragança, em Trás-osMontes. Não se percebe o porquê do autor ter decidido transformar «Trás-os-Montes» em «As Altas Montanhas de Portugal». Não só faz dos montes, montanhas como

diz que são altas colocando de seguida as próprias personagens a mencionar a sua desilusão por as tais altas montanhas não o serem. Para além da estranheza de o nome da região ter incluso o nome do país. A solução para o enigma de tais bizarrias talvez esteja resolvida na anterior obra. Como foi referido, o autor dentro do livro menciona que vai à Índia para escrever um romance sobre Portugal e, enquanto justifica as razões por tão invulgar opção, acrescenta: «a novel set in Portugal in 1939 may have very little to do with Portugal in 1939.» (Um romance que se passe em Portugal, em 1939, pode ter muito pouco a ver com o Portugal de 1939.*) O escritor recorre à liberdade de autor para mudar o mundo e a realidade. Para alguém que tenha do nosso país apenas uma vaga noção até poderá não notar as alterações da orografia, da topografia ou da fauna. Não será difícil imaginar, por exemplo,


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que há ursos nas nossas florestas, mesmo que estes já estejam extintos há muitos séculos. Mas, por vezes, o autor exige um pouco de mais do leitor. Sobretudo se o leitor for português. Um dos casos mais flagrantes será a sua constante menção a um “rinoceronte ibérico”. Esta poderia ser apenas uma criatura mítica de um bestiário marteliano ali posta para dar colorido à história. Porém, o autor quer justificar a sua existência e para isso recorre à menção do célebre rinoceronte representado pelo artista alemão Albrecht Dürer e escreve: « Em 1515, o rei D. Manuel I enviou um rinoceronte ibérico como oferta ao papa Leão X.» (p.215) E é aqui que o nosso orgulho nacional é beliscado. O episódio do rinoceronte do nosso rei é um dos mais curiosos

da História portuguesa. O rei Modofar do reino de Cambaia oferece um rinoceronte a Afonso de Albuquerque aquando do processo de negociação da construção de uma fortaleza portuguesa em Diu. Afonso decide presentear o estranho animal ao rei. Lembremos que desde a altura do Império Romano (séc. III d.C.) nenhum europeu havia visto semelhante besta. O bicho chega de barco a Lisboa e é instalado no Palácio da Ribeira. D. Manuel que conhecia a espécie apenas por referências literárias, lembra-se de uma história romana sobre o ódio mortal entre elefantes e rinocerontes e orquestra um combate. A peleja é feita, felizmente sem danos para ambos os animais, e o monarca resolve então ofertar o animal ao papa. Parte uma

nau de Lisboa, em Dezembro de 1515, com muitas oferendas e um rinoceronte decorado com uma coleira em veludo verde com rosas e cravos dourados. Já perto do seu destino, ao largo de Génova, o barco naufraga devido a uma forte tempestade e toda a tripulação perece, inclusive o exótico mamífero. O corpo é porém recuperado e o rei português dá ordens para que se o empalhe e se envie ao santo pontífice assim mesmo. O papa não lhe acha grande graça mas um mercador português que o vê fica deslumbrado e escreve uma carta fazendo um esquiço do animal. A carta anda de mãos em mãos até chegar a Dürer que o representa numa célebre gravura que teria um enorme impacto na Arte renascentista. Ora, toda esta rocambolesca história, pese embora real, parece justamente uma ficção de Martel. Mas o escritor, lamentavelmente, ou não a conhece ou preferiu omiti-la e produz a sua própria narrativa do acontecimento. Por todo o texto a frase «Esta é a minha casa.» é repetida obsessivamente. Esta passagem faz perceber o que, em «As Altas Montanhas de Portugal», provoca uma ligeira irritação no leitor português: é que esta é a nossa casa, mas não a reconhecemos. Tivesse o autor respeitado mais a nossa História e cultura e teria a nossa admiração incondicional. Assim, como está, fechamos o livro encantados; todavia com um incómodo amargo de boca. NUNO VAZ MOURA

*Tradução minha. Original em inglês da editora Knopf Canada, 2001

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